Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:611/12.1BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:02/25/2021
Relator:SUSANA BARRETO
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
ERRO NA FORMA DO PROCESSO
Sumário:O erro na forma do processo, nulidade decorrente do uso de um meio processual inadequado à pretensão de tutela jurídica formulada em juízo, afere-se pelo pedido e não pela causa de pedir.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:


I - Relatório

M... Gestão de Activos - Sociedade Gestora de Fundos de Investimento, S.A, não se conformando com a sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a excepção de erro na forma de processo no âmbito da impugnação judicial por si deduzida na sequência do indeferimento do Recurso Hierárquico interposto contra o indeferimento da reclamação graciosa versando sobre liquidação de IRC do ano de 2002, no montante de € 3 266 123,77.

Nas alegações de recurso apresentadas, a Recorrente formula as seguintes conclusões:

a. Ao apreciar imediatamente o pedido, finda a fase dos articulados, não observando a fase das Alegações de Direito a que alude o artigo 120° do Código de Procedimento e de Processo Tributário, o Tribunal a quo impediu que a Recorrente exercesse o seu direito ao contraditório quanto à junção do processo administrativo aos autos;

b. A fase das Alegações de Direito é o momento processual em que as partes podem suscitar vícios e argumentos supervenientes, pelo que a intenção da sua não observância, por parte do tribunal, no caso, supõe-se que ao abrigo do disposto no artigo 113.° do Código de Procedimento e de Processo Tributário, deve ser antecedida da audição das partes, por forma a evitar que as mesmas deixem de poder invocar argumentos supervenientes ou defender-se de exceções suscitadas pela parte contrária, como ocorreu no caso em apreço;

c. A falta de notificação para a apresentação das Alegações de Direito constitui, nos termos e para os efeitos do artigo 120° do Código de Procedimento e de Processo Tributário, uma nulidade processual, que se invoca para todos os efeitos legais;

d. Não obstante a nulidade processual verificada, subsidiariamente cumpre invocar os argumentos adicionais que, na ótica do Recorrente, conduzem à ilegalidade da decisão a quo e que permitem ao Tribunal ad quem substituir a decisão recorrida por outra, com teor distinto, que dê provimento à pretensão da Recorrente;

e. Da análise da documentação junta aos autos verifica-se que, ao longo do procedimento, e sem exceção, a Recorrente utilizou os meios processuais e de defesa indicados como adequados nas notificações que lhe foram efetuadas pela Administração Tributária;

f. A liquidação número 2005 85... aqui contestada referia, expressamente que, alternativamente, a entidade notificada poderia “reclamar ou impugnar nos termos e prazos estabelecidos nos artigos 128° do CIRC e 70° e 102° do CPPT, sendo que a sociedade incorporada pela Recorrente contestou a legalidade da liquidação de imposto notificada e respetiva demonstração de compensação através de Reclamação Graciosa;

g. Na decisão da Reclamação Graciosa, a Administração Tributária indicou que o meio processual adequado para contestar a mesma seria a Impugnação Judicial ou o Recurso Hierárquico, tendo a Recorrente recorrido hierarquicamente da referida decisão;

h. Posteriormente, a Administração Tributária indicou, através do Oficio pelo qual foi notificada a decisão de indeferimento do Recurso Hierárquico apresentado pela Recorrente, que o meio de tutela judicial adequado para reagir contra a mesma seria a Impugnação Judicial, prevista nos artigos 99° e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário, posição que foi acolhida pela Recorrente;

i. Na presente ação a Recorrente teve em vista a anulação das decisões de indeferimento que recaíram sobre o Recurso Hierárquico e sobre a Reclamação Graciosa apresentados pela Recorrente contra a liquidação de IRC do exercício de 2002, como objeto imediato da ação, e, como objeto mediato da mesma, a anulação da liquidação de IRC do referido exercício e da demonstração de compensação, respetivamente, com os números 2005 85... e 2006 00..., e não a apreciação dos eventuais atos de compensação de dívidas levados a cabo pelo órgão de execução fiscal, de que, aliás, não foi nunca notificada;

