Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:08873/12
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:07/05/2017
Relator:CATARINA JARMELA
Descritores:ALTERAÇÃO ANORMAL E IMPREVISÍVEL DAS CIRCUNSTÂNCIAS
FACTO DO PRÍNCIPE
ARTIGO 314º, DO CÓDIGO DOS CONTRATOS PÚBLICOS
ACTUALIZAÇÃO MONETÁRIA
JUROS
Sumário:I – Actualmente, o facto do príncipe (fait du prince) tem um âmbito mais restrito, abrangendo apenas as situações em que esteja em causa uma qualquer medida anormal e imprevisível adoptada pelo contratante público que afecte de forma específica o equilíbrio do contrato, embora não o tenha por objecto, dando lugar à obrigação de pagamento de uma indemnização integral dos prejuízos causados (cfr. art. 314º n.º 1, al. a), do CCP), por se tratar de uma situação equiparada à da modificação unilateral do contrato, sendo certo que, se a medida for adoptada por outra entidade (que não o contraente público), apenas poderá conhecer aplicabilidade a teoria da imprevisão (cfr. art. 314º n.º 2, do CCP).

II - Quando no passado o facto do príncipe tinha um âmbito mais abrangente - incluindo tanto as situações em que a medida anormal e imprevisível era imputável ao contraente público como a outra entidade -, sempre se entendeu que, na hipótese de o mesmo resultar de uma medida imputável ao contraente público, havia lugar à reposição do equilíbrio financeiro, ou seja, ao pagamento de uma indemnização integral dos prejuízos causados, por se tratar de uma situação equiparada à modificação unilateral do contrato (cfr. art. 180º, al. a), parte final, do CPA de 1991).

III – No caso vertente o Estado Português, através do Ministro da Economia e do Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, assinou o Acordo Global, o qual foi ratificado pelo Conselho de Ministros, e o Estado Português, através do Governo, aprovou o DL 398/98, de 17/12 – diploma que aprovou a LGT -, ou seja, a medida anormal e imprevisível (entrada em vigor da LGT) foi adoptada pelo contraente público, isto é, pelo Estado Português.

IV – Assim, a alteração (legislativa – entrada em vigor da LGT) superveniente, imprevisível e anormal em causa nestes autos consubstancia-se num facto do príncipe (fait du prince) em sentido estrito, pois é imputável ao próprio contraente público e repercutiu-se de modo específico sobre a situação das autoras, razão pela qual deve ser equiparada a uma modificação unilateral do contrato, dando, portanto, lugar à aplicação do instituto da reposição do equilíbrio financeiro do contrato.

V – A actualização monetária – prevista no art. 566º n.º 2, do Cód. Civil – e os juros sobre o valor da indemnização atribuída têm funções semelhantes (ambos visam compensar o prejuízo resultante da depreciação monetária pela demora no pagamento da indemnização) e, por isso, não são cumuláveis.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
*
I - RELATÓRIO
M...... - Sociedade de ……………………, SA (M......), I…………….. - Sociedade Internacional de Hotéis, SA (I……………), Imobiliária …………., SA (G……… P………..), e A…………. – Sociedade ……………, SA (A…………….) intentaram no TAC de Lisboa acção administrativa comum, sob a forma ordinária, contra o Estado Português, na qual peticionaram a condenação do réu:
«a) A pagar às AA., a título de modificação do contrato por alteração das circunstâncias ou, caso assim não se entenda, a título de aplicação dos princípios e regras jurídicos supra invocados que reclamam a reposição do equilíbrio económico-financeiro do Acordo Global ou ainda, caso assim não se entenda, a título de responsabilidade civil por incumprimento contratual, quantia a determinar, com base em juízos de equidade, que tenha por base de cálculo € 4.068.905,70 (quatro milhões sessenta e oito mil novecentos e cinco euros e setenta cêntimos), actualizada com base na aplicação do índice de preços do consumidor apurado anualmente pelo Instituto Nacional de Estatística, a calcular desde l de Janeiro de 1999 até integral e efectivo cumprimento por parte do Estado;
b) A pagar às AA., a título de compensação pela indisponibilidade do bem ou bens que deveriam ter sido entregues na sequência da alteração do contrato, da reposição do seu equilíbrio económico e financeiro ou da declaração da prescrição dessas quantias e da assunção das devidas consequências, a quantia correspondente a juros calculados sobre a quantia que vier a ser apurada na sequência do pedido formulado em a), calculados de acordo com as taxas legais aplicáveis, contados desde l de Janeiro de 1999, ou desde a data em que se vier a apurar que se verificou o incumprimento dos deveres em causa, até à presente data;
c) A pagar às AA. juros sobre a quantia que se vier a apurar na sequência dos pedidos supra formulados em a) e em b), até integral e efectivo cumprimento por parte do Estado;»

Por sentença de 14 de Dezembro de 2011 do referido tribunal a presente acção foi julgada “procedente, por provada, mais se condenando o R. a pagar às AA. a quantia de 2 034 452,85 € (dois milhões, trinta e quatro mil, quatrocentos e cinquenta dois euros e oitenta e cinco cêntimos)”.


Inconformados, AA. e réu interpuseram recurso jurisdicional para este TCA Sul dessa sentença.

As AA. na alegação apresentada formularam as seguintes conclusões:
1. A Sentença Recorrida padece de dois relevantes erros de direito: (i) o primeiro, quanto ao critério de aferição do quantum indemnizatório, e (ii) o segundo, quanto a correção monetária desse quantum em função do decurso do tempo e ao cômputo dos juros devidos.
2. Em 8 de julho de 1997, foi celebrado um contrato denominado "Acordo Global entre ESTADO PORTUGUÊS e o GRUPO G………-P…….."; o G……. G......-P…….. integra as quatro RECORRENTES
3. O Acordo Global, nos termos do seu n° 2, tinha por objetivo a resolução, de uma forma definitiva e global, por via negocial, de todos os diferendos, incluindo dívidas e ações judiciais, avolumados ao longo de mais de 20 anos entre as sociedades do GRUPO G……-P…… e o ESTADO: a execução desse Acordo passaria, entre o mais, por um conjunto de dações em cumprimento por parte das RECORRENTES, por via das quais se liquidariam dívidas tributárias ao ESTADO.
4. No dia 1 de janeiro de 1999, sem que as dações em cumprimento acima referidas (previstas desde 8 de julho de 1997) se encontrassem ainda realizadas, entrou em vigor a (então) Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n° 398/98, de 17 de dezembro, por força da qual se verificou a prescrição automática de algumas das dívidas fiscais das RECORRENTES, na parte respeitante aos impostos abolidos até l de janeiro de 1999.
5. Em 8 de fevereiro de 2000, como conclusão da execução do Acordo Global, foi celebrado um contrato, denominado "Acordo de Fecho do Acordo Global Celebrado entre ESTADO PORTUGUÊS e GRUPO G......-P......".
6. Na mesmíssima data (8 de fevereiro de 2000), simultaneamente com a assinatura do Acordo de Fecho, foram outorgados os autos de dação em pagamento do Hotel ……… e do F………. 4, para pagamento das dívidas fiscais das RECORRENTES.
7. As dívidas prescritas perfaziam, no total, à data da celebração do Acordo de Fecho e dos autos de dação, o valor de 4.068.905.70€.
8. O Tribunal a quo considerou - e bem - que os pressupostos que acompanharam a negociação e a celebração do Acordo Global, relacionados com o valor dos bens a entregar pelas RECORRENTES e o valor das dívidas coberto por aqueles bens, sofreram uma alteração superveniente à celebração desse contrato.
9. Considerou ainda - e novamente bem - que essa alteração superveniente provocou um desequilíbrio na solução contratual gizada pelas partes.
10. E considerou, por fim - sempre bem -, que tal desequilíbrio, por sua vez, se repercutiu negativa, única e exclusivamente, na esfera patrimonial das RECORRENTES.
11. Sucede, contudo, que a imputação a um dos contraentes (no caso, ao ESTADO) da alteração superveniente de circunstâncias impõe que a análise do risco da mesma se faça em termos muito distintos dos seguidos na Sentença Recorrida depois de tiradas, pelo Tribunal a quo, as três conclusões anteriores.
12. Impõe, em suma, que em vez de repartição entre as partes (na proporção que fosse) do risco materializado, haja alocação a uma delas (ao ESTADO, naturalmente) desse mesmo risco: ou, dito de outro modo, a ser assumido um critério equitativo de apuramento da indemnização, a equidade aponta para a alocação exclusiva do risco à parte que o gerou e poderia ter gerido, em vez da repartição com oneração parcial da parte que o não gerou nem poderia ter gerido.
13. São três os tópicos essenciais a reter:
a.) Dada a identidade entre sujeito contratual e autor da alteração (legislativa) superveniente, esta última deve ser equiparada, pelo menos no que à alocação de riscos respeita e, por conseguinte, as respetivas consequências, a uma modificação unilateral do negócio; essa equiparação conduz à adoção, para efeitos de justiça do caso concreto, do instituto da reposição do equilíbrio financeiro do contrato e não do da chamada "indemnização por imprevisão".
b.) Ainda que assim se não entendesse, i.e. ainda que se considerasse o instituto da "indemnização por imprevisão" como o adequado em face dos factos sob julgamento, a equidade (que é, precisamente, a "justiça do caso concreto") sempre mandaria que se ponderasse e tirasse consequências da circunstância de o contraente público e o autor do ato gerador da indemnização ser uma e a mesma pessoa jurídica (o ESTADO); essa identidade tem obviamente relevo no plano da alocação do risco, que, para ser equitativa, deve onerar em exclusivo a parte que assinou o contrato e depois gerou a vicissitude que lhe estragou o equilíbrio (o ESTADO) e desonerar por completo a parte que, tendo também assinado o mesmo contrato, não gerou nem poderia ter gerido a dita vicissitude, in caso legislativa (as RECORRENTES).
c.) Por fim, ainda que, no limite e sem que para tal se encontre justificação, se houvesse de concluir que haveria aqui lugar a "indemnização por imprevisão" e que a equidade determinaria uma repartição do risco e, por consequência, a oneração parcial das RECORRENTES (em termos iguais ou afins - não interessa - dos da Sentença Recorrida), então seria imperioso reconhecer que teria havido um enriquecimento sem causa do ESTADO a custa daquelas e que, por isso mesmo, haveria que dar operatividade ao mecanismo de restituição (já não de indemnização próprio senso) típico desse instituto, na justa medida do empobrecimento (também sem causa e, portanto, injusto) das ditas RECORRENTES; o enriquecimento do ESTADO estaria desprovido de causa (de causa juridicamente fundada, claro) porque assentaria num incremento patrimonial (mensurável, à data, em 4.068.905.70 €) à custa da privação das RECORRENTES de um benefício que aproveitou à generalidade dos contribuintes: a prescrição de certas dívidas fiscais.
14. No que toca à reposição do equilíbrio financeiro do negócio - via que deveria ter sido adotada na Sentença Recorrida -, frise-se o seguinte:
a.) O que se visa é garantir a proporção financeira em que assentou o contrato no seu início.
b.) Por isso mesmo, a reposição do equilíbrio financeiro tem sempre de produzir os seus efeitos desde o momento em que se verificou o facto gerador dessa mesma necessidade de reposição (no caso em apreço, 8 de fevereiro de 2000).
c.) A reposição do equilíbrio financeiro é um direito subjetivo do lesado que se alicerça direta e imediatamente na garantia constitucional do direito de propriedade privada, funcionando como um direito fundamental implícito no artigo 62º, nº l, da Constituição, assim como decorre implícito do direito à justa indemnização pela ablação por ato público de uma posição jurídica patrimonial privada (artigo 62 °, nº 2).
d.) Nesse sentido, a Sentença Recorrida, determinando que a indemnização a pagar pela entidade pública fosse metade do valor da dívida prescrita e não beneficiasse de qualquer correção monetária em função do decurso do tempo nem de qualquer incremento de juros, lesando uma efetiva reposição do equilíbrio financeiro titulada pelas RECORRENTES, mostra-se diretamente violadora do direito fundamental de propriedade privada e do direito fundamental a uma justa indemnização pela ablação por ato público de um direito de conteúdo patrimonial privado.
15. O que se expõe na Conclusão anterior é inquestionável à luz do regime do atual Código dos Contratos Públicos (artigos 282° e 314°, n° 1, alínea a)), mas era já válido anteriormente, na base de doutrina (nacional e estrangeira) firme.
16. Na verdade, a ausência de uma norma de caráter geral sobre a matéria antes de 2008, designadamente no Código do Procedimento Administrativo, não poderia deixar o decisor sem um critério de decisão dentro do espírito do sistema; e esse espirito do sistema assenta, desde logo, no quadro axiológico anteriormente traçado, que o Código dos Contratos Públicos acolheu formalmente mas que já imperava antes em substância.
17. Naturalmente que a existência, hoje, de uma norma que expressamente regula a matéria, tal como sucede com o artigo 314º. n°1, alínea a), do Código dos Contratos Públicos, não pode deixar de projetar efeitos jurídicos na integração de lacunas de casos judiciais que se encontram presentemente em julgamento: a solução normativa hoje criada pelo legislador é aquela que o intérprete-julgador reportado ao período anterior a 2008 criaria se tivesse de legislar dentro do espírito do sistema, e, nesse sentido, salvo se a mesma padecesse de inconstitucionalidade (e não padece), teria de ser sempre a fonte integradora da lacuna.
18. Também neste último sentido, conclua-se, a Sentença Recorrida, apelando ao Código Civil, enferma de erro de direito e conduz a um resultado interpretativo e aplicativo inconstitucional, uma vez que aponta uma solução contrária à garantia dos direitos fundamentais de propriedade privada e de justa indemnização das RECORRENTES (artigo 62°, inter alia, da Constituição).
19. Mas ainda que o caso sub judice houvesse de ser visto à luz da "indemnização por imprevisão" e da equidade (e não, como se julga correto, com base no instituto sólido da reposição da equação económico-financeira do negócio), deveria a Sentença Recorrida ter atingido um resultado de ressarcimento integral das RECORRENTES.
20. Com efeito e com relevo no plano da equidade:
a.) Verifica-se não apenas que é ao contraente publico, ainda que fora do exercício dos seus poderes de conformação da relação contratual, que é imputável a alteração (legislativa) superveniente, mas, mais do que isso, que praticamente tudo o que aqui releva se passou no domínio do mesmo Governo Constitucional (o 13º, que cobriu o período de 28 de outubro de 1995 a 25 de outubro de 1999).
b.) Para além disso, o ESTADO, que tinha simultaneamente o domínio da execução do Acordo Global e o domínio da produção legislativa, não só pôde controlar a preservação ou desvirtuamento dos pressupostos do contrato, como sabia, no momento do Acordo de Fecho (8 de fevereiro de 2000), que a base do negócio fora severamente abalada e haveria que restaurar o equilíbrio ab initio adotado pelas partes.
c.) Por fim, do ponto de vista da equidade também é importante sublinhá-lo, o próprio Relatório sobre o Acordo Global da Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembleia da República conclui que "a avaliação efectuada foi vantajosa paru o Estado em termos financeiros" (p. 17 da Sentença Recorrida) e que "é, igualmente, inquestionável que não se apurou a existência de qualquer perdão de dívidas no quadro do Acordo Global para dação em cumprimento das dividas da G......-P...... ao Estado" (idem), i.e. o Estado já partira, em julho de 1997 e nas fases de execução do Acordo que se seguiram, de um patamar vantajoso, ou seja, favorável, quer em termos absolutos (foi um bom negócio para o ESTADO), quer em termos relativos (foi melhor para o ESTADO do que para as RECORRENTES, mesmo sem sopesar a alteração de circunstâncias que se viria a verificar adiante).
21. Não se pode repartir um risco quando uma das partes que ficaria onerada com essa repartição nunca teve a mais ténue hipótese - jurídica ou factual - de o gerir; muito pelo contrário: se numa dada relação contratual um determinado risco é gerível, em exclusivo, por um dos sujeitos (como aqui se viu suceder), é esse sujeito que deve absorvê-lo e assumir a responsabilidade correspondente: a única solução equitativa é essa.
22. Por fim, ainda que, no limite se houvesse de concluir que haveria aqui lugar a "indemnização por imprevisão" e que a equidade determinaria uma repartição do risco e, por consequência, a oneração parcial das RECORRENTES, então seria imperioso reconhecer que teria havido um enriquecimento sem causa do ESTADO à custa daquelas e que, por isso mesmo, haveria que aplicar o mecanismo de restituição típico desse instituto, na justa medida do empobrecimento (também sem causa e. portanto, injusto) das ditas RECORRENTES, i.e na justa medida do dano não compensado pela mencionada "indemnização por imprevisão".
23. Numa palavra, adote-se o ângulo que se adotar, as RECORRENTES tem o direito de receber do ESTADO 4.068.905,70 €.
24. E por acréscimo a esse direito têm ainda os direitos de ver essa verba monetariamente corrigida para o momento presente (e sucessivamente corrigida para o do pagamento efetivo) e incrementada dos juros aplicáveis, também até efetivo e integral pagamento.
25. A atualização pedida no articulado inicial e reiterada agora mais não é do que uma correção monetária, ou requantificação da indemnização, tendo em conta o decurso do tempo e a desvalorização empírica da moeda; não se confunde com o incremento resultante de juros, sejam estes compensatórios, indemnizatórios ou moratórios (para quem aceitar a distinção); é uma operação diferente, que resulta do reconhecimento de que a mesma quantidade formal de dinheiro (l €, por exemplo) vale x num dado ano, y no ano seguinte e z 10 anos adiante.
26. A correção monetária é, assim, um instrumento básico de justiça, sobretudo quando está em causa uma indemnização a arbitrar jurisdicionalmente e entre as datas do dano, da propositura da acção, do trânsito em julgado e do pagamento efetivo decorre um período de tempo considerável.
27. Assim, o que se pede, de novo, é que o Tribunal ad quem condene os RÉUS no pagamento de uma indemnização de 4.068.905,70 €, atualizada com base na aplicação do índice de preços no consumidor apurado anualmente pelo Instituto Nacional de Estatística, a calcular desde 8 de fevereiro de 2000 até integral e efetivo cumprimento por parte do Estado.
28. A indemnização actualizada deve, ainda, ser incrementada de juros calculados de acordo com as taxas legais aplicáveis, contados desde 8 de fevereiro de 2000 até à data de apresentação do primeiro articulado (28 de dezembro de 2007).
29. Mas o "contador" não parou aí, naturalmente: como não foi paga (ainda) nem a indemnização de base (4.068.905,70 €), nem a indemnização atualizada à data de hoje, nem os juros vencidos entre 8 de fevereiro de 2000 e 28 de dezembro de 2007, há que ponderar o quarto pedido vertido na Petição Inicial, que aqui se retoma: que o RÉU ESTADO seja igualmente condenado no pagamento de juros sobre a quantia que se vier a apurar na sequência de todos os pedidos anteriores (indemnização actualizada, acrescida dos juros já apurados entre 8 de fevereiro de 2000 e 28 de dezembro de 2007) até integral e efetivo cumprimento da sua parte.
30. Como se evidenciou em conclusões anteriores, a compensação das RECORRENTES deve operar no quadro do instituto do reequilíbrio financeiro do contrato e não no da "indemnização por imprevisão", assente no artigo 566° do Código Civil ou em qualquer outra norma; ora, se assim é, (i) a reposição do equilíbrio financeiro produz os seus efeitos desde a data da ocorrência do facto que alterou os pressupostos do contrato (in caso, 8 de fevereiro de 2000), (ii) sendo efectuada, na falta de estipulação contratual (como no caso em análise), através da assunção, por parte do contraente público (i.e. do ESTADO) do dever de prestar à contraparte (i.e. às RECORRENTES) o valor correspondente à perda comprovada.
31. Sucede que a "perda comprovada" compreende não apenas o montante do prejuízo apurado com referência a 8 de fevereiro de 2000 (4.068.905,70€, antes da pertinente correção monetária), mas também o valor equivalente à privação do património em causa e, por consequência, dos frutos que o mesmo poderia ter gerado em benefício das RECORRENTES.
32. Mas mesmo que a solução do presente caso houvesse de ser colocada no plano dos artigos 562º e 566°, n.°2, do Código Civil, o que aí se estabelece é que a obrigação de indemnização deve levar à reconstituição da situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (artigo 562°) e que a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem os danos (artigo 566°, n°2).
33. Ora, na feitura desse juízo não é possível abstrair do valor económico de duas coisas: (i) a privação em si mesma de bens que teriam quedado na esfera das RECORRENTES se estas pudessem ter beneficiado, como todos os restantes contribuintes, da prescrição de dívidas fiscais de 1999, e (ii) a privação ao longo do tempo dos frutos desses mesmos bens.
34. Essa dupla privação tem de ser tida em conta no juízo de reconstituição subjacente aos artigos 562° e 566°, n° 2, do Código Civil. Entre as demais boas razões, porque essa é a única interpretação conforme com o regime constitucional de propriedade privada (artigo 62°, n° l, da Constituição) e com o direito fundamental de justa indemnização em caso de ablação do mesmo (n°2 do mesmo artigo); essa ponderação materializa-se, justamente, por via do cálculo de juros, tal como pedido na Petição Inicial.
35. Também por isso a Sentença Recorrida deve ser revogada e substituída por outra que reconheça e atribua às RECORRENTES o que lhes cabe a título de juros, tal como pedido no primeiro articulado.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão:
a.) Deverá a Sentença Recorrida ser revogada e substituída por outra que, por condenação do RÉU ESTADO, atribua às RECORRENTES uma indemnização de base de 4.068.905,70 €,...
b.) ...atualizada com base na aplicação do índice de preços no consumidor apurado anualmente pelo Instituto Nacional de Estatística, a calcular desde 8 de fevereiro de 2000 até integral e efetivo cumprimento por parte do Estado,...
c.) ...e incrementada por juros calculados sobre a quantia que vier a ser apurada após tal atualização (correção monetária), calculados de acordo com as taxas legais aplicáveis, contados desde 8 de fevereiro de 2000 até à data de apresentação do primeiro articulado (28 de dezembro de 2007),...
d.) ... bem como por juros sobre a quantia que se vier a apurar na sequência dos pedidos anteriores até integral e efetivo cumprimento por parte do Estado”.

