Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:13364/16
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:10/06/2016
Relator:CONCEIÇÃO SILVESTRE
Descritores:COMPETÊNCIA TERRITORIAL
Sumário:I - O meio adequado de reacção contra as decisões que apreciem a competência territorial é a reclamação para o presidente do TCA respectivo, a apresentar no prazo de 10 dias (cfr. artigos 105º, n.º 4 do CPC e 29º, n.º 1 do CPTA).

II - Não é admissível a convolação do requerimento de interposição do recurso em reclamação para o presidente do TCA, se o mesmo foi apresentado decorrido que estava o prazo previsto no artigo 29º, n.º 1 do CPTA.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO ADMINISTRATIVA DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL:


RELATÓRIO

A……. - CARGA …………., LDA instaurou no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa acção administrativa especial contra o MUNICÍPIO DE LOURES, com vista a obter:
a) A declaração de nulidade:
- Do acto de delegação de poderes constante do Despacho n.º 070/PRES, de 22/11/2005, do Presidente da Câmara Municipal de Loures;
- Do acto de subdelegação de poderes constante do Despacho n.º 157/2011-VEF, de 25/02/2011 da Vereadora Emília Figueiredo;
- Do acto de delegação de poderes constante do Despacho n.º 56/2013-PRES, de 21/01/2013, do Presidente da Câmara Municipal de Loures;
b) A declaração de inexistência ou, subsidiariamente, a declaração de nulidade:
- Do acto de subdelegação de poderes constante do Despacho n.º 166/2011, de 3/03/2011, do Director de Departamento Júlio Ribeiro;
- Do acto de subdelegação de poderes constante do Despacho n.º 65/2013, de 22/01/2013, do Director de Departamento Júlio Ribeiro;
c) A condenação da entidade demandada na prática de todos os actos e operações materiais que se revelarem necessários à reconstituição da situação actual hipotética à data da execução da sentença anulatória.

Por decisão de 1/12/2015, o TAC de Lisboa declarou-se territorialmente incompetente para conhecer da presente acção e competente o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.

Inconformada, a autora interpôs recurso jurisdicional, formulando as seguintes conclusões:
“1.ª Está aqui em causa um processo respeitante à prática de actos administrativos das autarquias locais, o qual, por força do disposto no n.º 1 do artigo 20º do CPTA, deve ser intentado no tribunal da área da sede da entidade demandada (que, no caso, é o Tribunal a quo);
2.ª Neste contexto fáctico e normativo, mal andou o tribunal recorrido ao declarar-se territorialmente incompetente, pois a subsunção da presente acção administrativa especial ao disposto no n.º 1 do artigo 20º do CPTA inviabiliza a aplicação do disposto no artigo 16º do mesmo Código, que, assim, foi erradamente invocado pelo Tribunal a quo na fundamentação da sentença recorrida.”

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Ministério Público, notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA, emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.

Considerando que (i) a decisão que declara a incompetência territorial do tribunal para conhecer da presente acção não admite recurso jurisdicional, apenas sendo impugnável através de reclamação para o Presidente do TCA respectivo (cfr. artigo 105º n.º 4 do CPC) e que (ii) o requerimento de interposição de recurso não foi apresentado no prazo previsto no artigo 29º, n.º 1 do CPTA, não sendo, pois, possível proceder à sua convolação em reclamação para o Presidente do TCA, foi ordenada a notificação das partes para se pronunciarem, querendo, sobre essas questões.

A recorrente pronunciou-se defendendo que, à luz do princípio pro actione deve proceder-se à convolação do recurso em reclamação para o Presidente do TCAS.
Invoca, por outro lado, “a inconstitucionalidade do disposto no n.º 4 do artigo 105º do CPC, interpretado no sentido de que da decisão que aprecie a competência cabe reclamação para o presidente da Relação respectiva, e não recurso, o qual decide definitivamente a questão, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, na medida em que não existe nenhum bem, valor, direito ou interesse com dignidade constitucional que justifique o tratamento diferenciado dado às decisões que apreciem a competência do tribunal”; conclui, assim, que “deve ser afastada a aplicabilidade da norma vertida no referido n.º 4 do artigo 105º do CPC e, por essa via, admitir-se o recurso interposto”.
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Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência para julgamento.