j. A presente Impugnação Judicial - apresentada na sequência do indeferimento do Recurso Hierárquico apresentado contra a decisão da Reclamação Graciosa - mostra-se, portanto, o meio processualmente adequado para contestar a legalidade da liquidação de imposto e da respetiva demonstração de compensação;

k. A decisão que recaiu sobre o Recurso Hierárquico viola o artigo 267.° da Constituição da República Portuguesa e o artigo 60.°, n° 1, alínea b) da Lei Geral Tributária, ao não ter sido precedida da necessária audição da Recorrente, ao abrigo do princípio da participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito, emanação do princípio mais geral enunciado no artigo 8.° do Código do Procedimento Administrativo, por sua vez emanação do princípio constitucional previsto no número 5 do artigo 267.° da Constituição da República Portuguesa, na medida em que obstando à validação da pretensão final do contribuinte - a anulação da liquidação de IRC —, o qual nem sequer tem a hipótese de ver analisado o mérito da questão que, a mesma mais não consubstancia, in fine, do que um verdadeiro indeferimento do pedido apresentado;

l. Ainda que se entendesse que a decisão em apreço não estaria abrangida pelo disposto no artigo 60.° da Lei Geral Tributária, sempre teria a Administração Tributária que ter ouvido previamente a Recorrente nos termos do artigo 45.° do Código de Procedimento e de Processo Tributário, o qual, com a epígrafe de “Contraditório”, assegura, sem qualquer limitação ou condicionalismo, que o procedimento tributário siga o princípio do contraditório, devendo o contribuinte ser ouvido na formação da decisão;

m. O facto de a Administração Tributária não ter dado à Recorrente a possibilidade de participar no procedimento teve como consequência imediata a não inclusão, na fundamentação do ato emanado, da análise dos argumentos que seriam apresentados naquela sede e, ainda, a consagração das razões da sua eventual rejeição, pelo que a decisão de indeferimento do Recurso Hierárquico por si apresentado está igualmente ferida de ausência de fundamentação;

n. A presente Impugnação Judicial teve em vista sindicar a (i)legalidade da liquidação de IRC de 2002 e da consequente demonstração de compensação, atos que se mostram estar em desconformidade e em divergência com a realidade factual, por não ter sido atendido o pagamento efetuado pela Recorrente em 11 de Maio de 2005 e, nessa medida, ter sido apurado um valor de imposto a pagar que, de facto, não se encontrava em dívida, situação que configura um erro nos pressupostos de facto da liquidação, reconduzido ao vício de violação de lei, suscetível de gerar a anulação do ato, nos termos do artigo 99.°, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

o. Ao não ter sido refletido o pagamento efetuado pela Recorrente em 11 de Maio de 2005, a liquidação de IRC de 2002 e da respetiva demonstração de compensação padecem do vício de violação de lei, nos termos do artigo 99°, alínea a) do Código de Procedimento e de Processo Tributário, por errónea qualificação dos factos tributários subjacentes à questão decidenda;

p. Ao contrário da conclusão retirada pela Fazenda Pública na sua Contestação e da posição assumida pelo Tribunal a quo na decisão recorrida, os procedimentos e diligências promovidos pelo Serviço de Finanças de Lisboa - 10 não regularizam a situação tributária da Recorrente relativa à liquidação número 2005 85... e respetiva demonstração de compensação número 2006 00..., sendo para o efeito necessária a respetiva anulação, peticionada na presente Impugnação;

q. Nos termos dos artigos 524.°, numero 1 e 693.°-B do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi artigo 2.°, alínea e) do Código de Procedimento e de Processo Tributário, não tendo a Recorrente sido notificada para a apresentação das alegações de direito a que alude o artigo 120.° do Código de Procedimento e de Processo Tributário, correspondente ao momento de “encerramento da discussão” da causa, deverá ser admitida, nesta sede, a junção da documentação referida nos pontos 99. e 100. do presente Recurso;

r. A sentença recorrida padece, assim, do vício de violação de lei, por inobservância do disposto nos artigos 60.°, número 1, alínea b) da Lei Geral Tributária, 45.°, 99.°, alínea a) e 120.° do Código de Procedimento e de Processo Tributário, 8.° do Código do Procedimento Administrativo, 103.° e 261°, número 5 da Constituição da República Portuguesa, devendo a mesma ser anulada e, em consequência, ser substituída por outra que determine a anulação da decisão que recaiu sobre o Recurso Hierárquico apresentado pela Recorrente e, em consequência, a anulação da liquidação de IRC do referido exercício e da demonstração de compensação, respetivamente, com os números 2005 85... e 2006 00....

