Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:914/18.1BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:03/28/2019
Relator:JOAQUIM CONDESSO
Descritores:INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA HIERARQUIA. INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DO TRIBUNAL.
MATÉRIA DE FACTO. MATÉRIA DE DIREITO.
CRITÉRIO JURÍDICO PARA DESTRINÇAR SE ESTAMOS PERANTE UMA QUESTÃO DE DIREITO OU UMA QUESTÃO DE FACTO.
O RECURSO JUDICIAL DA DECISÃO DE APLICAÇÃO DE COIMA É O MEIO PROCESSUAL ADEQUADO PARA IMPUGNAR A DECISÃO ADMINISTRATIVA QUE FAZ ESSA APLICAÇÃO.
ARTº.80, Nº.1, DO R.G.I.T.
ARTº.105, Nº.4, AL.B), DO R.G.I.T.
CONDIÇÃO OBJECTIVA DE PUNIBILIDADE DO CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL.
REJEIÇÃO DO RECURSO DEDUZIDO, DADO NÃO TER POR OBJECTO UMA DECISÃO DE APLICAÇÃO DE COIMA.
Sumário:1. Nos termos do artº.280, nº.1, C. P. P. Tributário, das decisões dos Tribunais Tributários de 1.ª Instância cabe recurso a interpor, em primeira linha, para os Tribunais Centrais Administrativos, salvo quando a matéria for exclusivamente de direito, caso em que tal recurso tem de ser interposto para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo (cfr.artº.83, nºs.1 e 2, do R.G.I.T.). A violação desta regra de competência, em razão da hierarquia, determina, por previsão explícita do artº.16, nº.1, do C. P. P. Tributário, a incompetência absoluta do tribunal, ao qual é, indevidamente, dirigido o recurso.
2. A competência do tribunal afere-se face à pretensão formulada pelo autor na petição inicial, traduzida no binómio pedido/causa de pedir, ou seja, face ao “quid disputatum” e não em função do “quid decisum”, isto é, a competência determina-se pelo pedido do autor, irrelevando qualquer tipo de indagação acerca do mérito do mesmo.
3. Nos termos do artº.26, al.b), do E.T.A.F., atribui-se competência à Secção do Contencioso Tributário do S.T.A. para conhecer dos recursos interpostos das decisões dos Tribunais Tributários, com exclusivo fundamento em matéria de direito. Por sua vez, o artº.38, al.a), do E.T.A.F., atribui competência à Secção de Contencioso Tributário de cada Tribunal Central Administrativo para conhecer dos recursos de decisões dos Tribunais Tributários, ressalvando-se o disposto no citado artº.26, al.b), do mesmo diploma.
4. O recurso não versa exclusivamente matéria de direito, se nas suas conclusões se questionar matéria factual, manifestando-se divergência, por insuficiência, excesso ou erro, quanto à factualidade provada na decisão recorrida, quer porque se entenda que os factos levados ao probatório não estão provados, quer porque se considere que foram esquecidos factos tidos por relevantes, quer porque se defenda que a prova produzida foi insuficiente, quer, ainda, porque se divirja nas ilações de facto que se devam retirar dos mesmos.
5. São factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os reais, como os simplesmente hipotéticos. São ainda de equiparar aos factos os juízos que contenham subsunção a um conceito jurídico geralmente conhecido e que sejam de uso corrente (v.g.”pagar”; “vender”; “arrendar”). Existe matéria de facto quando o apuramento das realidades se faz todo à margem da aplicação directa da lei, isto é, quando se trata de averiguar factualidade cuja existência, ou não existência, não depende da interpretação a dar a nenhuma norma jurídica. Por sua vez, existe matéria de direito sempre que, para se chegar a uma solução, se torna necessário recorrer a uma disposição legal, ainda que se trate unicamente de fixar a interpretação duma simples palavra constante de uma norma legal concreta, seja de direito substancial, seja de direito processual.
