Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:918/20.4BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:09/09/2021
Relator:JORGE PELICANO
Descritores:INTIMAÇÃO À EMISSÃO DE NORMAS REGULAMENTARES.
Sumário:I. O pedido de intimação à emissão de actos destinados a regular as condutas a adoptar pelo Recorrido sempre que seja confrontado, no futuro, com pedidos de acesso, por parte de terceiros, a informações ou a documentos que constem do procedimento relativo a pedidos de AIM de medicamentos genéricos, constitui um pedido de intimação à emissão de normas regulamentares e não de meras condutas materiais.

II. A natureza urgente da presente acção de intimação à emissão de normas regulamentares, não autoriza o afastamento dos requisitos previstos no art.º 77.º do CPTA para a emissão dessas normas.

III. Para que o pedido de intimação possa proceder, tem de se verificar a violação do dever de emissão de normas regulamentares que se mostrem necessárias para conferir exequibilidade a normas legais.

IV. O dever de emissão de normas regulamentares pode resultar de disposição expressa da lei, ou pode decorrer da circunstância das normas legais não poderem ser executadas sem a produção das normas regulamentares.

V. O n.º 6 do art.º 188.º do RJMUH não estabelece um dever de regulamentação, mas sim uma faculdade a exercer pelo Recorrido no âmbito dos seus poderes discricionários, podendo este, por isso, decidir quando e de que modo procede a tal regulamentação.

VI. As normas regulamentares a emitir apenas podem ser aquelas que se mostrem aptas a conferir exequibilidade às normas legais carentes de regulamentação.

VII. Da regulamentação da norma que consta do n.º 6 do art.º 188.º do RJMUH não podem vir a emergir quaisquer disposições sobre a forma de conciliar o exercício do direito de acesso à informação por parte de terceiros e o direito de propriedade industrial da Recorrente, ou sobre o exercício do direito de audiência prévia.

VIII. Tendo-se concluído que a acção principal não pode proceder, não tinha de ser facultado à Recorrente a possibilidade de, nos termos do art.º 110.º-A, n.º 1, do CPTA, vir a substituir a petição para o efeito de requerer a adopção de providência cautelar.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:N…, vem interpor recurso da sentença proferida no âmbito da presente acção de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, que, por falta de verificação de pressupostos processuais para intimação do Recorrido Infarmed - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P., à emissão de normas, procedeu à absolvição deste da instância.
Apresentou as seguintes conclusões com as suas alegações de recurso:
“1. O segmento petitório da ação intentada pela Recorrente assenta no seguinte pressuposto: “incluindo, mas sem limitação, (…) a adoção das seguintes condutas” (…).

2. Todas as condutas identificadas no pedido da Recorrente assumem a natureza de condutas materiais, i.e. atos materiais a praticar pela Recorrida.

3. Mesmo que se considerasse que o pedido da Recorrente não se reportava à adoção de condutas, sempre se dirá que o Tribunal tem poderes para ajustar a sua decisão à intimação à prática das condutas necessárias a acautelar os direitos da Recorrente.

4. O Tribunal a quo não está vinculado aos pedidos per se, podendo ajustá-los de forma a assegurar a proteção dos direitos invocados de forma proporcional.

5. O Tribunal a quo incorreu numa incorreta interpretação do disposto nos artigos 109.º, n.ºs 1 e 3, do CPTA.

6. Não se poderá aplicar, per se, o disposto no artigo 77º, 1 do CPTA per se, porquanto não estamos perante uma ação administrativa especial para a condenação na emissão de normas, mas sim um processo urgente de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias.

7. Os requisitos para a ação para condenação na emissão de normas, previstos no artigo 77º do CPTA, são distintos dos requisitos para decretamento a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, previstos no artigo 109º do CPTA.

8. O Tribunal a quo fez uma incorreta interpretação dos artigos 109º e 77º conjugados do CPTA.

9. Sem prejuízo da argumentação supra expendida, mesmo enquadrando-se a pretensão da Requerente nos termos do art.º 77.º do CPTA, esta haveria de proceder.

10. Deverá afastar-se o erro em que a sentença incorre ao afirmar que condenar o Requerido na emissão de um regulamento constituiria violação do princípio da separação dos poderes.

11. É a própria CRP que afirma, no art.º 202.º, n.º 2 que “Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.”.

12. Sendo o próprio art.º 77.º do CPTA, no contexto da obrigação de emissão de regulamento, um exemplo paradigmático do dever da ordem jurisdicional sindicar a ação ou omissão da administração pública.

