Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:60/17.5BCLSB
Secção:2.º Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:01/17/2019
Relator:BENJAMIM BARBOSA
Descritores:TRIBUNAL ARBITRAL
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário:1. É aplicável à resposta ao pedido de pronúncia arbitral, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, al. c), do RJAT, o disposto no artigo 83.º, n.º 1, al. c), do CPTA, que determina que as excepções deduzidas na contestação devem ser especificadas separadamente.
2. As excepções, em rigor, não são factos: são questões, sendo aqueles a forma jurídico-processual de as exprimir.
3. As excepções distinguem-se da defesa por impugnação, que não comporta apenas a impugnação nua e crua dos factos, negando a sua existência. A defesa por impugnação comporta, também, a refutação dos efeitos jurídicos que a contraparte dos mesmos pretende extrair.
4. Os documentos servem para prova dos factos alegados e não para suprir a descrição desses factos.
5. As questões a apreciar pelo tribunal abrangem todas as que são colocadas pelas partes.
6. A decisão arbitral incorreu numa nulidade processual, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, por falta de pronúncia quanto às questões suscitadas na resposta ao pedido de pronúncia arbitral, relativas à eficácia probatória das facturas e aos efeitos jurídicos da cláusula de reserva de propriedade dos contratos de compra e venda.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:60/17.5BCLSB

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ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL:

1 - Relatório

1.1. As partes e o objeto do recurso

A Autoridade Tributária e Aduaneira, inconformado com a decisão do Tribunal Arbitral, proferida no Processo n° 624/2016-T-CAAD, que julgou procedente o pedido apresentado por S……. – Sociedade de Importação de Veículos Automóveis, S.A.., que anulou 400 liquidações de Imposto Único de Circulação e de Juros compensatórios referentes aos períodos de 2011 e 2012, no valor global de €36.396,49, dela veio interpor o presente recurso jurisdicional, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:

1.ª A presente impugnação visa reagir contra a decisão arbitral proferida a 2017-04-03 pelo Tribunal Arbitral Singular constituído no âmbito do processo n.º 624/2016-T que correu termos no CAAD;

2.ª A decisão proferida pelo referido Tribunal Arbitral Singular padece de nulidade pelo facto de não ter conhecido duas questões essenciais sobre as quais se deveria ter pronunciado [artigo 28.°/1-c) do RJAT];

3.ª Por via do pedido de pronúncia arbitral visou o Impugnado colocar em crise 400 atos de liquidação de IUC e de juros compensatórios referentes aos períodos de 2011 e 2012, no valor global de € 36.396,49;

4.ª A impugnante deduziu Resposta àquele pedido de pronúncia arbitral mediante a apresentação de articulado através do qual: (i) alegou que a tese da impugnada não tinha correspondência com a letra da lei; (ii) defendeu que o artigo 3.° do Código do IUC não contém qualquer presunção ilidível; (iii) colocou em causa o valor probatório dos documentos juntos pela Impugnada, suscitando a questão de todas as faturas referirem expressamente que a propriedade das viaturas ficava reservada à impugnada até pagamento integral do seu valor, sendo que nenhum documento atinente a tal pagamento havia sido subministrado; (iv) refutou as questões referentes à violação do direito de audição prévia, do direito de participação na decisão e falta de fundamentação, todas suscitadas pela Impugnada; (v) suscitou a inconstitucionalidade da interpretação feita pela Impugnada relativamente ao artigo 3.° do CIUC; (vi) pugnou pela sua não condenação ao pagamento de juros indemnizatórios e custas arbitrais;

5.ª Cada uma destas questões foi devidamente desenvolvida pela Impugnante ao longo do seu articulado e era perfeitamente identificável por parte de qualquer leitor;

6.ª O Tribunal Arbitral Singular entendeu que as questões a decidir se limitavam ao seguinte: alegação feita pelo Requerente relativa a liquidação maté rial dos atos de liquidação e ilegalidade dos atos de juros acessórios, face aos anos de 20011 e 2012, referente ao IUC sobre os 200 veículos supra referenciados na PI; A errada interpretação e aplicação das normas de incidência subjectiva do imposto único de circulação liquidado e cobrado, o que constitui, a questão central a decidir no presente processo; O valor jurídico do registo do veículo automóvel;

