Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:204/22.5 BELLE-A
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:04/27/2022
Relator:PEDRO MARQUES MARCHÃO
Descritores:PEDIDO DE ESCUSA DE JUIZ
FUNDAMENTOS
Sumário:I- Nos termos do disposto no n.º 1 do art. 119.º do CPC (pedido de escusa por parte do juiz), “o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos no artigo seguinte e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.
II- O princípio do juiz natural só pode ser afastado em situações-limite, quando outros princípios ou regras, porventura de maior ou igual dignidade, como seja o da imparcialidade e isenção de juiz, o ponham em causa.

III- Não constitui fundamento de escusa, o facto de o titular dos autos frequentar o ginásio propriedade da sociedade comercial que é parte na acção e recorrer aos serviços de consulta de nutricionismo ali prestados.

Votação:DECISÃO SUMÁRIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Pedido de escusa (art. 119.º, n.º 1, do CPC)

DECISÃO


1. O Senhor Juiz de Direito, Dr. P ………………, a exercer funções no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé (secção administrativa), veio, ao abrigo do disposto no artigo 119.º, n.ºs 1 e 2, primeira parte e n.º 3 segunda parte do CPC, pedir que lhe seja concedida dispensa de intervir no presente recurso de contra-ordenação que a sociedade P………………………………, Lda, interpôs da coima de EUR 5.000,00 e custas administrativas (EUR 102,00) que o Município de ..... lhe aplicou pela prática da infracção p.p. no artigo 4.º, n.º 5 e alínea d) do n.º 1 do artigo 98.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro.

2. A justificar a pretensão deduzida o Senhor Juiz alega, em síntese, que é cliente associado daquela sociedade unipessoal, com a denominação comercial “G………………”, sediada em ..... e que se dedica à actividade desportiva “com equipamentos para tonificação muscular e cardiovascular”, frequentando duas vezes por semana esse ginásio e que recorre, desde Março de 2022, aos serviços de consulta de nutricionismo ali prestados. Afirma ainda “não conhecer nem manter qualquer relação de amizade ou de inimizade com a gerência ou com o sócio da sociedade unipessoal”.

O pedido vem incorporado no recurso de contra-ordenação n.º 204/22.5 BELLE

3. Apreciando:

3.1. Aos juízes na sua missão de julgar é exigido estatutariamente, como garantia do seu exercício, que o façam com o dever de independência e imparcialidade, nos artigos 4.º e 7.º do EMJ, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30-7, sucessivamente alterado e republicado pela Lei n.º 67/2019, de 27 de Agosto.

3.2. Julgar com independência é fazê-lo sem sujeição a pressões, venham elas de onde vierem, deixando fluir o juízo-valorativo com sujeição apenas à lei, à consciência e às decisões dos tribunais superiores. E ser imparcial é posicionar-se numa posição acima e além das partes, dizendo o direito aplicável na justa composição de interesses cuja resolução lhe é pedida.

3.3. Pode dizer-se, de um modo geral, que a causa de recusa do juiz, ou pedido de escusa do juiz, há-de reportar-se a um de dois fundamentos: uma especial relação do juiz com algum dos sujeitos processuais, ou algum especial contacto com o objecto da sua decisão (cfr. Alberto do Reis, Comentário, vol. I, p. 439 e ss.).

3.4. Esses especiais contactos e/ou relação(ões) deverão ser de molde a criarem uma predisposição favorável ou desfavorável no julgamento e deverão ser aferidos tendo em conta o juízo que um cidadão médio, representativo da comunidade, possa, fundadamente, fazer sobre a imparcialidade e independência do juiz.

3.5. Como já repetidamente afirmámos, a imparcialidade é um atributo fundamental dos juízes e da função judicial que visa garantir o direito de todos os cidadãos a um julgamento justo e equitativo. Recai sobre os julgadores o dever de adoptar uma conduta pessoal, social e profissional que, aos olhos de uma pessoa razoável, bem informada e de boa fé, seja entendida como íntegra, leal e correcta.

3.6. É “a confiança pública nos juízes (que) garante o respeito pelas suas decisões e o prestígio e boa imagem da Administração da Justiça e do próprio Estado de direito democrático. Essa percepção social da incorruptibilidade, probidade e honestidade dos juízes não pode ser minimamente beliscada por qualquer atitude do juiz que a ponha em causa” , estando constantemente, sujeito a escrutínio público, ao juiz exige-se que evite “comportamentos que ponham em causa a confiança nas suas qualidades para administrar a Justiça, tendo sempre presente que o seu exemplo pessoal quotidiano é relevante…” (Compromisso Ético dos Juízes Portugueses - Princípios para a Qualidade e Responsabilidade, documento aprovado no oitavo congresso dos juízes portugueses, editado pelo ASJP).