13. Não há, por isso, qualquer violação do princípio da separação dos poderes em ver os tribunais condenarem uma entidade pública na emissão de um regulamento, o que se afigura claramente diferente de o tribunal definir o conteúdo desse regulamento, situação que está de todo afastada no caso em apreço.

14. Os pressupostos da condenação do Requerente na emissão de um regulamento são, essencialmente dois:

a) Alegação de um prejuízo diretamente resultante da situação de omissão; e

b) Ilegalidade da omissão de emissão de um regulamento, para dar exequibilidade a atos
legislativos carentes de regulamentação.

15. Quanto ao primeiro, está inequivocamente demonstrado – e constitui facto assente, seja pela prova documental junta, seja pela posição adotada pelo Requerido – que a divulgação a terceiros de documentos entregues ao Requerido, no âmbito de pedidos de autorização de introdução no mercado de medicamentos, constitui um prejuízo para a atividade comercial da Requerente.

16. Esta matéria factual foi devidamente explicitada na petição inicial, entre outros, sob os itens n.º 3 a 5, 25 a 28, 63 a 68 e 73 a 107, demonstrando-se explicitamente os prejuízos
causados à Requerente (indo por isso mais longe do que é legalmente exigido, já que neste domínio bastará a mera alegação, necessariamente verosímil).

17. Quanto ao segundo pressuposto – demonstração da situação de ilegalidade por omissão de normas cuja adoção, ao abrigo de disposições de direito administrativo, seja necessária para dar exequibilidade a atos legislativos carentes de regulamentação – o tribunal a quo errou novamente ao considerar que não existia qualquer ilegalidade por omissão de emissão de regulamento.

18. Notemos, em primeiro lugar, que não está apenas, ao contrário do afirmado pela decisão sindicada, a norma do art.º 189.º, n.º 6 do RJMUH e a conclusão que desse número se retira sobre o termo “pode”.

19. É necessário antes de mais perscrutar todo o edifício normativo em causa relativo à problemática em apreço que opõe os seguintes direitos e interesses:

a) Proteção da confidencialidade dos documentos entregues pela Requerente, enquanto titular de tais elementos entregues ao Requerente, para instruir os seus pedidos de autorização de introdução no mercado e que se presumem confidenciais, nos termos do art.º 188.º, n.º 2 e 3 do RJMUH e, bem assim, art.º 268.º, n.º 1 da CRP, entre outros, no sentido de ser garantido à Requerente a participação em todos os procedimentos administrativos em que tenha interesse, como é o caso do acesso a documentos confidenciais da sua titularidade; e, por outro lado,

b) Direito de terceiros, competidores da Requerente, em pedir o acesso a tais documentos, ao abrigo das normas consagradas nos art.º 268.º da CRP, 82.º, n.º 1 do CPA e da LADA.

20. A existência desta colisão de direitos é uma realidade assumida pela Requerente e aceite pelo Requerido.

21. Ou seja, quer a nossa Lei Fundamental, quer a legislação ordinária reclamam a necessidade da existência de um regulamento quanto ao pedido por terceiros de acesso aos documentos em causa que, desde logo, contemple uma fase de audiência prévia do titular dessa informação entregue e depositada no Requerido.

22. O pedido de acesso a tais informações não deixa de ser um procedimento administrativo e, como tal, deveria estar sujeito à mais sagrada regra de proteção dos interessados: o direito de audiência prévia.

23. Tendo esta realidade como pressuposta (e efetiva), torna-se necessário compreender em que medida o art.º 77.º, n.º 1 do CPTA lhe oferece alguma tutela, ou seja, se há ou não um dever de emissão de um regulamento.

24. Ora, quer partamos do próprio art.º 188.º do RJMUH – que congrega em si mesmo no n.º 2 e 3 a confidencialidade e no n.º 6 a necessidade de regulamentação –, quer atentemos no demais conjunto normativo sobre esta matéria – CRP, LADA, CPA – verifica-se uma imperiosa necessidade de regulamentar o acesso a tais documentos.

25. Não se trata de um simples poder discricionário de “poder regulamentar”, mas sim de um dever de o fazer, sob pena de violação dos princípios da legalidade, imparcialidade, proteção dos direitos e interesses dos particulares, entre outros.

