Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2460/07
Secção:CA-2º JUÍZO
Data do Acordão:12/06/2017
Relator:SOFIA DAVID
Descritores:OBRIGAÇÃO ILÍQUIDA
FACTURAS
NOTAS DE CRÉDITO
PENALIDADES CONTRATUAIS
Sumário:I – Não existe uma obrigação líquida quando são enviadas para pagamento facturas que não são aceites pelo devedor, por delas constar um valor superior ao que seria o valor a pagar, porque não haviam sido deduzidos os montantes das penalidades aplicadas.

II – As indicadas penalidades devem ser consideradas aceites com o envio das notas de crédito, correspondentes às citadas facturas.

III – Só com o citado envio das notas de crédito e com a possibilidade do seu confronto com as correspondentes facturas, se tornou certo, líquido, o montante da obrigação, porquanto as notas de crédito constituem, na prática, uma alteração dos montantes indicados nas anteriores facturas. Será através do confronto e pela consideração desses dois documentos que se permite ao R. e ora Recorrido ter a certeza do montante que era, em concreto, o valor devido, que devia ser pago. Só a partir daí a obrigação do R. e Recorrido fica definida no seu valor, com o encontro de contas que se operou e que permitiu calcular o pagamento do quantitativo ainda em dívida – cf. art.º 805.º, nº 3, do CC.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Recorrente: A.........-R.... – Serviços ............, Lda
Recorrido: Estado Português

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul

I - RELATÓRIO

A.........-R.... – Serviços …………., Lda, interpôs recurso da sentença do TAF de Leiria, que julgou parcialmente extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, quanto à quantia de €75.486,00 e parcialmente procedente a acção, condenando o R. a pagar à A. juros de mora calculados às taxas legais em cada momento em vigor, sobre a quantia de €73.486,00, cujo período de contagem se inicia após o decurso de 60 dias (contados nos termos do art.º 72.º do CPA) sobre a data de 11-03-2005, até 23-09-2005, e, após esta data, até integral pagamento, sobre o remanescente em dívida depois de aplicada a quantia recebida nos termos do art.º 785.º do CC.
Em alegações são formuladas pelo Recorrente, as seguintes conclusões: “O Tribunal a quo julgou «a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, condena-se o Réu a pagar a Autora, juros de mora, calculados às taxas supra referidas; em cada momento em vigor, sobre a quantia de € 73.486,00, cujo período de contagem se inicia após o decurso de 60 dias (contados estes nos termos do art. 72ºdo Código do Procedimento Administrativo) sobre a data de 1 1 de Março de 2005, até 23 de Setembro de 2005, e, após esta data, até integral pagamento, sobre o remanescente em dívida depois de aplicada a quantia recebida nos termos do art.º 785. do C.C.»
A) Verifica-se, desde logo, um erro de escrita quanto à quantia sobre a qual são calculados os juros de mora devidos pelo Réu até 23 de Setembro de 2005, cujo valor correcto é de € 75.486,00 (setenta e cinco mil, quatrocentos e oitenta e seis euros).

«Texto no original»

para que se continuem a vencer Juros de mora, após 23 de Setembro de 2005, pelo que o Tribunal a quo não poderia deixar de considerá-lo devido.
G) Por conseguinte, a omissão da expressa condenação do Réu no pagamento do remanescente do capital em dívida terá resultado de um manifesto lapso, que deverá ser igualmente rectificado, nos termos do citado art. 667º, n.ºs 1 e 2, do CPC: ex vi arts. 1º e 43º, n.º 1, ambos do CPTA.
H) Caso contrário, estaremos perante uma nulidade da sentença, por oposição entre a fundamentação e a decisão, prevista no art. 668º, n.º 1, alínea c), do CPC: ex vi arts. 1º e 43º, n.º 1, ambos do CPTA, que o Mmo. Juiz a quo poderá suprir por despacho, de harmonia com o preceituado nos arts. 668º, n." 4 e 744º, n.º 1, devidamente adaptado, ambos do CPC, e 140º do CPTA.


«Texto no original»

»

O Recorrido nas contra alegações formulou as seguintes conclusões: “l - Deverão ser rectificados os erros materiais aludidos pela A. no que respeita ao montante a considerar para efeitos de juros de mora e ao montante de capital ainda em débito após a aplicação da quantia recebida;
2 - Mas deverá também ser rectificada a data de início da contagem dos 60 dias, a qual começará a 14 e não 11 de Março de 2005, pois só nessa data (e não nesta que é a da comunicação) o EP recebeu os elementos que lhe permitiram determinar, sem contestação, o montante líquido do débito;
2 - A obrigação em causa não era líquida em virtude da não repercussão na factura seguinte das penalidades aplicadas pelo EP, sendo certo que a A. nada referiu sobre a mesma, não podendo pois o EP, sem mais, deduzir o montante em causa, pois este ainda não estava assente entre as partes;
3 - Foi esta actuação da A. que levou à solicitação das notas de débito no sentido de repercutir contabilisticamente o acerto de contas e assim poder solicitar o montante em causa ao Ministério das Finanças para efectuar o pagamento, o o que era do conhecimento da A., não podendo pois, por tais motivos, falar-se de culpa do devedor;
4 - Deverá pois ser confirmada a sentença posta em crise.”

