Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:498/12.4BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:10/08/2020
Relator:ANA PINHOL
Descritores:LIQUIDAÇÃO OFICIOSA;
DIREITO DE AUDIÇÃO;
PRINCÍPIO DO APROVEITAMENTO DO ACTO.
Sumário:I. No caso em que o contribuinte faltou à sua obrigação de declarar os seus rendimentos para efeitos de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas, a Administração procede à liquidação nos termos do disposto no artigo 90.º nº 1 alínea b) do respectivo Código, com base na "matéria colectável do exercício mais próximo que se encontre determinada".

II. O «princípio do aproveitamento dos actos administrativo»s ou «teoria dos vícios inoperantes», que se exprime pela fórmula latina “utile per inutile non vitiatur”, logra aplicação naquelas situações em que conclui pela irrelevância das formalidades essenciais no conteúdo do acto, ou seja, quando num juízo rigoroso conclui que ainda que as formalidades inobservadas tivessem sido cumpridas, o sentido e o conteúdo do ato não sofreriam qualquer tipo de alteração.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO



I.RELATÓRIO

A FAZENDA PÚBLICA interpôs recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul da sentença que julgou procedente a impugnação judicial deduzida pela sociedade denominada por « S................., LDA» contra a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) relativa ao exercício de 2010, no montante de € 6.538,80.

