Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:12810/15
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:12/15/2016
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:PSP
DEMISSÃO
Sumário:De acordo com o RD/PSP, a pena de demissão está reservada – “é especialmente aplicável” - àqueles que tiverem cometido crimes dolosos puníveis com pena de prisão superior a três anos, que abusem dos poderes de autoridade conferidos por lei ou que pratiquem crimes contra o Estado.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

JOÃO ……………………………, devidamente identificado nos autos, intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de LISBOA ação administrativa especial contra

MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA

O pedido formulado foi o seguinte:

- Anulação do ato administrativo que lhe aplicou a pena de demissão, e

- Condenação do réu na prática do ato devido, que seria a instrução do processo disciplinar por pessoa isenta e imparcial ou, caso assim não se entenda, a substituição da pena disciplinar aplicada por outra não expulsiva.

Por acórdão de 10-7-2015, o referido tribunal veio a prolatar decisão, onde, sem o dizer expressamente, absolveu o réu do pedido.

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Inconformado com tal decisão, o autor interpôs o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

«(Texto no original)»

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O recorrido contra-alegou, sem concluir.

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O digno magistrado do M.P. junto deste tribunal foi notificado para se pronunciar nos termos previstos no artigo 146º/1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

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Para decidir, este tribunal tem omnipresente a nossa Constituição, como (i) síntese da ideia-valor de Direito vigente, cujo (ii) modelo político é de natureza ético-humanista e cujo (iii) modelo económico é o da economia social de mercado, amparado no Direito.

Consideramos as três dimensões do Direito como ciência do conhecimento prático - por referência à ação humana e ao dever-ser inspirador das leis -, quais sejam, (i) a dimensão factual social - que influencia muito e continuamente o direito legislado através das janelas de um sistema jurídico uno e real, (ii) a dimensão ética e seus princípios práticos - que influenciam o direito objetivo também através das janelas do sistema jurídico - e, a jusante, (iii) a dimensão normativa e seus princípios prático-jurídicos.

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DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cabe, ainda, sublinhar que os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido e respetivos fundamentos, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso (cfr. artigos 144º/2 e 146/4 do CPTA, 5º, 608º/2, 635º/4/5, e 639º do CPC/2013, “ex vi” artigos 1º e 140º do CPTA), alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas.

As questões a resolver neste recurso são as identificadas no ponto II.2, onde as apreciaremos.

Por outro lado, nos termos do artigo 149.º do CPTA, o tribunal “ad quem”, em sede de recurso de apelação, não se limita a cassar a decisão judicial recorrida, porquanto, ainda que a revogue ou declare nula, deve decidir o objeto da causa apresentada ao tribunal “a quo”, conhecendo de facto e de direito, reunidos que se mostrem no caso os pressupostos e condições legalmente exigidos.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. FACTOS PROVADOS

O tribunal “a quo” deu como provada a seguinte matéria de facto:

«(Texto no original)»

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Presente o quadro factual antecedente passemos, então, à apreciação das questões que constituem o objeto deste recurso.

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II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Aqui chegados, há, pois, condições para se compreender esta apelação e para, num dos momentos da verdade do Estado de Direito (o do controlo jurisdicional), ter presentes, “inter alia”, os seguintes princípios jurídicos fundamentais: (i) juridicidade e legalidade administrativas, ao serviço do bem comum; (ii) igualdade de tratamento material axiológico de todas as pessoas humanas; (iii) certeza e segurança jurídicas; e (iv) tutela jurisdicional efetiva.

Em consequência, este tribunal utiliza um método jurídico adequado à garantia efetiva, previsível e transparente dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos, através de um processo decisório teleologicamente orientado apenas (i) à concretização dos valores da Constituição e (ii) ao controlo racional de coerência dos nexos da sistematicidade jurídica que precedam a resolução do caso.