E o réu, Estado Português, na alegação apresentada formulou as seguintes conclusões:
“1) A sentença recorrida é nula, padecendo de erro de fundamentação, erro de julgamento e absoluta falta de motivação, violando, por isso, o disposto no artigo 668°, nº l, alínea b), do Código de Processo Civil.
2) Violou ainda o disposto no artigo 664° do Código de Processo Civil.
3) Violou o princípio processual de não aplicação retroactiva da lei.
4) Violou o princípio processual da imparcialidade.
Revogando-a e substituindo por outra, que julgue improcedente o pedido, V. Exas. farão
Justiça”.

Apenas as autoras apresentaram contra-alegação de recurso.

Na sequência de despacho de 14.7.2015, o Estado Português, representado pelo Ministério Público, pronunciou-se sobre a questão suscitada na conclusão 1, da contra-alegação de recurso.
II - FUNDAMENTAÇÃO
Na sentença recorrida foram dados como assentes os seguintes factos:
Do Acordo Global
A. As AA. são sociedades comerciais que pertencem ao grupo empresarial G...... P......;
B. Em 6 de Novembro de 1996 e em 31 de Janeiro de 1997, nos termos e para os efeitos do disposto nos Decretos-Lei nºs 124/96 e 125/96, de 10 de Agosto, a I………….., M...... e G...... P......, através de requerimentos autónomos, requereram a entrega de dois bens imóveis - Hotel A........... ………… e F……. 4 - para pagamento, por dação em cumprimento, das suas dívidas fiscais (cfr. Documentos n.ºs l, 2 e 3 juntos com a petição inicial, que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais);
C. Na sequência da apresentação desses requerimentos foram iniciados processos de avaliação dos bens cuja dação se requeria, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 284° do Código do Processo Tributário (doravante CPT), com a redacção em vigor naquela data;
D. Os processos de avaliação tiveram por resultado os seguintes valores:
a) Hotel ……………. - 5.141.200.000$00 (cinco mil cento e quarenta e um milhões e duzentos mil escudos), o que equivale a € 25.644.197,48 (vinte cinco milhões, seiscentos e quarenta e quatro mil, cento e noventa e sete euros e quarenta e oito cêntimos);
b) F………. 4 - 370.400.000$00 (trezentos e setenta milhões e quatrocentos mil escudos), o que equivale a € 1.847.547,41 (um milhão, oitocentos e quarenta e sete mil, quinhentos e quarenta e sete euros e quarenta e um cêntimos).
(cfr. Documento nº 4, cfr. cópia foi junta à petição inicial e que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais);
E. O valor total dos bens objecto de dação em cumprimento foi fixado, pela comissão constituída nos termos do disposto no n.º3 do artigo 284° do CPT, em € 27.491.744,89 (vinte sete milhões, quatrocentos e noventa e um mil, setecentos e quarenta e quatro euros e oitenta e nove cêntimos) (idem);
F. Em 8 de Julho de 1997, foi celebrado um contrato, denominado "Acordo Global", entre o R. e as AA. (cfr. Documento nº5, junto com a petição inicial e que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais);
G. O Acordo Global, de acordo com o disposto no seu ponto 2., tinha por objectivo a resolução, de uma forma "definitiva e global, por via negociai, de todos os diferendos, incluindo dívidas e acções judiciais, avolumados ao longo de mais de 20 anos que opunham qualquer das sociedades do Grupo G...... P...... ao Estado." (cfr. pg. l do Documento n.º5 supra);
H. De acordo com o disposto no ponto 3.1. do Acordo Global, o Estado Português:
a) "Aceita a dação dos bens (Hotel ……………..) identificados no requerimento apresentado pela I.................... em 6 de Novembro de 1996, nos termos e para os efeitos do Decreto-Lei n.º125/96, de 10 de Agosto, para pagamento integral e definitivo de todas as dívidas cujo prazo de pagamento voluntário se tenha iniciado até 30 de Junho de 1997, inclusive, à Direcção-Geral dos Impostos (independentemente da sua origem, incluindo, designadamente, contribuição predial ou autárquica) e à Segurança Social";
b) "Aceita a dação dos bens (F...... 4), identificados no requerimento apresentado pela G......-P...... e pela M...... em 31 de Janeiro de 1997, nos termos e para os efeitos do Decreto-Lei n.º125/96, de 10 de Agosto, para pagamento integral e definitivo das dívidas cujo prazo de pagamento voluntário se tenha iniciado até 30 de Junho de 1997, inclusive, à Direcção-Geral dos Impostos (independentemente da sua origem, incluindo, designadamente, contribuição predial ou autárquica) e à Segurança Social";
c) "Aceita que através das dações referidas nas alíneas (a) e (b) do número 3.1, ficam definitiva, integral irrevogável e incondicionalmente liquidadas todas as dívidas da I………. e/ou da G...... P...... e/ou da M...... à Direcção-Geral das Contribuições e Impostos (independentemente da sua origem, incluindo, designadamente, contribuição predial ou autárquica) e à Segurança Social, nos termos referidos";
(cfr. pg.2 do Documento nº5 supra);
I. De acordo com o disposto no ponto 3.4. do Acordo Global, "o Estado e todas as empresas do Grupo G......-P...... promoverão a formalização de termos de transacção, nos termos dos quais as partes desistirão de todos os pedidos efectuados em todas as acções e execuções judiciais pendentes, incluindo acções civis, administrativas ou fiscais, em que sejam autores, réus, requerentes, requeridos, exequentes ou executados, prevenindo assim a repetição de acções com o mesmo objecto, pedido ou causa de pedir" (cfr. pg. 6 do Documento n.º5 supra);
J. De acordo com o disposto no ponto 3.5. do Acordo Global, "A G......-P......, a M...... e a I.................... renunciam, com a efectivação das dações previstas nas alíneas (a) e (b) do número 3.1., a um eventual crédito a seu favor decorrente de um excesso do valor dos bens para esse efeito entregues, face ao montante das obrigações dessas sociedades liquidadas por aquelas dações" (cfr. p. 7 do Documento n.º5 supra);
K. As obrigações de natureza fiscal constantes das cláusulas citadas inserem-se no âmbito de muitas outras do referido Acordo Global, de natureza variada, de entre as quais avultam, a título de exemplo e como é referido a pp. 4 e 5 de um parecer jurídico emitido pelo Professor Doutor Mário Aroso de Almeida (cfr. Documento n.º6, junta cópia na petição inicial e que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais), as seguintes:
a) Autonomização da infra-estrutura desportiva "Autódromo ……………………….";
b) Constituição de uma sociedade anónima cujo objecto social único consistiria na gestão da referida infra-estrutura e para a qual seria transferida a propriedade plena da totalidade da mesma;
c) Constituição de uma sociedade gestora de capital maioritariamente público, incumbida da exploração e manutenção, pelo prazo de 15 anos, da referida infra-estrutura;
d) Constituição de uma sociedade anónima para a qual seria transferida a titularidade do terreno circundante da mesma infra-estrutura, ficando o Estado, pelo prazo de sete anos, com a opção de compra de acções representativas de até 25% do capital subscrito e realizado dessa sociedade;
e) Autorização ao Estado para realizar desde logo as obras que considere necessárias à valorização da infra-estrutura em causa;
f) Desistência dos pedidos deduzidos nas acções civis, administrativas e fiscais pendentes entre as partes;
g) Determinação do procedimento a adoptar para a fixação do valor das indemnizações devidas pela eventual expropriação de bens imóveis pertencentes a uma das sociedades do Grupo G......-P...... por virtude das obras de ampliação do Aeroporto de Santa Catarina, na ilha da Madeira;
h) Promoção, por parte do Estado, da resolução de um protocolo celebrado entre a Câmara Municipal de Cascais e uma das sociedades do Grupo G......-P......, assumindo o Estado os encargos daí advenientes para qualquer das partes.
L. Acordo Global foi ratificado pela Deliberação do Conselho de Ministros n° 184-D/97, de 10 de Julho de 1997.
Da prescrição de créditos fiscais
M. No dia l de Janeiro de 1999, sem que as dações em cumprimento acima referidas se encontrassem realizadas, entrou em vigor a Lei Geral Tributária (doravante LGT), aprovada pelo Decreto-Lei n.º398/98, de 17 de Dezembro;
N. Os nº l a 4 do artigo 5° ("prazos de prescrição e caducidade") do Decreto-Lei nº398/98, de 17 de Dezembro, estabeleceram normas transitórias atinentes ao regime da prescrição das obrigações tributárias previsto na LGT, a saber:
"l - Ao novo prazo de prescrição aplica-se o disposto no artigo 297.º do Código Civil, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2 - Aos impostos já abolidos à data da entrada em vigor da lei geral tributária aplicam-se os novos prazos de prescrição, contando-se para o efeito todo o tempo decorrido, independentemente de suspensões ou interrupções de prazo.
3 - Ao prazo máximo de contagem dos juros de mora previsto na lei geral tributária é aplicável o artigo 297º do Código Civil.
4 - O disposto no número anterior não se aplica aos regimes excepcionais de pagamento em prestações em vigor.".
O. De acordo com o disposto no artigo 48°, n.º l, da LGT (publicada em anexo àquele Decreto-Lei), "as dívidas tributárias prescrevem, salvo o disposto em lei especial, no prazo de oito anos contados, nos impostos periódicos, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário e, nos impostos de obrigação única, a partir da data em que o facto tributário ocorreu ".
P. Articulando o regime vertido em ambos os artigos, verificou-se a prescrição automática de algumas das dívidas fiscais das AA., na parte respeitantes aos impostos abolidos até l de Janeiro de 1999;
A dação em pagamento e o Acordo de Fecho
Q. Em 28 de Janeiro de 2000, no âmbito da execução do Acordo Global, foi assinado um Despacho Conjunto por Suas Excelências o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais e o Secretário de Estado da Segurança Social, aceitando a dação em pagamento do Hotel ………………. e do F...... 4 para liquidação das dívidas de natureza fiscal e à Segurança Social impendentes sobre as l.ª, 2.ª e 3ª AA. (cfr. Documento n.º7, junto com a petição inicial e que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais);
R. Em 3 de Fevereiro de 2000, o Despacho Conjunto datado de 28 de Janeiro de 2000 foi aditado, através de um outro Despacho, que incluiu no universo das dívidas a satisfazer pela dação em pagamento as dívidas de natureza fiscal da 4.ª A., também integrante do GRUPO G...... P...... (cfr. Documento n.º8, junto com a petição inicial e que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais);
S. Em 8 de Fevereiro de 2000, como conclusão da execução do Acordo Global, foi celebrado um contrato, denominado "Acordo de Fecho do Acordo Global celebrado entre o Estado Português e Grupo G...... P......" ("Acordo de Fecho") (cfr. Documento n.º9, junto com a petição inicial e que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais);
T. Em 8 de Fevereiro de 2000, simultaneamente à assinatura do Acordo de Fecho, foram outorgados os autos de dação em pagamento do Hotel ……………. e do F...... 4, para pagamento das dívidas das AA. ao R. (cfr. Documentos n.ºs 10 e 11, juntos com a petição inicial e que se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais);
U. Compulsados esses autos de dação, verifica-se que anexos aos mesmos surgem tabelas em que se discriminam os valores que se consideravam devidos à data da celebração do Acordo de Fecho e dos próprios autos (cfr. Documentos nºs 10 e 11 idem).
As dívidas prescritas
V. Resulta dos autos de dação que o montante das dívidas do GRUPO G...... P...... ao R., abrangidas pelos acordos mencionados, foi determinado em 2.112.947.126$00 (dois biliões cento e doze milhões novecentos e quarenta e sete mil cento e vinte e seis escudos), o que equivale a 10.539.335,83 €(dez milhões quinhentos e trinta e nove mil trezentos e trinta e cinco euros e oitenta e três cêntimos);
W. Resulta também desses autos de dação, nomeadamente dos respectivos anexos, que não foram consideradas as quantias que estavam referidas nos requerimentos apresentados pelas 1ª, 2ª e 3.ª AA. (cfr. Documentos n. l a 3 juntos com a p.i.) e que, aplicando o disposto nos n.l a 4 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º398/98, de 17 de Dezembro, e no artigo 48º da LGT, estavam prescritas em 8 de Fevereiro de 2000, data da celebração do Acordo de Fecho e dos autos de dação;
X. Atendendo ao teor do requerimento formulado pela I.................... ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º125/96, de 10 de Agosto (cfr. Documento n.º l junto com a p.i.) e ao regime de prescrição de dívidas fiscais respeitantes aos impostos abolidos até l de Janeiro de 1999, à data da celebração do Acordo de Fecho e dos autos de dação encontravam-se prescritas as seguintes obrigações tributárias e nos seguintes montantes:
Natureza da dívida Montante da dívida Montante dos juros
Imposto de Capitais de 1975-76 2.600.712$00
Imposto de Transacções de 1982 428.515$00
Imposto de Transacções de 1980-81 3.852.200$00
Imposto Profissional e do Selo de 1982 904.224$00 113.139$00
Imposto de Capitais de 1982 49.181.740$00 36.739.123$00
Imposto de Capitais de 1988 47.661. 430$00 18.604.268$00
Contribuição Industrial de 1987-88 e Imposto sobre Lucros 291.601.231$00 167.927.467$00
Imposto Complementar de 1987 52.311. 729$00 15.272.158$0
Fundo de Desemprego de 1984 30.887.992$00
Fundo de Desemprego de 1984 30.866.846$00
Y. Até à celebração do Acordo de Fecho e dos autos de dação, prescreveram dívidas tributárias impendentes sobre a I.................... no montante de 748.972.774$00 (setecentos e quarenta e oito milhões novecentos e setenta e dois mil setecentos e setenta e quatro escudos), o que equivale a Euros 3.735.860,44 (três milhões setecentos e trinta e cinco mil oitocentos e sessenta euros e quarenta e quatro cêntimos);
Z. Atendendo ao teor do requerimento formulado pela G...... P...... ao abrigo do disposto no Decreto-Lei nº 125/96, de 10 de Agosto (cfr. Documento n.º3 junto com a p.i.) e ao regime de prescrição de dívidas fiscais respeitantes aos impostos abolidos até l de Janeiro de 1999, à data da celebração do Acordo de Fecho e dos autos de dação encontravam-se prescritas as seguintes obrigações tributárias e nos seguintes montantes:
Natureza da dívida Montante da dívida Montante dos juros
Contribuição Industrial e Imposto sobre Lucros de 1984 45.233.236$00 4.248.311$00
Contribuição Predial de 1975-80 2.772.568$00
Imposto de Capitais de 1987-88 2.575.144$00 1.092.143$00
Imposto Complementar de 1988 506.477$00
Contribuição Predial de 1987 6.348.353$00
Contribuição Predial de 1987 3.110.368$00
AA. Até à celebração do Acordo de Fecho e dos autos de dação, prescreveram dívidas tributárias impendentes sobre a G...... P...... no montante de 65.866.600$00 (sessenta e cinco milhões oitocentos e sessenta e seis mil e seiscentos escudos), o que equivale a Euros 328.541,00 (trezentos e vinte e oito mil quinhentos e quarenta e um euros);
BB. Atendendo ao teor do requerimento formulado pela M...... ao abrigo do disposto no Decreto-Lei nº 125/96, de 10 de Agosto (cfr. Documento nº 2 junto com a p.i.) e ao regime de prescrição de dívidas fiscais respeitantes aos impostos abolidos até l de Janeiro de 1999, à data da celebração do Acordo de Fecho e dos autos de dação encontravam-se prescritas as seguintes obrigações tributárias e nos seguintes montantes:
Natureza da dívida Montante da dívida Montante dos juros
Imposto de Turismo 903.024$00
CC. Até à celebração do Acordo de Fecho e dos autos de dação, prescreveram dívidas tributárias impendentes sobre a M...... no montante de 903.024$00 (novecentos e três mil e vinte e quatro escudos), o que equivale a Euros 4.504,26 (quatro mil quinhentos e quatro euros e vinte e seis cêntimos);
