Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:03258/09
Secção:Contencioso Tributário
Data do Acordão:10/20/2009
Relator:Eugénio Sequeira
Descritores:RECURSO DE CONTRA-ORDENAÇÃO. CRIME CONTINUADO. CÚMULO JURÍDICO.
Sumário:1. Actualmente, depois da alteração da redacção do art.º 25.º do RGIT, que eliminou a cumulação material das penas aplicadas em contra-ordenação, a figura do crime continuado com os seus concretos pressupostos, prevista no Código Penal, pode ser aplicada subsidiariamente, no âmbito da punição das infracções tributárias;
2. Para que possa existir tal crime continuado, as infracções têm de ser as mesmas ou que, fundamentalmente, protejam o mesmo bem jurídico, praticadas de forma homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma solicitação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente;
3. Não pode ser aplicado este regime do crime continuado, quando, desde logo, nada se prova quanto ao quadro exógeno em que terá actuado a arguida no cometimento das diversas infracções.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário (2.ª Secção) do Tribunal Central Administrativo Sul:


A. O Relatório.
1. M ...SA, identificada nos autos, dizendo-se inconformada com a decisão proferida pela M. Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa - 2.ª Unidade Orgânica - que negou provimento ao recurso judicial e manteve a decisão de aplicação da coima, veio da mesma recorrer para o Supremo Tribunal Administrativo o qual, por acórdão de 6.5.2009, transitado em julgado, se declarou incompetente em razão da hierarquia para do mesmo conhecer, por a competência para o efeito se radicar neste Tribunal, para onde os autos vieram a ser remetidos, formulando para tanto nas suas alegações as seguintes conclusões e que na íntegra se reproduzem:


1. No presente processo, a Recorrente foi acusada da prática de uma contra-ordenação por ter apresentado a declaração periódica de IVA no prazo legal embora não acompanhada do respectivo meio de pagamento.
2. A mesma infracção (relativamente a outros períodos) realizada pela ora Recorrente foi-lhe imputada noutros processos de contra-ordenação referentes ao período entre o início de 2003 e o final de 2005.
3. Por isso, à Recorrente não deverá ser imputada a prática de uma contra-ordenação isolada, mas sim de uma contra-ordenação continuada, porquanto se verificam, in casu, todos os pressupostos legais do art. 30º, n.º 2 do Código Penal, aplicável por força do art. 3° b) e 19° RGIT e art. 32° RGCO.
4. Tal como o crime continuado, a contra-ordenação continuada é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação.
5. Tendo a Administração Tributária instaurado um processo de contra-ordenação por cada um dos períodos em relação aos quais não foi pago o imposto, aplicando uma coima por cada um dos comportamentos omissivos, violou as normas respeitantes à previsão e punição das infracções continuadas, nomeadamente, o art. 19.º do RGCO, 20.º, n.º 2 e 79.º do Código Penal, aplicáveis subsidiariamente em matéria de contra-ordenações fiscais por força dos arts. 3.º, alínea b) do RGIT e 32.º do RGCO.
6. Assim, o presente processo de contra-ordenação é ilegal, devendo ser arquivado e, em seu lugar, ser instaurado um único processo de contra-ordenação por todos os comportamentos omissivos da Recorrente ao qual deverá ser aplicável a coima prevista no art. 114.º, n.º 2 do RGIT, com o agravamento previsto no art. 26.º, n.º 4 do mesmo código, sendo os respectivos intervalos determinados pela mais elevada prestação tributária em falta.

Nestes termos, deverá o presente processo de contra-ordenação ser extinto, revogando-se a sentença do Tribunal Tributário de 1ª Instância; devendo, em consequência, iniciar-se um novo processo por contra-ordenação continuada, para todas as condutas omissivas de que a Recorrente é acusada, neste e nos restantes processos pendentes, referentes ao período entre o início de 2003 e o final de 2005, com as demais consequências legais.


Foi admitido o recurso para subir imediatamente, nos próprios autos e no efeito meramente devolutivo.


Também a Exma Procuradora da República junto do Tribunal “a quo” veio a apresentar as suas alegações e nestas as respectivas conclusões, as quais igualmente na íntegra se reproduzem:


1 - São pressupostos cumulativos da contravenção continuada:
a) a realização plúrima do mesmo tipo de infracção;
b)a homogeneidade na forma de execução;
c) a lesão do mesmo bem jurídico;
d) a persistência de uma situação exterior ao agente que facilite a execução e diminua de forma considerável a sua culpa.
2 - O fundamento desta diminuição da culpa encontra-se, pois, na disposição exterior das coisas para o facto, isto é, no circunstancialismo exógeno que precipita e facilita as sucessivas condutas do agente.
3 - As alegadas dificuldades económicas por que a recorrente terá passado no período de tempo em causa (2003/2005) por diminuição acentuada de vendas, como refere, são insusceptíveis de diminuírem consideravelmente a sua culpa tanto mais que o IVA não é por si suportado, mas pelos seus clientes, a quem o cobrou, e recebeu, e não entregou ao Estado, dando-lhe destino diverso,
4 - o que só poderia relevar se da factualidade comprovada resultasse causa de exclusão da culpa ou causa de exclusão da ilicitude, o que nem sequer é alegado, menos comprovado.
5 - A arguida recorrente foi aplicada a coima de € 22.387,85 pela pratica de uma contra-ordenação prevista e punida pelos artºs 40º n° 1 a) e 26° n° 1 do CIVA e 114° nº2 e 26° n° 4 do RGTI, relativa ao mês de Julho de 2005.
6 - Idênticas omissões foram praticadas pela arguida recorrente de 2003 a 2005, por alegadas dificuldades económicas, o que não consubstancia uma situação de continuação contra-ordenacional como resulta das conclusões 1 a 4.
7- A douta sentença recorrida, ao decidir como decidiu fez correcta interpretação da lei, designadamente dos artºs 19° do RGCO, 30º n° 2 e 79° do Código Penal, pelo que deve ser mantida, negando-se provimento ao recurso.

Nestes termos, e nos mais de Direito que Vossas Excelências suprirão, deve ser negando provimento ao recurso.


O Exmo Representante do Ministério Público (RMP), junto deste Tribunal, não emitiu qualquer parecer por a Exma Procuradora da República junto do Tribunal “a quo”, já haver produzido as suas alegações e conclusões.


Foram colhidos os vistos dos Exmos Adjuntos.


B. A fundamentação.
2. A questão decidenda. A única questão a decidir consiste em saber se no caso se verificam os pressupostos para que a arguida seja condenada pela figura do crime continuado, com uma pena única em cúmulo jurídico, formado com a coima aplicada nestes autos, com outras que invoca que lhe terão sido aplicadas em outros autos.


3. A matéria de facto.
Em sede de probatório a M. Juiz do Tribunal “a quo” fixou a seguinte factualidade, a qual igualmente na íntegra se reproduz:
1. Aos 01/10/05, na Direcção de Serviços de Cobrança do IVA, quando se encontrava no exercício das suas funções, o inspector tributário José ..., verificou pessoal e directamente que a Sociedade "M..., S.A.", com sede em Lisboa, enquadrada em sede de IVA no regime normal com periodicidade ­mensal, não entregou dentro do prazo fixado para o efeito a declaração periódica acompanhada pelo respectivo meio de pagamento do imposto, previamente liquidado nos termos da lei, relativamente ao mês de Julho de 2005, sendo o valor do imposto em falta no montante global de € 99.061,29, (cfr. doc. junto a fls. 3 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);
2. O auto de notícia identificado no ponto 1 deu origem ao presente processo de contra-ordenação fiscal nº 310720056086802, cuja parte administrativa correu termos no Serviço de Finanças de Lisboa 8 e foi autuado em 17/11/05 (cfr. capa do processo);
3. A arguida notificada para apresentar a sua defesa ou pagar voluntariamente a coima (cfr. doc. junto a fls. 4 dos autos);
4. Por despacho de 01/02/06, que aqui se dá por integralmente reproduzido foi aplicada a coima à arguida no montante de € 22.387,85 (cfr. doc. junto a fls. 7 e 8 dos autos);
5. A arguida foi notificada da decisão descrita no ponto anterior do probatório em 10/05/2006 (cfr. doc. junto a fls. 11 e 12 dos autos);
6. Em 30/05/06, a arguida deduziu a impugnação judicial do referido despacho (cfr. carimbo aposto a fls. 13 e segs. dos autos);
7. Da conduta da arguida resultou efectivo prejuízo para a Fazenda Nacional, expresso no montante de imposto liquidado e não entregue nos cofres do Estado no tempo devido;
*
B - Factos Não Provados.
Dos factos, com interesse para a decisão da causa, constantes da acusação do Digno Magistrado do Ministério Público e dos alegados pelo recorrente, todos objecto de análise concreta, não se provaram os que não constam da factualidade supra descrita.
*
A decisão da matéria de facto efectuou-se com base no exame dos documentos e informações, não impugnados, que dos autos constam tudo conforme referido a propósito de cada uma das alíneas do probatório.

O Tribunal levou, igualmente, em consideração o princípio "in dúbio pró reo" relativo à análise da prova produzida e decisão da mesma (vide art. 32º, nº 2 da CRP).