Assim, a resolução de litígios através do tribunal, num Estado democrático de Direito, implica: (i) um rigoroso respeito pelas normas materialmente constitucionais inseridas nos artigos 9º e 10º do Código Civil, na busca do pensamento legislativo da fonte de direito, dentro do sistema jurídico atual e com respeito pela máxima constitucional da sujeição dos juizes às leis e aos artigos 111º e 112º da Constituição da República Portuguesa; (ii) e, nos casos “difíceis” e excecionais em que tal for lícito ao juiz, implica ainda a metodologia racional-justificativa consistente no sopesamento ou ponderação de bens, interesses e valores eventualmente colidentes na situação concreta, sob a égide da máxima metódica da proporcionalidade, mas sempre sem prejuízo, quer dos cits. quatro princípios jurídicos fundamentais, quer do princípio constitucional da sujeição da atividade jurisdicional às leis.

Ora, o presente recurso de apelação demanda que resolvamos o seguinte:

- Erro de direito quanto à falta de imparcialidade do instrutor do procedimento disciplinar;

- Erro de direito quanto à gravidade da pena, por não inviabilização da relação funcional

Vejamos, pois.

1ª – Do erro de direito quanto à falta de imparcialidade administrativa do instrutor do procedimento disciplinar. Da “imparcialidade objetiva”

O réu decidiu, em 26-11-2010, aplicar ao recorrente, agente da PSP, a pena disciplinar de demissão, com base em factos que constituíram a condenação por crime de ofensas corporais simples e por crime de ameaças.

O recorrente trabalhou na esquadra do aeroporto de Lisboa entre 2002 e 2005.

O instrutor do procedimento disciplinar (cfr. artigos 18º ss –“competência disciplinar”, 25º ss – “penas”, 60º -“processo disciplinar” e 73º - “nomeação do instrutor e secretário” do RD/PSP – Lei nº 7/90) foi superior hierárquico do recorrente entre julho-2002 e janeiro-2004.

Nesse mês de janeiro-2004, o recorrente ficou em prisão preventiva, por haver fortes indícios da prática de crime de tráfico de estupefacientes, tendo vindo a ser absolvido em junho-2007.

Aquele instrutor teve intervenção direta na fase investigatória inicial a propósito do ocorrido em janeiro-2004. Por este facto, o recorrente considera que foi violado o princípio jurídico-administrativo da imparcialidade da A.P. numa vertente objetiva - já que não há alegação ou prova de parcialidade subjetiva; isto é, as circunstâncias de facto permitiriam, segundo o autor-recorrente, ter dúvidas sérias sobre a imparcialidade subjetiva do instrutor, num juízo de aparência segundo o senso comum.

Ora, o Tribunal Administrativo de Círculo considerou que não se demonstrou efetiva parcialidade e, afora os demais limites à margem de livre decisão administrativa sancionatória, que não houve erro notório ou grosseiro na fixação da pena concreta.

Um dos limites imanentes da margem de livre decisão administrativa, aliás essencial na atividade sancionatória disciplinar, é a imparcialidade administrativa (cfr. artigos 266º/2 da Constituição da República Portuguesa e 6º do Código do Procedimento Administrativo de 1991), aqui, no caso em apreço, no momento da instrução (investigação) do procedimento disciplinar.

A imparcialidade administrativa (prevista nos artigos 266º/2 da Constituição da República Portuguesa e 6º do Código do Procedimento Administrativo/1991) exige, inter alia, o seguinte:

i – Isenção face às pessoas e entidades que são sujeitos procedimentais;

ii - Tomada em consideração e ponderação de todos os interesses relevantes para a atuação administrativa em concreto, sem prejuízo, claro está, da parcialidade na prossecução do interesse público;

iii - Que as circunstâncias de facto que rodeiam o processo decisório não permitam dúvidas sérias sobre a imparcialidade subjetiva de quem decide ou participa na decisão administrativa, num juízo de aparência segundo o senso comum (é a imparcialidade objetiva).

Daí existirem certas garantias, até por causa da enorme dificuldade da prova da parcialidade subjetiva, garantias como as previstas nos artigos 44º ss do Código do Procedimento Administrativo/1991 e 43º da Lei 58/2008-ED/TFP (cujo proémio é: “O arguido e o participante podem deduzir a suspeição do instrutor do processo disciplinar quando ocorra circunstância por causa da qual possa razoavelmente suspeitar-se da sua isenção e da retidão da sua conduta …”).