«No incidente de escusa de juiz não relevam as meras impressões individuais, ainda que fundadas em situações ou incidentes que tenham ocorrido entre o peticionante da escusa e um interveniente ou sujeito processual, num processo ou fora dele, desde que não sejam de molde a fazer perigar, objectivamente, por forma séria e grave, a confiança pública na administração da justiça e, particularmente, a imparcialidade do tribunal. De outro modo, poder-se-ia estar a dar caução, com o pedido de escusa, a situações que podiam relevar de motivos mesquinhos ou de formas hábeis para um qualquer juiz se libertar de um qualquer processo por razões de complexidade, de incomodidade ou de maior perturbação da sua sensibilidade. (2) – O motivo de escusa apresentado tem de ser sério e grave, objectivamente considerado, isto é, do ponto de vista do cidadão médio, que olha a justiça como uma instituição que tem de merecer confiança. (3) – A regra do juiz natural ou legal, com assento na Constituição -art.32.º, n.º9-, só em casos excepcionais pode ser derrogada, e isso para dar satisfação adequada a outros princípios constitucionais, como o da imparcialidade, contido no n.º1 do mesmo normativo. Mas, para isso, é preciso que essa imparcialidade esteja realmente mesmo em causa, em termos de um risco sério e grave, encarado da forma sobredita.» (cfr. ac. do STJ de 14.06.2006, proc. n.º 1286/06-5).

3.7. A escusa do juiz tem, portanto, como um único objectivo ou finalidade, a de garantir a imparcialidade do juiz, a qual se presume. E só em situações limite, por motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, conforme é exigência legal, deve levar o mesmo a ser escusado de intervir num processo.

4. Vejamos o presente caso.

4.1 No caso dos autos temos por seguro que neste incidente não se discute a imparcialidade subjectiva do juiz escusante, nem se põe em causa que, se porventura vier a julgar esta acção, o fará seguramente de modo independente e imparcial.

4.2 Na verdade, o que aqui somos chamados a aferir é apurar se os motivos de dispensa apresentados pelo Senhor Juiz do TAF de Loulé são de molde a fazer perigar objectivamente, por forma séria e grave, a confiança que o cidadão médio deposita na administração da justiça e, particularmente, a imparcialidade do Tribunal.

4.3 A assim não se entender, “poder-se-ia estar a dar caução, com o pedido de escusa, a situações que podiam relevar de motivos mesquinhos ou de formas hábeis para um qualquer juiz se libertar de um qualquer processo por razões de complexidade, de incomodidade ou de maior perturbação da sua sensibilidade” (cfr. acórdão do STJ, de 14-6-2006, Processo nº 1286/06-5).

4.4 O Senhor Juiz escusante invoca que o facto de ser cliente associado da sociedade comercial em causa nestes autos de recurso de contra-ordenação, conjugado com a proximidade geográfica entre o local onde vive e trabalha – Loulé – e o local onde o ginásio está sedeado - ..... -, é susceptível de por em causa a sua imparcialidade na apreciação e decisão dos presentes autos.

Mas não se compreende porquê.

4.5 Avaliados os elementos invocados, julga-se não existirem razões para colocar minimamente em causa a imparcialidade do Senhor Juiz, não se vislumbrando motivos para admitir que a sua relação de cliente do “G………. .....”, sem qualquer relacionamento pessoal com a gerência da sociedade - como ele próprio o afirma -, tenha repercussões na sua intervenção nestes autos.

4.6 Nem sob a perspectiva objectiva se considera que a situação narrada possa, perante a comunidade em geral - a de L………… e, até a de ..... -, seja susceptível de colocar em causa a isenção e imparcialidade do Senhor Juiz escusante. Ou seja, não se alcança como, na perspectiva do cidadão comum, a mera frequência do dito ginásio e o recurso aos serviços de consulta de nutricionismo ali prestados, sem que haja qualquer relação de amizade ou de inimizade com o sócio gerente ou a gerência, possa vir a ser encarada, com desconfiança. Aos olhos das comunidades onde vive e trabalha e naquela onde está sediado o ginásio que frequenta, não se antevê que possam ser suscitadas fundadas suspeitas sobre a sua isenção e imparcialidade; não existem razões para que o mesmo vá decidir os presentes autos por motivos que não sejam estritamente de ordem legal.

4.7 O eventual melindre que a situação lhe possa causar decorre do ónus da profissão que abraçou. E por força das inevitáveis relações que decorrem da vida em sociedade muitas outras situações equiparáveis são expectáveis, sem que dessa realidade possa decorrer uma facilitação da concessão das escusas de juiz, o que a breve trecho significaria uma efectiva postergação do princípio do juiz natural, isso sim inadmissível à luz da Constituição e da Lei.

4.8 Em suma o alegado fundamento da escusa do Senhor Juiz requerente não tem a virtualidade, de acordo com o nosso entendimento, de constituir “motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.

5. Decidindo:

Pelo exposto, indefere-se o pedido de escusa apresentado, devendo, por conseguinte, manter-se o Senhor Juiz de Direito, Dr. P…………………, como o titular do processo em causa.

Sem tributação.

Notifique.

O Juiz Presidente do TCA Sul

PEDRO MARCHÃO MARQUES