O recurso foi admitido, com subida imediata e nos próprios autos e a Recorrente apresentou a motivação do recurso, que resumiu em conclusões do seguinte teor:
«A) O presente recurso reage contra a decisão proferida em 1.ª Instância e que julgou procedente a Impugnação Judicial deduzida pela Impugnante identificada supra contra a notificação por si recebida da liquidação oficiosa de IRC n° ................., relativa ao período de 2010, no valor de € 6.538,80.
B) A Fazenda Pública inconformada com os fundamentos e o sentido da decisão proferida entende que a mesma sofre de erro de julgamento no que à apreciação do princípio geral do aproveitamento do ato administrativo diz respeito por entender que se impunha ponderar e determinar à luz do quadro factual dado por assente (o qual desde já se assume não merecer reparo por parte da Fazenda Pública) e da posição das partes - a sua viabilidade.
C) Resultante também, do insuficiente juízo crítico e da incorreta apreciação jurídica, à luz não só da orientação jurisprudencial deste Colendo STA citada em sede de alegações quando aceita por via do interesse público subjacente que esta preterição de formalidade se degrade em não essencial.
D) Existindo jurisprudência do Colendo STA que tanto permite como impede que se recorra ao mencionado princípio geral temos de nos indagar sobre o critério que faz “pender o fiel da balança". Não é provável que se contradigam.
E) E que tem na sua base o notório desrespeito pelos princípios do dispositivo e da legalidade, e das regras da experiência comum que, in casu, deveriam impedir um tribunal de primeira instância se convencer por mera suposição de que a intervenção da Impugnante no procedimento da liquidação oficiosa poderia alterar os termos em que matéria coletável foi apurada num contexto em que a própria Impugnante nem o ónus alegatório logrou cumprir.
F) A Fazenda Pública aceita que não ficou provada a notificação da Impugnante para efeitos do direito de audição (art. 60°, da LGT) no seio de um procedimento vinculado que obrigou à emissão de uma liquidação oficiosa nos termos do art. 90°, do CIRC, vício formal (lamentavelmente incorrido pela Ré, há que reconhecer...) que constitui ainda assim pressuposto da eventual apreciação do princípio geral aqui em discussão.
G) O Tribunal a quo, salvo o devido respeito, extrai incorretamente uma conclusão baseada na mera suposição sem que dos autos haja qualquer elemento ainda que meramente alegatório o qual lhe permita afirmar ainda que genericamente que a Impugnante intervindo no procedimento poderia ter alterado a matéria tributária vinculadamente determinada.
H) partir do abstrato juízo presuntivo de que da eventual intervenção do contribuinte no procedimento de liquidação oficiosa poderia resultar a alteração do apuramento matéria coletável não é um critério que se nos afigure bastante sequer compatível com a coexistência de jurisprudência que tanto aceita, nuns casos, como impede, noutros, o recurso à aludida fórmula latina. Se assim fosse então, a partir da abstração, nunca seria possível fazer degradar em não essencial o vício formal incorrido.
I) A menos que se reconheça que a jurisprudência dos nossos tribunais superiores entrou em contradição. (sem se saber muito bem em que medida devemos recorrer à utilidade deste princípio geral) - tendemos a ensaiar a ideia de que o erro de julgamento, in casu, está no juízo de apreciação empreendido pelo próprio tribunal a quo que entendeu, por si, e de forma perfeitamente discricionária, convencer-se dessa hipótese sem ter um elemento nos autos, ainda que meramente alegatório lhe permitisse recorrer à persuasão racional
J) Não há prova documental, mas, sobretudo, a própria Impugnante limita-se a dar conta que não foi notificada para efeitos do art. 60° da LGT, que, esse vício constitui uma nulidade, o que em termos dogmáticos esta última asserção nem corresponde à verdade.
K) Invoca ainda o tribunal a quo o acórdão deste STA, de 02.07.2003, proferido no proc.° 0684/03, o qual para além de menos recente a verdade é que encerra todo um entendimento que se mostra desatualizado face à jurisprudência mais recente (dos vários tribunais superiores inclusivamente deste Colendo STA) invocada pela Fazenda Pública e que se fosse levada a cabo, à semelhança da própria sentença recorrida, impediria de forma absoluta a possibilidade de se proceder ao aproveitamento do ato administrativo ainda que nas raras situações em que isso é admissível, como, estamos em crer, é o caso.
L) Ora, é pacífico que quer a natureza quer a medida do ato não poderiam ser outras. Pois que, por um lado, na sua base está a falta, por parte da Impugnante, da entrega da declaração Mod 22 o que origina a emissão de uma liquidação oficiosa.
M) O Tribunal pode entender, em função do caso concreto e dos elementos e posição das partes - não haver lugar ao aproveitamento do ato mas para isso precisa que o Impugnante cumpra o ónus alegatório de vir concretizar que elementos poderia ter trazido e que contribuiriam para a formação da decisão de liquidar em termos divergentes ao que ocorreu.
N) Ademais, vigora no nosso ordenamento jurídico-processual o princípio do dispositivo previsto atualmente no art. 5° NCPC (outrora art. 264°), aplicável ex vi do art. 2° alínea e), do CPPT.
O) Donde brota a possibilidade de a omitida audição do sujeito passivo antes do ato de liquidação poder influenciar o conteúdo desta? Brota e recai, ainda que por mera inferência, sobre a posição do Autor. É esse o elemento decisivo que permite distinguir as situações.
P) A circunstância de não ter sido minimamente cumprido o ónus alegatório e a não apresentação de documentação no contencioso judicial que indicie que a matéria coletável podia ter sido alterada antes de emitida a liquidação por via de um juízo de extrapolação para o passado - autoriza o tribunal de primeira instância a fazer degradar a preterição da formalidade em não essencial à luz do interesse público nele subjacente. Só assim se alcança a coexistência de decisões jurisprudenciais dos nossos tribunais superiores tomadas em sentidos divergentes (ora aceitando ou não aceitando o aproveitamento do ato) sem entrarem em oposição ou contradição.
Q) Pelo exposto, estão em causa os seguintes vícios:
Erro de julgamento que parte da insipiência alegatória e probatória que decorre dos autos para um insuficiente raciocínio crítico dos mesmos (que o olvida) e que conduz à sua discricionária e à incorreta apreciação e valoração jurídica à luz da jurisprudência do Colendo STA que assim se mostra desrespeitada perante a aceitação dos tribunais superiores de que o ato tributário pode ser aproveitado tendo por base o interesse público da degradação da formalidade preterida.
R) Mostram-se ainda violados o disposto nos arts. 5°, todos do CPC, aplicável ex vi, da alínea e), do art. 2°, do CPPT; art. 8°, n° 2, alíneas a) e e) e 74°, ambos da LGT.
S) Concluindo-se que a sentença recorrida não poderá deixar de ser revogada e substituída por acórdão que reconhecendo os fundamentos esgrimidos julgue procedente o presente recurso e improcedente a Impugnação Judicial deduzida.