6. O critério jurídico para destrinçar se estamos perante uma questão de direito ou uma questão de facto, passa por saber se o recorrente faz apelo, nos fundamentos do recurso substanciados nas conclusões, apenas a normas ou princípios jurídicos que tenham sido na sentença recorrida supostamente violados na sua determinação, interpretação ou aplicação, ou se, por outro lado, também apela à consideração de quaisquer factos materiais ou ocorrências da vida real (fenómenos da natureza ou manifestações concretas da vida mesmo que do foro espiritual ou volitivo), independentemente da sua pertinência, merecimento ou acerto para a solução do recurso.
7. No caso “sub judice”, conforme se retira das conclusões 1 e 10 da apelação, o recorrente apela à consideração de factos materiais ou ocorrências da vida real, os quais estão para além da mera interpretação de normas ou princípios jurídicos que tenham sido na decisão recorrida, supostamente, violados na sua determinação.
8. Concluindo, os fundamentos do presente recurso não versam, exclusivamente, matéria de direito, pelo que a competência para o seu conhecimento pertence a este Tribunal, por força do artº.38, al.a), do E.T.A.F., e não ao S.T.A.-2ª.Secção, atento o disposto nos artºs.12, nº.5, e 26, al.b), do E.T.A.F. (cfr. artº.83, nº.1, do R.G.I.T.).
9. Nos termos do artº.80, nº.1, do R.G.I.T., o recurso judicial da decisão de aplicação de coima é o meio processual adequado para impugnar a decisão administrativa que faz essa aplicação, mais tendo legitimidade para utilizar esta forma de processo o arguido ou o seu defensor (cfr.artº.59, nº.2, do R.G.C.O., “ex vi” do artº.3, al.b), do R.G.I.T.
10. O legislador consagrou no artº.105, nº.4, al.b), do R.G.I.T., uma condição objectiva de punibilidade do crime de abuso de confiança fiscal, prescrevendo que a não entrega da prestação tributária só será punível se não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito.
11. Os pressupostos de punibilidade podem incluir as ditas condições objectivas de punibilidade ou, numa perspectiva negativa, causas materiais de exclusão da pena, as quais não são abrangidas pelo dolo ou negligência do tipo de ilícito em causa.
12. No caso dos autos, foi a notificação prevista no artº.105, nº.4, al.b), do R.G.I.T., que foi efectuada, se bem que restrita ao pagamento do valor da coima aplicável e com vista a fazer funcionar a identificada condição objectiva de punibilidade do crime de abuso de confiança fiscal.
13. O recurso judicial apresentado pelo recorrente no caso “sub judice”, ao abrigo do artº.80, do R.G.I.T., não vem interposto de uma decisão de aplicação de coima, motivo pelo qual deve ser rejeitado.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO
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RELATÓRIO
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"A……. – M…….., L.DA.", com os demais sinais dos autos, deduziu recurso dirigido a este Tribunal tendo por objecto despacho proferido pelo Mº. Juiz do T.A.F. de Sintra, exarada a fls.38 a 40 do presente processo de recurso de contra-ordenação, através do qual, em sede liminar, rejeitou o recurso deduzido pela sociedade arguida ao abrigo do artº.80, do R.G.I.T., dado não ter por objecto decisão de aplicação de coima, tudo no âmbito de processo de contra-ordenação nº……..-2018/…….., o qual corre seus termos no 2º. Serviço de Finanças de Oeiras.