26. “O dever de emitir o regulamento pode decorrer expressamente da lei ou pode decorrer “do facto de esta não poder pura e simplesmente ser executada sem um regulamento que densifique o seu conteúdo, que o concretize, desenvolva ou pormenoriza” – Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves De Oliveira, CPTA anotado, I, Coimbra, 2004, anotação ao art.º 77.º do CPTA – sublinhado nosso.

27. No caso concreto deste pleito, o dever – no sentido de ser obrigatório – de regulamentar o acesso aos documentos não está expressamente consagrado na lei, mas é uma necessidade que se impõe ao Requerente, em face da realidade com o qual se depara diariamente, seja porque as normas legais de acesso a documentos o impõem, seja porque é o próprio RJMUH a consagrar esse direito de acesso.

28. E este dever de regulamentação não é superado pelo facto do n.º 6 usar o termo “pode”. O Requerido até poderia fazê-lo espontaneamente.


29. Mas, não o tendo feito e demonstrando a realidade que há um verdadeiro dever em fazê-lo, o regulamento terá de ser emitido.

30. Sob pena de ser inexequível a lei que consagra a confidencialidade dos documentos da Requerente (art.º 188.º, n.º 2 e 3 do RJMUH) ou do direito de audiência prévia (art.º 268.º, n.º 1 da CRP e 121.º, n.º 1 do CPA), dado que o Requerente decide sozinho o que são ou não documentos que podem ser revelados (e, quanto a isso, a Lei não lhe atribui qualquer poder decisório, nem tal resulta das suas competências estatutárias) e fá-lo sem tampouco escutar a Requerente.

31. Daí que a ausência de um regulamento não permita garantir – o que resulta da prática que o Requerido reconhece adotar fornecendo os elementos que lhe são solicitados por terceiros sobre os documentos da requerente que instruem os seus pedidos de autorização de introdução no mercado de medicamentos – o respeito pela confidencialidade consagrada na lei, precisamente neste art.º 188.º, n.º 2 e 3.

32. E esse procedimento, concretizado em regulamento, tem de existir, previamente definido e garantido aos interessados o direito de tomarem parte na decisão que o Requerido, entidade administrativa, venha a proferir.

33. Em suma, há, desta forma, a necessidade de emissão de um regulamento, para a correta concretização da lei que refere o acesso aos documentos administrativos em causa, nomeadamente o art.º 188.º do RJMUH.

34. A omissão de emissão de regulamento, enquanto geradora da violação dos referidos princípios legais, bem como dos próprios direitos e interesses da requerente – (i) em ver conservada a confidencialidade dos documentos que integra e (ii) tomar parte no procedimento administrativo que fornece a terceiros tais documentos – é manifestamente ilegal.

35. Ao decidir em sentido oposto, a sentença em crise violou, entre outras, as normas consagradas nos art.º 268.º, n.º 1 da CRP, 82.º, n.º 1 do CPA, art.º 6.º, n.º 6 da LADA e art.º 188.º, n.º 2, 3 e 6 do RJMUH e art.º 77.º do CPTA.

36. Impondo-se por isso a condenação do Requerido na emissão de um regulamento justo, imparcial, adequado e proporcional, em prazo não superior a 60 dias, que garanta a efetiva participação da requerente no procedimento de acesso por terceiros de documentos que são relativos aos seus pedidos de autorização de introdução no mercado de medicamentos.

37. Caso se julguem procedentes os argumentos aduzidos pelo Tribunal a quo, a sentença sempre deveria ter sido substituída por despacho nos termos do artigo 110º-A, n.º 1 do CPTA.

38. Considerando que não estariam preenchidos os requisitos para que fosse ordenada a intimação nos termos peticionados, sempre deveria a Recorrente ser notificada para requerer a adoção de providência cautelar.

39. O Tribunal a quo interpretou incorretamente o disposto nos artigos 110º e 110-A do CPTA.

Termos em que deve o recurso interposto pelas Recorrentes ser julgado procedente, ser revogada da sentença recorrida e ordenada o prosseguimento dos autos ou, em alternativa, a intimação da Recorrida nos termos peticionados pela Recorrente.”