V/Exas, porém, melhor decidindo não deixarão de fazer a acostumada justiça.»

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A recorrida S................., Lda. apresentou contra-alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
«A-A Decisão recorrida está perfeita e não merece qualquer reparo.
B-A AT efectuou a liquidação oficiosa de imposto com o n°................., na qual presumiu que a ora Impugnante tivesse exercido a sua actividade comercial, o que não ocorreu.
C-Tal actividade, era muito específica, e não havia mais ninguém na família do respectivo sócio, e nem sequer próximo e/ou dos seus conhecimentos que pudesse exercer tal actividade, para mais considerando que em 27 de Dezembro de 2008, o L................. faleceu.
D-Não mais tendo a sociedade em causa tido qualquer actividade.
E-Estes dois factos, ao contrário do que é referido pela Recorrente, foram desde logo invocados na impugnação respectiva, o que se reitera.
F-E que foi uma factualidade que sempre se deverá tomar em consideração.
G-Tanto mais que a Sociedade S........., lda., não mais teve qualquer actividade desde tal data.
H-E se não manteve qualquer actividade, não gerou também nenhuma receita.
I-Tal como se invocou desde logo, em sede de impugnação.
J-Não procederá a alegada falta de ónus alegatório que só agora foi invocado pela Recorrente.
K-Inexiste qualquer erro de julgamento.
L-A AT efectuou a liquidação oficiosa de imposto com o n°................., na qual presumiu que a ora Impugnante tivesse exercido a sua actividade comercial, o que não ocorreu, e sem que para tal tivesse notificado a Impugnante, para audição prévia, nos termos do disposto noa rt°. 90° do CIRC.
M-A falta de audição prévia do contribuinte, e neste caso, da Impugnante, nos casos consagrados no art.° 60.°, n.°1, da Lei Geral Tributária, é um vício susceptível de conduzir à anulação da decisão final que vier a ser tomada.
N-A AT laborou numa ilegalidade insanável, consubstanciada em vício de forma por preterição da audição prévia no procedimento da liquidação oficiosa impugnada.
O-E, por outro lado, a respectiva liquidação em sede de IRC é ilegal e nula, por não possuir fundamento, nos termos das alíneas a) c) e d) do art°. 99° do C.P.P.T., tanto mais, por ter sido tomada com preterição das formalidades essenciais, e por ter inexistido qualquer acto no período em causa, que , praticado pela ora Impugnante, pudesse ter sido objecto de tributação, devendo ser anulada e revogada.
P-Desta forma apresente impugnação só poderá ser declarada procedente, por provada.
Q-A decisão recorrida está perfeita, está conforme o Direito, e não merece qualquer reparo.
R-Nestes termos deverá improceder o recurso, devendo ser negado provimento ao mesmo, mantendo-se a decisão recorrida, em toda a sua extensão e efeitos.

Pelo exposto deverá ser negado provimento ao recurso. Assim se fazendo JUSTIÇA!»

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Recebidos os autos neste Tribunal Central Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público que suscitou, como questão prévia, a questão da incompetência deste Tribunal em razão da hierarquia, por entender que o recurso tem por fundamento exclusivo matéria de direito, motivo por que a competência em razão da hierarquia para conhecer do mesmo é do Supremo Tribunal Administrativo.

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Notificadas as partes para, querendo, se pronunciarem sobre a questão da incompetência em razão da hierarquia deste Tribunal Central Administrativo suscitada no Parecer do Ministério Público, nenhuma delas usou de tal faculdade.

