Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:114/17.8BCLSB
Secção:CT
Data do Acordão:06/25/2019
Relator:ANA PINHOL
Descritores:IRC
ENCARGOS FINANCEIROS
Sumário:I.Se a Administração Tributária fundamentadamente põe em causa a bondade de um custo, lançando dúvida sobre a inserção dessa despesa no interesse societário, sobre a sua relação justificada com a actividade da sociedade contribuinte, compete a esta uma explicação acerca da - congruência económica - da operação.

II.Os encargos financeiros com empréstimos obtidos de terceiros só podem legalmente ser havidos como custos abrangidos pelo artigo 23.º, n.º 1, alínea c), do CIRC e como tais aceites para efeitos fiscais, na parte e medida em que correspondam a recursos efectivamente empenhados na actividade estatutária da empresa.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em Conferência, na 1ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

I.RELATÓRIO

A FAZENDA PÚBLICA recorre da sentença do TRIBUNAL TRIBUTÁRIO DE LISBOA, que julgou parcialmente procedente a Impugnação Judicial deduzida pela SOCIEDADE .........., S.A., na sequência do indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada contra o acto de liquidação adicional de IRC, referente ao exercício fiscal de 1995.

A Fazenda Pública termina a sua alegação com as seguintes conclusões:

«I. O presente recurso visa reagir contra a douta sentença declaratória da parcial procedência da impugnação, referente à liquidação adicional de IRC n°.........., do ano de 1995, com origem na acção de inspecção levada a efeito pela Divisão de Inspecção Tributária de Lisboa.

II. Não foram aceites pelos Serviços de Inspecção (STI), como custos do exercício de 1995, os juros suportados com um empréstimo bancário contraído pela sociedade sua associada denominada O.........., Lda, no valor de 47.000 contos, que no dizer da contribuinte, teve a sua génese em dificuldades criadas pela situação financeira grave da firma "G..........".

III. Concretizando, o referido recurso limita-se aos juros pagos sobre parte do referido empréstimo, no valor de 19.500.000$00, relativamente à qual o douto tribunal "a quo" concluiu que a impugnante a aplicou na sua actividade e que os custos inerentes aos juros pagos por essa parte do empréstimo devem ser considerados como indispensáveis à realização dos proveitos, parte essa declarada procedente pela sentença judicial em causa e com a qual a Administração Tributária não se conforma.

IV. Em primeiro lugar, convém lembrar que foi o próprio contribuinte, em sede de audição prévia, que alegou junto dos STI, que o empréstimo em causa, no valor de 47000 contos, teve como génese a situação financeira da firma G.......... que originou a necessidade do sujeito passivo recorrer a financiamentos bancários naquele montante, e ainda, que não foram debitados, nem estipulados juros por não se prever a possibilidade de aquela firma os poder suportar, (cfr.63 e 64 do PAT)

V. Assim, face aos dados declarados e apresentados pelo contribuinte, bem como as referidas alegações em sede de audição prévia, os SIT concluíram, salvo melhor opinião, bem, "que independentemente da situação da dita "associada", em condições normais seria de exigir juros, pelo que os juros suportados pela contribuinte resultam de financiamentos alheios à prossecução do seu objecto social, não sendo indispensáveis à realização dos proveitos e consequentemente não enquadráveis no corpo do n°1 do art.23° do CIRC." (cfr. 63 e 64 do PAT)

VI. Vem a Impugnante, posteriormente, sustentar com a "Demonstração de Resultados" e com o depoimento das testemunhas, que do empréstimo obtido pela O.........., LDA., o valor de 19 500 000$00 foi direccionado ao processo de expansão da O.......... e aplicado no desenvolvimento da sua actividade e com vista unicamente à obtenção dos seus proveitos, (cfr. fls. 30 a 36 e depoimento das duas testemunhas)

VII. E foi com base nessa prova que o Tribunal "quo" deu por provado os factos alegados.

VIII. Contudo, somos de opinião, que do contrato de empréstimo contraído pela O..... não consta que, o valor de 19.500.000$00 tenha sido direccionado ao processo de expansão da O.......... e aplicado apenas e só no desenvolvimento da sua actividade e com vista unicamente à obtenção dos seus proveitos.