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O recorrente termina as alegações do recurso (cfr.fls.42 e 43 do processo físico) formulando as seguintes Conclusões:
1-Na douta sentença que ora se recorre pode ler-se “é certo que, atenta a redação dada ao ofício referido em B) dos factos provados - designadamente na parte em que aí alude ao “pagamento da coima”, poderia considerar-se que a ora recorrente foi induzida em erro quanto à natureza da notificação que lhe foi efetuada”;
2-Do trecho transcrito demonstra que houve um erro de notificação;
3-Contudo, o Tribunal a quo veio considerar que “o recurso apresentado pela recorrente ao abrigo do art.80.º do RGIT não vem interposto de uma decisão de aplicação de coima, motivo pelo qual não é admissível”;
4-É manifesto, in casu, que o douto Tribunal violou dos mais elementares poderes/ deveres que está vinculado;
5-Isto é, ocorrendo erro na forma do processo, constitui um poder/dever vinculado do juiz a convolação do processo na forma processual adequada (artigos 98.º n.º 4 do CPPT e 97.º nº 3 da LGT);
6-Porém o douto Tribunal fez tábua rasa desse poder/dever e, consequentemente, rejeitou o recurso apresentado pela recorrente;
7-Assim, por aplicação dos princípios da tutela jurisdicional efectiva, pro accione, incumbiria ao juiz, no âmbito dos seus poderes de gestão processual, considerar que teria havido um erro na qualificação do meio processual utilizado e determinar a convolação do recurso na forma de processo adequada;
8-O que desde já se requer a este Tribunal que ora se recorre, convolando o presente recurso judicial na forma de processo adequada;
9-Diga-se que in casu estamos perante uma nulidade citação;
10-Pois nas próprias palavras do douto Tribunal a quo “atenta a redação dada ao ofício referido em B) dos factos provados considera-se – designadamente na parte em que aí se alude “pagamento de coima” poderia considerar-se que a ora recorrente foi induzida em erro quanto à natureza da notificação lhe foi efetuada;
11-Isto é nos termos do art. 191.º, nº1 do CPC é nula a citação quando não hajam sido, na sua realização, observadas as formalidades prescritas na lei;
12-Tal erro levou a recorrente a considerar que estava no âmbito de uma decisão proferida num processo de contraordenação e, só por isso, impugnou tal decisão mediante recurso judicial;
13-Por tudo isto e porque a falta cometida prejudicou o direito de defesa da recorrente, em termos do exercício efectivo deste seu direito, apenas uma repetição do acto de citação poderá sanar a nulidade cometida, ordenando-se consequentemente a mesma, observando-se os legais formalismos, de forma a permitir-se à recorrente apresentar sua defesa em Tribunal;
14-Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas doutamente suprirão deve este recurso ser julgado procedente e, consequentemente, V. Exas. procederem á convolação do presente recurso judicial na forma de processo adequada ou, caso assim não entendam, concedendo sem conceder, proceder à repetição da citação, visto a anterior ser ferida de nulidade de modo a permitir à ora recorrente o correto e efetivo exercício da sua defesa, assim fazendo a tão DOUTA E ACOSTUMADA JUSTIÇA!
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Não foram produzidas contra-alegações.
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O Digno Magistrado do M. P. junto deste Tribunal emitiu douto parecer no qual suscita a excepção de incompetência absoluta, em razão da hierarquia, deste Tribunal (cfr.fls.52 e 53 do processo físico).
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Notificados os restantes intervenientes processuais da excepção alegada pelo M. P., a sociedade arguida, sendo caso disso, requer a remessa dos autos à Secção de Contencioso Tributário do S.T.A. (cfr.requerimento junto a fls.59 do processo físico).
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Com dispensa de vistos legais, atenta a simplicidade das questões a dirimir, vêm os autos à conferência para deliberação.
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FUNDAMENTAÇÃO
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DE FACTO
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A decisão recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto (cfr.fls.38 e 39 do processo físico):
A-Em 15/03/2018, no 2º. Serviço de Finanças de Oeiras foi instaurado contra a ora recorrente, "A….. – M……, L.da.", o processo de contraordenação nº…..-2018/…… com fundamento na falta de pagamento de IVA (2016/12) no valor de € 283.272,94 (cfr.documentos juntos a fls.5, 6 e 7 do processo físico);
B-Por ofício de 19.04.2018 foi a ora recorrente notificada “nos termos da alínea b) do n.º 4 do Artº 105º do Regime Geral das Infrações Tributárias”, conforme documento junto a fls.14 do processo físico, cujo teor aqui se dá por reproduzido, para “efetuar o pagamento da(s) prestação(ões) em falta, acrescida(s) dos respetivos juros de mora e coima aplicável no prazo de 30 dias…”, mais referindo que “[o] valor da coima é de € 45.000,00, quantificado nos termos dos artigos 105º, n.º 4, alínea b), 114º e 26º do RGIT” (cfr.documento junto a fls.14 do processo físico);
C-Em 03.08.2018 deu entrada no 2º. Serviço de Finanças de Oeiras a petição de recurso ora em apreciação (cfr.documentos juntos a fls.17 a 23 do processo físico).