DD. Perfazendo, no total, à data da celebração do Acordo de Fecho e dos autos de dação encontravam-se prescritas obrigações tributárias no montante total de Euros 4.068.905,70 (quatro milhões sessenta e oito mil novecentos e cinco euros e setenta cêntimos) (cfr. Documento n°12, junto com a petição inicial e que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais):
Entidade Montante total
I.................... Euros 3.735.860,44
G...... P...... Euros 328.541,00
M...... Euros 4.504,26
TOTAL Euros 4.068.905,70
EE. Estas obrigações encontravam-se no âmbito do disposto no Decreto-Lei n.º125/96, de 10 de Agosto, bem como dos requerimentos iniciais que serviram de base ao Acordo Global (cfr. alíneas B) a E) supra);
Da celebração e execução do contrato
FF. De acordo com o disposto na Cláusula 2ª, segundo P......grafo, do Acordo Global, as partes assumiram "que todas as medidas descritas no presente Acordo, bem como todos os procedimentos necessários à sua execução, devem observar o ordenamento legal vigente" (cfr. Documento nº 5 junto com a p.i.);
GG. A dação em pagamento do Hotel A........... Madeira e do F...... 4 foi requerida, respectivamente, em 6 de Novembro de 1996 e em 31 de Janeiro de 1997 (cfr. Documentos nºs l a 3, juntos com a p.i.);
HH. As avaliações dos bens a dar em pagamento tiveram como resultados a atribuição de um valor de 5.141.200.000$00 ao Hotel ………………….. e de um valor de 370.400.000$00 ao F...... 4 (cfr. Documento nº 4 junto com a p.i.);
II. No âmbito da dação em pagamento em causa, foram instaurados, na sequência dos requerimentos apresentados, os respectivos processos de avaliação (cfr. o teor do Documento n°13, junto com a petição inicial e que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais e alíneas B) a E) supra);
JJ. De acordo com a informação, datada de 8 de Novembro de 1996, da Direcção de Serviços de Justiça Tributária, e na sequência do requerimento da I...................., foi proposto "através da respectiva Direcção Distrital de Finanças serem indicados dois louvados de entre os peritos avaliadores constantes das listas distritais, que constituiriam com o senhor chefe da respectiva repartição de finanças a comissão a que alude o n.º 3 do artº 284º do CPT, com a redacção que lhe foi dada pelo Dec.Lei nº125/96, de 10 de Agosto" (cfr. Documento n°13, junto com a petição inicial e a fls. 5 daquela certidão);
KK. É também referido, na mesma informação datada de 8 de Novembro de 1996, que "atendendo ao disposto no nº 6 do aludido artº 284º do C.P.T. é ainda nosso entendimento que dever-se-á previamente notificar a impetrante para fazer o preparo relativamente às despesas a efectuar com a respectiva avaliação a entrar em regra de custas" (cfr. Documento n.º13, a fls. 5 da certidão, supra);
LL. Nos termos do exposto no Despacho datado de 22 de Novembro de 1996, da autoria do Senhor Director Distrital de Finanças do Funchal, foram propostos para louvados "os peritos Sra. Eng.s …………. e o Sr……………….." (cfr. Documento n.º13, a fls. 7 da certidão, supra);
MM. Os peritos foram contactados no sentido de apresentarem orçamento, o que fizeram (cfr. Documento n.º13, a fls. 14 a 19 da certidão, supra);
NN. Em 5 de Dezembro de 1996, a I.................... foi notificada pela Direcção Distrital de Finanças do Funchal (Divisão de Tributação e Justiça Tributária) para, nos termos do disposto no nº 6 do artigo 284º do Código de Processo Tributário, proceder ao depósito da quantia de 1.195.000$00 "a título de preparo para custear as despesas com a avaliação do Hotel …………………., oferecido em dação em pagamento para extinção das dívidas executivas" (cfr. Documento n.º13, a fls. 20 da certidão, supra);
OO. A I.................... procedeu ao depósito do referido preparo em 10 de Dezembro de 1996 (cfr. Documento n.º13, a fls. 23 da certidão, supra);
PP. Em 14 de Janeiro de 1997, foi junto ao processo o relatório de avaliação do Hotel A........... Madeira, que se encontra assinado pelos peritos supra mencionados e pela chefe de Repartição de Finanças, Sra. D. Zélia ……………….. (cfr. Documento n.º13, a fls. 32 a 43 da certidão, supra);
QQ. Nesse relatório, composto por doze páginas, é feita uma descrição do imóvel em causa, que inclui uma descrição das características gerais do edifício e uma descrição de cada piso, bem como a avaliação do terreno, das respectivas benfeitorias, e do próprio edifício, piso por piso, e ainda de todas as respectivas infra-estruturas, tendo a avaliação efectuada ascendido a 5.141.200.000$00 (cfr. Documento nº 13, a fls. 32 a 43 da certidão, supra);
RR. Menciona-se no relatório de avaliação que, na sua elaboração, "foram observadas as disposições legais contidas no Dec. Lei n.º124/96", bem como que, "para cálculo dos valores de construção por m2, teve-se em atenção a portaria nº616-C de 30 de Outubro de 1996, com o agravamento para as regiões autónomas dos Açores e Madeira, baseadas no artigo nº12 da portaria nº828/88, de 29 de Dezembro de 1988" (cfr. Documento n.º13, a fls. 42 da certidão, supra);
SS. A Portaria nº 616-C/96, de 30 de Outubro, estabeleceu, para o ano de 1997, os valores, por metro quadrado, do preço de construção nas diferentes zonas do País;
TT. Por ofício datado de 10 de Fevereiro de 1997, da Direcção de Serviços de Justiça Tributária, o processo foi enviado à Chefe de Repartição de Finanças de Machico, para "os devidos efeitos e a fim de ser cumprido o preceituado no n.º 5 do art.º 284º do CPT com a máxima urgência, juntamente se devolve o respectivo processo de avaliação respeitante à empresa I...................., Sociedade …………., S.A., com sede na …………, nº50, Lisboa" (cfr. Documento nº 13, a fls. 49 da certidão, supra);
UU. A 18 de Fevereiro de 1997, a Chefe de Repartição de Finanças de Machico informou "para os devidos efeitos que efectivamente o prédio inscrito na matriz Predial Urbana da freguesia de Água de Pena, Concelho de Machico sob o artigo 489, denominado Hotel …………….., propriedade da I.................... Sociedade ………………….. S.A., com sede em Rua …………..n.º 50 - Lisboa, foi avaliado pela Comissão de Avaliação a que alude o n.º 3 do artº 284º do Código do Processo Tributário no valor de 5.141.200.000$00 (cinco biliões cento e quarenta e um milhões duzentos mil escudos)" (cfr. Documento n.º13, a fls. 50 da certidão, supra);
VV. Na informação datada de 18 de Fevereiro de 1997 disse-se ainda que "a Comissão de Avaliação ao atribuir o predito valor, teve em conta o preço de mercado conforme determina o n.º 5 do artº 284º do C.P.T. e a situação presente em que se encontra o referido Hotel A........... em virtude das obras de ampliação do aeroporto de Santa Catarina" (cfr. Documento nº13, a fls. 50 da certidão, supra);
WW. Foi com base no procedimento descrito que se avaliou o Hotel A........... Madeira em 5.141.200.000$00 e o F...... 4 em 370.400.000$00;
XX. Os valores que estavam em causa e que foram considerados pelas futuras partes do Acordo Global na negociação deste e na determinação do seu conteúdo eram os que resultaram das avaliações promovidas nos termos descritos nos artigos anteriores, de acordo com as quais o Hotel A........... Madeira estava avaliado em 5.141.200.000$00 e o F...... 4 em 370.400.000$00;
YY. Em 3 de Julho de 1997, estando concluídas as negociações entre as partes, Abel …….., em representação do GRUPO G...... P......, e Augusto …………., à data Ministro da Economia e em representação do ESTADO, rubricaram a versão final do Acordo Global (cfr. Documento n.º15, junto com a petição inicial e que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais);
ZZ. Do Relatório sobre o Acordo Global elaborado pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembleia da República (cfr. Documento n.º18, junto com a petição inicial e que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais) consta, entre outras, as seguintes conclusões: "5. O Hotel A........... Madeira e os apartamentos F...... 4 foram avaliados, nos termos do Código do Processo Tributário, respectivamente, em 5.141.200 e 370.400 contos"; "7. a) Pelo menos desde 12 de Dezembro de 1994, data da adjudicação das obras de ampliação do aeroporto de Santa Catarina, era possível prever que o Hotel A........... Madeira tivesse de ser demolido por força das normas de segurança aeronáutica em vigor, por se encontrar dentro do Cone Aeronáutico, b) No momento em que o Governo aceitou o Hotel A........... Madeira como dação em pagamento dos créditos do Estado não tinha sido ainda determinada a demolição do Hotel, como veio a acontecer posteriormente. A avaliação efectuada foi vantajosa para o Estado em termos financeiros"; "15. É, igualmente, inquestionável que não se apurou a existência de qualquer perdão de dívidas no quadro do Acordo Global para dação em cumprimento das dívidas da G......-P...... ao Estado" (cfr. conclusões formuladas no Documento nº 18, idem);
AAA.O Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito nunca alude à avaliação promovida pela ANAM, sendo certo que esta exibe data de Abril de 1998 e aquele Relatório é de Fevereiro de 1999;
Da acção para reconhecimento de crédito fiscal
BBB. Em 16 de Maio de 2001, as AA. propuseram contra o Ministro das Finanças, o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, o Ministro do Trabalho e da Solidariedade e o Secretário de Estado da Segurança Social uma acção para reconhecimento de crédito fiscal, que correu termos, a final, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, 2º Juízo, Unidade Orgânica Tributária, como acção para reconhecimento de direitos n.º1/2002 (cfr. Documento nº20, junto com a petição inicial e que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais);
CCC. Em 3 de Junho de 2004, foi proferida sentença no âmbito da acção para reconhecimento de direitos nº1/2002, que a julgou improcedente (cfr. Documento nº21, junto com a petição inicial e que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais);
DDD. Em 30 de Setembro de 2004 foram apresentadas as alegações de recurso, atempadamente interposto pelas aqui AA., dirigidas ao Tribunal Central Administrativo Sul (cfr. Documento nº 22, junto com a petição inicial e que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais);
EEE. Em 5 de Novembro de 2005, foi proferido acórdão pelo Tribunal Central Administrativo Sul, negando provimento ao recurso (cfr. Documento n°23, junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais) e de cujo sumário se transcreve o seguinte:
«l. O Acordo Global celebrado entre um particular e o Estado visa a resolução definitiva e global de todo o contencioso, por via negocial, de todos os diferendos, entre as partes que nele outorgaram.
2. Com o presente Acordo Global, o particular e o Estado efectuaram um acordo de pagamento de dívidas fiscais, pela modalidade de dação em pagamento, o que constitui um verdadeiro contrato enquanto transacção fiscal, extintivo de relações de direito fiscal material, alheio ao se e ao quantum.
3. Ao englobar-se, em tal acordo de vontades, uma cláusula em que o contribuinte renúncia a um eventual crédito decorrente de pagamento de impostos com bens de valor superior ao da dívida, não se viola qualquer princípio constitucional, designadamente o da legalidade, igualdade e da proporcionalidade.
4. Tal cláusula não significa um maior pagamento de impostos, já que o referido crédito não se interliga a qualquer dívida fiscal, antes se apresenta como um excesso, depois de liquidadas integralmente aquelas dívidas fiscais.
5.Daqui resulta para o contribuinte um comum direito de crédito, na sua absoluta disponibilidade, e, relativamente ao qual, ele tem todo o direito e legitimidade de dele dispor como entender, designadamente, renunciando, renúncia essa, que o Estado podia manifestamente aceitar, como aceitou.»
FFF. No corpo do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul supra identificado na alínea que antecede é também dito que «não se toma posição se, - nomeadamente, em resultado dos valores atendidos na dação pelas partes, se pode configurar alguma causa de modificação ou eliminação do Acordo Global, ou. noutra óptica, se ocorre alguma obrigação de indemnizar, por parte do Estado, como base em enriquecimento sem causa, já que, como decorre do que, acima se referiu, se trata de questões de, aqui, não cabe conhecer" (cfr. Documento nº 23, a pp. 44);
GGG. Após a apresentação de recurso para o Tribunal Constitucional, e sem que tenha havido decisão de fundo proferida por este Tribunal, a decisão do Tribunal Central Administrativo Sul transitou em julgado no dia 12 de Maio de 2006.
HHH. A rubrica do Acordo Global (junta aos autos como documento nº 15) "foi feita como sinal do fim das negociações entre o então Ministro da Economia Augusto ……….., em representação do Governo Português, e o representante do Grupo G......-P......, Abel ……………" (cfr. resposta ao facto 2° da Base instrutória);
III. No "dia 7 de Julho de 1997, durante uma reunião na qual estavam presentes representantes das AA. e membros do Governo, foi proposta pelo Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais uma alteração à redacção do Acordo" (cfr. resposta ao facto 5º da Base instrutória);
JJJ. A referida alteração, proposta pelo Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, "consubstanciou-se no aditamento da Cláusula 3.5., inexistente até ao momento, que veio a ser integrada no Acordo Global, e que estabelece que «A G......-P......, a M...... e a I.................... renunciam, com a efectivação das dações previstas nas alíneas (a) e (b) do número 3.1., a um eventual crédito a seu favor decorrente de um excesso do valor dos bens para esse efeito entregues, face ao montante das obrigações dessas sociedades liquidadas por aquelas dações»" (cfr. resposta ao facto 6º da Base instrutória);
KKK. Quer os juristas que acompanhavam as Autoras, quer alguns dos juristas do Réu, presentes nas negociações, consideravam a referida Cláusula 3.5. nula (cfr. resposta aos factos 9° e 10° da Base instrutória);
LLL. Conforme consta da certidão do processo de avaliação para efeitos de dação em cumprimento não foi tida em conta a avaliação referida nas alíneas D),E), U), GG), NN), OO), QQ), WW), XX), que antecedem, mas antes a "avaliação efectuada ao imóvel [- Hotel A........... Madeira -], pela ANAM - Aeroportos e navegação Aérea, S.A., nos termos do nº4 do artº284º do Código do Processo Tributário" (cfr. resposta aos factos 16.º e 17° da Base instrutória e doc.s n.º13 e 17 juntos com a p.i.);
MMM. Nenhuma das Autoras foi alguma vez notificada da adopção de qualquer acto ou de qualquer formalidade inseridos no procedimento de avaliação efectuado pela ANAM (cfr. resposta ao facto 19° da Base instrutória);
NNN. As Autoras apenas tomaram conhecimento dos fundamentos da dação em cumprimento, mais precisamente dos actos e das formalidades que rodearam a avaliação efectuada pela ANAM, aquando da notificação da contestação apresentada em processo que já correu os seus termos (cfr. resposta ao facto 20º da Base instrutória);
OOO. As Autoras apenas tomaram conhecimento dos actos e das formalidades relativos à avaliação efectuada pela ANAM muito depois da celebração do Acordo de Fecho (cfr. resposta ao facto 21° da Base instrutória);
PPP. A ANAM "era a entidade expropriante no procedimento tendente à expropriação dos bens necessários à expansão do aeroporto na Madeira" (cfr. resposta ao facto 22° Base instrutória)”.
*
Presente a factualidade antecedente, cumpre entrar na análise dos fundamentos dos recursos jurisdicionais.

