Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:561/19.0BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:12/10/2019
Relator:PEDRO NUNO FIGUEIREDO
Descritores:PRINCÍPIO DA CONCORRÊNCIA; COMPARABILIDADE DAS PROPOSTAS;
PARÂMETRO BASE; PROPOSTA VARIANTE.
Sumário:I. No âmbito da contratação pública, a observância do princípio da concorrência implica, designadamente, a necessidade de assegurar a comparabilidade das propostas, que para o efeito devem responder aos mesmos requisitos definidos no caderno de encargos.
II. Caso a entidade adjudicante estabeleça um parâmetro base, com a estipulação de um patamar mínimo de gigabytes de tráfego, na atribuição de pacotes de dados móveis, não apresenta uma proposta variante a concorrente que propõe a atribuição de pacotes com limites superiores àquele valor mínimo.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul


I. RELATÓRIO

M........ – S........, SA., instaurou ação administrativa de contencioso pré-contratual, tramitada sob a forma de processo urgente, contra SPMS - Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, E.P.E., indicando como contrainteressadas N……., SA., e V……… – C……., SA., na qual peticionou a declaração de invalidade da proposta apresentada pela V.........., a anulação da decisão de adjudicação da proposta e a adjudicação do contrato à autora.

Alega, em síntese, que a proposta da V.......... apresenta atributo que viola aspetos da execução do contrato não submetidos à concorrência, impossibilitando a sua avaliação, viola os princípios da concorrência e da comparabilidade das propostas, o que constitui motivo para a sua exclusão.

Citadas, apresentaram contestação a entidade demandada e a V.........., tendo esta ainda pedido a condenação da autora como litigante de má fé.

Por decisão de 08/07/2019, o TAC de Lisboa julgou a ação improcedente e absolveu a autora do pedido de condenação como litigante de má-fé.

Inconformada, a autora interpôs recurso desta decisão, terminando as alegações com a formulação das conclusões que de seguida se transcrevem:
“A. O Tribunal a quo efectuou erros na aplicação do Direito aos factos;
B. Tendo realizado errada subsunção dos mesmos;
C. Porque considerou o Tribunal a quo que a proposta variante da CI V.......... é legal, por se encontrar no âmbito da discricionariedade da Ré;
D. Quando tal discricionariedade inexistia, porquanto nem o Programa, nem o Caderno de Encargos admitiam propostas variantes;
E. O Tribunal considerou erradamente que a questão se limitava ao cumprimento mínimo do parâmetro base;
F. Descurando que era o facto de a proposta ser variante e não permitir a comparabilidade das propostas o que foi fundamentalmente alegado para efeitos de impugnação.”

A contrainteressada V.......... apresentou contra-alegações, terminando as mesmas com a formulação das conclusões que de seguida se transcrevem:
“1. A sentença recorrida merece ser mantida, sendo que a M.......... nenhum argumento traz que possa levar à sua alteração.
2. Não constitui fundamento de exclusão da proposta da V.......... o facto de esta, dentro dos parâmetros fixados pela Entidade Adjudicante, ter oferecido mais do que as suas concorrentes, pelo mesmo valor, obtendo assim melhor pontuação de acordo com as regras fixadas no procedimento e o respectivo critério de adjudicação.
3. Muito menos se deve considerar como proposta variante aquela que se diferencia das outras, e não do Caderno de Encargos, pelo facto de ser mais competitiva e economicamente mais vantajosa.
4. A Entidade Adjudicante pedia um pacote com um mínimo de 30 GB de dados, a V.......... ofereceu mais do que o pedido, variando o volume consoante o tipo de equipamento e plafond mensal estabelecido, como era permitido pelas regras do procedimento e assim o pedia a Entidade Adjudicante.
5. Pelo que não se encontra qualquer motivo para a revogação da sentença recorrida e, muito menos, para a decisão de adjudicação impugnada.”

A entidade demandada igualmente apresentou contra-alegações, concluindo “que o ato impugnado ao ter admitido e adjudicado a proposta da Contrainteressada, ao invés de exclui-la, não padece de qualquer ilegalidade, sendo antes perfeitamente válido. De tal modo que o pedido de anulação do ato de adjudicação se revela manifestamente infundado, tendo andado bem a sentença recorrida ao julgá-lo improcedente.”

A Exma. Sra. Procuradora-Geral-Adjunta neste Tribunal pronunciou-se no sentido de inexistir violação de aspetos da execução do contrato não submetidos à concorrência e da deliberação impugnada não padecer dos vícios imputados pela autora, não violando nenhum dos princípios da contratação pública invocados, e da proposta da 2.ª contrainteressada ter observado as regras procedimentais e legais, devendo improceder o recurso.
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Perante as conclusões das alegações do recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre aferir se a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento ao considerar legal a proposta da contrainteressada V...........