7.ª O Tribunal Arbitral Singular apreciou as questões por si elencadas, as quais correspondem, no essencial, as questões suscitadas pela própria Impugnada;

8.ª Contudo, não só o referido elenco de questões fixado pelo Tribunal Arbitral Singular omitiu por completo as questões suscitadas por banda da impugnante, [a saber: (i) a reserva de propriedade constante das faturas e (ii) inconstitucionalidades da interpretação feita pela Impugnada relativamente ao artigo 3.° ClUC], como, pior, o discurso fundamentador da decisão arbitral não lhes reservou uma só palavra;

9.ª As questões a decidir não eram exclusivamente as questões suscitadas pela Impugnada, mas, sim, também as questões suscitadas pela Impugnante, pois de outro modo de nada serve o contraditório corporizado na Resposta oportunamente apresentada;

10.ª Todavia, tudo se processou como se, pura e simplesmente, a Impugnante jamais tivesse suscitado a questão de estar expressamente consignada nas faturas a reserva da propriedade até efectivo pagamento do preço, questão aquela essencial, porquanto estava (e está) em clara oposição à tese da imediata transferência da propriedade propugnada pela Impugnada e era (e é) um facto impeditivo do facto alegado por esta última;

11.ª Por conseguinte, cabia ao Tribunal Arbitral Singular pronunciar-se, expressa e inequivocamente, sobre a suscitada questão da reserva de propriedade, porquanto se tratava de urna facto que contradizia a alegação da Impugnada e mantinha o facto gerador do imposto na esfera desta última;

12.ª Ao ignorar esta questão essencial o Tribunal Arbitral Singular não incorreu em qualquer erro de apreciação da prova, mas, sim, numa inequívoca omissão de pronúncia;

13.ª A questão da existência de uma reserva de propriedade (constante nas faturas) constitui uma verdadeira questão e não um mero argumento, pelo que jamais o Tribunal Arbitral Singular poderia deixar de emitir uma pronúncia, por mínima que fosse, até porque estribou a sua decisão precisamente nas faturas e na tese apresentada pela Impugnada;

14.ª Acresce que a questão da existência de uma reserva de propriedade (constante nas faturas) em momento algum ficou prejudicada, até porque nenhum argumento adicional foi levado aos autos após a sua oportuna suscitação na Resposta apresentada pela Impugnante que o refutasse;

15.ª O mesmo sucede relativamente a questão das inconstitucionalidades suscitadas pela Impugnante em torno da interpretação feita pelo Impugnado (e, por conseguinte, pelo próprio tribunal) em torno do artigo 3.° do CIUC, ou seja, saber se tal interpretação é conforme aos princípios da justiça tributaria, capacidade contributiva, igualdade, certeza e segurança jurídicas;

16.ª Nenhuma relação de dependência jurídica existe entre a interpretação da lei em torno do artigo 3.° do CIUC feita pelo Tribunal Arbitral Singular e as inconstitucionalidades suscitadas pela Impugnante que justificasse a omissão em que incorreu aquele areópago, conforme, alias doutamente, se decidiu no acórdão proferido a 2015-04-23 pela 2.ª Secção do 2.° Juízo do Tribunal Central Administrativo Sul no âmbito do processo n.º 08224/14;

17.ª A decisão arbitral não padece de uma "mera" fundamentação lacónica ou deficiente, antes configura uma "decisão surpresa";

18.ª Acresce que, ao não cumprir um dos requisitos essenciais inerentes a uma decisão (i.e., a de convencer os seus destinatários) o Tribunal Arbitral Singular coartou irremediável e incompreensivelmente um dos poucos mecanismos de controlo que assistem à Impugnante: o recurso para o Tribunal Constitucional [artigo 70.°/1-b) da Lei 28/82, de 15 de novembro];

19.ª Motivos pelos quais não deve ser mantida na ordem jurídica a decisão arbitral ora colocada em crise, devendo antes ser aquela declarada nula.