As questões suscitadas pelo Estado Português resumem-se, em suma, em determinar se a sentença recorrida:
- é nula;
- incorreu em erro ao ter julgado parcialmente procedente a acção,
cumprindo ainda determinar se o mesmo impugnou a matéria de facto fixada e, em caso afirmativo, se tal impugnação é procedente.

As questões suscitadas pelas autoras resumem-se, em suma, em determinar se a sentença recorrida incorreu em erro quanto:
- ao critério de aferição do quantum indemnizatório;
- à correcção monetária do quantum indemnizatório e ao cômputo dos juros devidos.

Para melhor enquadramento e decisão destas questões, passa-se a transcrever a fundamentação jurídica da sentença recorrida:
«As questões a decidir nos presentes autos são as seguintes:
1. Se os pressupostos que acompanharam a negociação e celebração do "Acordo Global", relacionados com o valor dos bens a entregar pelas AA. e o valor das dívidas coberto por aqueles bens, sofreram uma alteração superveniente à celebração deste contrato;
2. Se tal alteração superveniente provocou um desequilíbrio na solução contratual gizada pelas partes;
3. Se tal desequilíbrio, por sua vez, se repercutiu negativa, única e exclusivamente, na esfera patrimonial das AA.; e, por fim, e em caso de resposta afirmativa a todas as anteriores questões,
4. Qual a resposta, do ponto de vista do direito, que se afigura capaz de reequilibrar a solução contratual encontrada, por forma a reparar os alegados prejuízos verificados na esfera patrimonial das AA..
As AA. entendem que a resposta às questões 1 a 3 não pode deixar de ser positiva e avançam com várias alternativas de resposta consequentes à questão nº4. O R. Estado Português, contrapõe, por seu turno, que «resulta patente pela respectiva leitura [Acordo Global] que foi declarado equilíbrio entre os interesses dos intervenientes, estando expressamente afirmado que as partes consideram o Acordo equitativo, desistindo, ambas as partes - Estado e empresas ora Autoras - de continuar a sustentar quaisquer pretensões.» (cfr. artigo 94º da contestação).
Vejamos.
Para maior facilidade de exposição, consideram-se essenciais à decisão da causa, os seguintes factos que resultaram provados nos autos:
I. Em 3 de Julho de 1997, como sinal do termos das negociações até então mantidas, foi rubricada a versão final do acordo, da qual não constava a Cláusula 3.5. (cfr. alíneas F) e HHH) da matéria de facto);
II. Em 7 de Julho de 1997, o Secretário de Estado dos Assuntos Ficais propôs a alteração da referida versão final, através da introdução da Cláusula 3.5., nos termos da qual as Autoras renunciavam a um eventual crédito fiscal, por força de um excesso do valor dos bens entregues, face ao valor das obrigações fiscais a liquidar através das dações, e cuja introdução veio a ser aceite pelas Autoras (cfr. alíneas J) e III) da matéria de facto);
III. Em 8 de Julho de 1997, foi celebrado o Acordo Global, constando do mesmo a Cláusula 3.5. (cfr. alínea F) da matéria de facto);
IV. No momento da assinatura do Acordo Global, o valor dos bens a entregar pelas AA. resultava do que havia sido atribuído no âmbito dos processos de avaliação realizados nos termos e para os efeitos da dação em pagamento em causa, ou seja: "Hotel A........... Madeira" - € 25.644.197,48 (vinte e cinco milhões, seiscentos e quarenta e quatro mil e cento e noventa e sete euros e quarenta e oito cêntimos); e "F...... 4" - € 1.847.547,41 (um milhão, oitocentos e quarenta e sete mil e quinhentos e quarenta e sete euros e quarenta e um cêntimos), num total de 27.491.744,89 (vinte sete milhões, quatrocentos e noventa e um mil, setecentos e quarenta e quatro euros e oitenta e nove cêntimos) (cfr. alíneas D), E) e V), GG), NN), OO), QQ), WW) e XX) da matéria de facto);
V. Em 1 de Janeiro de 1999, entrou em vigor a Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei nº 398/98, de 17 de Dezembro, cujo regime determinou a prescrição de parte das dívidas das Autoras, no valor total de € 4.068.905,70 (quatro milhões, sessenta e oito mil e novecentos e cinco euros e setenta cêntimos) (cfr. alíneas M) e W) a DD) da matéria de facto);
VI. Em 8 de Fevereiro de 2000, no quadro geral do Acordo de Fecho, procedeu-se à dação dos bens entregues pelas AA. para pagamento de um valor global de € 10.539.335,83 (dez milhões, quinhentos e trinta e nove mil e trezentos e trinta e cinco euros oitenta e três cêntimos);
VII. A avaliação tida em conta aquando da celebração do "Acordo de fecho", a 8 de Fevereiro de 2000, foi a efectuada pela ANAM - da qual resultou uma diminuição do valor do bem "Hotel A........... Madeira", e não a avaliação efectuada durante negociações mantidas entre as Autoras e o Réu, na celebração do "Acordo Global" (cfr. alíneas D), E) e V), GG), NN), OO), QQ), WW) e XX) da matéria de facto e alíneas LLL) a PPP) idem;
VIII. Em 16 de Maio de 2001, as AA., em defesa, quer da nulidade da Cláusula 3.5., quer do crédito fiscal, intentaram acção para reconhecimento de direitos, contra o Ministro das Finanças, o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, o Ministro do Trabalho e da Solidariedade e o Secretário de Estado da Segurança Social uma acção para reconhecimento de crédito fiscal, que correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, P. 1/2002, 2.º Juízo, Unidade Orgânica Tributária, cuja sentença de indeferimento foi objecto de recurso jurisdicional para o TCA Sul que, transitando em julgado, concluiu (cfr. alínea BBB) a FFF) da matéria de facto):
«1. O Acordo Global celebrado entre um particular e o Estado visa a resolução definitiva e global de todo o contencioso, por via negociai de todos os diferendos, entre as partes que nele outorgaram.
2. Com o presente Acordo Global, o particular e o Estado efectuaram um acordo de pagamento de dívidas fiscais, pela modalidade de dação em pagamento, o que constitui um verdadeiro contrato enquanto transacção fiscal, extintivo de relações de direito fiscal material, alheio ao se e ao quantum.
3. Ao englobar-se, em tal acordo de vontades, uma cláusula em que o contribuinte renúncia a um eventual crédito decorrente de pagamento de impostos com bens de valor superior ao da dívida, não se viola qualquer princípio constitucional, designadamente o da legalidade, igualdade e da proporcionalidade.
4. Tal cláusula não significa um maior pagamento de impostos, já que o referido crédito não se interliga a qualquer dívida fiscal, antes se apresenta como um excesso, depois de liquidadas integralmente aquelas dívidas fiscais.
5. Daqui resulta para o contribuinte um comum direito de crédito, na sua absoluta disponibilidade, e, relativamente ao qual ele tem todo o direito e legitimidade de dele dispor como entender, designadamente, renunciando, renúncia essa, que o Estado podia manifestamente aceitar, como aceitou.» (sublinhados nossos).
E que, na parte que também nos presentes autos releva:
«não se toma posição se, - nomeadamente, em resultado dos valores atendidos na dação pelas partes, se pode configurar alguma causa de modificação ou eliminação do Acordo Global, ou, noutra óptica, se ocorre alguma obrigação de indemnizar, por parte do Estado, como base em enriquecimento sem causa, já que, como decorre do que, acima se referiu, se trata de questões de, aqui, não cabe conhecer", (sublinhados nossos).
IX. A renúncia a um eventual crédito fiscal partiu dos valores que, em concreto, haviam sido fixados no momento da celebração do Acordo Global, e não os que resultaram da entrada em vigor da Lei Geral Tributária (cfr. alíneas F), M) e S). da matéria de facto).
Cumpre decidir.
Face ao exposto, e começando pela primeira questão formulada, a de se saber se os pressupostos que acompanharam a negociação e celebração do "Acordo Global", relacionados com o valor dos bens a entregar pelas AA. e o valor das dívidas coberto por aqueles bens, sofreram uma alteração superveniente à celebração deste contrato, responde-se positivamente.
Na verdade, resulta, em suma, que os pressupostos que acompanharam a negociação e celebração do Acordo Global, relacionados com o valor dos bens a entregar pelas AA. em sede de dação em pagamento de dívidas fiscais e o valor destas mesmas dívidas, sofreram uma alteração superveniente, decorrente da entrada em vigor da LGT e da consequente prescrição de parte das dívidas tidas em contas.
Alteração superveniente essa, cujas consequências na relação jurídica fundada no contrato celebrado entre as AA. e o R., através da assinatura do Acordo Global, importa esclarecer e decidir, sendo este, e não outro, o objecto dos presentes autos, avançando com as respostas para as restantes questões.
Importa pois saber se tal alteração superveniente provocou um desequilíbrio na solução contratual gizada pelas partes (questão 2. supra), cuja resposta, é, desde já se adianta, positiva.
Com efeito, pese embora fossem vários os compromissos assumidos no "Acordo Global", não se esgotando na questão fiscal, o certo é que a avaliação que as AA. faziam cerca do montante das suas dívidas pesou na decisão de assinar este e não outro contrato.
Dúvidas não há que, à data da inclusão da cláusula 3.5 no Acordo Global (cfr. alíneas F) e J) da matéria de facto) as AA não sabiam que ia entrar em vigor a LGT (cfr. alínea M) da matéria de facto) e, consequentemente, que parte das suas dívidas estariam prescritas à data do acordo de fecho e dação em pagamento (cfr. alíneas S), T) e alíneas W) a DD) da matéria de facto).
Facto esse, a entrada em vigor da LGT, que se admite fosse também desconhecido pelo R.
O certo é que, a manifestação de vontade, sem prejuízo das reservas então e posteriormente manifestadas em relação à cláusula 3.5 do Acordo Global (cfr. alíneas J), BBB a FFF) e III) e KKK) da matéria de facto), se baseou em factos que foram alterados, por via legislativa, em data posterior (cfr. alíneas M) e W a DD) da matéria de facto).
Ou seja, sem prejuízo do julgado em sede de acção de reconhecimento de direitos (cfr. alíneas BBB a FFF) da matéria de facto), acerca da admissibilidade de uma cláusula de renúncia, nos termos que resultam da cláusula 3.5, a verdade é que, à data em que as AA. e o R., não importa agora saber se legitimamente ou não, assinaram o Acordo com a inclusão de tal cláusula, não podiam as AA. antecipar que, além de todos os eventuais créditos excedentes que pudessem admitir como existentes naquela data, estivessem também a renunciar ao quinhão que se revelaria existente por alteração legislativa posterior.
Não sendo despiciendo o facto de que estão em causa dívidas fiscais prescritas no valor de 4.068.905,70 € (quatro milhões sessenta e oito mil novecentos e cinco euros e setenta cêntimos) (cfr. alínea DD) da matéria de facto), prescrição essa que ocorreu após 2 anos a contar da assinatura do Acordo Global (cfr. alíneas F) e M) da matéria de facto - de 8 de Julho de 1997/1 de Janeiro de 1999) e um ano antes da celebração do Acordo de fecho (cfr. alínea S) da matéria de facto - 8 de Fevereiro de 2000)
Na realidade, resulta dos autos que de um montante total de dívidas fiscais de € 14.608.241,53 (catorze milhões, seiscentos e oito mil e duzentos e quarenta e um euros e cinquenta e três cêntimos), prescreveram dívidas fiscais no montante de € 4.068.905,70 (quatro milhões sessenta e oito mil novecentos e cinco euros e setenta cêntimos), o que equivale a uma grande redução do montante fixado em sede de Acordo Global.
Daqui resulta, que objectivamente, os pratos da balança contratual, por força da prescrição de parte das dívidas fiscais, sofreram um desequilíbrio entre a celebração do contrato e o seu "fecho", na medida em um dos pratos baixou (prescrição de um montante significativo das dívidas), enquanto que o outro se manteve (dações realizadas pelas AA.).
Ou seja, a pergunta que se impõe é: se as AA. soubessem que, por alteração legislativa, ocorrida entre a celebração do Acordo Global e o Acordo de fecho, as suas dívidas fiscais diminuiriam em cerca de 28%, teriam renunciado a esse crédito, nos termos da cláusula 3.5?
E a resposta não pode deixar de ser negativa, dada a insistência das mesmas em alcançar uma decisão judicial que reconheça o desequilíbrio aqui evidenciado.
O que nos leva imediatamente para a terceira questão formulado (ponto 3 supra), a de se saber se tal desequilíbrio, por sua vez, se repercutiu, negativa, única e exclusivamente, na esfera patrimonial das AA.
Quanto a este aspecto, e face à fundamentação supra exposta, uma coisa é certa, o desequilíbrio em causa, motivado pela entrada em vigor da LGT, e que se repercutiu em dívidas fiscais das AA., afectou a base negociai do "Acordo Global", no sentido de ter alterado alguns dos factos essenciais em que assentou o equilíbrio financeiro deste contrato.
Mais resulta da matéria de facto provada que a alteração em causa, que provocou o desequilíbrio financeiro do contrato, tal como ele havia sido inicialmente acordado, se repercutiu única e exclusivamente na esfera patrimonial das AA., que entregaram os mesmos bens para pagamento como contrapartida, pese embora a sua dívida tivesse sido reduzida por efeito da LGT.
Na verdade, o R., ao ter tido em conta na execução da dação em pagamento, não os valores inicialmente acordos e estabelecidos para os bens dados em pagamento – Hotel A........... Madeira e F...... 4 - mas sim os valores decorrentes de uma outra avaliação, que decorreu à margem de qualquer intervenção e participação das AA. (cfr. alíneas XX) e LLL) e PPP) da matéria de facto), levou a cabo uma inadmissível alteração unilateral do conteúdo das prestações do co-contratante e, como tal, não o poderia ter feito nos termos em que o fez, na medida em que as "cláusulas contratuais" definem direitos e deveres recíprocos dos contraentes, v. g. as cláusulas de incidência económica, sendo, por esse motivo, imodificáveis (2 Neste sentido MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, l, Coimbra, 1984, pg.699-700).
No caso em apreço, portanto, a desconsiderar-se, por inadmissível a avaliação levada a cabo pela ANAM, e tida em conta no Acordo de fecho do Acordo Global firmado, o que resta é uma situação de alteração anormal e imprevisível das circunstâncias sobre o contrato - a entrada em vigor da LGT e a prescrição de parte das dívidas fiscais das AA.
Face à resposta positiva às três primeiras questões, importa agora decidir, por fim, a quarta e última questão, a de se saber qual a consequência, do ponto de vista do direito, que se afigura capaz de reequilibrar a solução contratual encontrada, por forma a reparar os alegados prejuízos verificados na esfera patrimonial das AA.
Como questão prévia, esclarece-se que, como perpassa aliás de toda fundamentação até agora exposta na presente decisão, se considera o "Acordo Global" celebrado, como um contrato público, mais concretamente, um contrato respeitante ao exercício futuro de poderes públicos, ou seja, um contrato público de natureza obrigacional (3 V. infra notas de rodapé 8 e 11) (art. 178º e 179º, ambos do CPA).
É a partir desta qualificação, e à luz dos princípios e normas que regem as relações jurídicas emergentes de contratos públicos que aferiremos também a resposta a esta última questão.
Vejamos então.
É reconhecido e estudado pela doutrina e jurisprudência, a distinção entre o poder de modificação unilateral do contrato, imposta pelo contraente público, e a modificação do mesmo por força de uma alteração das circunstâncias.
Segundo PEDRO COSTA GONÇALVES (4 A relação contratual fundada em contrato administrativo, CJA n.º 64, Julho/Agosto de 2007, pg. 36-46, pese embora este autor se refira ao regime plasmado no CCP, a doutrina que emanada deste artigo aplica-se ao caso em apreço, por via dos princípios gerais que se consideram aplicáveis à relação jurídica contratual pública), uma coisa é a modificação unilateral imposta pelo contraente público, que, do ponto de vista do co-contraente, implicará, em princípio, a reposição do equilíbrio financeiro do contrato. E, nesta hipótese, haverá uma sucessão lógica dos seguintes momentos:
i) Consideração pelo contraente público, de um facto de interesse público que, na sua óptica recomenda a modificação;
ii) Imposição da modificação de cláusulas contratuais;
iii) Reposição do equilíbrio financeiro do contrato, em benefício do co-contratante (na medida em que não suporte qualquer risco de modificação).
Diferente apresenta-se a modificação por alteração das circunstâncias; neste caso, a sucessão é a seguinte:
i) Alteração anormal e imprevisível das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar;
ii) Pretensão no sentido da modificação, a qual se traduzirá, em regra, numa alteração das cláusulas financeiras, segundo critérios de equidade.
No primeiro cenário, ainda segundo PEDRO COSTA GONÇALVES (5 Op.cit.), a modificação tem como consequência uma revisão financeira: o contraente público modifica por razões de interesse público e, com isso, perturba o equilíbrio do contrato, tendo de compensar o co-contraente ("a modificação desequilibra o contrato").
No segundo caso, a modificação traduz-se, em regra, numa revisão financeira: por razões alheias às partes, o cumprimento do contrato torna-se mais onerosa para o co-contratante que, por isso, requer a modificação ("a modificação recupera o equilíbrio financeiro).
São assim, comummente associadas consequências diferentes para a modificação unilateral e para a alteração das circunstâncias, sendo incluída na primeira, a alteração anormal e imprevisível de circunstâncias, imputável a decisões extra-contratuais ou contratuais do contraente público, mas com repercussão no contrato (fait du prince), mas já não outras alterações imprevisíveis, externas a qualquer um dos contratantes, mas com repercussões no contrato, em que se pode revelar legítimo repartir pelos dois contratantes custos e encargos devidos a factos anormais e imprevisíveis (6 Idem, op.cit).
No caso em apreço, julga-se verificada a segunda das situações retratadas, por alteração anormal e imprevisível das circunstâncias em que se baseou a celebração do Acordo Global, através da entrada em vigor da LGT (cfr. alíneas F), M) e S) da matéria de facto) (7 Sem prejuízo de, na parte em que foi tomada em conta, no valor da dação efectivamente executada simultaneamente ao acordo de fecho, valores reportados a uma avaliação de bens completamente estranha ao co-contratante, ora AA. (cfr. alíneas LLL) a PPP) da matéria de facto), poder equacionar-se uma tentativa de modificação unilateral dos aspectos contratuais do Acordo Global).
Com interesse para esta questão, embora sob outro prisma, FILIPA URBANO CALVÃO (8 Contratos sobre o exercício de poderes públicos, in Estudos de contratação Pública, I, Coimbra Editora, 2008; também nesta parte aplicável ao caso em apreço, não pelo que resulta das normas citadas, mas sim dos princípios aplicáveis em sede de contratação e de actividade administrativa), salienta que, o compromisso do contraente público é assim «assumido sob reserva de manutenção dos elementos da "facti species" considerada». Falando a doutrina portuguesa, a este propósito, numa condição resolutiva implícita no próprio contrato ou na "cláusula rebus sic standibus", ocorrendo alguma «[...] alteração dos pressupostos de direito (lei aplicável) e de facto (situação concreta) que existiam no momento da celebração do contrato e que justificaram o exercício antecipado do poder discricionário nos termos convencionados» a obrigação contratualmente assumida caduca (9 Solução que acabou por ficar vertida no nº2 do art. 337ºdo CCP).
Acrescentando a mesma autora (10 FILIPA URBANO CALVÃO, op.cit.) que, as principais críticas apontadas à concertação do exercício de poderes públicos se revelam ultrapassáveis pela sujeição da actuação administrativa patrícia às regras e princípios gerais por que se pauta toda a actividade administrativa. A maior dificuldade é suscitada pelos contratos obrigacionais (11 Na acepção de contratos pelos quais a Administração se vincula à emissão (ou não emissão) de um acto administrativo antes ou no decurso de um determinado procedimento administrativo.), mas, quanto a estes, a Administração, antes de se vincular, deve proceder a uma averiguação suficientemente exaustiva das circunstâncias do caso concreto.
Nesta medida, o princípio da proporcionalidade, da imparcialidade e da igualdade, enquanto princípios gerais de direito, dispensam a concretização legislativa, vinculando, independentemente desta, a composição de efeitos jurídicos do contrato.
Em face desta constatação, conclui-se, por todos os fundamentos expostos, que os princípios da boa fé e imparcialidade impunham que, em sede de Acordo de fecho, se tivesse tido em conta a prescrição das dívidas fiscais ocorrida por efeito legislativo, e promovido o reequilíbrio do contrato e a reposição do seu sinalagma, pois tal alteração, além de imprevisível, se considera não estar coberta pelos riscos próprios do contrato celebrado em sede de Acordo Global,
Boa fé essa que não foi respeitada através da alteração do valor dos bens dado em dação a pagamento, através da realização de uma nova avaliação patrimonial dos mesmos, ao arrepio de qualquer participação por parte das AA. que dela apenas tiveram conhecimento à data do Acordo de fecho (cfr. alíneas LLL) a PPP) da matéria de facto).
Tal situação dá lugar, face a todo o exposto, e ao abrigo do art. 437º do CC, a uma modificação do contrato segundo critérios de equidade, ou seja, a uma "indemnização por imprevisão", pois, sendo a imprevisibilidade uma circunstância objectiva, que afecta a ambas as partes do contrato, o risco corre também por ambas e assim deverá ser repartido, ou seja, "o custo extraordinário" da continuidade de prossecução do interesse público tem de ser rateado, de acordo com critérios de equidade (12 Neste sentido, PEDRO COSTA GONÇALVES, O contrato administrativo - Uma instituição ainda do nosso tempo, Coimbra, 2003, pg. 128-129; CARLA AMADO GOMES, in Conformação da Relação Contratual no Código dos Contratos Públicos, in Estudos de Contratação Pública I, Coimbra Editora, 2008).
Da fixação do montante da "indemnização por imprevisão"
Em termos gerais, a fixação de uma compensação monetária com recurso a juízos de equidade importa sempre um acerta dificuldade de cálculo, com o inerente risco de nunca se estabelecer uma indemnização rigorosa e precisa, ao que acresce a circunstância de, pela natureza da decisão em si, estar esta, mais do que outras decisões, dependente do prudente arbítrio do julgador.
No caso em apreço, porém, dado fundamento desta compensação, a verificação de uma alteração, objectiva, superveniente, imprevisível e fora do risco próprio do contrato, deve o risco da mesma correr, de igual modo, por ambos os contratantes, ou seja, cada um suportará metade de prejuízo provado, ou seja, do desequilíbrio demonstrado.
Nestes termos e por todos os fundamentos expostos, considera-se que, segundo juízos de equidade, tendo em vista a fixação de uma justa "indemnização por imprevisão" da alteração das circunstâncias, a quantia de 2 034 452,85 € (correspondente a 1/2 de 4.068.905,70€, cfr. alínea DD) da matéria de facto), a pagar pelo R. às AA., é uma quantia justa e adequada.
Não é admissível a condenação em juros moratórios (sem prejuízo dos que vencerem após trânsito em julgado da presente decisão), na medida em que, neste domínio, os montantes foram arbitrados equitativamente, nos termos do art.566°, n° 2 do CC (13 Neste sentido vide acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ nº4/2002, disponível em www.dgsi.pt).».