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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações (cfr. artigo 635.º, n.º 4 e artigo 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil) , sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Assim, e face ao teor das conclusões formuladas a solução a alcançar pressupõe a título prévio decidir da competência deste Tribunal Central Administrativo para conhecer do presente recurso e improcedendo tal questão prévia, haverá então que conhecer do mérito do recurso, averiguando da existência de erro de julgamento da sentença recorrida quando desconsiderou a aplicação da teoria do aproveitamento do acto.


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III. FUNDAMENTAÇÃO
A. DOS FACTOS
Na sentença recorrida fixou-se a matéria de facto e indicou-se a respectiva fundamentação nos seguintes termos:
«A) Em 27.12.2008 faleceu L........., sócio da sociedade S................., LDA. - cf. fls. 11/12 do suporte físico dos autos do suporte físico dos autos e por acordo.
B) Em relação ao período de 2010 a sociedade S................., LDA. não apresentou a declaração modelo 22 de IRC - por acordo.
C) Ato impugnado: Em 30.11.2011 foi emitida a liquidação oficiosa de IRC n.° ................., relativa ao período de 2010, no valor de € 6.538,80, com data limite de pagamento em 16.01.2012 - cf. fls. 22 do suporte físico dos autos.
D) Em 18.04.2012 a Impugnante apresentou declaração de cessação da atividade em IVA com efeitos reportados a 31.03.2009 - cf. fls. 13 do suporte físico dos autos.
E) A petição inicial que deu origem aos presentes autos deu entrada no serviço de finanças em 19.04.2012 - cfr. fls. 4 dos autos (suporte físico).



Factos não provados:
Que a sociedade “M........, Lda” tenha sido notificada para efeitos de audição prévia antes da liquidação a que se refere a alínea C) dos factos provados.


Motivação de facto:
A decisão da matéria de facto provada efetuou-se com base no exame dos documentos não impugnados, que constam dos autos, referenciados em cada uma das alíneas do probatório, bem como pela posição assumida pelas partes nos respetivos articulados.
O facto considerado não provado resulta de sobre o mesmo não ter sido produzido qualquer meio de prova nem resultar dos autos, incluindo o processo instrutor, qualquer elemento que demonstre a respetiva ocorrência.».

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B. DO DIREITO

Da incompetência do Tribunal Central Administrativo em razão da hierarquia

Tendo sido suscitada pelo, Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal a questão da incompetência deste tribunal para apreciar o recurso, por não haver controvérsia factual a dirimir, importa conhecer de tal questão dado que a mesma merece imediata e prioritária apreciação face ao disposto nos artigos 16.º, n.º 2, do CPPT e 13.º do CPTA.

Na verdade, a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de outra matéria (cfr. artigo 13.º do CPTA, ex vi artigo 2.º, alínea c), do CPPT).

A infracção às regras da competência em razão da hierarquia, da matéria (e da nacionalidade) determina a incompetência absoluta do tribunal (cfr. artigo 16.º, n.º 1, do CPPT).

Nos termos do artigo 280.º, n.º 1 do CPPT (na redacção aplicável), das decisões dos Tribunais Tributários de 1.ª Instância cabe recurso a interpor, em primeira linha, para os Tribunais Centrais Administrativos, salvo quando a matéria for exclusivamente de direito, caso em que tal recurso tem de ser interposto para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo.

Por outro lado, é sabido que, nos termos do artigo 641.º, n.º 5 do CPC ex vi artigo 2.º, alínea e), do CPPT, o despacho que admitiu o recurso não vincula o Tribunal Superior, pelo que nada obsta a que se aprecie e decida da incompetência deste Tribunal Central Administrativo “ad quem” em razão da hierarquia.