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A recorrida contra-alegou, concluindo nestes termos:

1.ª A presente impugnação não pode ser conhecida pelo TCA Sul, por não se verificarem os respectivos pressupostos essenciais de admissibilidade, desde logo por incompatibilidade entre o pedido (anulação por alegada vicio de omissão do Tribunal a quo para pronúncia sobre hipotéticas questões) e a causa de pedir (pronúncia expressa, pelo mesmo tribunal, sobre todas as questões que lhe foram colocadas pelas partes);

2.ª Ainda que assim não se entendesse, sempre terá de reconhecer-se que a impugnação ultrapassa totalmente o âmbito de aplicação do artigo 28.° do RJAT, apresentando-se como um verdadeiro recurso da decisão do tribunal a quo;

3.ª Acresce que admitir a presente impugnação implicaria a alteração substancial — alias radical, no caso concreto — da matéria de facto assente na decisão impugnada, designadamente a venda atestada por facturas que a própria AT, aqui Impugnante AT, não impugna — antes reconhece como idóneas, tanto que argumenta com a reserva de propriedade expressa nalgumas delas, aliás sem especificar quais;

4.ª Com efeito, admitir a presente Impugnação implicaria necessariamente a reapreciação e, em caso de procedência, a revogação do probatório da decisão impugnada, nomeadamente os seus FUNDAMENTOS DE FACTO, de resto assentes em prova documental - facturas juntas aos autos que atestam a propriedade de sujeitos passivos, distintos da Impugnada, dos veículos objecto das liquidações de IUC em causa;

5.ª Nas circunstâncias acima descritas e na medida em que configura um verdadeiro recurso, a ser conhecida a presente impugnação pelo Tribunal ad quem seria este a incorrer em incompetência material, por não caber nas competências deste Tribunal Central Administrativo conhecer de recursos das decisões arbitrais em matéria tributaria;

6.ª E acolher a posição da Impugnante importaria uma interpretação contra­legem da norma que prevê os casos de impugnação de decisões arbitrais - taxativamente enumerados no artigo 28.° do RJAT, em violação do disposto no mesmo normativo, invocada pela Impugnante;

7.ª No caso concreto, admitir a reapreciação da arbitragem implica uma interpretação do artigo 28.° do RJAT contrária aos mais elementares princípios constitucionais, nomeadamente o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito, do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva de direitos e garantias dos administrados em violação de princípios e normativos constitucionais (cfr. artigos 2.°, 20.° e 268.°, n.º 4 da CRP);

8.ª Em qualquer caso, sendo de apreciar e julgar a presente Impugnação, a mesma não pode em caso algum proceder, por não se ter por verificado a alegada omissão de pronúncia da decisão impugnada, muito menos sobre alegadas questões irrelevantes, visto que mesmo sobre estas, a decisão se pronunciou de forma expressa.


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O Exmo. Magistrado do Ministério Público (EMMP) junto deste Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do art. 146°. n°1 do CPTA, não se pronunciou.

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Colhidos os vistos legais vem o processo à conferência.

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1.2. - Questões a decidir

A questão essencial a dirimir é a seguinte:

· Apurar se a decisão impugnada padece de omissão de pronúncia


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2. Fundamentação

2.1. De facto

É a seguinte a matéria de facto relevante para a decisão da questão acima referidas:

a) Por decisão de árbitro singular, de 03-04-3017, proferida no processo n.º ° 624/2016-T-CAAD, foi julgado procedente o pedido de pronúncia arbitral apresentado por S……… – Sociedade de Importação de Veículos Automóveis, S.A., e anuladas 400 liquidações de Imposto Único de Circulação e de Juros compensatórios referentes aos períodos de 2011 e 2012, no valor global de €36.396,49;

b) Nessa decisão foram consideradas questões a decidir as seguintes:

· A alegação feita pela Requerente relativa a ilegalidade material dos atos de liquidação e a ilegalidade dos atos de juros acessórios, face aos anos de 2011 e 2012, referente ao IUC sobre os 200 veículos supra referenciados na PI;

· A errada interpretação e aplicação das normas de incidência subjetiva do imposto Único de circulação liquidado e cobrado, o que constitui, a questão central a decidir no presente processo