Este artigo 43º do ED/TFP/2008 aplica-se ao caso presente “ex vi” artigo 66º da Lei 7/90 (RD/PSP).

Presente o quadro normativo posto agora em evidência, estamos em condições de responder ao problema que nos é colocado.

Assim, em sede de “imparcialidade objetiva” (a que se refere, por ex., o artigo 73º/1-proémio do Código do Procedimento Administrativo), o que temos aqui é uma situação passada, de 2003/2004, data em que o instrutor do procedimento disciplinar (de 2008/2009) (i) foi antes “chefe” do recorrente, (ii) tendo inclusive tido alguma participação na investigação dos factos que conduziram à prisão preventiva do recorrente em 2004, depois absolvido nesse caso.

Ora, este contexto factual não é suficiente para criar dúvidas sérias sobre a imparcialidade subjetiva de quem decide ou participa na decisão administrativa, num juízo de aparência segundo o senso comum. Foram realidades, procedimentos, factualidades e tempos históricos diferentes.

E daí que se possa afirmar que o procedimento disciplinar foi isento e sério e também que pareceu isento e sério.

Além disso, nada foi negado aos direitos do arguido, com exceção lícita do afastamento do instrutor, e a pena disciplinar adotada assenta cabalmente em factos concretos, provados em tribunal penal e aqui por diferentes provas, factos criminosos que normalmente conduziriam à aplicação de pena expulsiva de acordo com o artigo 49º do RD/PSP.

Soçobra, assim, este fundamento do recurso.

2ª – Do erro de direito quanto à gravidade da pena disciplinar aplicada, por não haver inviabilização da relação funcional e proporcionalidade

Sustenta o recorrente que a decisão recorrida, ao manter o ato impugnado, incorre em violação do princípio da proporcionalidade no que respeita à pena disciplinar, em face da gravidade da infração e da culpa do autor, não assumindo os factos de que o arguido foi sancionado gravidade suficiente que inviabilize a manutenção da relação funcional.

Vejamos.

Como em qualquer procedimento, também o procedimento disciplinar exige “uma ponderação objetiva, isenta e imparcial dos factos e interesses envolvidos” (cfr. M. ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO C. GONÇALVES E J. PACHECO AMORIM, in Código de Procedimento Administrativo, 2ª ed., pág. 246).

No caso vertente, importa atender ao regime aprovado pelo Regulamento de Disciplina da PSP, o qual prevê na sua Secção II, sob epígrafe “Penas que inviabilizam a relação funcional”, o regime relativo às penas de aposentação compulsiva e de demissão (cfr. artº 47º e segs.).

Estabelece o artº 47º o seguinte:

1 - As penas de aposentação compulsiva e de demissão são aplicáveis, em geral, por infrações disciplinares que inviabilizam a manutenção da relação funcional.

2 - As penas referidas no número anterior são aplicáveis ao funcionário ou agente que, nomeadamente:

a) Usar de poderes de autoridade não conferidos por lei ou abusar dos poderes inerentes às suas funções, excedendo os limites do estritamente necessário, quando seja indispensável o uso de meios de coerção ou de quaisquer outros suscetíveis de ofenderem os direitos do cidadão;

b) Praticar ou tentar praticar ato previsto na legislação penal como crime contra o Estado;

c) Agredir, injuriar ou desrespeitar gravemente superior hierárquico, colega, subordinado ou terceiro, em local de serviço ou em público;

d) Encobrir criminosos ou prestar-lhes qualquer auxílio que possa contribuir para frustrar ou dificultar a ação da justiça;

e) Por virtude de falsas declarações, causar prejuízo a terceiros ou favorecer o descaminho de armamento;

f) Praticar ou tentar praticar ato demonstrativo da perigosidade da sua permanência na instituição ou ato de desobediência ou insubordinação, bem como de incitamento à desobediência ou insubordinação coletiva;

g) Praticar, de forma tentada ou consumada, crime de furto, roubo, burla, abuso de confiança, peculato, suborno, coação ou extorsão;