IX. Por outo lado, salvo o devido respeito, as demonstrações financeiras relativas a 1995 da O....., nomeadamente a demonstração de resultados por natureza, não permite concluir que os referidos 19.500.000$00 se destinaram ao fim apontado pela Impugnante.

X. Para além da referida demonstração de resultados não ter qualquer referência a esse montante (19.500.000$00), é ainda de referir que de toda a documentação contabilística, apresentada aos SIT, levaram esses serviços, pelo contrário, a considerar inicialmente não ser justificável a existência de custos com juros e, consequentemente, não serem indispensáveis à realização de proveitos, (cfr. 63 e 64 do PAT).

XI. Também a prova testemunhal não é susceptível de demonstrar que os referidos 19 500 000$00 se destinaram, de forma exclusiva, ao desenvolvimento da actividade desta empresa visando a obtenção de proveitos, uma vez que a mesma se limitou a reproduzir o alegado, não apresentando factos concretos demonstrativos de haver alguma relação directa daquele montante com as diversas actividades e proveitos da Impugnante.

XII. Ora, nos termos do artigo 23° do CIRC para que os gastos, encargos sejam contabilizados como custos e casuisticamente possa ser assumidos como custo fiscal, é necessário comprovar a ocorrência da indispensabilidade de tais gastos e ligar a necessidade desses encargos à realização dos proveitos ou ganhos ou à manutenção da fonte produtora da empresa.

XIII. O ónus de provar essa indispensabilidade dos gastos e a relação causal entre tal custo e os proveitos da empresa pertence à Impugnante.

XIV. Cabia então à Impugnante, nesta fase, e em face do relatório de inspecção, o ónus da prova das suas alegações, comprovando cabalmente que os juros em causa respeitavam a um empréstimo obtido pela O....., aplicado no referido processo de expansão e, nessa medida, determinante na obtenção dos seus proveitos.

XV. Como como acima exposto, tal não se verificou.

XVI. Assim sendo, a impugnante não logrou provar a indispensabilidade dos custos em apreço para a realização dos seus proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora.

XVII. Pelo que a douta sentença proferida pelo Mm°. Juiz a quo fez, a nosso ver, uma incorrecta interpretação de facto e de direito das normas legais e da ratio legis que a fundamentam, mormente o art°23° do CIRC, incorrendo assim em erro de julgamento, devendo, por esse motivo, ser revogada, na parte em que procedeu, com as legais consequências.

Termos em que, com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., deverá o presente recurso ser julgado procedente anulando-se a douta decisão na parte em apreço, com as legais consequências, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.»


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Não foram apresentadas contra-alegações.

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Foi dada vista ao MINISTÉRIO PÚBLICO e a Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer de fls. 184/185 dos autos, no sentido da improcedência do recurso.

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Colhidos os vistos, cumpre decidir em Conferência.


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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações (cfr. artigo 635.º, n.º 4 e artigo 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2003, de 26 de Junho), sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Vistas as conclusões do recurso, a questão a decidir é a de saber se a sentença recorrida incorre em erro de julgamento ao considerar que ficou provado que o montante de 19.500.000$00, que integra o empréstimo bancário de 47.000.000$00, contraído pela «O.........., Lda» foi aplicado no processo de expansão desta sociedade e, consequentemente, se os respectivos encargos financeiros (juros) relevam como custos fiscais, nos termos e para os efeitos do artigo 23.º do CIRC.


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III. FUNDAMENTAÇÃO

A.DOS FACTOS

Na sentença recorrida fixou-se a matéria de facto nos seguintes termos:

«A) A Impugnante, no exercício de 1995, era tributada pelo regime do lucro consolidado previsto no artigo 59° do CIRC - cfr. p.i. e relatório de inspecção, a fls. 38 a 44 do processo administrativo tributário (PAT);

B) Integrava o perímetro da consolidação, a sociedade O.........., LDA - cfr. p.i. e relatório de inspecção, a fls. 38 a 44 do PAT;

C) A O.........., LDA contraiu um empréstimo bancário no total de 47.000.000$00 - cfr. demonstração de resultados a fls. 34 dos autos e relatório de inspecção, a fls. 63 e 64 do (PAT);