II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – OS FACTOS

Em aplicação do art.º 663º, n.º 6, do Código de Processo Civil (CPC), ex vi do art.º 1.º e 140.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), por não ter sido impugnada, remete-se a matéria de facto para os termos em que foi decidida pela 1.ª instância.

II.2 - O DIREITO

As questões a decidir neste processo, tal como vêm delimitadas pelas alegações e contra-alegações de recurso e respectivas conclusões, são:
- da existência de um erro material na referência, no segmento decisório, da quantia de €73.486,00, quando se queria ter dito a quantia de €75.486,00, o valor do capital cujo pagamento foi exigido à A.;
- da existência de um erro material, ou se assim não se entender, uma nulidade decisória, por contradição nos fundamentos da sentença, quanto à falta de referência à condenação do R. no remanescente do capital em dívida;
- do erro decisório, por dever ter-se condenado o R. no pagamento de juros de mora, após o decurso do prazo de 60 dias úteis sobre as datas da emissão das facturas n.ºs 74, 76, 77, 78, 81 e 84, por o crédito da A. ser liquido, pois competia ao R. fixar o montante das penalidades a deduzir ao montante das facturas do mês em curso, bastando-lhe proceder a meras operações aritméticas para saber o valor líquido em dívida, devendo-se também entender, que se existisse falta de liquidez, essa mesma falta só poderia ser imputável ao próprio R.
Face às contra-alegações de recurso haverá, ainda, que verificar do lapso decisório quanto à data da recepção das notas de crédito pelo EP, que ocorreu em 14-03-2005, mas que depois é considerada com a data de 11-03-2005, que corresponde à remessa daquelas notas e não á sua recepção.