FUNDAMENTAÇÃO

Matéria de facto

Mostram-se provados os seguintes factos com relevância para a decisão a proferir:
A) A recorrente instaurou no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa acção administrativa especial contra o Município de Loures, com vista a obter:
a) A declaração de nulidade:
- Do acto de delegação de poderes constante do Despacho n.º 070/PRES, de 22/11/2005, do Presidente da Câmara Municipal de Loures;
- Do acto de subdelegação de poderes constante do Despacho n.º 157/2011-VEF, de 25/02/2011 da Vereadora ……………………..;
- Do acto de delegação de poderes constante do Despacho n.º 56/2013-PRES, de 21/01/2013, do Presidente da Câmara Municipal de Loures;
b) A declaração de inexistência ou, subsidiariamente, a declaração de nulidade:
- Do acto de subdelegação de poderes constante do Despacho n.º 166/2011, de 3/03/2011, do Director de Departamento Júlio Ribeiro;
- Do acto de subdelegação de poderes constante do Despacho n.º 65/2013, de 22/01/2013, do Director de Departamento Júlio Ribeiro;
c) A condenação da entidade demandada na prática de todos os actos e operações materiais que se revelarem necessários à reconstituição da situação actual hipotética à data da execução da sentença anulatória.
B) Por decisão de 1/12/2015, o TAC de Lisboa declarou-se territorialmente incompetente para conhecer da presente acção e competente o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.
C) A Sentença referida em B) foi notificada à autora por carta de 2/12/2015.
D) A autor interpôs recurso jurisdicional por requerimento enviado ao TAC de Lisboa em 15/01/2016.