D) 27.500.000$00 destinou-se a financiar a associada G.........., que apresentava uma situação financeira débil na mira de esta desenvolver a sua actividade e obter lucro - cfr. demonstração de resultados a fls. 33 e depoimento das duas testemunhas;

E) A O.......... decidiu que tal empréstimo à G.........., não venceria juros - cfr. depoimento das duas testemunhas;

F) Do empréstimo obtido pela O.........., LDA, o valor de 19.500.000$00 foi direccionado ao processo de expansão da O.......... e aplicado no desenvolvimento da sua actividade e com vista unicamente à obtenção dos seus proveitos - cfr. demonstração de resultados e depoimento das duas testemunhas;

G) A sociedade O.........., LDA foi sujeita a acção inspectiva, concluída em Maio de 2000, no termo da qual os serviços de inspecção desconsideraram o valor de 7.454.719$00, referente a custos relativos a juros suportados com um empréstimo de 47.000.000$00 - cfr. relatório de inspecção, a fls. 63 e 64 do PAT;

H) Pode ler-se no relatório final de inspecção, a propósito da correcção efectuada que: "(...)

1- Da análise da declaração Mod. 22 relativa ao ano de 1995, propõe-se que seja acrescido ao lucro tributável declarado pelo Contribuinte o seguinte valor:

1.1 Juros suportados - Outros (Q.25L1)

2- Com os seguintes fundamentos:

2.1 No Balanço (Q30)

2.1.1 O contribuinte tem créditos sobre accionistas no valor de 35.430.578$00;

2.1.2 E contraiu empréstimos no montante total de 47.000.000$00.

2.2 Nos quadros:

2.2.1- 25, Linha 1, declara juros suportados - Outros no valor de 7.454.719$00;

2.2.2 - 26, Linha 8, outros proveitos e ganhos financeiros, não declara qualquer valor.

2.3 - Constata-se, portanto, que não se justifica a existência de custos com juros financeiros, por os mesmos não serem indispensáveis á realização dos proveitos.

Direito de audição

1- Tendo sido notificada (...), o contribuinte exerceu, por escrito, o s/direito de audição, declarando que NÃO CONCORDAVA, com as correcções fiscais operadas e relativas ao exercício de 1995.

2- Baseia a sua discordância com os seguintes argumentos:

2.1 - 78% dos créditos sobre as empresas do grupo e associadas corresponde à dívida contraída pela firma G.........., Lda;

2.2 - O seu saldo resulta de operações com elas realizadas em 1993 (20.500 contos) e 1994 (7.000 contos);

2.3 - Devido às dificuldades financeiras com que afirma G.......... se debatia em 1993 e 1994 não foram debitados, nem estipulados juros por não se prever a possibilidade de aquela firma os poder suportar;

2.4 - Em 1995 a situação financeira da firma em causa agrava-se, extinguindo a expectativa de cobrança da dívida;

2.5 - Devido a esta situação, a Contribuinte no final do exercício de 1994 provisionou a sua participação financeira naquela firma e encerrou-a contabilisticamente em 1995;

2.6 - A dificuldade na cobrança da dívida originou a necessidade do Sujeito Passivo recorrer a financiamentos bancários que no fim do exercício de 1995 totalizavam 47.000 contos.

3- Da análise efectuada à resposta do Sujeito Passivo, verifica-se que:

3.1 - desconhece-se a natureza das operações com afirma G...........

3.2 - No quadro 35 da Mod. 22 não é feita menção à referida empresa, pelo que não se afigura que seja associada.