Nestes termos, e nos mais de Direito que Vossas Excelências suprirão, deverá o presente Recurso ser dado como procedente, por provado, e em consequência ser revogada a decisão recorrida, por ilegal, e substituída por outra que determine a anulação da decisão que recaiu sobre o Recurso Hierárquico apresentado pela Recorrente e, em consequência, a anulação da liquidação de IRC referente ao exercício de 2002 e da demonstração de compensação, respetivamente, com os números 2005 85... e 2006 00..., tudo com as legais consequências.

A Recorrida, devidamente notificada para o efeito, não apresentou contra-alegações.


A Excelentíssima Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II – Fundamentação

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, as quais são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, que fixam o objeto do recurso, sendo as de saber: (i) se incorre em erro de julgamento a sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que declarou a nulidade por erro insuprível na forma do processo e absolveu a Fazenda Pública da instância; (ii) depois, e em caso de resposta afirmativa, saber se a sentença recorrida se encontra afetada por nulidade processual, consequente da falta de notificação às partes para apresentarem alegações escritas; (iii) por fim, e revogando-se a sentença recorrida, se os autos fornecem os necessários elementos para em substituição, este Tribunal conhecer dos fundamentos da impugnação.


II.1- Dos Factos

O Tribunal recorrido considerou como provada a seguinte factualidade:

a) A sociedade "A... Investimentos Fundos Imobiliários, S.A.", entretanto, incorporada por fusão na impugnante, entregou em 29/05/2003 a declaração, Modelo 22, referente ao exercício de 2002, onde efetuou a autoliquidação do imposto por si devido, refletindo o direito a um reembolso no montante de € 104.224,85 (cfr. fls. 19 a 22 do procedimento de reclamação graciosa apenso);

b) Em agosto de 2004 a sociedade "A... Investimento Fundos Imobiliários SA" foi notificada da nota de liquidação n° 2004 25... de 02/06/2004, com o cheque de reembolso n° 234..., no valor de € 3.349.745,33, referente a IRC de 2002, sendo € 3.121.442,74 de imposto e € 124.077,73 de juros indemnizatórios (cfr. fls. 31 dos presentes autos e artigos 7 e 8° da petição inicial);

c) Em 11/05/2005, a impugnante, que incorporou por fusão a identificada "A... Investimentos Fundos Imobiliários, SA" procedeu à restituição do reembolso referido na alínea anterior, procedendo à entrega na Tesouraria do Serviço de Finanças de Lisboa 10, do montante de € 3.245.520,80, resultante da soma de € 3.121.442,74 - correspondente ao imposto pago por conta dos fundos de investimento - e, de € 124.077,74 - de juros indemnizatórios, acompanhado de um requerimento no qual é expressamente referido que o pagamento respeita a "reembolso de valor indevido" (cfr. artigos 12° (2a parte) e 13° da petição inicial; fls. 34, 35 e 26 dos presentes autos e fls. 85 do procedimento de reclamação graciosa);

d) Em 13/07/2005 a Administração Tributária emite relativamente ao ano de 2002 a liquidação n° 2005 85... e respetiva demonstração de compensação n° 2006 00..., onde apura de estorno da liquidação de 2002 n° 2004 25..., o valor de € 3.349.743,33, de acerto o valor de € € 104.224,85 e de juros compensatórios o montante de € 112.392,81, resultando um saldo a pagar de € 3.357.913,28, dos quais € 3.245.520,47 respeitam a imposto e € 112.392,81 a juros compensatórios (cfr. 38 a 40 dos presentes autos e artigo 14° da petição inicial);