· O valor jurídico do registo dos veículos automóveis” (sic).

c) A tribunal arbitral exarou a fundamentação relativa à matéria de facto nestes termos:

Em matéria de facto, relevante para a decisão a proferir, dá o presente Tribunal por assente, face aos elementos existentes nos autos, os seguintes factos:

A Requerente apresentou elementos probatórios constantes dos documentos nºs 1, 2, 3, 4, 6, 10, 11 e 15, anexos à PI, que se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais” (sic).

d) Acrescentando:

e) Na resposta ao requerimento inicial de pronúncia arbitral da ora impugnada a impugnante referiu, além do mais, o seguinte:

“II.1.E Do valor probatório dos documentos juntos pela Requerente


133.º

Aqui chegados, e tendo em conta os argumentos supra expostos atinentes à presunção estabelecida no artigo 3.º do CIUC, bem como aos critérios da incidência subjetiva estabelecida no artigo 6.º do mesmo diploma legal recorta-se claramente que a Requerente é sujeito passivo de imposto relativamente aos veículos em causa.

134.º

Daí que todo o raciocínio propugnado pela Requerente se encontra eivado de erro, não sendo possível ilidir a presunção legal estabelecida.

135.º

Todavia, ainda que assim não se entenda – o que somente por mera hipótese académica se admite – e aceitando-se ser admissível a ilisão da presunção à luz da jurisprudência já entretanto firmada neste centro de arbitragem, importará ainda assim, apreciar os documentos juntos pela Requerente e o seu valor probatório com vista a tal ilisão.

136.º

Apreciação esta que consubstancia a análise de uma questão, questão essa de facto.

(…)


146.º

Para mais quando as faturas (cfr. Doc. 10 junto à p.i.) referem expressamente que a propriedade da viatura vendida fica reservada à Requerente até ao pagamento integral do respetivo valor:

«Ao abrigo das condições acordadas para o presente fornecimento a propriedade da viatura identificada nesta factura fica reservada para a S….. – Sociedade de Automóveis, S.A., nos termos do disposto no n.º 1 do art. 409 do Código Civil até ao pagamento integral do respectivo valor e juros vencidos sobre o mesmo ao B (…) Portugal S.A., ou até à matriculação da mesma.»


147.º

Por palavras mais simples: as faturas subministradas pela Requerente não demonstram, expressa e inequivocamente por si só (face aos dizeres nelas constantes), a suposta transferência da propriedade automóvel.

150.º

Em suma, a Requerente não logrou provar a pretensa transmissão dos veículos aqui em causa, como, aliás, enfatiza o Tribunal Arbitral Coletivo constituído no âmbito do processo n.º 63/2014-T (…)”

(…)

III DA INTERPRETAÇÃO DESCONFORME À CONSTITUIÇÃO


183.º

A acrescer a tudo quanto acima foi exposto, cabe ainda referir que a interpretação veiculada pela Requerente se mostra contrária à lei fundamental.

184.º

O entendimento propugnado pela Requerente com vista a afastar a incidência subjectiva e tributação do IUC não tem acolhimento legal e viola os princípios constitucionais da legalidade e justiça tributária, da capacidade contributiva, da igualdade, da certeza e da segurança jurídicas.

185.º

Desde logo, o afastamento da incidência subjetiva na tributação em sede de IUC proposto pela Requerente contraria o princípio da legalidade e da tipicidade estatuído no artigo 8.º da LGT e no artigo 103.º da CRP, uma vez que tal entendimento não se escora na lei.

186.º

Em nenhuma circunstância o legislador tributário ficcionou o afastamento da tributação em caso de registo, descurando o facto gerador consubstanciado na matrícula.

187.º

Isto é, em momento algum o legislador concebeu na lei a posição que a Requerente advoga.

188.º

De acordo com as normas citadas, a incidência está sujeita ao princípio da legalidade tributária.

189.º

Logo, não tendo o legislador tributário expressamente consagrado na lei o afastamento da incidência subjetiva de tributação em sede de IUC nos casos em que a Requerente aponta, é inequívoco que tal entendimento viola frontalmente o princípio da legalidade tributária consignado no 103.º da Constituição e no artigo 8.º da LGT.