h) Tomar parte ou interesse, diretamente ou por interposta pessoa, em qualquer contrato celebrado ou a celebrar por qualquer serviço do Estado;

i) Violar segredo profissional ou cometer inconfidência de que resulte prejuízo para o Estado ou para terceiros;

j) Abandonar o lugar, ausentando-se ilegitimamente por período superior a 5 dias seguidos ou 10 interpolados;

l) Aceitar, direta ou indiretamente, dádiva, gratificação ou participação em lucros em resultado do lugar que ocupa;

m) Abusar habitualmente de bebidas alcoólicas, consumir ou traficar estupefacientes ou substâncias psicotrópicas;

n) For cúmplice, na tentativa ou consumação, de qualquer crime previsto nas alíneas anteriores.”.

Por sua vez, o artigo 49º prevê o seguinte:

1 - A pena de demissão é especialmente aplicável ao funcionário ou agente que:

a) Tiver praticado qualquer crime doloso punível com pena de prisão superior a três anos, com flagrante e grave abuso da função que exerce ou com manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes;

b) Tiver praticado, embora fora do exercício das funções, crime doloso punível com pena de prisão superior a três anos que revele ser o agente incapaz ou indigno da confiança necessária ao exercício da função;

c) Cometer algumas das infrações previstas na alínea a) do n.º 2 do artigo 47.º;

d) Praticar ou tentar praticar qualquer ato previsto nas alíneas b),f) e g) do n.º 2 do artigo 47.º

2 - Quando a demissão não for decretada na sentença condenatória, serão solicitados ao tribunal competente os elementos indispensáveis à decisão, tendo em vista o disposto na legislação processual penal sobre o caso julgado.

É pacificamente entendido que o juízo de inviabilização da relação funcional não resulta ipso facto do disposto de qualquer das disposições legais do Estatuto Disciplinar aplicável aos agentes e funcionários públicos, e por isso, também em relação ao disposto no Regulamento de Disciplina da PSP, mas que resulta antes do conjunto normativo em que tal preceito se insere, alicerçado no conjunto de factos e de circunstâncias concretas conducentes à conclusão de que não é mais possível manter o vínculo jurídico-funcional existente.

No mesmo sentido, da imprescindibilidade de um juízo de prognose sobre o preenchimento do conceito indeterminado correspondente à inviabilidade da manutenção da relação funcional, decidiram, entre outros, os Acórdãos do STA de 09-07-98, proc. 040931, de 13-01-99, proc. 040060, de 02-12-2004, proc. 01038/04 e de 11-10-2006, proc. 010/06.

Assim, a aplicação de uma medida expulsiva - quer se trate de demissão, quer de aposentação compulsiva - só pode ter lugar quando a conduta do infrator atinja de tal forma o prestígio e a credibilidade da instituição de que faz parte que a sua não aplicação, não só iria contribuir para degradar a imagem de seriedade e de isenção dessa instituição, como também poderia ser considerada pela opinião pública como chocante ou escandalosa.

Por ser assim é que a aplicação daquelas penas aos agentes ou funcionários da PSP depende da prática de infrações disciplinares que inviabilizam a manutenção da relação funcional (art.º 47.º/1 do RD/PSP), isto é, de comportamentos capazes de minar de forma inapagável não só a imagem de prestígio e de credibilidade daquela Corporação como também a confiança que nelas depositam os cidadãos e que, por isso, impossibilitem a relação de confiança indispensável à manutenção do vínculo funcional.

Todavia, a aplicação de uma ou de outra dessas medidas não é arbitrária, visto o RD/PSP estabelecer que “a pena de aposentação compulsiva é especialmente aplicável nos casos em que se conclua pela incompetência profissional ou falta de idoneidade moral para o exercício de funções” e que a pena de demissão está reservada – “é especialmente aplicável” - àqueles que tiverem cometido crimes dolosos puníveis com pena de prisão superior a três anos, aos que abusem dos poderes de autoridade conferidos por lei ou que pratiquem crimes contra o Estado (artigo 49º do RD/PSP; cfr. Acórdão do STA de 5-5-2011, Processo nº 0934/10).