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A fundamentação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte: “…A decisão da matéria de facto assenta nos documentos mencionados em cada uma das respetivas alíneas, os quais não vêm impugnados nem existem indícios que possam pôr em causa a sua genuinidade…”.
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Levando em consideração que a factualidade em análise se baseia em prova documental, este Tribunal julga provado mais o seguinte facto que se reputa relevante para a decisão e aditando-se, por isso, ao probatório nos termos do artº.431, al.a), do C.P.Penal (“ex vi” do artº.3, al.b), do R.G.I.T., e do artº.74, nº.4, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, aprovado pelo dec.lei 433/82, de 27/10):
D-A notificação identificada na al.B) supra teve fundamento em decisão de aplicação de coima estruturada no pretérito dia 13/04/2018, na qual foi fixada a coima a pagar pela sociedade ora recorrente no montante de € 45.000,00, embora nos termos e para cumprimento do disposto no artº.105, nº.4, al.b), do R.G.I.T., tudo conforme documento junto a fls.12 e 13 do processo físico, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO
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Em sede de aplicação do direito, a decisão recorrida rejeitou o recurso deduzido pela sociedade arguida ao abrigo do artº.80, do R.G.I.T., dado não ter por objecto decisão de aplicação de coima, tudo no âmbito de processo de contra-ordenação nº……-2018/……, o qual corre seus termos no 2º. Serviço de Finanças de Oeiras.
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Deve, antes de mais, resolver-se a questão da competência em razão da hierarquia, por força do disposto no artº.13, do C. P. T. Administrativos, aplicável “ex vi” artº.2, al.c), do C. P. P. Tributário, excepção esta aduzida pelo Digno Magistrado do M. P. junto deste Tribunal no seu douto parecer (cfr.fls.52 e 53 do processo físico).
Nos termos do artº.280, nº.1, C.P.P.Tributário, das decisões dos Tribunais Tributários de 1.ª Instância cabe recurso a interpor, em primeira linha, para os Tribunais Centrais Administrativos, salvo quando a matéria for exclusivamente de direito, caso em que tal recurso tem de ser interposto para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo (cfr.artº.83, nºs.1 e 2, do R.G.I.T.).
A violação desta regra de competência, em razão da hierarquia, determina, por previsão explícita do artº.16, nº.1, do C.P.P.Tributário, a incompetência absoluta do Tribunal, ao qual é, indevidamente, dirigido o recurso.
Como decorre do artº.641, nº.5, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6 (aplicável “ex vi” do artº.2, al.e), do C.P.P.T.), o despacho que admitiu o recurso não vincula o Tribunal Superior, pelo que nada obsta a que se aprecie e decida a questão prévia suscitada pela entidade recorrida junto deste Tribunal e, igualmente, de conhecimento oficioso, a qual se consubstancia na incompetência do T.C.A.Sul em razão da hierarquia.
A competência do Tribunal deve aferir-se pelo “quid disputatum” ou “quid decidendum”, em antítese com aquilo que será mais tarde o “quid decisum”. Por outras palavras, a competência do Tribunal afere-se face à pretensão formulada pelo autor na petição inicial, traduzida no binómio pedido/causa de pedir, ou seja, face ao “quid disputatum” e não ao “quid decisum”, isto é, a competência determina-se pelo pedido do Autor, irrelevando qualquer tipo de indagação acerca do mérito do mesmo (cfr.Manuel A. Domingues de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág.91; Jorge Lopes de Sousa, C.P.P.Tributário anotado e comentado, I volume, Áreas Editora, 6ª. edição, 2011, pág.223 e seg.).