O Recorrido apresentou contra-alegações, que concluiu da seguinte forma:
“O INFARMED ao longo dos tempos foi tendo uma posição de defesa dos segredos comerciais e industriais dos requerentes de AIM.
Nomeadamente porque o INFARMED é meramente um instituto público com atribuições e competências limitadas à supervisão e regulação de todo o circuito do medicamento, i.e. desde a produção à dispensa em farmácia, não tendo, naturalmente, qualquer autoridade para arbitrar ou imiscuir-se em qualquer disputa que envolva direitos de propriedade industrial.
Prova do que se acabou de referir consta de dois documentos que juntaram com a Resposta e que constituem decisões proferidas pelo douto TAC Lisboa e por este Venerando TCA Sul em intimações para prestação de certidões e documentos, onde, em ambos os relatórios, é perfeitamente clara a posição do INFARMED de defesa dos direitos de confidencialidade dos requerentes de AIM.
Porém, os Tribunais nacionais demonstraram que a posição do INFARMED não era a mais correta e que a defesa dos direitos de confidencialidade dos requerentes de AIM não poderia colocar em causa o direito ao acesso à informação por parte dos detentores de direitos de propriedade industrial, concretamente se essa informação visasse precisamente a defesa desses mesmos direitos.
Assim, coube ao INFARMED adotar a sua conduta à melhor interpretação da legislação aplicável que foi sendo feita pelos Tribunais Nacionais, em especial pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 2/2013.
Pelo que, não obstante o artigo 188.º/5 do Estatuto do Medicamento só tenha sido declarado inconstitucional no caso concreto e sem força obrigatória geral, não faria qualquer sentido que o INFARMED, estando estritamente vinculado ao princípio da legalidade, não aplicasse o referido artigo de forma diversa à efetuada naquele acórdão.
Desta forma, e não obstante a ainda formulação do artigo 188.º/5 do Estatuto do Medicamento, o INFARMED quando recebe um pedido de certidão / informação efetuado por um qualquer detentor de direitos de propriedade industrial relativo a pedidos de AIM ainda não decididos, avalia sempre se, nos termos do CPA, o requerente possui um interesse legítimo, e apenas concede a informação que ao abrigo do Acórdão n.º 2/2013 proferido pelo Tribunal Constitucional não pode deixar de divulgar.
Isto é, o INFARMED efetua sempre uma avaliação entre a existência de segredo do requerente de AIM e o direito de acesso à informação decorrente do princípio geral da administração aberta do requerente da informação.
Exemplo dessa avaliação consta no documento n.º 1 da comunicação que o INFARMED enviou à CADA relativamente à queixa efetuada pela Requerente e que é referida no Requerimento Inicial (Cfr. Documento n.º 3 junto com a resposta).
Caso, os pedidos de pedidos de certidão / informação efetuados pelos detentores de direitos de propriedade industrial sejam efetuados após a conclusão do procedimento de AIM, o INFAREMD atua sempre tendo em conta a LADA e as exceções ao princípio de acesso geral à informação; expurgando sempre os elementos necessários nos termos do artigo 6.º da LADA.
Dito isto, refira-se que, nos termos do TCE, o INFARMED encontra-se numa relação de dependência com a EMA, na medida em que esta última efetua a regulação e supervisão de medicamentos em toda a União Europeia com a colaboração de cada agência nacional do medicamento.
Desta forma, e também porque há procedimentos de AIM que assim o exigem, nomeadamente o descentralizado, previsto nos artigos 47.º e seguintes do Estatuto do Medicamento, é relevante perceber que a atuação do INFARMED ao abrigo do normativo nacional vai também ao encontro do normativo europeu e da jurisprudência europeia.
De facto, a interpretação que o TJUE efetuou do Regulamento CE 1049/2001 é que só muito excecionalmente não se poderá conceder toda a informação / documentação sugerida, pedindo sempre uma avaliação casuística da informação dada e da sua justificação.
Assim, é apodítico que não há nenhum prejuízo que a Requerente pode apontar ao INFARMED por este não ter emitido as normas regulamentares que entende que deveriam ter sido proferidas, já que o INFARMED atua de acordo com a mais alta jurisprudência.
Da mesma forma, e consequentemente, também se conclui que não há violação de qualquer norma legal por o INFARMED não ter proferido manado as normas que a Requerente pretende.”.

Foi cumprido o disposto no art.° 146.° do CPTA.