3.3 - Independentemente da situação financeira da dita «associada», em condições normais seria de exigir juros, pelo que os juros suportados pela contribuinte resultam de financiamentos alheios à prossecução do seu objectivo social, não sendo indispensáveis à realização dos proveitos e consequentemente não enquadráveis no corpo do nº1 do art.23° do CIRC. Assim, serão mantidos os critérios inicialmente adoptados". - cfr. fls. 63 e 64 do PAT;

I) Em resultado da correcção de 7.454.719$00 foi efectuada a correspondente alteração ao lucro tributável declarado, o qual passou de 13.172.557$00 para 20.627.276$00 - cfr. relatório de inspecção, a fls. 63 e 64 do PAT;

J) A correcção efectuada, no âmbito da sociedade O.........., reflectiu-se na ora Impugnante, Sociedade .........., SA, na declaração de consolidação, pelo que foi elaborado o correspondente Mod. DC 22 - cfr. fls. 55 a 59 do PAT;

K) De acordo com o DC 22 elaborado com respeito à ora Impugnante, pode aí ler-se, sob a epígrafe "fundamentação das correcções efectuadas" que "quadro 20 -Linha 22-7 454.719$00. Correcções efectuadas à sociedade dependente O.......... Lda. que tem reflexo na declaração de consolidação " - cfr. fls. 55 a 58 do PAT;

L) Em consequência, da correcção referida efectuada à O.......... Lda foi emitida, em 26/10/2000, em nome da ora Impugnante, a liquidação nº.........., no montante de 6. 932.386$00, a qual inclui o valor de 3.823.863$00 de juros compensatórios - cfr. fls. do processo de reclamação graciosa;

M) Em 16/03/2001, a ora Impugnante apresentou reclamação graciosa contra a liquidação referida em L, a qual foi indeferida - cfr. processo de reclamação;

N) Em 17/11/2003 foram apresentados os presentes autos de impugnação, na qual é pedida: "(...) deve a presente impugnação ser julgada totalmente procedente e, consequentemente, anular-se o despacho que ora se impugna por outro de aceitação como custo do montante de 7.454.719$00 pago a título de juros do empréstimo contraído" - cfr. fls. 3 a 8;

O) Foi proferida sentença de improcedência da impugnação referida em N - cfr. fls. 42 a 53;

P) A Impugnante apresenta recurso da sentença referida, no sentido de que a mesma deveria ter sido julgada parcialmente procedente, formulando as seguintes conclusões das quais destaco:

"(...) 5. Pelo que o montante de Esc. 19.500.000$00 foi utilizado pela O.........., LDA apenas e só no desenvolvimento da sua actividade e para a obtenção de proveitos.

(...)7- Na verdade, a sua decisão, em face dos elementos de prova, dever-se-ia consubstanciar numa outra que julgasse parcialmente procedente por provada a impugnação apresentada pela ora Agravante e considerar como custo, pelo menos, 41% dos juros decorrentes do empréstimo contraído pela O.........., LDA, relativo ao valor de Esc. 19 500 000$00 que foi aplicado, apenas e só, no desenvolvimento daquela empresa e destinado à obtenção dos respectivos proveitos.

8- Ou seja, considerar como custo o montante de Esc. 3 056 434$79 (...)

9- Ao não o fazer, o Meritíssimo Juiz «a quo», com tal decisão, violou, claramente, o disposto no artigo 23° nº1 do CIRC no que respeita aos juros correspondentes à parte do empréstimo que a O.........., LDA, aplicou, apenas e só, no desenvolvimento da sua actividade e destinado à obtenção dos referidos proveitos.

Requer-se, por isso, a V. Exas, Venerandos Desembargadores, que se dignem dar provimento ao presente Recurso e, em consequência, ser revogada a douta sentença ora recorrida, substituindo-se a mesma por outra que julgue parcialmente procedente, por provada a impugnação deduzida pela ora Agravante e, assim, seja reconhecida como custo os juros relativos ao valor de Esc. 19.500.000$00, no montante de Esc. 3.056.434$79 (...)"- cfr. fls. 71 a 76;

Q) Por Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, recurso 4155/10 de 19/01/2011 foi anulada e ordenada a baixa ao tribunal de 1ª instância para proceder à inquirição das testemunhas arroladas por ser "(...) susceptível de permitir clarificar a utilização dada ao dito empréstimo de 19.500.000$00, no sentido de possibilitar aferir da sua indispensabilidade, ou não, para efeitos do art.23º/1 do CIRC, nos termos acima referidos (...) para aferir "que aquele empréstimo de 19.500.000$00 foi contraído para fazer face à gestão corrente da O....., no âmbito do seu processo de expansão, tendo sido aplicado, de forma exclusiva, no desenvolvimento da actividade desta empresa visando a obtenção de proveitos - cfr. arts. 9° a 11° inclusive da p.i." - cfr. fls. 94 a 107.»