4. Para negar provimento ao recurso judicial do despacho do Director de Finanças de 1.2.2006 que lhe aplicou a coima de € 22.387,85, considerou a M. Juiz do Tribunal “a quo”, em síntese, que não havia lugar ao concurso de contra-ordenações, para tanto se apoiando em acórdão deste Tribunal de 19.6.2007 (1), que no mesmo sentido decidiu, não se provando uma inexistência de culpa da arguida pelo que não havia lugar àquela forma privilegiada de punição com uma coima única.

Para a recorrente de acordo com a matéria das conclusões das alegações do recurso, tal como já vinha esgrimindo no recurso judicial, continua a pugnar pela aplicação de uma coima única por infracção continuada, correspondente à infracção mais grave contida na continuação, por para tanto se verificarem todos os requisitos legais.

Vejamos então.
Ao tempo em que foi proferido o acórdão deste Tribunal com o n.º1768/07, citado pela M. Juiz do Tribunal “a quo”, e em que em parte apoiou a sua decisão, bem como na data em que foi proferida a decisão recorrida, a norma do art.º 25.º do RGIT que previa o cúmulo material para a punição das contra-ordenações, ainda não havia sido alterada, o que só aconteceu pela norma do art.º 113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2009), em que veio dispor, a aplicação de uma pena única em cúmulo jurídico, nos termos que enumera, pelo que a doutrina expendida em tal acórdão (do cúmulo material), hoje já não se mantém, podendo haver lugar à aplicação de uma pena única em caso de concurso de infracções ou de infracções continuadas, aliás, o que também se poderia extrair da concatenação da doutrina do mesmo acórdão.

Assim, por força do disposto nos art.ºs 3.º b) do RGIT e 32.º do RGCO, logra aplicação nas infracções tributárias, a título subsidiário, as normas gerais acerca do crime continuado, definido no art.º 30.º, n.º2 do Código Penal e com a previsão da sua forma de punição na norma do n.º5 do art.º 78.º deste mesmo Código (sendo punido com a pena correspondente à conduta mais grave que integra a continuação).

Dispõe a citada norma do n.º2 do art.º 30.º:
Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.

Entre os vários pressupostos para que possa haver lugar à aplicação de uma pena única por infracções continuadas, figuram a existência de uma nova determinação psicológica semelhante no cometimento de cada uma das infracções, ou seja a não unidade no desígnio de actuação, e a existência de um mesmo quadro externo que diminua consideravelmente a culpa do agente, ou sejam os mesmos pressupostos que já eram exigidos face ao Código Penal de 1886 (2) para a existência do crime continuado.

No caso, desde logo, nenhumas circunstâncias exteriores se mostram provadas que tivessem facilitado a prática de cada uma das invocadas infracções seguidas, e logo, que lhe diminuíssem, de forma acentuada, a respectiva culpa no respectivo cometimento, como bem se fundamenta na decisão recorrida e também se pronuncia a Exma Procuradora da República, na matéria das conclusões 3.ª e 4.ª das suas alegações do recurso, ainda que a recorrente tenha invocado, na matéria do art.º 12.º e segs das suas alegações do recurso judicial que se viu confrontada com «um cenário de crise grave, perante o qual a recorrente não teve outra saída senão deixar de pagar o IVA devido, sob pena de, se a sua atitude tivesse sido outra, ter que deixar de pagar aos seus trabalhadores e colocar-se numa situação de falência iminente», que contudo não provou, já que nenhuma prova foi efectuada tendente a demonstrá-lo, pelo que não pode lograr êxito a pretendida punição segundo as regras das infracções continuadas, não podendo o recurso deixar de improceder.

Por fim e em reforço argumentativo, também sempre se dirá que, embora a arguida e ora recorrente, refira que cometeu infracções semelhantes nos diversos períodos de entrega do IVA, entre o início de 2003 e final de 2005, o certo é que nada a tal respeito se mostra provado nos autos, nem mesmo na informação de fls 22/25 dos autos, não se provando que (outras) infracções terá a arguida e ora recorrente praticado em tal período de tempo, de forma a fazê-las reconduzir ao mesmo tipo de infracção ou a infracções semelhantes, para que pudessem ser subsumidas à figura da infracção continuada.


Improcedem assim todas as conclusões do recurso, sendo de lhe negar provimento e de confirmar a decisão recorrida que no mesmo sentido decidiu.


C. DECISÃO.
Nestes termos, acorda-se, em negar provimento ao recurso e em confirmar a decisão recorrida.


Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro UCs.


Lisboa, 20 de Outubro de 2009

(1) Recurso n.º 1768/07, da lavra do também aqui Relator.
(2) Cfr. neste sentido, Maia Gonçalves, Código Penal Português, 4.ª Edição, Almedina Coimbra, 1979, nota 4, pág. 107 e segs.