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Objecto do recurso.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos artigos 144º, nº 2, e 146º, nº 4, do CPTA e dos artigos 635º nºs 4 e 5 e 639º do CPC, ex vi art.º 140º do CPTA.
Cumpre, assim, decidir se o saneador sentença recorrido sofre do erro de julgamento que lhe é imputado por ter considerado que a Recorrente pediu, na P.I., a intimação do Recorrido a emitir actos jurídicos (e não actos materiais) e que não se verificam os requisitos previstos no art.º 77.º do CPTA de que depende a intimação do Recorrido para proceder à emissão de normas.
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Direito
A Recorrente começa por defender que o saneador sentença sofre de erro de julgamento ao ter considerado que na P.I. não foi requerida a intimação do Recorrido a adoptar actos materiais mas apenas actos jurídicos.
Não lhe assiste razão.
A Recorrente confunde o acto enquanto forma de produção de enunciados normativos com o conteúdo que entende que esses actos devem assumir.
Na P.I. a Recorrente pede a intimação do Recorrido a “aprovar todos os atos, incluindo, mas sem limitação, a emissão de orientações, diretrizes, circulares, que imponham aos seus serviços, caso seja contactado por titulares de direitos de propriedade industrial com pedidos de acessos a informações ou documentos relativos a pedidos de autorização de introdução no mercado (“AIM”) de medicamentos genéricos, a adoção das seguintes condutas:
i. Informar imediatamente a Requerente do pedido de AIM apresentado, concedendo-lhe um prazo razoável de pronúncia;
ii. Recusar a divulgação dos documentos identificados pelo artigo 188.º do Regime Jurídico dos Medicamentos de Uso Humano (“RJMUH”), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de agosto, como confidenciais antes da decisão final de concessão das AIM’s;
iii. Analisar os direitos invocados pelas empresas titulares de direitos de propriedade industrial e, após tal análise, verificar que parte da documentação é necessária para a apreciação dos direitos invocados;
iv. Estabelecer medidas de confidencialidade estritas que impeçam a utilização indevida dos documentos, limitem o acesso aos documentos a um número restrito de pessoas, impeçam a divulgação dos documentos em outros processos ou jurisdições, quer pela empresa requerente quer pelas pessoas que tenham acesso à documentação.
v. Notificar previamente a Requerente do pedido de AIM apresentado de quaisquer medidas ordenadas e dos documentos que pretenda entregar, concedendo-lhe um prazo razoável de pronúncia.”.