Do Direito

Vem o presente recurso interposto da decisão do TAC de Lisboa de 1/12/2015, que declarou o tribunal territorialmente incompetente para conhecer da presente acção e competente o TAF do Porto.
Coloca-se, antes de mais, a questão de saber se tal recurso é admissível.
Vejamos.
O artigo 105º do CPC - que se encontra inserido na Secção II do Capítulo V, do Título IV, do Livro I, relativa à incompetência relativa - prescreve no seu n.º 4 que “da decisão que aprecie a competência cabe reclamação, com efeito suspensivo, para o presidente da Relação respectiva, o qual decide definitivamente a questão”.
A redacção deste preceito não coloca quaisquer dúvidas interpretativas, sendo que do mesmo resulta de forma clara e inequívoca que o meio adequado de reacção contra uma decisão que aprecie a competência territorial do tribunal é a reclamação para o presidente da Relação respectiva, no caso do Tribunal Central Administrativo Sul (e não o recurso jurisdicional).
Dúvidas não há, também, de que a reclamação deve ser apresentada no prazo de 10 dias, nos termos do disposto no artigo 29º, n.º 1 do CPTA, o que, no caso, não sucedeu (cfr. alíneas), C) e D) do probatório).
E a recorrente aceita que assim é, referindo mesmo que as razões invocadas no despacho que ordenou a sua notificação para se pronunciar sobre a admissibilidade do recurso - isto é, de que da decisão do TAC de Lisboa cabe reclamação para o Presidente do TCAS a interpor no prazo de 10 dias, prazo este que não foi respeitado - são “literal e legalmente atendíveis”.
Contudo, entende que as mesmas “não se configuram as mais adequadas na resolução do caso concreto”, devendo antes, por aplicação do princípio pro actione, admitir-se a convolação do recurso interposto em reclamação para o Presidente do TCAS.
A questão que se coloca é, pois, a de saber se o prazo de 10 dias que a autora, ora recorrente, dispunha para reclamar da decisão do TAC de Lisboa (previsto no artigo 29º, n.º 1 do CPTA) deve ceder por aplicação do princípio pro actione ou in dubio pro habilitate instantiae consagrado no artigo 7º do CPTA.
Dispõe este preceito, sob a epígrafe “Promoção do acesso à justiça”, que “para efectivação do direito de acesso à justiça, as normas processuais devem ser interpretadas no sentido de promover a emissão de pronúncias sobre o mérito das pretensões formuladas”.
Significa isto que, “no âmbito da ponderação dos pressupostos processuais, os princípios antiformalista, "pro actione" e "in dubio pro favoritate instanciae" impõem uma interpretação que se apresente como a mais favorável ao acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva. Assim, suscitando-se quaisquer dúvidas interpretativas nesta área, deve optar-se por aquela que favoreça a acção e assim se apresente como a mais capaz de garantir a real tutela jurisdicional dos direitos invocados pelo autor” (cfr. Acórdão do STA de 30/04/2008, proc. n.º 0850/07).
Por outras palavras e continuando a citar a jurisprudência do STA, “o princípio pro actione é um corolário normativo ou uma concretização do princípio constitucional do acesso efectivo à justiça (administrativa), que aponta para uma interpretação e aplicação das normas processuais no sentido de favorecer o acesso ao tribunal ou de evitar as situações de denegação de justiça, designadamente por excesso de formalismo” (cfr. Acórdão de 29/01/2014, proc. n.º 01233/13).
Em anotação ao artigo 7º do CPTA, referem Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, que decorre do princípio pro actione “que, em caso de dúvida, os tribunais têm o dever de interpretar as normas processuais num sentido que favoreça a emissão de uma pronúncia sobre o mérito das pretensões formuladas” (in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª edição revista, 2010, pág. 64).
No caso dos autos, não se verifica qualquer circunstancialismo que imponha o recurso ao princípio pro actione.
Desde logo, as normas em causa - que impõem a apresentação de reclamação para o Presidente do TCAS da decisão de incompetência territorial, no prazo de 10 dias - não oferecem dúvidas interpretativas.
Por outro lado, não ocorreu qualquer circunstancialismo processual que fosse susceptível de gerar dúvida relevante, ou afectar de tal modo a posição processual da autora, que permita a conclusão de que não lhe era exigível comportamento diverso (isto é, a apresentação de reclamação para o Presidente do TCAS em vez do recurso jurisdicional interposto).
Ademais, não está de forma alguma posto em causa o acesso à justiça e a uma decisão de mérito, já que o processo não findou, apenas transita de tribunal, no caso para o TAF do Porto, onde correrá os seus termos normais até à prolação da decisão final.
Em suma, perante o quadro legal aplicável e tendo ainda em consideração todo o circunstancialismo processual que se verificou, concluímos não existirem razões que justifiquem ou imponham uma interpretação das regras sobre a convolação, designadamente as relativas aos prazos, em conformidade com o princípio pro actione.
Sustenta, por outro lado, a recorrente que “deve ser afastada a aplicabilidade da norma vertida no (…) n.º 4 do artigo 105º do CPC e, por essa via, admitir-se o recurso”, para o que invoca a inconstitucionalidade da mesma “interpretada no sentido de que da decisão que aprecie a competência cabe reclamação para o presidente da Relação respectiva, e não recurso, o qual decide definitivamente a questão, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, na medida em que não existe nenhum bem, valor, direito ou interesse com dignidade constitucional que justifique o tratamento diferenciado dado às decisões que apreciem a competência do tribunal”.
Carece, porém, de razão.
Importa começar por referir que, pese embora a recorrente invoque a violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade para concluir pela inconstitucionalidade da norma, o certo é que, atentas as razões invocadas, do que se trata é apenas da violação do primeiro.