Dispensados os vistos legais, atenta a natureza urgente do processo, cumpre apreciar e decidir.

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II. FUNDAMENTOS
II.1 DECISÃO DE FACTO
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
A) Através do anúncio de procedimento nº 10092/2018, publicado no Diário da República nº 228, II série, de 27/11/2018, foi publicitado o Concurso Público para “Aquisição de Serviço Móvel Terrestre para o Instituto Nacional de Emergência Médica, I.P.”, documento que dou aqui por integralmente reproduzido.
B) Foi elaborado o Programa do Concurso e o respetivo Caderno de Encargos, que dou aqui por integralmente reproduzidos.
C) Apresentaram proposta ao concurso identificado em A) supra, a Demandante, a 1ª e a 2ª Contrainteressadas, propostas que dou aqui por reproduzidas.
D) Após ter analisado e avaliado as propostas, em 29/01/2019, o Júri do procedimento elaborou o relatório preliminar, no qual propôs a adjudicação à 2ªCI., documento que dou aqui por integralmente reproduzido.
E) O relatório preliminar foi notificado a todos os concorrentes, para efeitos de audiência prévia escrita, tendo a Demandante emitido pronúncia, na qual requereu a exclusão das Contrainteressadas, pronúncia que dou aqui por reproduzida.
F) Em 12/02/2019, o Júri deliberou alterar o teor e as conclusões do relatório preliminar e procedeu à elaboração do relatório final I, no qual propôs a exclusão da proposta da 1ªCI. e manteve a proposta de adjudicação à 2ªCI., documento que dou aqui por integralmente reproduzido.
G) Por deliberação do Conselho de Administração da ED., de 14/03/2019, com fundamento na informação nº 201…/DCBST, de 13/03/2019, foi aprovado o proposto no ponto VII da informação, documento que dou aqui por integralmente reproduzido.
H) O INEM, IP, carece de um serviço móvel terrestre para o cumprir a sua missão e atribuições.
I) O INEM, IP, tem vindo a celebrar contratos sucessivos, com a Demandante, de prestação de serviços de comunicações móveis terrestres.
J) Em 18/04/2019, o INEM, IP, celebrou com a Demandante um contrato de aquisição de serviço móvel terrestre, com fundamento no artigo 24º, nº 1, alínea c), do Código dos Contratos Públicos, por ausência de recursos próprios, com a duração de 91 dias.

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II.2 APRECIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Conforme supra enunciado, a questão a decidir cinge-se a saber se a sentença incorreu em erro de julgamento, ao considerar legal a proposta da contrainteressada V.......... .

Invoca a autora/recorrente que, no âmbito do procedimento concursal em causa, inexistia discricionariedade, pois nem o programa, nem o caderno de Encargos admitiam propostas variantes. Assim, ao contrário do ponderado pelo Tribunal a quo, a questão não se limitava ao cumprimento mínimo do parâmetro base, por se tratar de uma proposta variante, que não permitia a comparabilidade das propostas.
Aqui se funda, pois, o invocado erro de julgamento.

Para a recorrida V.........., na sua proposta limitou-se a oferecer mais do que as suas concorrentes, pelo mesmo valor, dentro dos parâmetros fixados pela entidade adjudicante, não constituindo proposta variante a que se diferencia das outras e não do caderno de encargos.
A recorrida / entidade demandada igualmente subscreve este entendimento.

Está em causa o Concurso Público para “Aquisição de Serviço Móvel Terrestre para o Instituto Nacional de Emergência Médica, I.P.”, lançado pela SPMS - Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, E.P.E., e publicitado através do anúncio de procedimento n.º 10092/2018, publicado no DR n.º 228, II série, de 27/11/2018.

Consta do respetivo caderno de encargos, Anexo II, o seguinte:
“1. Os contratos a celebrar implicam a atribuição de equipamentos com os seguintes plafonds associados:
a) Equipamento do tipo A com plafond de 5/mês
b) Equipamento do tipo A com plafond de 10/mês
c) Equipamento do tipo B com plafond de 25,00€/mês
d) Equipamento do tipo C com plafond de 50,00€/mês
e) Equipamento do tipo D com plafond de 10€/mês
2. Os contratos a celebrar podem compreender os seguintes serviços: (…)
2.3 Atribuição de pacotes de dados de acordo com o seguinte: (…)
f) Pacote tipo 1 de tráfego mínimo de 30 GB de tráfego (…)
5. A qualquer equipamento, independentemente do tipo ou plafond atribuído pode ser associado um pacote de dados (tipo 1).”

No Anexo III do programa de concurso prevê-se que “[o] preço mensal das referências (CM20170…1) é o definido no caderno de encargos, devendo os concorrentes propor número de Megabytes para cada pacote identificado no caderno de encargos.”

A recorrente contesta um dos pontos da proposta da contrainteressada V.........., em que esta apresenta plafonds distintos consoante as tipologias de consumo, € 5 mês, € 10 mês, € 25 mês, e € 50 mês, sempre superiores ao patamar mínimo de 30 GB de tráfego.