O Supremo Tribunal Administrativo tem entendido que, para determinação da competência hierárquica, em face do preceituado nos artigos 26.º, alínea b), e 38.º, alínea a) do ETAF e artigo 280.º, n.º 1, do CPPT, o que é relevante é que o recorrente, nas alegações de recurso e respectivas conclusões, suscite qualquer questão de facto ou invoque, como suporte da sua pretensão, factos que não foram dados como provados na decisão recorrida. Nesse sentido, a jurisprudência Supremo Tribunal Administrativo T tem vindo a entender que (na delimitação da competência do Supremo Tribunal Administrativo em relação à do Tribunal Central Administrativo) deve entender-se que o recurso não tem por fundamento exclusivamente matéria de direito sempre que nas conclusões das respectivas alegações o recorrente pede a alteração da matéria fáctica fixada na decisão recorrida ou invoca, como fundamento da sua pretensão, factos que não têm suporte na decisão recorrida, desde que estes, em abstracto, não sejam indiferentes para serem ponderados no julgamento da causa (vide neste sentido Acórdãos do STA de 20.05.2009, 03.10.2007, 31.01.2007 e 17.01.2007, proferidos respectivamente nos processos n.ºs 18/09, 373/07, 1027/06 e 962/06, todos disponíveis no endereço www.dgsi.pt.).

No caso “sub judice”, conforme se retira das conclusões das alegações de recurso apresentadas pela recorrente, pois que são estas, como já o dissemos, as relevantes para aferir do objecto e âmbito do recurso, verifica-se que a recorrente, em especial nas conclusões G) e J), manifesta clara discordância com o decidido no que respeita aos juízos de apreciação da prova efectuados pelo Tribunal recorrido, os quais estão para além da mera interpretação de normas ou princípios jurídicos que tenham sido na decisão recorrida, supostamente, violados na sua determinação.

Mas sendo assim, os fundamentos do presente recurso não versam exclusivamente matéria de direito, pelo que a competência para o seu conhecimento pertence a este Tribunal, por força do artigo 38º, alínea a), do ETAF, e não ao Supremo Tribunal Administrativo (2ªSecção)

Em face do que se deixa dito, improcede a excepção da incompetência absoluta deste Tribunal, em razão da hierarquia, suscitada pelo Ministério Público, havendo, pois, que conhecer do objecto do recurso.

DO MÉRITO DO RECURSO

A ora recorrida apresentou junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra impugnação judicial, visando obter a anulação da liquidação oficiosa de IRC referente ao exercício de 2010, no valor € 6.538,80, com fundamento em vício de forma por falta de audição prévia e vício de violação de lei por erro nos respetivos pressupostos de facto atenta a invocada inexistência de facto tributário.

Essa impugnação foi julgada procedente.

Na parte pertinente ao recurso, tem a sentença recorrida o seguinte teor:

«No caso, como resultou da fundamentação de facto e respetiva motivação, não ficou demonstrado nos autos, nem sequer isso foi invocado pela Fazenda Pública em sede de contestação, que a sociedade em causa tenha sido notificada para audição prévia no procedimento da liquidação oficiosa, sendo certo que a liquidação se não efectuou com base na declaração, reconhecendo, ambas as partes, nos respetivos articulados, que foi efetuada ao abrigo do disposto no art.º 90.º, n.º 1, do CIRC.

Ora, da intervenção do contribuinte no procedimento da liquidação oficiosa sempre poderia, neste caso, resultar uma alteração dos termos em que matéria coletável foi determinada pela Administração Fiscal.

Como se salienta no Acórdão do STA, de 02.07.2003, proferido no proc.º 0684/03, «É certo que pode parecer que o contribuinte, ao faltar ao seu dever de declaração, se desinteressa de participar na definição da sua situação tributária. Mas só aparentemente assim é: por um lado, a ausência de apresentação da declaração imposta pela lei não pode interpretar-se com tal sentido, pois outras razões pode haver, nomeadamente, de força maior, justificativas da falta; por outro lado, nada permite afirmar que o contribuinte que se absteve de entregar a sua declaração não quer exercer o seu direito a participar na formação da decisão que, assente nessa omissão, a Administração venha a tomar».