Feita a transcrição da fundamentação jurídica da sentença recorrida, importa proceder à análise das questões suscitadas pelos recorrentes.

Serão analisadas em primeiro lugar as questões suscitadas no recurso do Estado Português, já que a procedência deste recurso (no qual se pede a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que julgue improcedente o pedido) prejudicará o conhecimento do recurso interposto pelas autoras.


Recurso do Estado Português

Nulidade da sentença recorrida
Invoca o Estado Português que a decisão recorrida é nula, nos termos do art. 668º n.º 1, al. b), do CPC de 1961, por absoluta falta de motivação e erro de julgamento.

Apreciando.

Dispõe o art. 668º n.º 1, do CPC de 1961, ex vi do art. 1º do CPTA (na redacção anterior à dada pelo DL 214-G/2015, de 2/10, tal como as demais referências feitas ao CPTA neste acórdão), que:
“É nula a sentença:
(…)
b) Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
(…)”.

A nulidade prevista na al. b) do n.º 1 deste art. 668º relaciona-se directamente com estatuído no art. 659º n.ºs 2 e 3, do CPC de 1961, nos termos do qual o juiz na sentença estabelecerá nomeadamente os factos que considera provados, aplicando a lei aos factos.

Como ensina Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, 1952, pág. 140, “Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto.” (sublinhados nossos).

E como explica Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 4ª Edição, 2003, págs. 48 e 49, “Como atrás vimos, as decisões judicias devem ser fundamentadas, face ao determinado no n.º 1 do art. 205.º da CRP e no art. 158.º.
A falta de motivação susceptível de integrar a nulidade de sentença é apenas a que se reporta à falta absoluta de fundamentos quer estes respeitem aos factos quer ao direito.
A motivação incompleta, deficiente ou errada não produz nulidade, afectando somente o valor doutrinal da sentença e sujeitando-a consequentemente ao risco de ser revogada ou alterada quando apreciada em recurso.
Para que haja falta de fundamentos de facto, como causa de nulidade de sentença, torna-se necessário que o juiz omita totalmente a especificação dos factos que considere provados, de harmonia com o que se estabelece no n.° 3 do art. 659.°, e que suportam a decisão.
No que concerne aos fundamentos de direito, duas notas se impõe destacar: à uma, o julgador não tem que apreciar todas as razões jurídicas produzidas pelas partes, se bem que não se encontre dispensado de resolver todas as questões por elas suscitadas; à outra, não é forçoso que o juiz indique as disposições legais em que baseia a sua decisão, bastando que mencione as regras e os princípios jurídicos que a apoiam.
Não é assim, neste âmbito, nula a sentença que se firme em fundamentos de direito não invocados pelas partes, em consonância com a possibilidade admitida na 1ª parte do art. 664.°, como também não o é a que, sem referir o disposto nos arts. 408.°, n.° 1, 879.°, alínea a), e 1317.°, alínea a), do CC, se limite a afirmar que a propriedade sobre determinada coisa se transfere por mero efeito do contrato de compra e venda.
A fundamentação, para além de visar persuadir os interessados sobre a correcção da solução legal encontrada pelo Estado, através do seu órgão jurisdicional, tem como finalidade elucidar as partes sobre as razões por que não obtiveram ganho de causa, para as poderem impugnar perante o tribunal superior, desde que a sentença admita recurso, e também para este tribunal poder apreciar essas razoes no momento do julgamento.” (sublinhados nossos).

É também entendimento pacífico da jurisprudência que a nulidade da sentença prevista na al. b) do n.º 1 do referido art. 668º só ocorre quando se verifica falta absoluta de fundamentação - de facto e de direito -, e não quando a fundamentação enunciada é insuficiente, medíocre ou errada, ou seja, a sentença só será nula por falta de fundamentação se a parte vencida ficar sem perceber a razão pela qual a mesma lhe foi desfavorável, assim impossibilitando a sua impugnação em sede de recurso, e o tribunal de recurso ficar sem perceber as razões determinantes da decisão, ficando impossibilitado de as poder apreciar no julgamento do recurso - neste sentido, entre muitos outros, Acs. do STA de 14.7.2008, proc. n.º 510/08, 3.12.2008, proc. n.º 540/08, 1.9.2010, proc. n.º 653/10, 7.12.2010, proc. n.º 1075/09, 2.3.2011, proc. n.º 881/10, 7.11.2012, proc. n.º 1109/12, 29.1.2014, proc. n.º 1182/12, e 12.3.2014, proc. n.º 1404/13.

Retomando o caso vertente verifica-se que na sentença recorrida foram consignados como provados os factos A. a PPP., ou seja, não se verifica qualquer falta de fundamentação de facto.

Além disso, a sentença recorrida também contém fundamentação de direito, pois a mesma não é omissa quanto às razões - de direito - que conduziram à decisão proferida, concretamente sob a epígrafe “DE DIREITO” são invocados diversos princípios jurídicos (proporcionalidade, imparcialidade, igualdade e boa fé) e disposições legais (arts. 437º e 566º n.º 2, do Código Civil) - cfr. fls. 21 a 33, da mesma, que correspondem a fls. 1334 a 1346, dos autos em suporte de papel, cujo teor foi supra transcrito.

Poder-se-á alegar que esta fundamentação é incompleta ou errada, mas tal é insuficiente para se considerar que a decisão recorrida é nula nos termos da al. b) do n.º 1 do art. 668º, do CPC de 1961, pois a nulidade prevista neste normativo legal só ocorre, conforme supra explicitado, quando se verifica falta absoluta de fundamentação, e não quando esta é apenas deficiente, medíocre ou errada.

Conclui-se, assim, que a decisão recorrida não enferma de falta absoluta de fundamentação, pois contém a motivação de facto e de direito – sem prejuízo de tal análise poder ser deficiente ou errada - que levou o julgador a proferir decisão de parcial procedência.

Nestes termos, tem de improceder a arguição de nulidade imputada à sentença recorrida estatuída na al. b) do n.º 1 do art. 668º, do CPC de 1961.


Impugnação da matéria de facto
Na conclusão 1, da contra-alegação de recurso, as autoras invocam que, por falta de cumprimento dos ónus previstos no art. 685º-B n.º 1, do CPC de 1961 (na redacção do DL 303/2007, de 24/8), a impugnação da matéria de facto por parte do Estado Português deve ser rejeitada.