e) O montante de € 3.245.520,80, referido na alínea c) supra, foi aplicado pela Administração Tributária no pagamento de diversas quantias em cobrança em processos de execução fiscal por dívidas da responsabilidade da impugnante e da "A... Investimentos Fundos Imobiliários, SA" (cfr. fls. 88 a 96 e 97 a 98 do procedimento de reclamação graciosa);

f) Em 01/08/2006 a impugnante deduziu reclamação graciosa da liquidação n° 2005 85... e respetiva demonstração de compensação, referente ao exercício de 2002, visando a sua anulação por o imposto se encontrar pago (fls. 2 e segs do procedimento de reclamação graciosa apenso);

g) Em 08/10/2010, por despacho da Diretora de Finanças Adjunto, foi a reclamação graciosa deferida parcialmente, com a fundamentação constante da informação final, parecer e projeto de decisão, que aqui se dão por integralmente reproduzidos (cfr. fls. 110 a 114, 115, 116 e 117 a 121 do procedimento de reclamação graciosa apenso);

h) O parecer exarado no projeto de decisão de deferimento parcial da reclamação graciosa tem o seguinte teor «Concordo como teor da presente informação, pelo que sou de parecer que a presente reclamação graciosa seja deferida parcialmente. Parte do objeto deste processo são as compensações efetuadas nos Processos de Execução Fiscal elencadas nos § 66 e 67 da p.i.. Assim, não se enquadrando nos fins a que se destina o procedimento de reclamação graciosa (v. artº 68º do CPPT), concluiu-se que este meio não é o próprio para contestar tais compensações. (…). Quanto à liquidação de Juros Compensatórios, verifica-se que, tendo sido devolvida a quantia indevidamente reembolsada, no valor de € 3.245.520,48, em 11/05/2005, e em cumprimento do disposto no nº 5 do artº 35º da LGT, a contagem dos JC deve ser limitada até aquela data. Por conseguinte os JC devem ser fixados em € 91.789,51 (v. cálculos nos §3.8-3.11 desta informação).» (cfr. fls. 110 da reclamação graciosa);

i) Através dos ofícios n°s 089787, datado de 11/10/2010 e 101274 de 04/11/2010, registados, a impugnante foi notificada da decisão de deferimento parcial da reclamação graciosa (cfr. fls. 122 a 127 da reclamação graciosa);

j) Em 13/12/2010 a impugnante deduziu recurso hierárquico do indeferimento parcial da reclamação graciosa (cfr. fls. 4 e segs, do procedimento de recurso hierárquico);

k) Por despacho proferido em 14/02/2012 pela Subdirectora-Geral dos Impostos, o recurso hierárquico foi indeferido com os fundamentos constantes da informação n° 235/2012, que aqui se dá por integralmente reproduzida, tendo sido dispensada a audição prévia, nos termos do artigo 60°, n° 3 da LGT, por não terem sido invocados factos novos sobre os quais o contribuinte não se tenha pronunciado (cfr. procedimento de recurso hierárquico);

l) Através do ofício com a referência 018122, datado de 29/02/2012, registado, a impugnante foi notificada da decisão referida na alínea anterior (cfr. procedimento de recurso hierárquico);

m) Em 30/05/2012 a impugnante instaurou a presente impugnação (cfr. fls. 2 dos presentes autos);

n) Na sequência da apresentação da presente impugnação foi elaborada a informação datada de 21/11/2012, constando da conclusão «Deste modo, o Serviço de Finanças de Lisboa 10, irá proceder à imputação correta do valor do depósito de € 3.245.520,47, à anulação dos respetivos juros de mora e custas, proceder ao cancelamento da garantia bancária que se encontra no processo de execução fiscal número 325....» (cfr. processo administrativo apenso).


Quanto a factos não provados, na sentença exarou-se o seguinte:

Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa.
As demais asserções da douta petição constituem conclusões de facto e/ou direito.