Sufragando tal entendimento pode ver-se ainda o Acórdão do mesmo alto Tribunal de 23.04.2008, proferido no proc.º 022/08, onde se refere que na falta de apresentação pelo contribuinte da declaração dos seus rendimentos para efeitos de IRC, a Administração Tributária procederá à sua liquidação, nos termos do disposto no art.º 83.º do CIRC [conforme redação do Código do IRC vigente à data], impondo-se que, nesse caso, se faculte ao contribuinte a oportunidade de exercer o seu direito de audição prévia, nos termos do art.º 60.º, da Lei Geral Tributária.

A falta de audição prévia do contribuinte, nos casos consagrados no art.º 60.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária, constitui um vício de procedimento suscetível de conduzir à anulação da decisão final que vier a ser tomada.

Incorreu, pois, a Administração Tributária em ilegalidade substanciada em vício forma por preterição da audição prévia no procedimento da liquidação oficiosa impugnada, não podendo a mesma manter-se na ordem jurídica por este fundamento, o que determina a procedência da presente impugnação judicial.».

Como a própria recorrente reconhece (confessa) no âmbito do procedimento que culminou com a emissão da liquidação oficiosa sindicada ocorreu preterição de formalidade legal do direito de audição prévia, mas defende que a esta concreta situação logra aplicação o princípio do aproveitamento do acto, por não ter sido alegada factualidade nem junta documentação com a petição inicial de molde a demonstrar inequivocamente que, se tivesse havido audiência, a liquidação não seria elaborada nos termos em que o foi.

A questão que se coloca é então a de saber se a omissão do direito de audição prévia no âmbito do procedimento da liquidação impugnada, enquanto preterição de formalidade legalmente prevista e obrigatória, se poderia considerar preterição de formalidade não essencial, numa ponderação que está subjacente ao princípio do aproveitamento dos actos administrativos que, mesmo sem ela ter sido cumprida, a decisão final do procedimento não poderia ser diferente.

Com relevo neste âmbito, tome-se em consideração a jurisprudência firmada no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (Pleno da Secção do Contencioso Tributário) de 22.01.2014, proferido no processo n.º 441/13, onde se pode ler que: (…) os vícios de forma não determinam, necessariamente, a anulação do acto a que respeitam, e as formalidades procedimentais essenciais podem degradar-se em não essenciais se, apesar delas, foi dada satisfação aos interesses que a lei tinha em vista ao prevê-las. Consequentemente, e tendo em conta que a audiência prévia dos interessados não é um mero rito procedimental, a formalidade em causa (essencial) só se podia degradar em não essencial (não invalidante da decisão) se essa audiência não tivesse a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada, e se se impusesse, por isso, o aproveitamento do acto – utile per inutile non viciatur.» (disponível em texto integral em wwww.dgsi.pt)

Ou seja, o «Princípio do aproveitamento dos actos administrativos» ou «Teoria dos vícios inoperantes», que se exprime pela fórmula latina “utile per inutile non vitiatur”, logra aplicação naquelas situações em que conclui pela irrelevância das formalidades essenciais no conteúdo do acto, ou seja, quando num juízo rigoroso conclui que ainda que as formalidades inobservadas tivessem sido cumpridas, o sentido e o conteúdo do ato não sofreriam qualquer tipo de alteração (Para uma noção de formalidades, vide: FREITAS DO AMARAL, Direito Administrativo, volume II, págs. 345 e 346).

Daqui decorre, com clareza, que a avaliação da teoria do aproveitamento do acto exige um exame casuístico, de análise das circunstâncias particulares e concretas de cada caso.

Revertendo agora ao caso dos autos, temos que resulta da factualidade fixada que não tendo a recorrida apresentado a Declaração Modelo 22 respeitante ao ano de 2010, a Administração Tributária procedeu à liquidação oficiosa nos termos do disposto no artigo 90.º, n.º 1, alínea b) do Código do IRC.