Cumpre, desde já, salientar que, a presente acção considera-se interposta em 28.12.2007 [pois a petição inicial foi remetida por telecópia em 28.12.2007 (cfr. fls. 2 a 56, dos autos em suporte de papel), e face ao disposto no art. 150º n.º 1, al. c), do CPC de 1961, na redacção anterior à dada pelo DL 303/2007, de 24/8], razão pela qual a impugnação da matéria de facto é regulado pelo art. 690º-A, do CPC de 1961, na redacção anterior à dada pelo DL 303/2007, de 24/8 (cfr. o art. 11º n.º 1, desse DL 303/2007).

Do art. 690º-A, do CPC de 1961, na redacção anterior à dada pelo DL 303/2007, de 24/8, decorre que a impugnação da decisão relativa à matéria de facto obriga ao cumprimento de ónus a cargo do recorrente.

O não cumprimento dos ónus especiais de alegação previstos nesse art. 690º-A é cominado, no corpo do seu n.º 1 e no seu n.º 2, com a “rejeição” do recurso, o que significa, em comparação com o que dispõe o art. 690º, do CPC de 1961 (quanto aos recursos da matéria de direito), que a mesma não é precedida de qualquer despacho de aperfeiçoamento - neste sentido, entre outros, Ac. do STJ de 9.2.2012, proc. n.º 1858/06.5 TBMFR.L1.S1, Acs. da Rel. do Porto de 24.2.2014, proc. n.º 664/10.7 TBLSD.P1, e 15.9.2014, proc. n.º 11/10.8 TBGDM.P1, Acs. da Rel. de Guimarães de 14.3.2013, proc. n.º 1472/08.0 TBFLG.G1, e 19.6.2014, proc. n.º 1458/10.5 TBEPS.G1, e Ac. do TCA Sul de 8.1.2015, proc. n.º 5142/11, e, na doutrina, Fernando Amâncio Ferreira cit., pág. 157, nota 333, Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2ª Edição, 2004, pág. 585, nota III, e José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º, 2003, pág. 53.

Assim, a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados;
d) Falta de referência ao assinalado na acta – início e termo da gravação -, quando os meios probatórios em que o recorrente se funde tenham sido gravados – também neste sentido, entre outros, Ac. do STJ de 23.2.2010, proc. n.º 1718/07.2TVLSB.L1.S1, Ac. da Rel. do Porto de 21.3.2013, proc. n.º 731/09.0 TBMDL.P1, Acs. da Rel. de Lisboa de 17.9.2013, proc. n.º 450/08.4 TBSTB-B.L1-1, e 9.7.2014, proc. n.º 1021/09.3 T2AMD.L1-1, e Ac. da Rel. de Coimbra de 19.12.2012, proc. n.º 2312/11.9 TBLRA.C1.

A falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto implica a rejeição do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, pois cumpre ter presente que o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões da respectiva alegação, nos termos dos arts. 660º n.º 2, 684º n.º 3 e 690º n.º 1, todos do CPC de 1961, na redacção anterior à dada pelo DL 303/2007, de 24/8, ex vi art. 140º, do CPTA – neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2010, 3ª Edição, pág. 159 [A rejeição do recurso na parte respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações: a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto; (…)”].

Retomando o caso vertente, verifica-se que nas conclusões da alegação de recurso apresentada pelo Estado Português nada consta no sentido da impugnação da matéria de facto.

Nestes termos, não cabe conhecer da impugnação da matéria de facto constante apenas do corpo da alegação de recurso, ou seja, só os factos considerados provados pela 1ª instância podem servir de fundamento à solução a dar ao litígio.

Mesmo que, assim, não se entenda, ou seja, caso se considere que, através da conclusão 4), da alegação de recurso [onde é alegada a violação do princípio processual da imparcialidade], conjugada com o explanado a esse propósito no corpo da alegação de recurso, é impugnada a matéria de facto, a verdade é que tal impugnação improcede, pelas razões infra indicadas (na análise dessa conclusão 4), da alegação de recurso) e para as quais se remete.


Erro da sentença recorrida ao ter julgado parcialmente procedente a acção
O Estado Português pugna pela revogação da decisão recorrida e pela sua substituição por outra que julgue improcedente o pedido, com base nos seguintes fundamentos:
1) - violação do disposto no art. 664º, do CPC;
2) - violação do princípio processual da não aplicação retroactiva da lei;
3) – violação do princípio processual da imparcialidade.

Passando à análise de cada um destes três fundamentos.

1)
O Estado Português limita-se a invocar a violação do disposto no art. 664º, do CPC de 1961 [no qual se prescreve o seguinte: “O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no artigo 264.º”], pois não explicita, de todo, as razões pelas quais ocorre a violação de tal normativo legal, o que impossibilita o conhecimento dessa alegada violação - sendo certo que nada se detecta no sentido da ocorrência de tal violação - e, consequentemente, implica a improcedência deste fundamento de recurso.

2)
Alega o Estado Português que, tendo o “contrato” sido celebrado em Julho de 1997, não podia a sentença recorrida socorrer-se de doutrina desenvolvida no âmbito do Cód. dos Contratos Públicos, que entrou em vigor em Julho de 2008 (cfr. art. 18º n.º 1, do DL 18/2008, de 29/1), isto é, a decisão recorrida remete para a doutrina plasmada nos comentários constantes dos Estudos da Contratação Pública, subjacentes ao Cód. dos Contratos Públicos, publicado em 2008 e com início de vigência em Julho desse mesmo ano, quando o Acordo Global foi celebrado em Julho de 1997.

Como referem as autoras, o princípio da não retroactividade da lei refere-se exclusivamente à aplicação da lei e não da doutrina (cfr. art. 12º, do Cód. Civil).

Acresce que a sentença recorrida nunca aplicou, ao contrário do sugerido pelo Estado Português, o Cód. do Contratos Públicos para fundamentar a decisão proferida.

Efectivamente, a decisão de procedência – parcial – do pedido assentou nos princípios jurídicos da proporcionalidade, imparcialidade, igualdade e boa fé (que se encontram previstos nomeadamente nos arts. 5º, 6º e 6º-A, todos do CPA de 1991) [“Nesta medida, o princípio da proporcionalidade, da imparcialidade e da igualdade, enquanto princípios gerais de direito, dispensam a concretização legislativa, vinculando, independentemente desta, a composição de efeitos jurídicos do contrato./Em face desta constatação, conclui-se, por todos os fundamentos expostos, que os princípios da boa fé e imparcialidade impunham que (…)” - cfr. fls. 31, da sentença recorrida, que corresponde a fls. 1344, dos autos em suporte de papel], e no art. 437º, do Código Civil [“Tal situação dá lugar, face a todo o exposto, e ao abrigo do art. 437º do CC, a uma modificação do contrato segundo critérios de equidade, ou seja, a uma "indemnização por imprevisão"” - cfr. fls. 32, da sentença recorrida, que corresponde a fls. 1345, dos autos em suporte de papel], princípio jurídicos e norma que já tinham existência legal na data da celebração do Acordo Global, isto é, em 1997, ou seja, a sentença recorrida não aplicou a lei retroactivamente.

Além disso, nas referências doutrinárias que constam da sentença recorrida, expressamente se ressalvou que “pese embora este autor se refira ao regime plasmado no CCP, a doutrina que emanada deste artigo aplica-se ao caso em apreço, por via dos princípios gerais que se consideram aplicáveis à relação jurídica contratual pública” (cfr. nota de rodapé n.º 4) e “também nesta parte aplicável ao caso em apreço, não pelo que resulta das normas citadas, mas sim dos princípios aplicáveis em sede de contratação e de actividade administrativa” (cfr. nota de rodapé n.º 8), ou seja, afastou-se a aplicação do Cód. dos Contratos Públicos.

Assim, também nesta parte improcede o recurso interposto pelo Estado Português.

3)
Invoca o Estado Português a este propósito o seguinte:
a Sra. Juiz a quo, inexplicavelmente, baseou a sua convicção em depoimentos que não existiram por parte de todas as testemunhas, quer das Autoras, quer do Réu, tendo-se assim desvirtuado a prova e violando o princípio da imparcialidade do julgador.
Em parte alguma da gravação dos seus depoimentos, as testemunhas do Réu vieram dizer que[r] consideravam nula a cláusula de renúncia.
Aliás, a testemunha Dr. Rui ……………(encarregado do acompanhamento das negociações, por parte dos serviços da AT), ao contrário do que é vertido na sentença, disse exactamente o oposto como se constata na audição da gravação do seu depoimento”.

Na factualidade dada como provada consignou-se, sob a alínea KKK), o seguinte:
Quer os juristas que acompanhavam as Autoras, quer alguns dos juristas do Réu, presentes nas negociações, consideravam a referida Cláusula 3.5. nula (cfr. resposta aos factos 9° e 10° da Base instrutória);” (sublinhado nosso).

Ora, o que resulta deste facto, e para o que agora interessa, é que alguns dos juristas do réu, presentes nas negociações, consideravam a Cláusula 3.5. nula - ou seja, que nem todos os juristas do réu consideravam tal cláusula nula -, o que não é posto em causa pelo depoimento da testemunha Alberto (e não Rui) Augusto ……………, tal como descrito pelo Estado Português, pois nunca se afirma no facto KKK) que as testemunhas arroladas pelo réu [Nuno ………………., Alberto ………………….. e Maria ………………..] consideravam tal Cláusula nula.

Acresce que o referido facto KKK) foi dado como provado exclusivamente com base nos depoimentos das testemunhas arroladas pelas autoras, pois na fundamentação à resposta aos factos e 9º e 10º, da base instrutória, consignou-se o seguinte:
Importa sublinhar que a resposta aos artigos 9.º a 10.º não podia deixar de ser explicativa face à credibilidade e isenção do depoimento da testemunha das AA. Augusto …………., que sempre afirmou que a reacção das empresas AA. a tal cláusula foi de surpresa e que a nível jurídico entendiam que tal cláusula era nula, assim como referiu que a questão da nulidade dividia os juristas dos ministérios presentes na reunião em que tal foi suscitado e no prolongamento das negociações (vide resposta ao artigo 8.º), o que foi reiterado e confirmado pelo depoimento das testemunhas das AA. Sérgio ……………… e Ernesto ………….” (sublinhados nossos) - cfr. fls. 9, da decisão da matéria de facto de 14.12.2010, constante de fls. 1219, dos autos em suporte de papel.

Nestes termos, tem de improceder a presente alegação de violação do princípio da imparcialidade, pois, desde logo, não se provou a factualidade em que a mesma assenta [dado que, para além do depoimento da testemunha Alberto ………………… não ter contribuído para ser dado como assente o facto KKK), não se pode considerar que este facto esteja em contradição com este depoimento, tal como descrito pelo Estado Português, bem pelo contrário].

Do exposto resulta a total improcedência do recurso interposto pelo Estado Português.


Recurso das autoras

As autoras defendem que a sentença recorrida errou quanto:
- ao critério de aferição do quantum indemnizatório;
- à correcção monetária desse quantum em função do decurso do tempo e ao cômputo dos juros devidos;

Passando à análise de cada um destes alegados erros de julgamento.

Erro quanto ao critério de aferição do quantum indemnizatório
As autoras aceitam as seguintes conclusões em que assenta a sentença recorrida (cfr. a respectiva fundamentação jurídica, acima transcrita):
- os pressupostos do Acordo Global (no qual estavam em causa dívidas fiscais no montante de € 14 608 241,53) foram abalados por uma alteração (legislativa – entrada em vigor da Lei Geral Tributária (LGT), aprovada pelo DL 398/98, de 17/12, que implicou a prescrição de dívidas fiscais das autoras no montante de € 4 068 905,70) superveniente, imprevisível e anormal das circunstâncias;
- o desequilíbrio resultante dessa alteração repercutiu-se de forma negativa exclusivamente na esfera patrimonial das autoras (pois entregaram os mesmos bens em dação em pagamento – Hotel A........... Madeira e F...... 4 -, pese embora a sua dívida fiscal tivesse sido reduzida por efeito da LGT).

Discordam, no entanto, as autoras do critério utilizado na sentença recorrida para aferição do quantum indemnizatório.

Vejamos.

Na sentença recorrida, e a este propósito, referiu-se, em suma, o seguinte:
- é reconhecida e estudada pela doutrina e jurisprudência a distinção entre o poder de modificação unilateral do contrato (onde se inclui a alteração anormal e imprevisível de circunstâncias, imputável a decisões extracontratuais ou contratuais do contraente público, mas com repercussão no contrato – fait du prince), imposta pelo contraente público, e a modificação do mesmo por força de uma alteração das circunstâncias (onde se inclui as alterações imprevisíveis, externas a qualquer um dos contraentes, mas com repercussões no contrato);
- a modificação unilateral do contrato implica a reposição do equilíbrio do contrato e a alteração das circunstâncias implicará a repartição pelos dois contraentes dos custos e encargos devidos a factos anormais e imprevisíveis;
- no caso sub judice verifica-se uma situação de alteração das circunstâncias, por alteração anormal e imprevisível das circunstâncias em que se baseou a celebração do Acordo Global, através da entrada em vigor da LGT, a qual dá lugar, nos termos do art. 437º, do Cód. Civil, a uma indemnização por imprevisãopois sendo a imprevisibilidade uma circunstância objectiva que afecta ambas as partes do contrato, o risco corre também por ambas e assim deverá ser repartido -, ou seja, o custo extraordinário da continuidade de prossecução do interesse público tem de ser rateado, de acordo com critérios de equidade;
- no caso vertente cada um dos contraentes suportará metade do prejuízo provado, ou seja, do desequilíbrio demonstrado, pelo que a quantia de € 2 034 452,85 (correspondente a 1/2 de € 4 068 905,70 - cfr. alínea DD), dos factos provados), a pagar pelo réu às autoras, é uma quantia justa e adequada.

Defendem as autoras que a indemnização devia ter sido fixada no montante de € 4 068 905,70, argumentando, para tanto e em síntese, que:
- dada a identidade entre sujeito contratual e autor da alteração (legislativa) superveniente - isto é, sendo o Estado Português simultaneamente sujeito contratual e autor da alteração (legislativa) superveniente (LGT) -, tal alteração deve ser equiparada a uma modificação unilateral do contrato e esta equiparação conduz à adopção do instituto da reposição do equilíbrio financeiro do contrato e não da chamada indemnização por imprevisão;
- tal reposição implica o restauro da equação económico-financeira inicialmente acolhida pelas partes, isto é, impõe que a compensação das autoras seja integral (€ 4 068 905,70), tendo de produzir os seus efeitos desde o momento em que se verificou o facto gerador dessa mesma necessidade de reposição, no caso em apreço 8.2.2000;
- tal solução resulta actualmente do art. 314º n.º 1, al. a), do Cód. dos Contratos Públicos, o qual não é aplicável, qua tale, em razão do tempo, à situação sob análise, mas a conclusão mantém-se, desde logo porque o Cód. dos Contratos Públicos, neste aspecto, clarificou apenas uma linha de continuidade, tradição jurídica antiga, que decorrida do art. 62º, da Constituição, funcionando o referido art. 314º n.º 1, al. a), como fonte integradora da lacuna;
- apenas quando a modificação superveniente seja imputável a um terceiro caberá chamar o regime geral da alteração das circunstância, não sendo este o caso dos autos.

Subsidiariamente as autoras alegam que sempre teriam direito a receber a referida quantia de € 4 068 905,70, pois:
- ainda que se considerasse como aplicável o instituto da indemnização por imprevisão, a equidade sempre mandaria que se procedesse a um ressarcimento integral das autoras;
- caso se concluísse que haveria lugar a indemnização por imprevisão e que a equidade determinaria uma repartição de risco e, por consequência, a oneração parcial das autoras, então seria imperioso reconhecer que teria havido um enriquecimento sem causa do Estado Português à custa das autoras e que, por isso, haveria que aplicar o mecanismo de restituição típico desse instituto, na justa medida do empobrecimento das autoras, isto é, na justa medida do dano não compensado pela indemnização por imprevisão.

Desde já se adianta que as autoras têm razão quando referem que, sendo o Estado Português simultaneamente sujeito contratual e autor da alteração (legislativa) superveniente, tal alteração deve ser equiparada a uma modificação unilateral do contrato, o que conduz à adopção do instituto da reposição do equilíbrio financeiro do contrato e não da chamada indemnização por imprevisão, conforme se passa a demonstrar.