Como se vê, a Recorrente pede que o Recorrido seja intimado a aprovar actos que imponham a adopção de determinados condutas sempre que este último seja contactado por terceiros titulares de direitos de propriedade industrial que requeiram o acesso a informações ou documentos relativos a pedidos de AIM de medicamentos genéricos.
Não está em causa a intimação do Recorrido a adoptar actos num determinado caso concreto que esteja em discussão, mas sim a adopção de actos que imponham determinadas condutas sempre que o Recorrido seja confrontado, no futuro, com pedidos de acesso, por parte de terceiros, às referidas informações e documentos.
Trata-se, portanto, da produção de actos jurídicos destinados a regular as condutas a adoptar pelo Recorrido sempre que se verifique a indicada situação, pelo que estamos em presença de actos normativos, por se verificarem as características da generalidade e da abstracção.
Tais actos, apesar de dirigidos aos serviços do Recorrido, não deixariam, por isso, de constituir normas.
Para além disso e como resulta do teor do pedido deduzido, tratar-se-íam de normas que, a serem emanadas, produziriam efeitos na esfera jurídica dos titulares dos documentos a divulgar, pelo que estaríamos perante normas que se destinariam a produzir efeitos jurídicos externos.
Ainda que se interpretasse o pedido deduzido na P.I. no sentido de que os actos a proferir teriam apenas aplicação quando estivesse em causa a divulgação de informações ou documentos da Recorrente (e não de outras sociedades), sempre se aplicaria o regime da emissão de normas regulamentares, uma vez que, por tais actos se destinarem a regular, no futuro, todas as situações que preenchessem a respectiva previsão, seriam de aplicação permanente a um número indeterminado de casos, o que demonstra a presença da característica da abstração própria das normas jurídicas e que sempre justificaria a aplicação, por analogia, do regime jurídico dos regulamentos administrativos – cfr. sobre a questão, Ana Raquel Moniz, “Os regulamentos administrativos na revisão do CPA”, CJA n.º 100, Julho/Agosto 2013.
Há, assim, que concluir que o saneador sentença recorrido não errou ao decidir que a Recorrente pede a intimação do Recorrido à adopção de actos jurídicos e não de actos materiais.
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Defende a Recorrente que, ainda que se entenda que não pediu a intimação do Recorrido à adopção de actos materiais, o Tribunal a quo errou por não ter “ajustado o pedido” e não ter intimado o Recorrido a adoptar as condutas necessárias a acautelar os direitos que aquela se apresenta a defender na presente acção, tendo, por isso, sido violado o art.º 109.º, n.ºs 1 e 3 do CPTA.
As normas que constam do art.º 109.º, n.ºs 1 e 3 do CPTA não conferem ao Tribunal os poderes que a Recorrente lhe quer atribuir.
Não estamos perante um pedido de emissão de acto administrativo de conteúdo estritamente vinculado que permitisse ao Tribunal emitir sentença que produzisse os efeitos de qualquer acto devido, nos termos do nº 3 do referido artigo.
O objecto do processo fixou-se com a citação (cfr. artigos 260.º, 264.º e 265.º, todos do CPC) e não existe norma no CPTA que permita ao Tribunal proceder à sua alteração de forma unilateral (cfr., em especial, os artigos 63.º e 70.º do CPTA).
O disposto no art.º 120.º, n.ºs 2, 3 e 4 do CPTA, que a Recorrente também parece invocar, apenas tem aplicação no âmbito dos processos cautelares.
Concluiu-se, assim, que o saneador sentença não errou por não ter procedido à alteração do objecto do processo.
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Alega ainda a Recorrente que o art.º 77.º, n.º 1 do CPTA não tem aplicação na presente acção de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, desde logo por esta acção constituir um meio subsidiário de tutela a usar como válvula de segurança do sistema de garantias contenciosas nas situações em que as outras formas de processo não se revelarem aptas a assegurar a protecção dos direitos e interesses envolvidos.
Contrariamente ao defendido pela Recorrente, a natureza urgente da presente acção e a circunstância da mesma poder ter como objecto a intimação à adopção de actos, normas ou de condutas que se revelem indispensáveis para assegurar o exercício em tempo útil de um direito, liberdade ou garantia, não autoriza o afastamento dos requisitos legalmente previstos para a emissão desses actos, normas ou condutas.
Nada na lei o permite, pelo que o saneador sentença recorrido não errou ao ter decidido que o pedido de intimação à emissão de actos que foi deduzido tinha de preencher os requisitos previstos no art.º 77.º do CPTA.
Entende ainda a Recorrente que, a aplicar-se o disposto no art.º 77.º do CPTA, deve concluir-se que estão preenchidos os requisitos aí previstos e defende que o Tribunal a quo errou ao ter decidido que, no caso, não se verifica qualquer situação de omissão regulamentar e que, por isso, não podia condenar o Recorrido a emitir as normas requeridas.
O art.º 77.º do CPTA impõe como requisito para a procedência do pedido de condenação à emissão de normas, que se verifique “a existência de situações de ilegalidade por omissão das normas cuja adoção, ao abrigo de disposições de direito administrativo, seja necessária para dar exequibilidade a atos legislativos carentes de regulamentação”.
Tal como se refere no ac. do TCAS, proferido em 09/12/2010 no âmbito do proc.º n.º 02161/06, acessível in www.dgsi.pt, “o interesse protegido na pronúncia condenatória à emissão de regulamentos cinge-se à inexistência de normação administrativa de execução de comando legal carecido da mesma para efeitos de operatividade.”.
Isto é, para que o pedido de intimação à emissão de normas possa proceder, tem de se verificar a violação de um dever de emissão de normas regulamentares que se mostrem necessárias para conferir exequibilidade a normas legais.
Tal dever pode resultar de disposição expressa da lei, ou pode decorrer da circunstância das normas legais não poderem ser executadas sem a produção das normas regulamentares – cfr. Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos, in “Direito Administrativo Geral”, T. III, 2ª ed. D. Quixote, 2010, pág. 256.
As normas regulamentares omitidas têm de se mostrar necessárias para conferir exequibilidade às normas legais. Não existe violação do dever de emissão de normas regulamentares quando estas se mostram apenas convenientes para conferir exequibilidade às normas legais – cfr. Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, Almedina, 2017, pág. 546 e Ana Raquel Moniz, “O Controlo Judicial do Exercício do Poder Regulamentar no Código de Processo nos Tribunais Administrativos (Impugnação Direta e Indireta de Regulamentos e Omissões Regulamentares)”, in o "Contencioso das normas regulamentares", pág. 108, e-book, CEJ.
O STA, no ac. datado de 30/01/2007, proferido no âmbito do proc. n.º0310/06, in www.dgsi.pt, decidiu que “a declaração de ilegalidade por omissão de normas regulamentares depende do preenchimento dos seguintes pressupostos que decorrem do texto do artigo 77º do CPTA e dos princípios gerais de direito:
1 – É necessário que a omissão seja relativa à falta de emissão de normas cuja adopção possa considerar-se, sem margem de dúvida, como exigência da lei.
2 - É necessário que o acto legislativo careça de regulamentação para ser exequível, isto é, faltem elementos para poder ser aplicada aos casos da vida visados no âmbito da norma, elementos esses cuja definição o legislador voluntariamente endossou para concretização através de regulamento.
3 - É necessário que a obrigação de regulamentar se tenha tornado exigível, por ter decorrido o prazo para efectuar a regulamentação.
O segundo requisito desdobra-se em dois aspectos, a necessidade do regulamento e a autorização para regulamentar, sendo que entre eles existem certas relações, mas também alguma autonomia
.”.
Tal doutrina encontra-se ainda expressa no ac. do STA datado de 06/05/2010, proferido no proc. n.º 0977/07, in www.dgsi.pt