Ora, como é consabido, o direito de audiência não tem como única finalidade a possibilidade de participar na fixação da matéria colectável, antes podendo essa participação (que o direito de audiência visa assegurar) assumir muitos outros domínios da formação da decisão final. (Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 15 de Outubro de 2014, proferido no processo n.º 1374/13).

Nesta perspectiva, nada nos garante que o contribuinte «[s]e acaso lhe fosse dada oportunidade para o fazer, não fornecesse elementos úteis à liquidação, designadamente, quanto a deduções, matéria em que a lei não vincula a Administração.

Não é, pois, possível, no nosso caso, a formulação de um juízo de prognose póstuma que leve o tribunal a concluir que a liquidação efectuada era a única possível. Se é verdade que o acto sempre teria de ser praticado, por força da lei, nada permite afirmar que o mesmo seria o seu conteúdo se tivesse havido lugar à audição da recorrida.» (Acórdãos do STA, de 02.07.2003, proferido no processo n.º 0684/03 e de 18.06.2014, proferido no âmbito do processo n.º 01102/13 e Acórdão do TCA Sul, de 28.02.2019, proferido no âmbito do processo n.º 567/17.4BELRS, relatado pela aqui relatora, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

E, é justamente o que ocorre no caso presente.

Por último, num derradeiro argumento, convoca a recorrente a aplicação do disposto no artigo 5.º do CPC (nos termos do qual compete às partes alegar os factos que integram a causa de pedir; não podendo o tribunal, em princípio, conhecer de factos que não tenham sido alegados pelas partes) para afastar o decidido em 1.ª Instância, porém tal convocação é insusceptível de produzir os efeitos efeitos jurídicos pretendidos.

Efectivamente, não será pelos fundamentos invocados em sede de impugnação contenciosa do acto que « (…) se poderá aferir da relevância ou não do exercício do direito de audiência sobre o conteúdo decisório do acto, mas antes pela sua susceptibilidade de influir sobre o conteúdo decisório do acto, motivo por que aquele direito não poderá deixar de ser assegurado sempre que não seja de afastar a possibilidade de a decisão do procedimento tributário ser influenciada pela intervenção do interessado» e, se é certo que a aplicação do princípio do aproveitamento do acto implica necessariamente um juízo a posteriori, «este deve ser um juízo de prognose póstuma, pelo que não pode nem deve ser influenciado pela improcedência dos demais vícios (para além da preterição do direito de audiência) invocados no processo em que o acto foi impugnado, sob pena de esvaziamento do direito de participação e de impossibilidade prática de verificação do vício resultante da preterição desse direito» (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (Pleno da Secção do Contencioso Tributário) de 15.10.2014, proferido no processo n.º 1374/13.).

Os fundamentos em que assentou a referida jurisprudência são inteiramente transponíveis para o caso destes autos, pelo que, a sentença que assim entendeu e decidiu não merece censura.

IV. CONCLUSÕES

I. No caso em que o contribuinte faltou à sua obrigação de declarar os seus rendimentos para efeitos de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas, a Administração procede à liquidação nos termos do disposto no artigo 90.º nº 1 alínea b) do respectivo Código, com base na "matéria colectável do exercício mais próximo que se encontre determinada".

II. O «princípio do aproveitamento dos actos administrativo»s ou «teoria dos vícios inoperantes», que se exprime pela fórmula latina “utile per inutile non vitiatur”, logra aplicação naquelas situações em que conclui pela irrelevância das formalidades essenciais no conteúdo do acto, ou seja, quando num juízo rigoroso conclui que ainda que as formalidades inobservadas tivessem sido cumpridas, o sentido e o conteúdo do ato não sofreriam qualquer tipo de alteração.

V.DECISÃO

Termos em que, acordam os juízes que integram a 1ª Subsecção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo em negar provimento ao recurso.

Custas a cargo da recorrente.


Lisboa, 8 de Outubro de 2020


[A Relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo artigo 03.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento, os Desembargadores Isabel Fernandes e Jorge Cortês]


Ana Pinhol