Nos termos do artº.26, al.b), do E.T.A.F., atribui-se competência à Secção do Contencioso Tributário do S.T.A. para conhecer dos recursos interpostos das decisões dos Tribunais Tributários, com exclusivo fundamento em matéria de direito.
Por sua vez, o artº.38, al.a), do E.T.A.F., atribui competência à Secção de Contencioso Tributário de cada Tribunal Central Administrativo para conhecer dos recursos de decisões dos Tribunais Tributários, ressalvando-se o disposto no citado artº.26, al.b), do mesmo diploma.
Da concatenação das aludidas normas do E.T.A.F. deve concluir-se que, para o conhecimento dos recursos jurisdicionais interpostos de decisões dos Tribunais Tributários de 1ª. Instância, é competente o S.T.A. quando o recurso tiver por fundamento exclusivamente matéria de direito e, pelo contrário, é competente a secção de contencioso tributário de um dos Tribunais Centrais Administrativos se o fundamento não for exclusivamente de direito.
Na delimitação da competência do S.T.A. em relação à dos Tribunais Centrais Administrativos, a efectuar com base nos fundamentos do recurso, deve entender-se que o recurso não tem por fundamento exclusivamente matéria de direito sempre que nas conclusões das respectivas alegações, as quais fixam o objecto do recurso (cfr.artº.684, nº.3, do C.P.Civil), o recorrente pede a alteração da matéria fáctica fixada na decisão recorrida ou invoca, como fundamento da sua pretensão, factos que não têm suporte na decisão recorrida, independentemente da atendibilidade ou relevo desses factos para o julgamento da causa. Por outras palavras, o recurso não versa exclusivamente matéria de direito, se nas suas conclusões se questionar matéria factual, manifestando-se divergência, por insuficiência, excesso ou erro, quanto à factualidade provada na decisão recorrida, quer porque se entenda que os factos levados ao probatório não estão provados, quer porque se considere que foram esquecidos factos tidos por relevantes, quer porque se defenda que a prova produzida foi insuficiente, quer, ainda, porque se divirja nas ilações de facto que se devam retirar dos mesmos factos provados (cfr.ac.S.T.A.-2ª. Secção, 29/9/2010, rec.446/10; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 12/3/2013, proc.5971/12; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 4/6/2013, proc.6465/13; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 16/10/2014, proc.7746/14; Jorge Lopes de Sousa, C.P.P.Tributário anotado e comentado, I volume, Áreas Editora, 6ª. edição, 2011, pág.223 e seg.).
São factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os reais, como os simplesmente hipotéticos. São ainda de equiparar aos factos os juízos que contenham subsunção a um conceito jurídico geralmente conhecido e que sejam de uso corrente (v.g.”pagar”; “vender”; “arrendar”). Existe matéria de facto quando o apuramento das realidades se faz todo à margem da aplicação directa da lei, isto é, quando se trata de averiguar factualidade cuja existência, ou não existência, não depende da interpretação a dar a nenhuma norma jurídica. Por sua vez, existe matéria de direito sempre que, para se chegar a uma solução, se torna necessário recorrer a uma disposição legal, ainda que se trate unicamente de fixar a interpretação duma simples palavra constante de uma norma legal concreta, seja de direito substancial, seja de direito processual (cfr.ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 4/6/2013, proc.6465/13; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 16/10/2014, proc.7746/14; Prof. Alberto dos Reis, C.P.Civil anotado, III, Coimbra Editora, 1985, pág.206 e seg.; Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 1985, pág.406 e seg.; Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, Almedina, 1982, pág.268 e seg.; Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª. edição, Almedina, 2009, pág.264 e seg.).