No presente caso, a Recorrente alega que está a ser lesada pela divulgação, por parte do Recorrido, de informação confidencial que consta dos pedidos de AIM de medicamentos genéricos por ela apresentados, que deve manter-se sujeita a segredo comercial e defende que é necessária a emissão de um regulamento que concilie o direito de acesso a essa informação por parte de terceiros e o direito de propriedade industrial da Recorrente, devendo ainda ser instituído o exercício do direito de audiência prévia.

Defende que o Tribunal a quo errou ao ter decidido que o poder regulamentar previsto no n.º 6 do art.º 188.º do regime jurídico dos medicamentos de uso humano (adiante designado por RJMUH), aprovado pelo DL n.º 176/2006, de 30 de Agosto, é um poder discricionário e que, por isso, não pode condenar o Recorrido a emitir as correspondentes normas regulamentares.
A Recorrente invoca ainda a violação do art.º 268.º, n.º 1 da CRP, do art.º 82.º, n.º 1 do CPA, do art.º 6.º, n.º 6 da LADA, do art.º 77.º do CPTA e os princípios da legalidade, da prossecução do interesse público e da imparcialidade para defender a necessidade de emissão de normas regulamentares que assegurem o direito à confidencialidade dos documentos que constam do procedimento de AIM de medicamentos genéricos, bem assim como o direito de audiência prévia relativamente à decisão do pedido de informação apresentado por terceiros.
Os direitos que a Recorrente invoca têm de derivar directamente da norma que careça de regulamentação para se tornar exequível.
O art.º 188.º do RJMUH, que tem por epígrafe “dever de confidencialidade”, estabelece o seguinte:
1 - Os trabalhadores em funções públicas e outros colaboradores do INFARMED, I.P., bem como qualquer pessoa que, por ocasião do exercício das suas funções, tome conhecimento de elementos ou documentos apresentados ao INFARMED, I.P., à Comissão Europeia, à Agência ou à autoridade competente de outro Estado membro, estão sujeitos ao dever de sigilo.
2 - São confidenciais os elementos ou documentos apresentados ao INFARMED, I.P., ou a este transmitidos pela Comissão Europeia, pela Agência ou pela autoridade competente de outro Estado membro, sem prejuízo do disposto no presente decreto -lei.
3 - Presume -se que todo e qualquer elemento ou documento previsto nos números anteriores é classificado ou é suscetível de revelar um segredo comercial, industrial ou profissional ou um segredo relativo a um direito de propriedade literária, artística ou científica, salvo se o órgão de direção do INFARMED, I.P., decidir em sentido contrário.
4 - Sem prejuízo do disposto na parte final do número anterior, o fornecimento de informação a terceiros sobre um pedido de autorização, ou registo, de introdução no mercado de um medicamento de uso humano, é diferido até à tomada da decisão final.
5 - Sempre que o requerente da informação sobre um pedido de autorização, ou registo, de introdução no mercado de um medicamento de uso humano for um terceiro que, nos termos do artigo 64.º do Código do Procedimento Administrativo, demonstre ter legítimo interesse no conhecimento desses elementos, e ainda não tenha sido proferida decisão final sobre aquele pedido, é fornecida, apenas, a seguinte informação:
a) Nome do requerente da autorização de introdução no mercado;
b) Data do pedido;
c) Substância, dosagem e forma farmacêutica do medicamento;
d) Medicamento de referência.
6 - O INFARMED, I.P., pode estabelecer regras relativas à identificação, pelos requerentes ou apresentantes de quaisquer documentos ou informações, dos elementos em relação aos quais estes considerem dever ser garantida a confidencialidade, bem como relativamente à apresentação de versões não confidenciais dos mesmos documentos.