No despacho de sustentação do recurso foi corrigido o erro relativo ao valor de €75.486,00 e ao termo para a contagem dos juros em 11-03-2005, assim como, ficou esclarecido que a decisão envolve a condenação do Réu no pagamento do remanescente do capital em dívida, após a aplicação da quantia de €75.486,00, no pagamento dos juros vencidos até à data em que foi entregue à credora e, depois, no capital.
Portanto, ficou corrigida a referência – errada – a €73.486,00 e a indicação da data – errada – de 14-03-2005 e ficou esclarecido que com a determinação final, a condenar o R. no pagamento de juros de mora “até integral pagamento sobre o remanescente da dívida”, se estava a referir ao remanescente do capital em dívida.
Estas mesmas correcções resultavam do referido nos pontos S e U da matéria de facto.
Ficaram, pois, resolvidos os erros materiais que vinham invocados no recurso.
Consequentemente, nessa parte, fica também prejudicado o recurso face à correcção que, entretanto, foi feita no despacho de sustentação.
Portanto, resta agora aferir se houve um erro decisório ao considerar que o crédito do A. era ilíquido até 14-03-2015.
Conforme factualidade apurada em C. a T., competiria ao A. e Recorrente emitir as supra-indicadas facturas nos primeiros 5 dias do mês seguinte à prestação, sendo que o R. e Recorrido requereu que dessas facturas constasse o valor das penalidades que havia aplicado, para ali se deduzirem ao indicado pagamento. O A. e Recorrente não cumpriu esse pedido, pelo que as facturas inicialmente enviadas não foram aceites. Entretanto, só em 14-02-2005 foram recebidas pelo R. e Recorrido as notas de crédito, que completando a informação das facturas, porque alteraram o valor liquido devido, também modificaram o valor final a pagar pelo R. e Recorrido.
Assim sendo, há que confirmar a decisão recorrida quando indica que a obrigação de pagamento do R. apenas ficou pacificada em 14-02-2005, com o recebimento das notas de crédito e quando indica que só a partir daquela data o crédito se tornou líquido.
Na verdade, só com o envio das notas de crédito e com a possibilidade do seu confronto com as correspondentes facturas, se tornou certo, líquido, o montante da obrigação. As notas de crédito constituem, na prática, uma alteração dos montantes indicados nas anteriores facturas. Logo, será através do confronto e pela consideração desses dois documentos que se permite ao R. e ora Recorrido ter a certeza do montante que era, em concreto, o valor devido, que devia ser pago. Só a partir daí a obrigação do R. e Recorrido fica definida no seu valor, com o encontro de contas que se operou e que permitiu calcular o pagamento do quantitativo ainda em dívida – cf. art.º 805.º, nº 3, do CC (cf. a este propósito, o Ac. do TRC n.º 2073/10.9T2AVR.C1, de 23-10-2012, in www.dgsi.pt).
A este propósito, cite-se, o Ac. do STA n.º 98A1262, de 11-05-1998, in www.dgsi.pt, quando refere: “é ilíquida a dívida emergente de um contrato quando o seu montante depende da prestação de contas através do encontro, ainda não feito, entre créditos e débitos, ou quando está em causa a indemnização devida pelo não cumprimento, por parte do devedor, da obrigação a que está vinculado. Assim se encontra em Antunes Varela, ibidem, nota 1, a exemplificação da iliquidez com os casos de gestão, mandato e obrigação de indemnização; e também Galvão Telles, obra citada, pg. 304, refere a indemnização pecuniária.
Ainda tratando da obrigação de indemnizar, encontram-se na anotação escrita por Antunes Varela na RLJ, ano 102º, pgs. 85-93, noções que confirmam esta linha de orientação.
Por um lado, dá conta de que esta obrigação, quer seja de natureza contratual ou extracontratual, é ilíquida na maior parte dos casos, só o não sendo quando "... a lei ou as partes fixaram antecipadamente o seu montante ou o critério rígido da sua determinação.”
Neste mesmo sentido, cite-se Antunes Varela, quando refere a existência de uma obrigação ilíquida, porque o montante ainda não esteja fixado, precisamente para as situações em que haja “encontro de créditos e débitos que ainda se não no Código de Processo Civil (arts. 805.º e segs) se preveja a liquidação como uma operação preliminar da chamada execução para pagamento de quantia certa” (in, do Autor, Das obrigações em Geral, vo.II, reimp. da 7ª ed., Almedina, 2001, pp. 115 e 116, nota de rodapé 1).
Quanto ao argumento do A e Recorrente, que competia ao R. e Recorrido proceder às operações aritméticas necessárias a calcular o valor em dívida, deduzindo o valor das penalidades que foram aplicadas ao valor facturado, para assim chegar a um valor concreto quanto à sua divida, trata-se de um argumento invertido, que não pode valer. Quem tinha que indicar o valor a facturar e devido pela prestação de serviços era o A. e Recorrente, pois essa obrigação derivava do art.º 9.º, n.º 3 e 4 do CE e do contrato que celebrou. Quanto às penalidades que lhe foram aplicadas e comunicadas pelo R. e Recorrido, eram também passiveis de serem por si questionadas. Assim, só após a aceitação daquelas penalidades e do seu montante, poder-se-ia considerar que o correspondente valor – a deduzir nas facturas a pagar – estava aceite. Igualmente, só a partir daí era viável proceder-se ao necessário encontro de contas.
Face à factualidade apurada a aceitação do valor das penalidades verifica-se com a emissão das notas de crédito. Por seu turno, o R. e Recorrido fica a conhecer aquela aceitação na data em que recebe as indicadas notas. Como se disse, as notas de crédito constituem uma alteração ao montante líquido da obrigação devida. Logo, até à aceitação do valor das penalidades pelo A. e Recorrente, a obrigação do R. e Recorrido não se podia considerar como uma obrigação certa ou liquida.
Refira-se, ainda, que o valor devido e a pagar teria sempre de ser contabilizado – quer pelo A., quer pelo R. – com remissão e suporte não só para as primeiras facturas, mas também, para as notas de crédito. Em termos contabilísticos estas notas alteram o montante devido face às facturas anteriormente emitidas. Portanto, a obrigação de pagamento do R. e Recorrido por um dado valor não poderia basear-se apenas na facturação, mas exigiria, ainda, como documento complementar, a junção das notas de crédito.
Assim sendo, a data que teria que valer para efeitos do art.º 9.º, 3 e 4.º do CE, como a da interpelação para um dado pagamento, haveria sempre de ser a do recebimento das notas de crédito, isto é, a data de 14-03-2005, pois aquelas notas alteraram o montante das facturas e, nessa mesma medida, são os documentos que indicam o valor final a pagar.
Há, portanto, que confirmar a sentença e julgar improcedente o presente recurso.

III- DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam:
- em negar provimento ao recurso interposto, confirmando a decisão recorrida.
- custas pelo Recorrente.

Lisboa, 6 de Dezembro de 2017.

(Sofia David)
(Nuno Coutinho)
(António Vasconcelos)