Consta da mesma sentença que: «Inexistem factos não provados com relevância para a decisão da causa» e que: «Considero os factos provados atendendo essencialmente ao teor dos documentos dos autos, não impugnados e indicados nas várias alíneas do probatório.

O depoimento da primeira testemunha, o Director Financeiro do Grupo O.........., à data da inspecção alegou que, em 1995, a O.......... contraiu um empréstimo de 47.000.000$00, tendo aplicado 27.500.000$00 na G.........., que estava em difícil situação financeira tendo mais tarde sido fechada por não ser rentável. Não lhe foram exigidos juros pelo empréstimo de 27.500.000$00 devido a débil situação económica da empresa.

Relativamente ao valor restante do empréstimo contraído (41% do valor), no montante de 19.500.000$00 foi utilizado na actividade da O.......... como está reflectido no balanço da sociedade. A Autoridade Tributária desconsiderou a totalidade dos juros suportados pelo empréstimo bancário de 47.000.000$00, por entender que a totalidade do empréstimo foi utilizado para o financiamento alheio, à prossecução dos objectivos da sociedade. Porém, da demonstração de resultados resulta que somente 27.500.000$00 foram aplicados em empresas participantes, restando 19.500.000$00 que estão incluídos na actividade da empresa. A segunda testemunha, funcionário da Impugnante na área da contabilidade informou que o empréstimo contraído, no montante de 19 500 000$00 foi para a sociedade se financiar, para poder efectuar os pagamentos das importações relacionadas com equipamentos de segurança marítima, como por exemplo, aquisição de jangadas.»


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B.DE DIREITO

Na sequência da acção de fiscalização externa, efectuada pelos Serviços de Inspecção Tributária, à sociedade «O.........., Lda», relativa ao exercício de 1995 (empresa do grupo sujeita à tributação pelo lucro consolidado da «SOCIEDADE .........., S.A.»), foi emitida a liquidação adicional de IRC n.º .........., resultante, além do mais, da correcção de 7.454.719$00, com reflexos na declaração de consolidação.

O Tribunal Tributário de Lisboa julgou parcialmente procedente a impugnação deduzida pela «SOCIEDADE .........., S.A.» (doravante impugnante/recorrida) na qualidade de sociedade dominante, contra a liquidação adicional identificada no parágrafo antecedente, considerando que a Impugnante demonstrou a indispensabilidade dos custos referentes aos juros pagos inerentes ao empréstimo de 19.500.000$00.

É quanto a este segmento que vem interposto o presente recurso.

Sustenta a Fazenda Pública, como se vê das suas conclusões de recurso, que os meios probatórios que servem de suporte à matéria de facto fixada na alínea F) do probatório não permitem concluir que o capital mutuado, no valor de 19.500.000$00, foi aplicado no processo de expansão da sociedade «O.........., Lda» (doravante O.....).

A questão que se coloca é, pois, a de saber se a sentença recorrida enferma, ou não, de erro de julgamento da matéria de facto, ao dar como provado a matéria vertida na alínea F) do probatório, na medida em que, na perspectiva da recorrente, «[d]o contrato de empréstimo contraído pela O..... não consta que, o valor de 19 500 000$00 tenha sido direccionado ao processo de expansão da O.......... e aplicado apenas e só no desenvolvimento da sua actividade e com vista unicamente à obtenção dos seus proveitos[Conclusão VIII].

Mas, além disso, afirma ainda a recorrente que «[a]s demonstrações financeiras relativas a 1995 da O....., nomeadamente a demonstração de resultados por natureza, não permite concluir que os referidos 19.500.000$00 se destinaram ao fim apontado pela Impugnante.» [Conclusão IX].

Dito isto, vejamos então, se o Tribunal de 1ª Instância incorreu em erro de julgamento da matéria de facto e, por isso, importa nesta medida sindicar o juízo probatório expresso na decisão sobre o facto provado na alínea F).