A inviabilização da manutenção da relação funcional resultante do facto punível constitui, portanto, o critério geral para a aplicação da pena aposentação compulsiva ou da pena de demissão, e a valoração das infrações disciplinares como inviabilizadoras dessa relação “tem de assentar não só na gravidade objetiva dos factos cometidos, mas ainda no reflexo dos seus efeitos no desenvolvimento da função exercida e no reconhecimento, através da natureza do ato e das circunstâncias em que foi cometido, de que o seu autor revela uma personalidade inadequada ao exercício dessas funções” (cfr. Acórdão do STA de 01/04/2003, proc. 01228/02).

Tem-se entendido que “não se deve manter a relação funcional sempre que os factos cometidos pelo arguido, avaliados e considerados no seu contexto, impliquem, para o desempenho da função, prejuízo de tal monta que irremediavelmente comprometa o interesse público que aquele deve prosseguir, designadamente, a eficiência, a confiança, o prestígio e a idoneidade que deva merecer a ação da Administração, de tal modo que o único meio de acudir ao mal seja a ablação do elemento que lhe deu causa.” (vide Acórdão do STA de 30-11-94, proc. nº 032500).

Como se escreveu no Ac. do STA de 01-03-1991, proc. nº 028339, “a inviabilização da manutenção da relação funcional não é o facto que possa ser objeto de prova, mas uma cláusula geral a preencher por juízos de prognose efetuados com certa margem de liberdade administrativa”.

Em vários outros acórdãos do STA se esclarece que o conceito de inviabilidade da manutenção da relação funcional se concretiza através de juízos de prognose acerca da gravidade das infrações praticadas, gravidade projetada na continuação ou quebra da relação funcional (cfr., entre outros, os Acórdãos do STA de 30-11-1994, proc. 32500 e de 01-04-2003, proc.1228/03).

Para além disso, no âmbito do processo disciplinar não pode, em regra, o juiz sindicar a medida da pena, salvo nos casos de erro grosseiro ou de clara violação de princípios constitucionais vinculativos da atividade administrativa, como o princípio da proporcionalidade, pois, como ditou o Acórdão do Pleno do STA, datado de 29-03-2007, proc. nº 0412/05, ao exercer os seus poderes disciplinares em sede de graduação da culpa e de determinação da medida concreta da pena, a Administração goza de certa margem de liberdade, numa área antigamente designada de “justiça administrativa”, movendo-se a coberto da sindicância judicial, salvo se os critérios de graduação que utilizou ou o resultado que atingiu forem grosseiros ou ostensivamente inadmissíveis ou ilegais.

Porém, não se encontra o juiz impedido de sindicar a legalidade da decisão punitiva que ofenda os critérios gerais de individualização e graduação estabelecidos na lei ou que ultrapasse os limites normativo-constitucionais, aferindo se foram ou não ponderadas as circunstâncias concretas, que, pela sua gravidade, indiciariam a inviabilização da manutenção da relação funcional.

E, uma vez convocada a dirimir litígios nos quais se discutia nomeadamente esta questão, a jurisprudência tem vindo a entender o seguinte:

- “Violou os deveres de zelo e de aprumo o guarda da PSP que, em 1994, auxiliou um seu amigo, consumidor habitual de estupefacientes, a obter e a consumir essa substância proibida. Não merece censura a valoração, constante do ato contenciosamente recorrido, de que a conduta dita em III inviabilizava a manutenção da relação funcional” (Acórdão do STA-Pleno de 11-12-2002, Processo nº 038892);

- “Deve considerar-se como tal conduta traduzida no facto de o arguido, juntamente com outro agente da P.S.P., já aposentado, se haver deslocado a várias empresas onde, depois de invocar a sua referida qualidade, solicitou lhe fossem dados alguns artigos, conseguindo vencer a inicial renitência dos interlocutores com a invocação de que, dada a sua condição de agente de autoridade, fecharia os olhos a possíveis infrações em que incorressem as respetivas firmas, sendo certo que não concorre circunstancialismo atenuativo relevante. Em tal situação, carece de fundamento a invocada de violação dos princípios constitucionais da igualdade da justiça e da proporcionalidade, na aplicação da pena de demissão” (Acórdão do STA 19-3-2002, Processo nº 047902).