O critério jurídico para destrinçar se estamos perante uma questão de direito ou uma questão de facto, passa por saber se o recorrente faz apelo, nos fundamentos do recurso substanciados nas conclusões, apenas a normas ou princípios jurídicos que tenham sido na sentença recorrida supostamente violados na sua determinação, interpretação ou aplicação, ou se, por outro lado, também apela à consideração de quaisquer factos materiais ou ocorrências da vida real (fenómenos da natureza ou manifestações concretas da vida mesmo que do foro espiritual ou volitivo), independentemente da sua pertinência, merecimento ou acerto para a solução do recurso. Nessa óptica, o que é verdadeiramente determinante é o efeito que o recorrente pretenda retirar de tais asserções cujo conhecimento envolva a elaboração de um dado juízo probatório que não se resolva por meio de uma simples constatação sobre se existiu ofensa de uma disposição legal expressa que implique uma dada espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de certo meio de prova, caso em que a competência já não caberá ao Tribunal de revista (cfr.artº.12, nº.5, do E.T.A.F.), mas ao Tribunal Central Administrativo por força do artº.38, al.a), do E.T.A.F., o mesmo se devendo referir sempre que, em fase de recurso, for pedida a apreciação da necessidade de realização de diligências de prova ou da sua determinação (cfr.ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 4/6/2013, proc.6465/13; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 16/10/2014, proc.7746/14).
Ora, a identificação dos fundamentos do recurso colhe-se nas conclusões das alegações, conforme se alude supra, porque é nelas que o recorrente tem de condensar as causas de pedir que tenham susceptibilidade jurídica para, segundo o seu prisma, justificar a censura da decisão recorrida.
No caso “sub judice”, conforme se retira do exame das conclusões do recurso explanadas supra, nomeadamente, das conclusões 1 e 10, o recorrente apela à consideração de factos materiais ou ocorrências da vida real, os quais estão para além da mera interpretação de normas ou princípios jurídicos que tenham sido na decisão recorrida, supostamente, violados na sua determinação. Concluindo, os fundamentos do presente recurso não versam, exclusivamente, matéria de direito, pelo que a competência para o seu conhecimento pertence a este Tribunal, por força do artº.38, al.a), do E.T.A.F., e não ao S.T.A.-2ª.Secção, atento o disposto nos artºs.12, nº.5, e 26, al.b), do E.T.A.F.
Sem necessidade de mais amplas considerações, julga-se improcedente a excepção de incompetência absoluta deste Tribunal (em razão da hierarquia), aduzida pelo Digno Magistrado do M. P. junto deste Tribunal (cfr.artº.83, nº.1, do R.G.I.T.).
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Passemos ao exame da apelação.
Antes de mais, diremos que as conclusões das alegações do recurso definem, como é sabido, o respectivo objecto e consequente área de intervenção do Tribunal “ad quem”, ressalvando-se as questões que, sendo de conhecimento oficioso, encontrem nos autos os elementos necessários à sua integração (cfr.artº.412, nº.1, do C.P.Penal, “ex vi” do artº.3, al.b), do R.G.I.T., e do artº.74, nº.4, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, aprovado pelo dec.lei 433/82, de 27/10).
O recorrente dissente do julgado alegando, em síntese, que o Tribunal “a quo” considerou que o recurso apresentado pela apelante, ao abrigo do artº.80, do R.G.I.T., não vem interposto de uma decisão de aplicação de coima, motivo pelo qual não é admissível. Que ocorrendo erro na forma do processo, constitui um poder/dever vinculado do Tribunal a convolação do processo na forma processual adequada. Que se verifica uma nulidade de citação. Que tal nulidade levou o recorrente a considerar que estava no âmbito de uma decisão proferida num processo de contraordenação e, só por isso, impugnou tal decisão mediante recurso judicial (cfr.conclusões 1 a 13 do recurso), com base em tal argumentação pretendendo concretizar, supomos, um erro de julgamento de direito da decisão recorrida.
Examinemos se a decisão objecto do presente recurso padece de tal vício.
Conforme mencionado acima, o despacho liminar do Tribunal “a quo” rejeitou o recurso deduzido pela sociedade arguida ao abrigo do artº.80, do R.G.I.T., dado que, alegadamente, não tinha por objecto decisão de aplicação de coima, tudo no âmbito de processo de contra-ordenação nº……-2018/……, o qual corre seus termos no 2º. Serviço de Finanças de Oeiras.