Por ver aqui uma proposta variante, que não permite a sua comparação com as demais propostas, concluindo que esta afetação do princípio da comparabilidade das propostas deve determinar a exclusão daquela, de acordo com os artigos 70.º, n.º 2, al. f), e 146.º, n.º 2, al. o), do CCP.
É manifesto que não lhe assiste razão. Vejamos porquê.

A invocada necessidade de assegurar a comparabilidade das propostas configura-se como um subprincípio do mais lato princípio da concorrência, desde logo enunciado no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, que aprovou o Código dos Contratos Públicos (CCP), como um dos parâmetros que dominam as tramitações procedimentais pré-contratuais e cuja observância deve ser assegurada ao longo da fase de avaliação das propostas, assim como durante as diligências que a preparam ou que se lhe seguem.

Como tal, no artigo 1.º-A do CCP, erigem-se, nomeadamente, os princípios da concorrência, da transparência e da igualdade de tratamento como princípios gerais decorrentes da Constituição, dos Tratados da União Europeia e do Código do Procedimento Administrativo, que se impõe respeitar na formação e na execução dos contratos públicos (n.º 1).

Mais ali se prevendo que as entidades adjudicantes devem adotar as medidas adequadas para evitar qualquer distorção da concorrência e garantir a igualdade de tratamento dos operadores económicos (n.º 3).

O princípio da concorrência assume-se, pois, como a verdadeira trave-mestra da contratação pública, implicando que o procedimento concorrencial se realize “pública ou abertamente no mercado, dirigindo-se à concorrência aí existente, para que o maior e melhor número de pessoas ou empresas se interessem pela celebração do contrato em causa e, para tanto, concorram ou licitem umas contra as outras, oferecendo as contrapartidas necessárias para superar as que presumidamente os seus opositores serão capazes de oferecer” (Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Almedina, Concursos e outros Procedimentos de Contratação Pública, 2011, págs. 185/186).

O que não se logra fazer “sem possibilidade de confronto entre as candidaturas ou entre as propostas (entre si e com o processo patenteado), isto é, sem possibilidade de fazer funcionar a concorrência nos termos em que esta foi suscitada fica prejudicada a própria finalidade ou função do concurso.” E para assegurar uma concorrência real e efetiva é necessário “que todos os concorrentes respondam aos mesmos quesitos e requisitos do concurso (ou a um núcleo básico dele) de modo a possibilitar a plena comparação das propostas, a possibilidade de confrontá-las enquanto propostas contratuais a quesitos idênticos, para saber, objetiva e imparcialmente, a final, qual o melhor concorrente ou a melhor proposta que o mercado forneceu” (Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira, Concursos e outros procedimentos de adjudicação administrativa – das fontes às garantias, 1998, pág.103).

No caso vertente, já se assinalou que no caderno de encargos se faz expressa referência:
- à atribuição de pacotes de dados com tráfego mínimo de 30 GB;
- a qualquer equipamento, independentemente do tipo ou plafond atribuído pode ser associado um pacote de dados.

A proposta da recorrida V.......... apresentou plafonds distintos de dados móveis consoante as tipologias de consumo, € 5 mês, € 10 mês, € 25 mês, e € 50 mês, mas sempre superiores ao patamar mínimo de 30 GB de tráfego, tal como se exigia no caderno de encargos do procedimento.

Afigura-se claro que não estamos perante uma proposta variante, em que o concorrente apresenta uma alternativa, uma variante, isto é, “uma condição de execução do contrato diferente daquela que se encontra inscrita no caderno de encargos como “condição base” ou “standard” (…), que levará à sua exclusão, de acordo com o n.º 7 do artigo 59.º, e o artigo 146.º, n.º 2, alínea f), do CCP, quando não sejam admitidas pelo programa do concurso (Pedro Gonçalves, Direito dos Contratos Públicos, vol. 1, 2018, págs. 821/822).

A entidade adjudicante estipulou um patamar mínimo de dados móveis, que configura um aspeto da execução do contrato submetido à concorrência pelo caderno de encargos. Trata-se de um parâmetro base, conforme previsto no artigo 42.º, n.os 3 e 4, do CCP, que fixa um limite mínimo a que as propostas se encontram vinculadas.

Por outro lado, é absolutamente evidente que não se exige no caderno de encargos que a quantidade de dados móveis do pacote a atribuir seja igual nos diferentes plafonds, como já na apreciação liminar das propostas se assinalou.
Inexiste, pois, qualquer afetação da possibilidade de avaliação e comparação das propostas.

Em suma, o presente recurso improcede.
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III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso interposto, confirmando a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 10 de dezembro de 2019.

(Pedro Nuno Figueiredo)


(Cristina dos Santos)


(Sofia David)