Portanto, o preenchimento do conceito indeterminado que corresponde à "inviabilidade da manutenção da relação funcional" constante do nº 1 do artigo 47º do RD/PSP, constitui tarefa da Administração, a concretizar mediante juízos de prognose efetuados com grande margem de liberdade administrativa. Esta tarefa não é, porém, arbitrária, pois deve reger-se pelos princípios de vinculação ao fim, da imparcialidade e da proporcionalidade, que são orientadores da atividade decisória, cabendo aos tribunais administrativos a função de verificar se a Administração se moveu dentro dos aludidos parâmetros.

O ónus de concretização circunstancial e factual incumbe à Administração, já que é sobre si que recaem os ónus de alegar e de provar os factos dos quais resulte o preenchimento do conceito indeterminado que corresponde à inviabilidade da manutenção da relação funcional, sendo, pois, insuficiente a mera referência a essa inviabilidade.

Revertendo todo o expendido para o caso configurado em juízo, é de entender que, no caso, foram suficientemente ponderadas as circunstâncias concretas que, atenta a sua gravidade, os seus contornos e a sua publicidade, determinam a inviabilização da manutenção da relação funcional do ora recorrente.

Quer no teor da acusação, quer no relatório final, foi efetuada a subsunção dos factos ao direito, mostrando-se afirmado e fundamentado que a prática dos factos imputados acarreta um juízo de inviabilização da manutenção da relação funcional, pelo que, de forma expressa, foi efetuado esse juízo por parte da Administração, ora recorrida.

E aqui adquirem centralidade os factos criminosos por que o recorrente foi condenado em penas de prisão (não efetivas), subsumidos ao crime de ofensas corporais simples (artigo 143º do C. Penal) e ao crime de ameaça (artigo 153º do C. Penal); são factos criminosos, demonstrados no procedimento disciplinar e que integram a previsão do cit. artigo 49º/1/a)/b) do RD/PSP.

Assim mostra-se inequivocamente afirmada a inviabilidade, seja na acusação, seja no relatório final em que assenta o ato punitivo impugnado. Além disso, é de afastar que incorreu a Administração em qualquer erro grosseiro ou manifesto quanto à escolha e medida da pena disciplinar.

Como se extrai do Acórdão do STA de 09-05-2002, proc. 048209, cabe à Administração concretizar o conceito de inviabilidade da manutenção da relação funcional, através de “juízos de prognose produzidos com grande margem de liberdade administrativa” e “só erros manifestos de apreciação na determinação desses juízos importe violação de lei que ao Tribunal cabe sindicar”.

Como se disse, é de exigir à Administração a alegação e prova dos factos concretos dos quais resulte a inviabilidade da manutenção da relação funcional, o que no caso presente se verificou, mediante a demonstração dos factos pelos quais o arguido foi punido e ainda mediante o juízo efetuado, com fundamentos claros e estribados no artigo 49º cit., sobre essa inviabilidade da manutenção da relação funcional.

Com efeito, as supra descritas infrações disciplinares cometidas pelo recorrente (crime de ofensa à integridade física e crime de ameaça) são condutas graves e indignas de um agente policial de segurança pública, indignas de uma força policial de segurança pública.

A pena aplicada foi, portanto, adequada, necessária e racional ou equilibrada, nos termos da lei (cfr artigos 47º e 49º do RD/PSP, 266º/2 da Constituição da República Portuguesa e 5º/2 do Código do Procedimento Administrativo).

Note-se, ainda, que não se provou nenhuma das circunstâncias atenuantes previstas no artigo 52º do RD/PSP.

Concluímos, pois, que o ato administrativo impugnado e a sentença recorrida não violarem a lei e o Direito. Soçobra, assim, este fundamento do recurso.

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III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os juizes deste Tribunal Central Administrativo Sul em, negando provimento ao recurso, confirmação a decisão recorrida.

Custas a cargo do recorrente.

Lisboa, 15-12-2016


(Paulo Pereira Gouveia - relator)

(Nuno Coutinho)

(Carlos Araújo)