Certo é que, nos termos do artº.80, nº.1, do R.G.I.T., o recurso judicial da decisão de aplicação de coima é o meio processual adequado para impugnar a decisão administrativa que faz essa aplicação, mais tendo legitimidade para utilizar esta forma de processo o arguido ou o seu defensor (cfr.artº.59, nº.2, do R.G.C.O., “ex vi” do artº.3, al.b), do R.G.I.T.; Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias anotado, 4ª. edição, 2010, Áreas Editora, pág.529).
Do exame da matéria de facto supra exarada se retira a conclusão, confirmativa da decisão do Tribunal “a quo”, de que o recurso deduzido pela sociedade arguida tinha por objecto um despacho exarado pela A. Fiscal ao abrigo do artº.105, nº.4, al.b), do R.G.I.T. (cfr.als.B) e D) do probatório).
O artº.105, do R.G.I.T., normativo que prevê o crime de abuso de confiança fiscal, no seu nº.4, al.b), aditado pela Lei 53-A/2006, de 29/12 (Lei do Orçamento de Estado para 2007), estabeleceu uma condição de punibilidade, para além da que já constava do mesmo nº.4 na anterior redação e que consta hoje da sua alínea a). O citado nº.4, do artº. 105, do R.G.I.T. dispõe:
“(…)
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração, não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
(…).”
Ou seja, o legislador consagrou no artº.105, nº.4, al.b), do R.G.I.T., uma condição objectiva de punibilidade do crime de abuso de confiança fiscal, prescrevendo que a não entrega da prestação tributária só será punível se não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito. No caso dos autos, foi essa notificação que foi efectuada, se bem que restrita ao pagamento do valor da coima aplicável.
Os pressupostos de punibilidade podem incluir as ditas condições objectivas de punibilidade ou, numa perspectiva negativa, causas materiais de exclusão da pena, as quais não são abrangidas pelo dolo ou negligência do tipo de ilícito em causa (cfr.Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª. edição actualizada, Universidade Católica Editora, Novembro de 2015, pág.174; Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias anotado, 4ª. edição, 2010, Áreas Editora, pág.717).
No caso dos autos, foi a notificação prevista no artº.105, nº.4, al.b), do R.G.I.T., que foi efectuada, se bem que restrita ao pagamento do valor da coima aplicável e com vista a fazer funcionar a identificada condição objectiva de punibilidade do crime de abuso de confiança fiscal.
É que, lido todo o teor do ofício identificado na al.B) da matéria de facto supra exarada, não restam dúvidas de que a notificação em causa não foi de uma qualquer decisão de aplicação da coima, mas antes ordenada com vista à comprovação da aludida condição objectiva de punibilidade do crime de abuso de confiança fiscal.
Em conclusão, o recurso judicial apresentado pelo recorrente, ao abrigo do artº.80, do R.G.I.T., não vem interposto de uma decisão de aplicação de coima, motivo pelo qual deve ser rejeitado, tudo conforme decidiu o Tribunal “a quo” (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 3/05/2018, rec.1180/17).
Com estes pressupostos, desnecessário se torna o exame da eventual necessidade de convolação da forma de processo, visto que nos encontramos perante mero despacho procedimental integrado na vertente administrativa do processo de contraordenação nº……-2018/….., o qual corre seus termos no 2º. Serviço de Finanças de Oeiras.
Mais não sendo de apreciar a alegada nulidade de citação, porque o acto identificado na al.B) do probatório não se reconduz a uma citação.
Arrematando, sem necessidade de mais amplas ponderações, julga-se improcedente o presente recurso e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida, ao que se provirá na parte dispositiva deste acórdão.
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DISPOSITIVO
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Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste Tribunal Central Administrativo Sul em NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO E CONFIRMAR A DECISÃO RECORRIDA que, em consequência, se mantém na ordem jurídica.
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Condena-se o recorrente em custas.
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Registe.
Notifique.
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Lisboa, 28 de Março de 2019



(Joaquim Condesso - Relator)


(Catarina Almeida e Sousa - 1º. Adjunto)



(Vital Lopes - 2º. Adjunto)