Sobre os conceitos aqui em causa e, em especial, sobre o conceito de facto do príncipe (fait du prince), escreveu Ana Gouveia Martins, A modificação e os trabalhos a mais nos contratos de empreitada de obras públicas, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, Volume II, 2010, págs. 61 a 63, 70, e 75 a 79, o seguinte:
Os contratos administrativos não consubstanciam um instituto substancial e radicalmente diferente dos contratos de direito privado, sem prejuízo da sua autonomia dogmática. Efectivamente, a noção de contrato é um conceito unitário na nossa ordem jurídica, transversal a todos os ramos de direito, sendo os contratos administrativos uma espécie dentro da categoria geral dos contratos, dominados igualmente pelo princípio do consensualismo. Um dos postulados fundamentais nesta matéria é o de que o contrato é a lei das partes e, de harmonia com princípio pacta sunt servanda, deve ser cumprido nos estritos termos em que foi convencionado, sendo que quaisquer alterações só serão admissíveis por mútuo acordo das partes.
Porém, a necessidade de garantir a prossecução do interesse público nos contratos da Administração não se compadece com o reconhecimento de um valor absoluto ao princípio da estabilidade contratual e a adopção de uma concepção estática de contrato, antes impondo uma conciliação do princípio do consensualismo com o princípio da prossecução do interesse público. A teoria geral do contrato administrativo não é indiferente ao valor da segurança jurídica e da tutela da confiança: simplesmente, forjou institutos que procuram assegurar a viabilidade do recurso à colaboração privada através das vias contratuais, sem que tal convole uma renúncia ao dever de prosseguir o interesse público e, portanto, reconhecendo à Administração, dentro de certos limites, o exercício de poderes e prerrogativas de autoridade na execução do contrato.
(…)
Todavia, as exigências do interesse público não podem sobrepor-se, sem mais, aos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares, sobretudo no âmbito contratual, em que vigora como princípio geral de direito o princípio pacta sunt servanda. Como bem refere LAUBADÈRE: «... o contrato não pode, sem perder todo o significado, estar à mercê dos privilégios de actuação unilateral de um dos co-contratantes».
A tensão dialéctica entre aqueles princípios e a sua conciliação manifestam-se paradigmaticamente na construção jurisprudencial francesa do poder de modificação unilateral do contrato (ius variandi) reconhecido à Administração Pública, que legitima a alteração das prestações objecto do contrato por razões de interesse público. Mais tarde, foram desenvolvidos outros institutos que irão integrar a teoria geral do contrato administrativo, entre os quais avultam a teoria do fait du prince e a teoria da imprevisão, a que acresce o desenvolvimento da teoria oitocentista das sujétions imprévues. Trata-se, em qualquer dos casos, não já de garantir a conciliação da prossecução do interesse público com os interesses dos particulares, mas tão somente de assegurar a tutela dos interesses do contratante privado, mediante a alteração do conteúdo económico do contrato, atenuando o princípio geral de que os riscos empresariais internos, bem como os riscos económicos conjunturais, correm por conta do co-contratante.
(…)
O exercício do ius variandi está, por outro lado, condicionado à reposição do equilíbrio financeiro do contrato. Se da modificação introduzida resultarem prejuízos para o concessionário ou uma redução dos lucros legitimamente acordados, a Administração está obrigada a garantir a compensação devida nos termos convencionalmente estipulados ou a fixar, de harmonia com o princípio do equilíbrio equitativo das prestações.
A fonte desta obrigação jurídica de indemnização integral dos prejuízos causados pela modificação unilateral introduzida (danos emergentes e lucros cessantes) é a responsabilidade por prática de facto lícito. O seu fundamento é o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, complementada pelo princípio da interdependência dos interesses empenhados num contrato que postula que «... nenhuma das partes possa procurar obter da outra uma vantagem sem lhe dar a compensação devida segundo o que estiver estipulado».
A reposição do equilíbrio financeiro assume-se como contrapartida da possibilidade de imposição unilateral de encargos superiores aos que o particular se vinculou e podia legitimamente esperar e garante que «...a relação obrigacional alterada sem o seu consentimento lhe continuará a proporcionar satisfações de intensidade idêntica».
(…)
IV. O FAIT DU PRINCE
A expressão fait du prince remonta ao Estado Absoluto e tem a sua origem histórica na designação tradicional do poder do monarca de incumprir os contratos. Foi recuperada e adoptada pela doutrina administrativa para ilustrar e acentuar a ideia de que os contratos administrativos estão submetidos a uma 'cláusula de sujeição' às novas definições e mutações do interesse público, corporizadas por leis, regulamentos e actos administrativos. A administração não pode, com efeito, ficar sequestrada dos seus poderes normativos, legais ou regulamentares pelo simples facto de o seu exercício poder, afectar, ainda que indirectamente, uma relação contratual na qual é parte, sob pena de tal corporizar uma inadmissível renúncia genérica de poderes públicos.
A construção da teoria do fait du prince assenta na ideia de que a Administração deve igualmente responder pelos prejuízos causados aos contratantes particulares pelo exercício legítimo de outros poderes para além do poder de modificação unilateral do contrato, maxime, poderes regulamentares, que incidam desfavoravelmente sobre elementos essenciais do contrato. O factum principis designa qualquer medida lícita adoptada pelo poder público que afecte o equilíbrio do contrato e agrave de forma imprevisível as condições de execução das prestações, dando lugar à obrigação de pagamento de uma indemnização integral dos prejuízos causados (danos emergentes e lucros cessantes).
A teoria do fait du prince apresenta, contudo, contornos indefinidos e é objecto de acesas divergências doutrinárias quanto ao seu conteúdo e alcance, designadamente quanto a saber se integra o exercício do poder de modificação unilateral, ou se, ao invés, se reconduz a uma figura diversa.
A jurisprudência e a doutrina tradicional francesa, em que militam nomes como RICHER, LAUBADÈRE, RIVERO, WALINE, sustentam uma tese monista e definem o fait du prince como qualquer medida lícita emanada da autoridade contratante, seja uma medida geral seja uma medida específica, seja no exercício de poderes relativos à execução do contrato (ius variandi), seja em função de outros poderes de que seja titular a administração contratante. O poder de modificação unilateral constitui, assim, uma das manifestações do fait du prince.
Alguma doutrina mais recente, pelo contrário, considera que se deve distinguir o poder de modificação unilateral do fait du prince, excluindo-o do âmbito de aplicação desta teoria. A teoria do fait du prince apenas terá aplicação quando uma medida adoptada pela autoridade contratante agrave indirectamente a situação contratual do co-contratante, tornando-a mais onerosa em virtude do exercício de poderes extra-contratuais da autoridade contratante, i.e., de poderes independentes da sua qualidade de parte no contrato, designadamente, poderes de polícia administrativa que se venham reflexamente a repercutir no contrato (v. g., se o município proibir a circulação automóvel em determinadas vias, reservando-as à circulação pedonal, tal pode afectar a execução de um contrato de serviços de transporte público).
Na esteira da doutrina clássica francesa, a doutrina nacional tem tradicionalmente perfilhado um entendimento amplo da teoria do fait du prince, verificando-se uma assimilação e recondução do poder de modificação unilateral ao mais amplo poder público dos órgão administrativos ou dos órgãos legislativos de definir de forma inovadora as situações jurídicas na prossecução do interesse público, por natureza mutável, através de medidas genéricas ou individuais. A expressão 'ius variandi' é utilizado de forma indistinta ou como sinónima do 'fait du prince' pela doutrina dominante, pelo que se perfilha o entendimento de que o poder de modificação unilateral pode ser exercida por acto administrativo, como é a regra, bem como por regulamento ou acto legislativo. MARCELLO CAETANO e FREITAS DO AMARAL vão mesmo mais longe e admitem que a potestas variandi possa ser exercida através de um acto legislativo ou regulamentar aprovado por uma entidade distinta da Administração contratante, o que nos parece já constituir um desfiguramento excessivo e indesejável do instituto (45 No mesmo sentido, cfr. MARCELO REBELO DE SOUSA/ANDRÉ SALGADO MATOS, Direito administrativo geral, III, D. Quixote, 2003, p. 359, onde sustentam que o fait du prince pode resultar da conduta de um órgão de pessoa colectiva estranha à relação contratual, sendo que a indemnização deve ser suportada pela entidade contratante apesar de o facto não lhe ser imputável. Reconduzindo o factum principis em sentido próprio à alteração do conteúdo contratual por superveniência de uma alteração legislativa, dela distinguindo a alteração por via do exercício da função administrativa quer pelo contraente público (designada pela autora como modificação unilateral latu sensu), quer por uma entidade estranha ao contrato (modificação unilateral induzida ou reflexa), cfr. CARLA AMADO GOMES, «A conformação...», op. cit., pp . 534 a 537).
Não obstante a aparente amplitude da operacionalidade da teoria do fait du prince, entendida nesse sentido amplo, a verdade é que se assiste a uma delimitação das situações em que há lugar à emergência na esfera do co-contratante de um direito a uma indemnização integral dos prejuízos causados (danos emergentes e lucros cessantes). Constitui um pressuposto fundamental desta obrigação indemnizatória a exigência de que a medida geral afecte especifica e especialmente determinado contrato, atingindo elementos essenciais da relação contratual. (…)
Assistiu-se nos últimos tempos a tentativas de delimitação mais precisas do poder de modificação unilateral e do fait du prince, embora nem sempre coincidentes (49 Cfr. LOURENÇO VILHENA DE FREITAS, O Poder .. . , op. cit., pp. 115 e 116. O autor propõe uma série de critérios distintivos, embora acabe por não retirar as devidas consequências em termos de regime. No que respeita à sua finalidade, o ius variandi visa directa e tipicamente produzir uma alteração contratual, de molde a adaptar o contrato à mutação ou superveniência do interesse público, enquanto no factum principis , ainda quando resulte do exercício do poder administrativo (medida individual de polícia, regulamento), a modificação do contrato não constitui o seu fim, constituindo antes uma consequência reflexa ou indirecta da sua eficácia, dirigida a satisfazer outros interesses da colectividade. O poder de modificação unilateral é sempre manifestação do exercício da função administrativa, constituindo o exemplo paradigmático do exercício de poderes de autoridade, na execução do contrato, por acto administrativo unilateral, enquanto o factum principis pode resultar do exercício de outra função do Estado (governativa, legislativa). O ius variandi tem por objecto intencional, típico e directo a introdução de modificações no clausulado de um determinado contrato, pelo que é sempre exercido através da prática de um acto administrativo, para definir uma categoria de situações concretas reportáveis a uma pessoa ou conjunto de pessoas perfeitamente determinadas ou determináveis. Já a teoria do fait du prince resulta, por regra, da adopção de uma medida geral e abstracta. Num sentido próximo, cfr. PEDRO GONÇALVES, A concessão ... , op. cit., p. 260; MARCELO REBELO DE SOUSA/ANDRÉ SALGADO MATOS, Direito ... , III, op. cit ., p. 359. Adoptando critérios distintivos diversos, supra referenciados, cfr. CARLA AMADO GOMES, «A conformação ... », op. cit ., pp. 533 e ss.), cuja bondade não podemos desenvolver nesta sede. Todavia, e é o aspecto que nos importa acentuar aqui, a teoria do fait du prince não constitui, por si só, uma base habilitante para a introdução de modificações a contratos da Administração. Não designa um poder genérico de incumprimento dos contratos, nem sequer consubstancia uma causa de exclusão da ilicitude, idónea para justificar e afastar a ilicitude de uma medida ilegal ou inconstitucional. Bem pelo contrário, assenta no pressuposto de que se verificou uma alteração lícita do direito aplicável que, contudo, agravou a carga contratual e coloca-se num momento lógico posterior às alterações ocorridas a qualquer título, desde que lícitas, para efeitos de garantir o ressarcimento dos danos causados.
A teoria do fait du prince constitui, efectivamente, uma fonte de responsabilidade administrativa por facto lícito. Não pretende, deste modo, corporizar uma base habilitante para a introdução de modificações contratuais. Visa simplesmente reunir, sob a égide do dever de indemnização integral dos danos causados aos contratantes, uma constelação de situações em que uma medida (licitamente) adoptada pelo poder público na prossecução de interesses gerais da colectividade envolve, como consequência reflexa ou indirecta da sua eficácia, a modificação de relações contratuais previamente estabelecidas.
Efectivamente, a teoria do factum principis nasceu para dar resposta a um problema fundamental que se coloca em qualquer Estado de Direito: pressupondo que uma relação contratual é afectada negativa e especificamente pelo exercício legítimo do poder público, v. g., por via legislativa ou regulamentar, com a inerente restrição ou amputação de direitos patrimoniais conferidos pela Administração através de um contrato, haverá, por força do princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, do princípio da tutela da confiança e da protecção do direito de propriedade constitucionalmente garantido, que ressarcir todos os prejuízos causados.
Com base nesta premissa fundamental, assistiu-se ao desenvolvimento de uma série de institutos jurídicos que se destinam a acautelar os interesses do co-contratante particular face a modificações que inviabilizem ou dificultem e tornem mais onerosa a execução do contrato. Designadamente, situações originariamente integradas na teoria do fait du prince relevam actualmente nos termos e condições da teoria da imprevisão ou da alteração das circunstâncias, comprimindo-se a operatividade do factum principis a medidas emanadas pela autoridade contratante. Se a medida for adoptada por outra entidade, apenas poderá conhecer aplicabilidade a teoria da imprevisão.
A evolução registada impõe, deste modo, uma clara e nítida separação das águas e do âmbito de aplicação de cada um destes institutos. Na verdade, há que proceder ao enquadramento das diversas situações de responsabilidade do poder público no âmbito dos institutos da modificação unilateral do contrato, do fait du prince, da teoria da imprevisão e da responsabilidade do Estado pelo exercício da função legislativa.
O art. 314.º, n.º 1, alínea a), do CCP vem consagrar a referida compressão do âmbito de aplicação da teoria do fait du prince, restringindo o direito à reposição do equilíbrio financeiro à «alteração anormal e imprevisível das circunstâncias imputável à decisão do contraente público, adoptada fora do exercício dos seus poderes de conformação da relação contratual, que se repercuta de modo específico na situação contratual do co-contratante».” (sublinhados e sombreados nossos).

Do ora transcrito resulta que, actualmente, o facto do príncipe (fait du prince) tem um âmbito mais restrito, abrangendo apenas as situações em que esteja em causa uma qualquer medida anormal e imprevisível adoptada pelo contratante público que afecte de forma específica o equilíbrio do contrato, embora não o tenha por objecto, dando lugar à obrigação de pagamento de uma indemnização integral dos prejuízos causados (cfr. art. 314º n.º 1, al. a), do CCP), por se tratar de uma situação equiparada à da modificação unilateral do contrato, sendo certo que, se a medida for adoptada por outra entidade (que não o contraente público), apenas poderá conhecer aplicabilidade a teoria da imprevisão (cfr. art. 314º n.º 2, do CCP).

Mais ressalta do ora transcrito que, quando no passado o facto do príncipe tinha um âmbito mais abrangente - incluindo tanto as situações em que a medida anormal e imprevisível era imputável ao contraente público como a outra entidade -, sempre se entendeu que, na hipótese de o mesmo resultar de uma medida imputável ao contraente público, havia lugar à reposição do equilíbrio financeiro, ou seja, ao pagamento de uma indemnização integral dos prejuízos causados, por se tratar de uma situação equiparada à modificação unilateral do contrato (cfr. art. 180º, al. a), parte final, do CPA de 1991).

Efectivamente, e como escreveu Pedro Gonçalves, A Concessão de Serviços Públicos (uma aplicação da técnica concessória), 1999, pág. 260:
Quanto aos efeitos do fait du prince, há que distinguir os casos em que o bouleversement do contrato resulta de medidas gerais adoptadas pela Administração concedente, que fica constituída no dever de indemnizar não só o dano emergente como o lucro cessante que essas medidas provocam.”.

Ora, defendem as autoras que in casu, dada a identidade entre sujeito contratual (Estado Português) e autor da alteração (legislativa) superveniente, imprevisível e anormal (Estado Português), tal alteração deve ser equiparada a uma modificação unilateral do contrato, conduzindo à adopção do instituto da reposição do equilíbrio financeiro do contrato e não da indemnização por imprevisão, ou seja, defendem as autoras que a alteração (legislativa) superveniente, imprevisível e anormal em causa nestes autos se consubstancia num facto do príncipe (fait du prince) em sentido estrito, e com razão.

Efectivamente, o DL 398/98, de 17/12 (que aprovou a LGT) é um acto do Estado Português e, em relação aos contratos em que ele é parte – como ocorre in casu com o Acordo Global -, não pode falar-se de facto alheio à sua vontade ou pessoa.

Com efeito, o Estado Português, através do Ministro da Economia e do Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, assinou o Acordo Global, o qual foi ratificado pelo Conselho de Ministros (cfr. alínea L), dos factos provados), e o Estado Português, através do Governo, aprovou o DL 398/98, de 17/12 – diploma que aprovou a LGT -, ou seja, a medida anormal e imprevisível (entrada em vigor da LGT) foi adoptada pelo contraente público, isto é, pelo Estado Português, através do Governo, embora no exercício de diferentes poderes: na aprovação da LGT, no exercício de poderes legislativos (cfr. art. 198º, da CRP, na redacção da Lei Constitucional 1/97, de 20/9) e, na celebração do Acordo Global, no exercício de poderes administrativos (cfr. art. 202º, da CRP, na redacção anterior à dada pela Lei Constitucional 1/97, de 20/9, e art. 179º n.º 1, do CPA de 1991).