190.º

Mas mais: tal entendimento colide ainda com o princípio da capacidade contributiva estatuído no artigo 104.º da Constituição e no artigo 4.º da LGT.

191.º

Sobre a capacidade contributiva tem vindo o Tribunal Constitucional a considerar que o princípio da capacidade contributiva (taxable capacity, também frequentemente designada por capacidade de pagar – ability to pay – ou capacidade económica – wirtschaftliche Leistungsfähigkeit) como “critério básico da nossa ‘Constituição fiscal’ – concretizando o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério, a capacidade contributiva é o critério unitário da tributação.

192.º

Assim, o princípio da capacidade contributiva constitui pressuposto e medida dos impostos, constituindo a idoneidade económica para suportar o ónus do tributo, ou seja, exige que o tipo legal de imposto contenha referência só a elementos económico financeiros.

193.º

Ora, o entendimento sufragado pela Requerente ao tentar afastar a incidência subjectiva do IUC, afastando concomitantemente o pagamento do IUC, colide frontalmente com o princípio da capacidade contributiva.

194.º

Por maioria de razão e porque intrinsecamente associado com o princípio da capacidade contributiva, tal entendimento viola o princípio da igualdade tributária, vertido no artigo 13.º da Constituição.

195.º

Por fim, é indubitável que o entendimento sufragado pela Requerente colide com o princípio da certeza e da segurança jurídicas”.

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2.2. De Direito

2.2.1. Como é sabido, o poder de cognição do tribunal de recurso limita-se às questões suscitadas nas alegações do recorrente, com a delimitação que resulta da sua eventual restrição nas conclusões daquelas, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que ao tribunal ad quem se imponha apreciar.

No caso vertente a recorrente refere, nas suas conclusões, que são duas as questões que o tribunal arbitral não apreciou: (i) a reserva de propriedade constante das faturas e (ii) inconstitucionalidades da interpretação feita pela Impugnada relativamente ao artigo 3.° do CIUC.


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2.2.2. Nos termos do artigo 29.º, n.º 1, al. c), do RJAT, à elaboração da resposta no âmbito do pedido de pronúncia arbitral é aplicável o disposto no artigo 83.º, n.º 1, al. c), do CPTA, que determina que as excepções deduzidas na contestação devem ser especificadas separadamente.

Olhando para a resposta ao pedido de pronúncia arbitral constata-se que a impugnante não deduziu separadamente qualquer excepção como defesa a tal pedido.

A defesa por excepção consubstancia-se na alegação de novos factos que conduzem à dissolução da relação processual e que dão lugar à absolvição da instância (excepções dilatórias), e ou na alegação de factos novos que extinguem o efeito jurídico dos factos alegados pela contraparte (excepções peremptórias). Mas enquanto a lei faz uma enumeração (ainda que exemplificativa), que abrange quase todas as excepções dilatórias identificadas pela doutrina, outro tanto se não passa com as excepções peremptórias. Na verdade, ao lado das duas excepções (peremptórias) nominadas, constantes do artigo 580.° do CPC, são numerosas as excepções inominadas que correspondem ao perfil dogmático geral traçado no nº 3 do artigo 576.º do CPC.

As excepções, em rigor, não são factos: são questões, sendo aqueles a forma jurídico-processual de as exprimir.

As excepções distinguem-se, por isso, da defesa por impugnação, que não comporta apenas a impugnação nua e crua dos factos, negando a sua existência. A defesa por impugnação comporta, também, a refutação dos efeitos jurídicos que a contraparte dos mesmos pretende extrair.

Em que se distingue, portanto, a excepção, como defesa indirecta, da defesa directa ou impugnação? Na impugnação põe-se em causa a relação material. Na excepção, tanto se pode colocar em causa a instância como a relação material. Quando é esta que se coloca em crise não se nega que a mesma exista ou tivesse existido: apenas se afirma que existe um obstáculo de fundo ou vício da mesma que impede a procedência do pedido formulado.