E quanto à Motivação da Decisão de Facto, consigna-se:

Os factos provados assentam na análise crítica dos documentos e informações oficiais indicados relativamente a cada um dos factos e que não foram impugnados.


Por se entender relevante à decisão a proferir, na medida em que documentalmente demonstrada, ao abrigo do preceituado no artigo 662/1, do Código de Processo Civil (CPC) ex vi artigo 281º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), adita-se ao probatório os seguintes factos:
o) Da petição inicial constante de fls. 1 dos autos (doc. nº 000165204 registado em 30-05-2012 às 10:30:34) e que aqui se dá por integralmente reproduzida, transcreve-se:
«Imagem no original»

(…)

p) Da reclamação graciosa identificada na alínea f) supra, documento junto com a pi como doc. nº 6, que aqui se dá como integralmente reproduzido, transcreve-se:
«Imagem no original»

q) Do recurso hierárquico, a que se refere a alínea j) supra, documento junto com a i sob o nº 9 e que aqui se dá como integralmente reproduzido, transcreve-se:

(…)
«Imagem no original»

(…)



II.2 Do Direito

Alega a Recorrente que, findos os articulados, foi proferida sentença que julgou verificado o erro insuprível na forma do processo eleita pela Impugnante, ora Recorrente, declarou a nulidade do processo e absolveu a Fazenda Pública da instância, assim impedindo que a Impugnante, ora Recorrente, exercesse o seu direito ao contraditório quanto à junção do processo administrativo aos autos, sendo também certo que sempre usou os meios processuais e de defesa indicados como adequados nas notificações que lhe foram efetuadas pela Administração Tributária.

Defende ainda que sempre pretendeu e pretende, a anulação da decisão que recaiu sobre o Recurso Hierárquico apresentado pela Recorrente e, em consequência, a anulação da liquidação de IRC referente ao exercício de 2002 e da demonstração de compensação, respetivamente, com os números 2005 85... e 2006 00..., e não atacar os atos de compensação de dívidas fiscais efetuados e dos quais não foi, aliás, notificada.

Para julgar verificado o erro na forma do processo, diz a sentença recorrida:

Da leitura da petição inicial, e conforme referido, em síntese supra, resulta claro que a Impugnante pretende ver expurgado da ordem jurídica o acto administrativo de compensação das dívidas fiscais que se encontram a ser cobradas em sede de execuções fiscais, com o valor do depósito da quantia indevidamente recebida de € 3.245.520,48. Ataca ainda a decisão de indeferimento do recurso hierárquico invocando falta de fundamentação e preterição de formalidades legais.
Com efeito, a impugnante nenhuma ilegalidade assaca à liquidação, pois, apenas discorda da liquidação por o montante de imposto ter sido pago um ano antes, erro que a seu ver invalida a liquidação.
Ora, o acto de liquidação não se confunde com o acto de pagamento.
Conforme resulta dos autos, a 2ª liquidação de 2002, ou seja, a liquidação n° 2005 85... e respectiva demonstração de compensação repõe o valor indevidamente reembolsado à impugnante (de acordo com a declaração de rendimentos, modelo 22, do ano de 2002) e que por ela foi voluntariamente restituído à Administração Tributária.
Na verdade, a 1ª liquidação originou um reembolso superior ao devido.
Assim sendo, a posição assumida nos presentes autos pela impugnante só pode estar dirigida no sentido de fazer vingar a tese da ilegalidade dos actos de compensação, visto que o montante de imposto foi aplicado no pagamento de outras dívidas fiscais, pelo que, é manifesto ter a interessada incorrido no erro na forma de processo.
O processo de impugnação judicial, a que a impugnante recorreu nos termos dos artigos 99° e segs.. do C.P.P.T., apenas poderia reconduzir-se ao ataque da legalidade da liquidação, visando obter a sua anulação ou a declaração da sua nulidade ou inexistência (artigo 99.° do C.P.P.T.).
Face ao supra exposto, tendo sido deduzida impugnação judicial em vez de reclamação da decisão do órgão da execução fiscal, incorreu a impugnante em manifesto erro na forma de processo.