Identificada a questão a decidir, vejamos então se depois de procedermos à audição da prova gravada, podemos concluir, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa daquela que vingou na 1ª Instância.

Preliminarmente, há que deixar claro que, relativamente à questão da alteração da matéria de facto, face à incorrecta avaliação da prova produzida, cabe a este Tribunal, ao abrigo dos poderes conferidos pelo artigo 662.º do CPC, e enquanto tribunal de 2ª instância, reapreciar, não apenas se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a transcrição da prova e os restantes elementos constantes dos autos revelam, mas, também, avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto.

Segundo o aludido princípio da prova livre (artigo 607.º do CPC), ao qual se contrapõe o princípio da prova legal, as provas são apreciadas livremente, sem nenhuma escala de hierarquização, de acordo com a convicção que geram no julgador acerca da existência de cada facto, só cedendo às situações de prova legal que se verifiquem, designadamente, tendo em consideração o disposto nos artigos 350.º, nº 1, 358.º, 371.º e 376.º, todos do Código Civil, nos casos de prova por confissão, por documentos autênticos, por certos documentos particulares quanto à materialidade das suas declarações e por presunções legais.

A modificabilidade da matéria de facto pelo Tribunal «ad quem» tem, assim, necessariamente lugar nos casos de manifesta desconformidade entre as provas produzidas e a decisão proferida, traduzida num erro evidente na apreciação das provas, que não pode deixar de implicar uma decisão diversa.

Tal pressupõe uma clara distinção entre erro na apreciação da matéria de facto e discordância do sentido em que se formou a convicção do julgador.

Como refere MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, a revisão ou reponderação das provas em 2ª instância satisfaz-se com a averiguação de saber se, dentro dos condicionalismos da instância recorrida, essa decisão foi adequada, pelo que esses recursos controlam apenas a "justiça relativa" dessa decisão. (In: Estudos sobre o novo Processo Civil, 374).

Ora, nesta linha orientadora, temos como seguro que reapreciação da prova passa pela averiguação do modo de formação dessa “prudente convicção”, devendo aferir-se da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª Instância, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova. (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.05.2016, proferido no processo n.º1572/12.2TBABT.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.).

No caso presente, a Meritíssima Juiz suportada na factualidade vertida nas alíneas C), D) e do probatório [C) A O.........., LDA contraiu um empréstimo bancário no total de 47.000.000$00 - cfr. demonstração de resultados a fls. 34 dos autos e relatório de inspecção, a fls. 63 e 64 do (PAT); D) 27.500.000$00 destinou-se a financiar a associada G.........., que apresentava uma situação financeira débil na mira de esta desenvolver a sua actividade e obter lucro - cfr. demonstração de resultados a fls. 33 e depoimento das duas testemunhas; F) Do empréstimo obtido pela O.........., LDA, o valor de 19.500.000$00 foi direccionado ao processo de expansão da O.......... e aplicado no desenvolvimento da sua actividade e com vista unicamente à obtenção dos seus proveitos - cfr. demonstração de resultados e depoimento das duas testemunhas;] e lançando mão da prova testemunhal produzida, delas retirou, a seguinte conclusão: «Os 19.500.0000$00 (=47.000.000$00 – 27.500.000$00) foram aplicados na O.......... (…).».

Começamos por dizer que no Tribunal 1.ª Instância, dando-se cumprimento ao determinado por este Tribunal Central Administrativo (cfr. alínea Q) do probatório), foi produzida a prova testemunhal oferecida na petição de impugnação com vista ao «esclarecimento interpretativo dos documentos juntos (…) clarificar a utilização dado ao dito empréstimo de 19.500.000$».

Tendo-se procedido à audição integral do CD em que ficaram registados os dois depoimentos prestados em audiência (Acta de Inquirição de Testemunhas de fls. 123 e 124) constata-se o seguinte: - disse a primeira testemunha que o valor de 19.500.000$00 «está reflectido no balanço, basta olhar para o balanço, para se ver onde foi aplicado (…)». Porém, não obstante a invocação de tal documento contabilístico, o certo é que o mesmo não foi junto aos autos.

Para além disso, a testemunha limitou-se a referir a discordância da Recorrida com a correcção efectuada pela Administração Tributária e a sua intervenção no procedimento de inspecção que originou a liquidação de IRC sindicada.