Como se refere a este propósito no Ac. do TCA Norte de 12.9.2014, proc. n.º 9/08.6 BEMDL:
Como noutras ocasiões tivemos oportunidade de referir (e precisamente a propósito da inutilidade da lide em acções especiais relativas ao mesmo procedimento concursal para professor titular; com confirmação dos Acs. do TCAS de 20-06-2013, proc. nº 07306/11, e de 08-11-2012, proc. nº 07469/11, não publicados), o STA entendeu já, em decisões do Pleno da Secção do Contencioso Administrativo, que em processo de recurso contencioso, para efeitos de apreciar a imputabilidade da inutilidade superveniente da lide ao «réu», importa apreciar a imputabilidade não apenas à autoridade recorrida, que surge no lado passivo da relação processual, mas também à própria pessoa colectiva em que aquela se integra, por força do princípio da unidade orgânica do Estado (neste sentido: Ac. de 2-5-1995, publicado no BMJ n.º 447º-207, e em Apêndice ao Diário da República de 10-4-97, página 279; de 27-5-1995, proferido no recurso n.º 29484, publicado no Apêndice ao Diário da República, de 10-4-97, página 459; de 24-11-2000, proferido no recurso n.º 33344, publicado em Apêndice ao Diário da República, de 31-10-2002, página 1215).” (sublinhado e sombreado nossos).

E conforme ensina Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol. I, 2001, 2ª Edição:
- A pág. 213, “Não vamos aqui discutir se o Estado-administração forma uma pessoa colectiva pública distinta do Estado-comunidade-nacional e do Estado-entidade-internacional (3 A doutrina tradicional era no sentido de se tratar de entidades jurídicas distintas. Combatemos tal concepção, sustentando que o Estado é sempre e só uma única pessoa colectiva, ainda que com conotações diferentes conforme os ordenamentos que regulam a sua actividade, em DIOGO FREITAS DO AMARAL, Estado, «Polis», II, cols. 1154-1156)” (sublinhado e sombreado nossos);
- A págs. 227 e 228, “Para cumprir as atribuições que lhe estão conferidas pela Constituição e pelas leis, o Estado carece de órgãos. E, na verdade, como as outras pessoas colectivas, públicas ou privadas, o Estado tem os seus órgãos – aos quais compete tomar decisões em nome da pessoa colectiva a que pertencem.
Quais são os principais órgãos centrais do Estado?
A resposta vem na Constituição: são o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo e os Tribunais.
Órgãos não administrativos do Estado – Alguns dos órgãos indicados não são órgãos da Administração, mas órgãos de outros poderes do Estado. É o caso dos Tribunais, que já sabemos nada terem a ver com a Administração Pública, pois formam o Poder judicial, não pertencendo ao Poder executivo; e também da Assembleia da República, que constitui o Poder legislativo e, portanto, por definição, não se integra na Administração, nem faz parte do Poder executivo.
E o Presidente da República: será ele um órgão administrativo, isto é, um órgão da Administração Pública? Que o Presidente da República é um órgão político, nenhuma dúvida. Mas será, também, simultaneamente, um órgão administrativo?
(…) Em nossa opinião, no sistema constitucional português o Presidente da República é um órgão político, mas não é um órgão administrativo.”;
- E a pág. 231, “Interessa-nos, pois, estudar aqui o Governo enquanto órgão administrativo, mas não enquanto órgão político e legislativo, porque nessa outra qualidade o Governo é estudado na Ciência Política e no Direito Constitucional.”.

Conclui-se, assim, que a alteração (legislativa – entrada em vigor da LGT) superveniente, imprevisível e anormal em causa nestes autos consubstancia-se num facto do príncipe (fait du prince) em sentido estrito, pois é imputável ao próprio contraente público e repercutiu-se de modo específico sobre a situação das autoras (pois, face à dação em pagamento acordada, tornou-se bastante mais oneroso o pagamento das dívidas fiscais não prescritas), razão pela qual deve ser equiparada a uma modificação unilateral do contrato, dando, portanto, lugar à aplicação do instituto da reposição do equilíbrio financeiro do contrato.

Neste preciso sentido se pronunciou o parecer do Conselho Consultivo da PGR n.º P000362012, relatado por Alexandra Ludomila Ribeiro Fernandes Leitão – e votado na sessão do Conselho Consultivo da PGR de 21.3.2013, homologado em 16.4.2013 e publicado no DR, 2ª Série, de 14.5.2013 -, no qual se escreveu nomeadamente o seguinte:
V. Breve nota a propósito dos efeitos sobre o contrato
6. Estando em causa um conflito de normas de cuja solução decorrem alterações a um contrato administrativo, justifica-se a inclusão de uma breve referência às consequências daí resultantes para a execução desse contrato.
De facto, o artigo 71.º do Decreto-Lei n.º 252/2000, de 16 de outubro, adita uma isenção ao conjunto de isenções de pagamento de portagens que constava da Base XIX do Decreto-Lei n.º 294/97, de 24 de outubro, modificando o contrato.
Esta modificação não resulta, contudo, da utilização do poder de conformação da relação contratual – o poder de modificar unilateralmente as cláusulas do contrato, previsto no artigo 302.º, alínea c) do CCP [28 O CCP não se aplica ao presente contrato de concessão, uma vez que o artigo 16.º do respetivo diploma preambular estabelece que o Código só se aplica aos procedimentos de formação de contratos públicos iniciados após a data da sua entrada em vigor e à execução dos contratos que revistam a natureza de contrato administrativo celebrados na sequência de procedimentos de formação iniciados após essa data, salvo o disposto no n.º 2 do artigo 18.º. No entanto, pelo seu caráter omnicompreensivo, o regime dele resultante deve ser tido em conta na análise dos contratos, salvo se outra coisa resultar do próprio clausulado.] -, mas sim de uma situação de “facto do príncipe.
Esta figura corresponde a uma atuação extracontratual, de caráter genérico e normativo – resulta de alterações constitucionais, legais ou regulamentares – que afetam o contrato, embora não o tenham por objecto [29. ALEXANDRA LEITÃO, O Tempo e a Alteração das Circunstâncias Contratuais, intervenção no V Encontro de Professores de Direito Público, in www.icjp.pt, pág. 10.].
No CCP, pondo termo a alguma polémica doutrinária sobre o âmbito de proteção do co-contratante perante este tipo de atuações, o legislador optou por reconduzi-la à figura da modificação unilateral do contrato quando a atuação que se configura como “facto do príncipe” seja imputável ao próprio contraente público, mas adotada fora do seu poder de conformação da relação contratual [artigo 314.º, n.º 1, alínea a)] [30 Idem.].
É o que ocorre no caso sub judice, na medida em que o concedente é o mesmo Estado que aprovou, no uso dos seus poderes legislativos, o diploma orgânico do SEF.
Assim, salvo solução em contrário constante do próprio contrato [31 Ao qual este Conselho não teve acesso, nem tal é necessário para responder à questão colocada pelo Consulente], se a modificação imposta pelo artigo 71.º do Decreto-Lei n.º 252/2000, de 16 de outubro, puser em causa o equilíbrio financeiro do mesmo – aspeto cuja análise excede claramente o âmbito da presente Consulta -, esse equilíbrio terá de ser reposto por recurso ao disposto no artigo 282.º do CCP.
” (sublinhados e sombreado nossos).

Bem como Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Actividade Administrativa, Tomo III, 2009, 2ª Edição, pág. 422:
O alcance mais frequente do facto do príncipe é o de provocar uma alteração das circunstâncias que, nos termos gerais, pode dar origem à modificação ou à resolução do contrato (…). Quando a alteração das circunstâncias seja imputável a facto do príncipe do próprio contraente público, a lei equipara-a, em termos de consequências, à modificação e à resolução do contrato mediante acto administrativo de autoridade: havendo modificação contratual, o co-contratante da administração tem direito à reposição do equilíbrio financeiro do contrato, tal como se tivesse ocorrido modificação unilateral [arts. 314.º, 1, a), 282.° CCP]; (…). Quando a alteração das circunstâncias não seja imputável a facto do príncipe do próprio contraente público (por exemplo, se uma lei estadual tiver impacto sobre um contrato administrativo em que não é parte o Estado), aplica-se o regime geral da alteração das circunstâncias” (sublinhados e sombreados nossos).

No caso sub judice a reposição do equilíbrio financeiro do contrato implica, atenta a factualidade dada como provada em DD), a condenação do réu a pagar às autoras uma indemnização no montante de € 4 068 905,70, isto é, não há lugar à redução de 1/2 determinada na sentença recorrida.

Erro quanto à correcção monetária do quantum indemnizatório e ao cômputo dos juros devidos
Argumentam as autoras que o valor da indemnização (€ 4 068 905,70, conforme decorre do ora exposto) tem de ser actualizado em função do índice de preços ao consumidor apurado anualmente pelo Instituto Nacional de Estatística, a calcular desde 8.2.2000 até integral e efectivo cumprimento por parte do Estado Português, o que não foi feita na sentença recorrida, razão pela qual a mesma enferma de erro.

Referem ainda as autoras que na petição inicial pediram:
- que a indemnização actualizada fosse incrementada de juros calculados de acordo com as taxas legais aplicáveis, contados desde 8.2.2000 (assim corrigindo a data de 1.1.1999 constante da petição inicial) até 28.12.2007 (data da apresentação da petição inicial):
- o pagamento de juros sobre a quantia apurada na sequência dos pedidos anteriores - ou seja, sobre a quantia actualizada, acrescida dos juros apurados entre 8.2.2000 e 28.12.2007 -, até integral e efectivo cumprimento,
salientando que a sentença recorrida estabeleceu, erradamente, que não era admissível a condenação no pagamento de juros, sem prejuízo dos que se vencerem após trânsito em julgado.

Vejamos.

Na sentença recorrida refere-se que o montante indemnizatório é arbitrado nos termos do art. 566º n.º 2, do Cód. Civil, razão pela qual não é admissível a condenação em juros moratórios - sem prejuízo dos que se vencerem após trânsito em julgado -, invocando para o efeito o Ac. Uniformizador de Jurisprudência do STJ n.º 4/2002.

De facto, a actualização ou correcção monetária – prevista no art. 566º n.º 2, do Cód. Civil – e os juros sobre o valor da indemnização atribuída têm funções semelhantes, ou seja, ambos visam compensar o prejuízo resultante da desvalorização ou depreciação monetária pela demora no pagamento da indemnização e, por isso, como tem entendido maioritariamente a jurisprudência, não são cumuláveis – neste sentido, Ac. Uniformizador de Jurisprudência do STJ n.º 4/2002, de 9.5.2002, publicado no DR, I Série, de 27.6.2002, e Acs. do STA de 16.3.2004, proc. n.º 1611/02, 3.11.2004, proc. n.º 811/03, e 18.1.2005, proc. n.º 1703/02.

Assim, tem de improceder a pretensão das autoras de cumulação da actualização monetária com o pagamento de juros, carecendo de fundamento a tese de que só tal interpretação é conforme com o disposto no art. 62º n.ºs 1 e 2, da CRP, pois tal cumulação conduziria a uma duplicação de benefícios resultantes do decurso do tempo.

As autoras têm, no entanto, razão quando invocam que a sentença recorrida incorreu em erro ao não proceder à actualização monetária.

Com efeito, embora na sentença recorrida se refira que o montante indemnizatório é arbitrado nos termos do art. 566º n.º 2, do Cód. Civil – ou seja, que é objecto de actualização -, a verdade é que se verifica que a quantia de € 2 034 452,85 (a qual deverá ser majorada para € 4 068 905,70, como decore do supra explanado) que o réu foi condenado a pagar às autoras não foi objecto de qualquer actualização, dado que tal quantia corresponde a 1/2 de € 4 068 905,70, montante ao qual se alude na alínea DD), dos factos provados, com referência à data de 8.2.2000 (cfr. alíneas S) e T), dos factos provados), sendo certo que a sentença recorrida foi proferida em 14.12.2011, condenando o réu a pagar a referida quantia de € 2 034 452,85 apurada com referência a 8.2.2000.

Nestes termos, e tendo em conta o disposto no art. 566º n.º 2, do Cód. Civil, a quantia a pagar pelo réu às autoras - € 4 068 905,70, como decore do supra exposto – deverá ser actualizada até à data da prolação da sentença em 1ª instância (14.12.2011), com base na taxa de inflação constante dos índices dos preços no consumidor, publicados pelo INE [neste sentido, Ac. do STA de 16.3.2004, proc. n.º 1611/02 (“V - A actualização monetária deve ser feita por aplicação da taxa de inflação constante dos índices dos preços no consumidor, publicados no INE”)].

Quanto aos juros, e como acima referido não pode haver cumulação da actualização monetária com o pagamento de juros, pelo que estes apenas são devidos a partir da data da prolação da sentença em 1ª instância (art. 805º, do Cód. Civil, interpretado restritivamente, ou seja, o mesmo cede quando a indemnização for fixada em valor determinado por critérios contemporâneos da decisão), os quais ascendem a 4% ao ano (cfr. arts. 559º n.º 1 e 806º, ambos do Cód. Civil, e Portaria 291/2003, de 8 de Abril, pois não é aplicável o DL 32/2003, de 17/2, nem o DL 62/2013, de 10/5).

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Conclui-se, assim, que deverá ser:
- negado provimento ao recurso jurisdicional interposto pelo Estado Português.
- concedido parcial provimento ao recurso intentado pelas autoras e, em consequência, modificada a quantia indemnizatória fixada na sentença recorrida, majorando-se a mesma para € 4 068 905,70, e determinada a actualização dessa quantia com base na taxa de inflação constante dos índices dos preços no consumidor, publicados pelo INE, desde 8.2.2000 até à data da prolação da sentença em 1ª instância (14.12.2011), acrescida de juros, desde esta última data (14.12.2011) até integral pagamento, à taxa de 4% ao ano e correspondentes taxas legais subsequentemente em vigor.
*
Uma vez que o Estado Português ficou vencido no recurso jurisdicional que intentou deverá suportar as respectivas custas (cfr. art. 527º n.ºs 1 e 2, do CPC de 2013, ex vi art. 1º, do CPTA).

Quanto ao recurso jurisdicional intentado pelas autoras, estas e o Estado Português deverão ser condenados nas custas, na proporção de 35% - em parte iguais - e 65%, respectivamente, atento o disposto nos arts. 527º n.ºs 1 e 2 e 528º n.º 1, ambos do CPC de 2013, ex vi art. 1º, do CPTA.

Considera-se que não é aqui aplicável o estatuído no art. 6º n.º 7, do RCP, mas antes o disposto no art. 73º-B n.º 1, do Código das Custas Processuais, atento o prescrito no art. 8º n.ºs 2 e 3, este último a contrario, da Lei 7/2012, de 13/2, razão pela qual não há que ponderar a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

No que respeita às custas fixadas em 1ª instância, embora, em princípio, houvesse lugar à sua alteração, no sentido de se aumentar a proporção da condenação em custas do Estado Português e de se diminuir a proporção da condenação em custas das autoras – face à procedência parcial do recurso interposto pelas autoras -, verifica-se que, in casu, tal não é possível, pois o Estado Português já foi condenado no pagamento integral das custas devidas em 1ª instância.
III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam, em conferência, as Juízas Desembargadoras da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em:
I – a) Negar provimento ao recurso jurisdicional interposto pelo Estado Português.
b) Conceder parcial provimento ao recurso intentado pelas autoras e, em consequência:
- modificar a quantia indemnizatória fixada na sentença recorrida, majorando a mesma para € 4 068 905,70 (quatro milhões, sessenta e oito mil, novecentos e cinco euros e setenta cêntimos);
- condenar o réu a pagar às autoras tal quantia actualizada com base na taxa de inflação constante dos índices dos preços no consumidor, publicados pelo INE, desde 8.2.2000 até à data da prolação da sentença em 1ª instância (14.12.2011), e acrescida de juros, desde esta última data (14.12.2011) até integral pagamento, à taxa de 4% ao ano e correspondentes taxas legais subsequentemente em vigor.
II – a) Condenar o Estado Português nas custas relativas ao respectivo recurso jurisdicional.
b) Condenar as autoras e o Estado Português nas custas relativas ao recurso jurisdicional intentado por aquelas, na proporção de 35% - em partes iguais - e 65%, respectivamente.
III – Registe e notifique.
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Lisboa, 5 de Julho de 2017

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(Catarina Jarmela - relatora)

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(Conceição Silvestre)

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(Cristina dos Santos)