Assim, para apreciação da propriedade do meio processual escolhido pela Impugnante, a MMª Juíza a quo baseou-se em não virem imputados quaisquer vícios ou ilegalidades ao ato de liquidação, concluindo, depois, que o que a Impugnante pretende é a anulação dos atos de compensação de dívidas efetuados pela Administração Fiscal, pedido que se reconduz aos fundamentos do processo de reclamação do ato do órgão de execução fiscal, meio processual regulado nos artigos 276º e seguintes do CPPT, que é o meio próprio para reagir contra o ato de compensação de dívidas fiscais.

Ponderando, depois, a possibilidade de convolação da impugnação judicial em reclamação dos atos do órgão de execução fiscal, entendeu não ser a mesma possível por estar já excedido o prazo na data em que a petição de impugnação deu entrada em juízo.

Todavia, desde já anotamos que a Impugnante, ora Recorrente, peticiona também que a anulação do indeferimento parcial do recurso hierárquico e que elenca vícios do ato e do procedimento que a ele conduziu, nomeadamente a falta de audição prévia antes da tomada da decisão. Mais, na parte final da impugnação, diz ter escolhido o processo de impugnação, por ser a forma processual indicada pela Administração aquando da notificação do ato impugnado.

Ora, nos termos do artigo 37/4 CPPT, no caso de o tribunal vir a reconhecer como estando errado o meio de reação contra o ato notificado indicado na notificação, poderá o meio de reação adequado ser ainda exercido no prazo de 30 dias a contar do transito em julgado da decisão judicial.

Vejamos:

O erro na forma de processo ocorre sempre que a forma processual escolhida não corresponde à natureza ou valor da ação e constitui nulidade, de conhecimento oficioso: artigo 193º e 196º do Código de Processo Civil (nCPC).

O erro na forma de processo afere-se pelo pedido ou pretensão que o autor pretende obter do tribunal com o recurso à ação.

Entretanto, o pedido é o efeito jurídico que se pretende obter com a ação, ou seja, a finalidade, o resultado, a providência que se quer alcançar: artigo 581/3 do nCPC.

No caso em análise, o pedido formulado na petição inicial apresentada em juízo e que transcrevemos supra, formalmente é de anulação da decisão de indeferimento do Recurso Hierárquico interposto contra o indeferimento da reclamação graciosa que por sua vez versou sobre liquidação de IRC do ano de 2002.

Ora, é em função destes pedidos que temos que aferir se o meio processual utilizado é o adequado ao fim por ele visado, i. é, se o pedido formulado pelo autor não se ajusta à finalidade abstratamente figurada pela lei para essa forma processual ocorre o erro na forma do processo.

Relembremos que o pedido abstratamente formulado na petição inicial é de anulação de ato de indeferimento de recurso hierárquico interposto da decisão que aprecie reclamação graciosa, é típico do processo de impugnação judicial. Com efeito, nesta forma processual o pedido será de anulação, declaração de inexistência ou de nulidade de um ato de liquidação, ou de um ato administrativo que comporte a apreciação de um ato de liquidação, ou ainda de um ato de outro tipo, mas para o qual a lei utilize o termo impugnação para aludir ao meio processual a utilizar na respetiva reação contenciosa (1).

Nestes termos, a sentença recorrida que decidiu pela verificação do erro na forma do processo baseou-se nas causas de pedir invocadas, que considerou integrarem apenas fundamento de reclamação dos atos do órgão de execução fiscal, não se pode manter.

Na verdade, se se concluir que as causas de pedir invocadas não são adequadas ao pedido formulado poderá sim decidir-se no sentido da improcedência da ação e já não da verificação do erro na forma do processo.