De resto, de acordo com as regras da experiência, afigura-se altamente inverosímil que a testemunha em causa, tendo iniciado funções (Director Financeiro) ao serviço da Recorrida no ano de 2000, tenha conhecimento dos factos ocorridos no ano de 1995.

No que respeita ao depoimento da segunda testemunha, foi por esta referida a existência de 10 mil contos na conta de meios monetários relacionados com depósitos bancários, nada referindo em concreto, quanto à quantia de 19.500.000$00. Mais esclarecendo que o valor de 10 mil contos se destinava a pagar os bens relacionados com a actividade da empresa (comercialização de jangadas e barcos). Na realidade, em resposta à pergunta que lhe foi dirigida quanto ao destino da quantia em causa, respondeu que o que seria normal era que fosse para a empresa se financiar.

Chegados aqui e sem atropelo ao princípio da livre apreciação da prova, entende-se, tendo em conta as considerações antes aduzidas, que é seguro afirmar que da conjugação da análise da «Demostração de Resultados por natureza» referida nas alíneas C), D) e dos depoimentos prestados não é possível extrair a conclusão a que chegou o Tribunal de 1ª Instância.

Com efeito, pese embora a segunda testemunha tenha referido o pagamento das importações relacionadas com equipamentos de segurança marítima, como por exemplo, barcos e jangadas, a verdade é que, tal depoimento não surgiu no contexto que se mostra escrito na sentença sob recurso, ocorreu isso sim, quando a mesma se referiu ao montante inscrito na conta de meios monetários, que de resto identificou com clara precisão o respectivo valor-10 mil contos-.

Nestas circunstâncias, a decisão sobre a matéria de facto fixada pelo Tribunal de 1ª Instância mostra-se, pois, desadequada perante os relatos prestados pelas testemunhas ouvidas e, por isso, encontrando-se a mesma ferida de erro manifesto na apreciação da prova na medida, em que, como já afirmamos, os meios de prova que foram indicados não permitem extrair com toda a evidência a factualidade elencada na alínea F).

Por conseguinte, não se acompanha a sentença recorrida quando declara provado que «Do empréstimo obtido pela O.........., LDA, o valor de 19.5000.000$00 foi direccionado ao processo de expansão da O.......... e aplicado no desenvolvimento da sua actividade e com vista unicamente à obtenção dos seus proveitos.» (alínea F) da matéria assente) e, nesta conformidade, deve, pois, dar-se como não provado este facto.

E assim sendo, procede a impugnação da matéria de facto.

Consequentemente, na decorrência da alteração da matéria de facto nos termos supra enunciados, procede-se à eliminação do facto descrito na alínea F) da matéria de facto provada, passando a constar da decisão da matéria de facto, em concreto dos factos não provados, o seguinte facto:

«Do empréstimo obtido pela O.........., LDA, o valor de 19.500.000$00 foi direccionado ao processo de expansão da O.......... e aplicado no desenvolvimento da sua actividade».

Perante este quadro, importa verificar se, perante a alteração da matéria de facto, no sentido propugnado pela Recorrente, deve manter-se a apreciação de mérito efectuada pela Sentença recorrida.

E, adiantamos, a resposta terá de ser negativa.

Em termos substantivos, decorre dos artigos 17.º do CIRC e 75.º da LGT que a determinação do lucro tributável tem por base a contabilidade ou escrita organizadas de acordo com a lei comercial e fiscal podendo contudo ser objecto de correcção pela Administração Tributária quando a mesma contiver erros ou inexactidões.

Começa por referir-se, quanto ao quadro jurídico aplicável, que os juros suportados pelos sujeitos passivos de IRC como remuneração de empréstimos contraídos e demais encargos financeiros associados são dedutíveis como custos no apuramento do lucro tributável em conformidade com o disposto no artigo 23.º, n.º 1, alínea c), do CIRC.

Como já afirmamos no Acórdão de 18.06.2015, proferido no processo n.º 4242/10, os encargos financeiros com empréstimos obtidos de terceiros só podem legalmente ser havidos como custos abrangidos pelo citado normativo e como tais aceites para efeitos fiscais, na parte e medida em que correspondam a recursos efectivamente empenhados na actividade estatutária da empresa, de acordo com o princípio da especialidade.