Portanto, a defesa por impugnação traduz-se na negação da relação material ou substantiva invocada na petição, enquanto a defesa por excepção se manifesta na dedução de excepções dilatórias, através da invocação de um vício formal que impede o conhecimento de mérito, ou peremptórias, que consistem na invocação de uma circunstância que inviabiliza a pretensão do autor sobre o fundo da causa.

Apesar desse erro técnico resultante da falta de dedução especificada e separada das excepções, será que a impugnante mesmo assim deduziu alguma excepção que consubstancie uma questão à qual o tribunal arbitral não deu resposta?

Vejamos.

No que concerne à reserva de propriedade constante das faturas, refere a impugnante que aludiu a esta questão nos artigos 133.º a 152.º da Resposta (cfr. artigo 6.º da petição impugnatória).

A impugnante alegou que nestes artigos colocou uma questão de facto, como expressamente referiu no artigo 136.º da resposta [cfr., supra, 2.1.e)]. Mais concretamente, refutou a eficácia dos documentos apresentados pela impugnada, no sentido de que ao contrário do alegado por esta, a propriedade dos veículos não era de terceiros mas sua (dela, impugnada).

A questão que a impugnante colocou é também referida no artigo 146.º da resposta, que textualmente diz o seguinte:

Para mais quando as faturas (cfr. Doc. 10 junto à p.i.) referem expressamente que a propriedade da viatura vendida fica reservada à Requerente até ao pagamento integral do respetivo valor: (…)

Ora, no que se refere à vertente “questão de facto” o tribunal arbitral aparentemente respondeu com a consignação da “matéria de facto” constante de 2.1.c) supra, apoiando-se, embora indevidamente, em documentos oferecidos pela requerente, ora impugnada.

É que os documentos servem para prova dos factos alegados e não para suprir a descrição desses factos. Por exemplo, uma factura pode servir para provar um contrato de compra e venda. Mas se unicamente se dá por reproduzido o documento apenas se pode considerar provado o que dele consta e não o contrato de compra e venda, que aliás e em bom rigor, não passa de uma conclusão jurídica a extrair pelo tribunal a partir da prova das declarações emitidas por vendedor e comprador, em que A declara vender pelo preço X o bem Y e B declara comprar…

O mesmo se passa com uma escritura de compra e venda cuja mera reprodução apenas tem, em rigor, a virtualidade de dar como assente as declarações exaradas pelos intervenientes.

Portanto, ao limitar-se a dar como provados os documentos a decisão arbitral padece de uma deficiência técnica que no limite pode redundar numa nulidade por falta de fundamentação em matéria de facto, que por não ter sido alegada não nos compete apreciar, mas que em qualquer caso evidencia uma nulidade por omissão de pronúncia, porque se a impugnante afirmou que o documentos não provavam os invocados contratos de compra e venda dos veículos então competia ao tribunal arbitral infirmar tal proposição. O que manifestamente não fez.

No entanto, é evidente que a questão colocada pela impugnante vai além da mera questão de facto, como singelamente a qualificou na resposta ao pedido de pronúncia arbitral.

Na verdade, a questão é de facto no sentido de que foi alegada como circunstância que obstaria a dar-se como provado que foram celebrados verdadeiros contratos de compra e venda em relação aos veículos; mas vai além disso, porque consubstancia uma questão de direito relativamente aos efeitos que derivam da celebração de um contrato de compra e venda com reserva de propriedade.

É essa a questão a que a impugnante alude também nos artigos 37.º, 39.º, 119.º da resposta.

Ora, em relação a essa questão de direito, ou seja, em relação à questão de se saber se uma cláusula de reserva de propriedade impede ou não a transferência de propriedade, o tribunal arbitral nada disse.

Consequentemente, incorreu em omissão de pronúncia [artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC], por duas ordens de razões: não se pronunciando sobre a eficácia probatória – no sentido já explicitado – dos documentos junto com a petição inicial e omitindo qualquer pronúncia sobre o eventual efeito impeditivo de transferência de propriedade de cláusula de reserva da mesma.

A verificação deste vício torna inútil a apreciação da suscitada omissão de pronúncia em relação à questão constitucional.


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2.2.3. Por fim e propositadamente, irão apreciar-se agora as excepções ao conhecimento da impugnação, suscitadas pela impugnada.