O transcrito n.º 6 do art.º 188.º do RJMUH não estabelece um dever de regulamentação, mas sim uma faculdade a exercer pelo Recorrido no âmbito dos seus poderes discricionários, podendo este, por isso, decidir quando e de que modo procede a tal regulamentação.
Por outro lado, da regulamentação da norma que consta do referido n.º 6 não podem vir a emergir quaisquer disposições sobre a forma de conciliar o exercício do direito de acesso à informação por parte de terceiros e o direito de propriedade industrial da Recorrente, ou sobre o exercício do direito de audiência prévia.
É que as normas regulamentares a emitir apenas podem ser aquelas que se mostrem aptas a conferir exequibilidade às normas legais carentes de regulamentação.
O referido n.º 6 permite que se estabeleçam “regras relativas à identificação, pelos requerentes ou apresentantes de quaisquer documentos ou informações, dos elementos em relação aos quais estes considerem dever ser garantida a confidencialidade, bem como relativamente à apresentação de versões não confidenciais dos mesmos documentos”, o que tem um alcance diverso das normas que a Recorrente quer ver instituídas, tal como se refere no saneador sentença recorrido.
Acresce que a regulamentação que a Recorrente quer ver produzida não é necessária para conferir operatividade ao disposto no art.º 188.º do RJMUH, uma vez que, para além de aí se encontrar consagrada a presunção de confidencialidade dos documentos e demais elementos apresentados ao Recorrido (vejam-se os números 2 e 3 desse artigo), o seu número 5 estabelece quais são os elementos que este pode fornecer a terceiros antes de ter sido tomada a decisão final no procedimento que decide o pedido de AIM. Trata-se de norma que não carece de qualquer regulamentação para poder ser aplicada.
A omissão ilegal do dever de regulamentação que a Recorrente invoca também não encontra sustentação no art.º 268.º, n.º 1 da CRP, no art.º 82.º, n.º 1 do CPA, no art.º 6.º, n.º 6 da LADA, nem nos princípios da legalidade, da prossecução do interesse público e da imparcialidade, invocados pela Recorrente.
Sobre os pedidos de informação não procedimental rege a LADA em termos que não carecem de regulamentação para salvaguarda do direito de confidencialidade que a Recorrente se apresenta a defender – cfr, em especial o seu art.º 6.º, n.º 6.
As situações em que o direito de audiência prévia pode ser exercido também se encontram previstas para a generalidade dos procedimentos nos artigos 121.º a 125,º do CPA, em termos que não carecem de regulamentação para que tais normas sejam exequíveis.
Note-se que, face ao disposto no art.º 77.º do CPTA, o que releva para efeitos de determinar se existe ilegalidade por omissão do dever de regulamentação, é a impossibilidade de dar execução às normas legais e não a mera conveniência em proferir regulamentação que melhore a execução da lei.
Face ao exposto, há que concluir que não se verifica a invocada violação do dever de regulamentação, pelo que o saneador sentença recorrido não errou ao ter assim decidido.
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Por fim, alega a Recorrente que o Tribunal a quo errou por, em lugar de ter proferido a decisão recorrida, não a ter convidado a substituir a petição, de forma a poder requerer a adopção de uma providência cautelar, conforme previsto no art.º 110.º-A do CPTA.
Não lhe assiste razão, uma vez que, tendo-se concluído que a acção principal não pode proceder, por não existir violação do dever de regulamentação, não há que facultar a possibilidade de instauração do correspondente processo cautelar, uma vez que entre este e a acção principal existe uma relação de instrumentalidade que obsta à formulação do referido convite, sob pena de se vir a praticar um acto inútil.
Decisão
Face ao exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida.

Sem custas, em razão da natureza objectiva da isenção – art.º 4.º, n.º 2, al. b) do RCP.


Lisboa, 09 de Setembro de 2021

O relator consigna, nos termos do disposto no art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo art. 3.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, que têm voto de conformidade com o presente acórdão os Senhores Juízes Desembargadores Celestina Castanheira e Carlos Araújo, este intervindo em substituição, que integram a formação de julgamento.
Jorge Pelicano