Nesta linha, já o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 20.05.2009, proferido no processo n.º 1077/08, entendia que: «[o]s custos ali previstos não podem deixar de respeitar, desde logo, à própria sociedade contribuinte.

Ou seja, para que determinada verba seja considerada custo daquela é necessário que a actividade respectiva seja por ela própria desenvolvida, que não por outras sociedades. A não ser desta forma, como que podia ser imputada a uma sociedade o exercício da actividade de outra com a qual ela tivesse alguma relação.». (disponível em texto integral em www.dgsi.pt).

Ora, no caso sub júdice, a indispensabilidade do custo em apreço, como bem se extrai do Relatório de Inspecção, que como sabemos constitui a fundamentação subjacente à correcção sindicada, foi colocada em causa pelo facto da Recorrida ter referido no âmbito do procedimento que o empréstimo de 47.000.000$00 se destinou a empresa terceira (G..........).

Efectivamente, foi o contribuinte que argumentou, perante a Administração Tributária, que «2.1.-78% dos créditos sobre a empresa do grupo e associadas corresponde à dívida contraída pela firma G.........., Lda;

2.2. - O seu saldo resulta de operações com ela realizadas em 1993 (20 500 contos) e 1994 (7 000 contos);

2.3. - Devido a dificuldades financeiras com que a firma G.......... se debatia em 1993 e 1994 não fora debitados nem estipulados juros por não se prever a possibilidade de aquela firma os poder suportar;

2.4.- Em 1995 a situação financeira da firma em causa agrava-se, extinguindo-se a expectativa de cobrança da dívida;

2.5. - Devido a esta situação, a Contribuinte no final do exercício de 1994 provisionou a sua participação financeira naquela firma e encerrou-a contabilisticamente em 1995;

2.6. – A dificuldade na cobrança da dívida originou a necessidade do Sujeito passivo recorrer a financiamentos bancários que no fim do exercício de 1995 totalizavam 47.000 contos.».

Por isso se justificou a conclusão retirada no Relatório de Inspecção, nos termos do qual: «3.3.- Independentemente da situação financeira da dita “ associada”, em condições normais seria de exigir juros, pelo que os juros suportados pela Contribuinte resultam de financiamentos alheios à prossecução do seu objecto social, não sendo indispensáveis à realização dos proveitos e consequentemente não enquadráveis no corpo do n.º1 do Art.º 23.º do CIRC».

Por conseguinte, no caso concreto, não logrando a Recorrida demonstrar que a quantia de 19.500.0000$00 se destinou ao processo de expansão da O.......... e que foi aplicado apenas e só no desenvolvimento da actividade desta empresa, temos, assim, que concluir pela razão da Recorrente no sentido de que os encargos financeiros em causa não podem ser considerados gastos indispensáveis para efeitos da sua dedutibilidade nos termos do artigo 23.º do CIRC.

Consequentemente, procedem todas as conclusões de recurso, sendo de revogar a sentença recorrida no segmento colocado em crise.

IV.CONCLUSÕES

I.Se a Administração Tributária fundamentadamente põe em causa a bondade de um custo, lançando dúvida sobre a inserção dessa despesa no interesse societário, sobre a sua relação justificada com a actividade da sociedade contribuinte, compete a esta uma explicação acerca da - congruência económica - da operação.

II.Os encargos financeiros com empréstimos obtidos de terceiros só podem legalmente ser havidos como custos abrangidos pelo artigo 23.º, n.º 1, alínea c), do CIRC e como tais aceites para efeitos fiscais, na parte e medida em que correspondam a recursos efectivamente empenhados na actividade estatutária da empresa.

V.DECISÃO

Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da 1ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, e consequentemente revogar a sentença sob recurso na parte recorrida, julgando improcedente a impugnação judicial na parte correspondente.

Custas a cargo da Recorrida.

Registe e notifique.


Lisboa, 25 de Junho de 2019.



[Ana Pinhol]


[Isabel Fernandes]


[Catarina Almeida e Sousa]