Como é sabido, o princípio da igualdade só se mostra violado (com excepção dos casos expressamente proibidos de discriminação - cfr. artigo 13º da CRP) nas situações em que ocorram discriminações arbitrárias ou manifestamente injustificadas.
Neste sentido, referem J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira que “a proibição do arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo: nem aquilo que é fundamentalmente igual deve ser tratado arbitrariamente como desigual, nem aquilo que é essencialmente desigual deve ser arbitrariamente tratado como igual. Nesta perspectiva, o princípio da igualdade exige positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes”.
E acrescentam: “Porém, a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois a ele pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Só quando os limites externos da “discricionariedade legislativa” são violados, isto é, quando a medida legislativa não tem adequado suporte material, é que existe uma “infracção” do princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio” (in Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4.ª edição revista, pág. 339).
Ainda a este propósito, refere-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 231/94, de 9/03 que “(…) a essência da aplicação do princípio da igualdade encontra o seu ponto de apoio na determinação dos fundamentos fácticos e valorativos da diferenciação jurídica consagrada no ordenamento. O que significa que a prevalência da igualdade como valor supremo do ordenamento tem que ser caso a caso compaginada com a liberdade que assiste ao legislador de ponderar os diversos interesses em jogo e diferenciar o seu tratamento no caso de entender que tal se justifica. Pelo que se pode afirmar que dentro do princípio da igualdade cabem diferenças de tratamento, ainda que não a pura e simples diferença de tratamento, a diferença de tratamento pela pura diferença a que também se tem chamado "naked preferences" (cfr. SUNSTEIN, "Naked Preferences and the Constitution", in Columbia Law Review, Novembro de 1984, pág. 1689 e ss.)”.
No mesmo sentido se tem pronunciado o STA: "(...) o princípio da igualdade só se pode considerar violado quando se verifique uma diferenciação de tratamento irrazoável ou arbitrária, devendo entender-se que a discriminação é legítima sempre que a diferença de regime se baseia em dados objectivos e se reclama de distinções relevantes sob o ponto de vista dos princípios e valores constitucionais e seja adequado à sua realização" (cfr. acórdãos de 16/06/94, rec. n.º 31319, de 7/02/95, rec. n.º 33730, de 30/04/96, rec. n.º 36001, 7/11/96, rec. n.º 32156 e de 22/11/96, rec. n.º 35373).
Regressando ao caso concreto.
É verdade que a lei processual trata de modo diverso a questão da impugnação das decisões que apreciem a competência territorial, pois a forma de reacção contra as mesmas é a reclamação a interpor para o presidente da Relação respectiva (no caso o Presidente do TCAS) no prazo de 10 dias e não, como sucede com as demais decisões (recorríveis), o recurso jurisdicional a apresentar no prazo de 30 dias.
Contudo, daí não resulta qualquer violação do princípio da igualdade. É que, ao contrário do que a recorrente defende, as decisões que apreciam a competência territorial do tribunal não são semelhantes às demais decisões que a lei submete a recurso, em termos tais que postulem igual tratamento nessa sede.
A competência territorial dos tribunais mostra-se fixada pela lei processual (cfr. artigos 16º e ss. do CPTA).
Trata-se de uma matéria que não coloca questões jurídicas complexas, ou que convoque a aplicação de normas que careçam de uma laboriosa tarefa interpretativa.
Por outro lado, e na medida em que do que se trata é tão só de determinar o tribunal competente em razão do território, não é posto em causa o direito à tutela jurisdicional efectiva.
Ponderadas essas razões, cremos que se mostra justificada a solução encontrada pelo legislador ao atribuir aos presidentes das Relações competência para apreciar as reclamações das decisões de incompetência territorial, solução essa que se revela bem mais expedita e célere do que a de impor a sua impugnação através da interposição de recurso jurisdicional.
Vale isto por dizer que a diferença de regime de impugnação das decisões de competência territorial (por referência às demais decisões) instituída pelo artigo 105º, n.º 4 do CPC, não é arbitrária, antes mostra-se justificada dada a natureza dessas decisões e dos problemas que as mesmas colocam.
Improcede, assim, a alegada violação do princípio da igualdade.
Concluímos, em face do exposto, que (i) a decisão de incompetência territorial proferida pelo TAC de Lisboa em 1/12/2015 não admite recurso, sendo apenas impugnável através de reclamação para o Presidente deste Tribunal Central Administrativo Sul e que (ii) não é possível convolar o recurso em reclamação, pois o mesmo não foi apresentado no prazo previsto no artigo 29º, n.º 1 do CPTA.

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SUMÁRIO (artigo 663º, n.º 7 CPC):

I - O meio adequado de reacção contra as decisões que apreciem a competência territorial é a reclamação para o presidente do TCA respectivo, a apresentar no prazo de 10 dias (cfr. artigos 105º, n.º 4 do CPC e 29º, n.º 1 do CPTA).
II - Não é admissível a convolação do requerimento de interposição do recurso em reclamação para o presidente do TCA, se o mesmo foi apresentado decorrido que estava o prazo previsto no artigo 29º, n.º 1 do CPTA.


DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em não admitir o recurso interposto da decisão do TAC de Lisboa de 1/12/2015.
Custas pela recorrente.


Lisboa, 6 de Outubro de 2016


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(Conceição Silvestre)


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(Carlos Araújo)


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(Paulo Pereira Gouveia)