Isto porque a fundamentação acima exarada dá resposta às duas questões que esta coloca: inadmissibilidade da impugnação, “por incompatibilidade entre o pedido (anulação por alegada vicio de omissão do Tribunal a quo para pronúncia sobre hipotéticas questões) e a causa de pedir (pronúncia expressa, pelo mesmo tribunal, sobre todas as questões que lhe foram colocadas pelas partes)”.

Como resulta do exposto, a vinculação do tribunal ao conhecimento das questões não se limita às questões colocadas pelo autor, abrange também as questões suscitadas pelo réu na sua defesa. Ora, é patente que em relação à questão acima tratada o tribunal arbitral omitiu a necessária pronúncia, na dupla vertente já referida.

Por outro lado carece de fundamento a afirmação de que a impugnação se configura como um verdadeiro recurso da decisão do tribunal a quo, dado que é notório que objecto da impugnação visa a apreciação de vícios processuais e não de eventuais erros de julgamento sobre o fundo da causa que tenham sido praticados pelo tribunal arbitral.

No que concerne ao risco de alteração da “matéria de facto” assente na decisão impugnada, como a que releva para a solução da causa é, numa perspectiva jurídica, manifestamente inexistente, não há qualquer perigo de vir a ser alterada, pois não se corre o risco de alterar aquilo que não existe.

Sendo certo que a anulação de uma decisão em via de recurso implica a reconstrução total, a posteriori, dessa decisão, e obviamente, um novo juízo sobre a matéria de facto. É a consequência lógica da erradicação da decisão anulada do mundo jurídico.

Não há por isso qualquer problema de competência na apreciação da impugnação, nem se vislumbra como possa ser violado o artigo 28.º do RJAT, sendo que o princípio da confiança não pode ser interpretada de forma tão lata que impeça a reapreciação por um tribunal superior de questões que conduzem à nulidade ou anulação da sentença do tribunal a quo.

Consequentemente, inexiste qualquer violação do disposto nos artigos 2.°, 20.° e 268.°, n.° 4 da CRP.


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2.2.4 Em resumo, constatando-se a ocorrência da primeira nulidade assacada à decisão do tribunal arbitral, invocada pela impugnante, outro caminho não resta que não seja dar-lhe razão, declarando a nulidade da decisão arbitral sub judice.

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2.2.5. Sumário
De todo o exposto extraem-se as seguintes conclusões:

7. É aplicável à resposta ao pedido de pronúncia arbitral, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, al. c), do RJAT, o disposto no artigo 83.º, n.º 1, al. c), do CPTA, que determina que as excepções deduzidas na contestação devem ser especificadas separadamente.

8. As excepções, em rigor, não são factos: são questões, sendo aqueles a forma jurídico-processual de as exprimir.

9. As excepções distinguem-se da defesa por impugnação, que não comporta apenas a impugnação nua e crua dos factos, negando a sua existência. A defesa por impugnação comporta, também, a refutação dos efeitos jurídicos que a contraparte dos mesmos pretende extrair.

10. Os documentos servem para prova dos factos alegados e não para suprir a descrição desses factos.

11. As questões a apreciar pelo tribunal abrangem todas as que são colocadas pelas partes.

12. A decisão arbitral incorreu numa nulidade processual, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, por falta de pronúncia quanto às questões suscitadas na resposta ao pedido de pronúncia arbitral, relativas à eficácia probatória das facturas e aos efeitos jurídicos da cláusula de reserva de propriedade dos contratos de compra e venda.


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3 - Dispositivo

Em face de todo o exposto acordam em conceder provimento à impugnação e, em consequência, declarar a nulidade da decisão arbitral.

Custas pela recorrida.

D.n.

Lisboa, 2019-01-17

(Benjamim Barbosa, relator)

(Anabela Russo)

(Ana Pinhol)

[1] Cfr. A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual t., p. 304

[2] Cfr. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, op. cit., p.. 290.

[3] Que a jurisprudência apenas considera ser relevante para efeitos de dispensar o autor do ónus de responder às excepções, quando o processo admita a réplica.