Neste sentido, veja-se o Ac. STA, 2ª Secção, de 2014.05.28, Proc. nº 01086/13, disponível em www.dgsi.pt, e jurisprudência nele citada, jurisprudência com a qual concordamos, em que se decidiu:

(…)
É certo que, como temos vindo a dizer noutras ocasiões, a jurisprudência, designadamente a deste Supremo Tribunal, tem vindo a adotar uma posição de grande flexibilidade na interpretação do pedido quando, em face das concretas causas de pedir invocadas, se possa intuir – ainda que com recurso à figura do pedido implícito – qual a verdadeira pretensão de tutela jurídica. Mas isso não autoriza que, no método para aferir da verificação do erro na forma do processo, se substitua o pedido, enquanto elemento determinante para apurar a propriedade processual, pela causa de pedir. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo Página 6 de 11 http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/1db08870f2199f46... 16-06-2014.

Assim, para saber se ocorre ou não erro na forma do processo é preciso atentar no pedido que foi formulado, na concreta pretensão de tutela jurisdicional que o contribuinte visa obter; já saber se as causas de pedir aduzidas podem ou não suportar esse pedido é matéria que se situa no âmbito da procedência. Por isso, com o fundamento de que as causas de pedir invocadas não são adequadas ao pedido formulado poderá decidir-se no sentido da improcedência da ação (eventualmente, até do indeferimento liminar da petição inicial), mas não no sentido da verificação do erro na forma do processo. Parafraseando o acórdão desta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 28 de Março de 2012, proferido no processo com o n.º 1145/11 (Publicado no Apêndice ao Diário da República de 18 de Abril de 2013 (http://dre.pt/pdfgratisac/2012/32210.pdf), págs. 402 a 409, também disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/4ee18297540be732802579df0033cd10?OpenDocument.), a circunstância de as causas de pedir gizadas não constituírem, porventura, fundamentos válidos de impugnação judicial, não constitui motivo para dar por verificada uma nulidade processual por erro na forma de processo, mas, ao invés, motivo para a improcedência do pedido com base nessa causa de pedir.

Assim, em face do juízo a que se chegou, da não verificação do erro na forma do processo, em face do pedido formulado na petição de impugnação, os autos devem prosseguir a sua normal tramitação.

Apesar de não vir alegado, constata-se que a Impugnante, ora Recorrente, na parte final da petição arrola uma testemunha, cujo depoimento não foi ainda ouvido, nem dispensado, sendo certo que pretende juntar documento que entende relevante para a decisão da causa.

Como é consabido, finda a fase dos articulados, segue-se a fase de instrução e só após o encerramento desta é que as partes devem ser notificadas para alegações escritas, de facto e de direito.

Em consequência do exposto, considerando que não se verifica o erro insuprível na forma do processo, impõe-se concluir pela procedência do recurso, resultando assim prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas [artigo 608/2 CPC aplicável ex vi artigo 2.e) CPPT]. Os autos regressam à Iª Instância para prosseguirem para a fase de instrução, continuando, depois, a sua normal tramitação, se a tal nada mais obstar.
O processo foi iniciado no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra e posteriormente distribuído e remetido à Equipa Extraordinária de Juízes Tributários (EEJT). Com extinção das Equipas Extraordinárias de Juízes Tributários de Lisboa e Porto no dia 2016.01.31, os processos pendentes na equipa devem ser remetidos aos tribunais de origem.


Sumário/Conclusões:

O erro na forma do processo, nulidade decorrente do uso de um meio processual inadequado à pretensão de tutela jurídica formulada em juízo, afere-se pelo pedido e não pela causa de pedir.


III - Decisão

Termos em que, face ao exposto, acordam em conferência os juízes da 2ª Subsecção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e determinar a baixa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, para aí prosseguirem para a fase de instrução e ulteriores termos do processo, se a tal nada mais obstar.

Sem custas.

[Nos termos e para os efeitos do artigo 15º-A do DL nº10-A/2020, de 13 de março, o Relator atesta que os Juízes Adjuntos - Excelentíssimos Senhores Juízes Desembargadores Vital Lopes e Luísa Soares - têm voto de conformidade.]

Lisboa, 25 de fevereiro de 2021
Susana Barreto

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(1) SOUSA, Jorge Lopes de, CÓDIGO DE PROCEDIMENTO E DE PROCESSO TRIBUTÁRIO: Anotado e Comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, II volume.