Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1865/17.2BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:06/06/2019
Relator:ANTÓNIO VASCONCELOS
Descritores:CONCURSO PÚBLICO.
RECUSA DE VISTO DO TRIBUNAL DE CONTAS.
IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Sumário:I – Face ao disposto no n.º 2 do artigo 45.º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto ( Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas), na sua actual redacção, a recusa de visto operada pelo Tribunal de Contas determina que os contratos celebrados com a contra-interessada nunca poderão produzir quaisquer efeitos decorrentes desses contratos ou quaisquer outros que adviessem do referido concurso público.

II – Com efeito, toda e qualquer análise do procedimento em questão quanto à validade ou não da adjudicação praticada e dos contratos celebrados visaria um resultado impossível – o fornecimento em execução dos contratos celebrados ou a adjudicação, celebração ou execução de contratos com a Autora dos presentes autos, consoante a decisão do Tribunal fosse julgar procedente ou improcedente a acção – o que determina a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277.º, al. e) do CPC.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO


Acordam, em Conferência , na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

D.... LDA., com sinais nos autos, inconformada com a sentença do TAC de Lisboa, de 22 de Maio de 2018, que declarou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, veio interpor para este TCAS o presente recurso jurisdicional e, em sede de alegações, formulou as seguintes conclusões (sintetizadas):

“ I – A questão suscitada ao Tribunal a quo nos autos prende-se com a anulação/declaração de nulidade do ato de adjudicação de 06/07/2017 de 3 lotes à aqui Recorrente (do lote 1 no valor de 285.250€, 00, do lote 2 no valor de 528.000€, e do lote 3 no valor de 203.750€), e da celebração de 3 contratos celebrados e de 3 notas de encomenda, todos de 31/07/2017 na sequencia de um procedimento administrativo de concurso público iniciado pelo Réu, que se encontram automaticamente suspensos ( art.º 103º-A do CPTA), desde a citação da Recorrente para os autos aqui em apreço (em 16/08/2017).

II – Na pendência da acção judicial e do incidente de levantamento do efeito suspensivo, o Tribunal de Contas (mediante o Acórdão de 30/11/2017) pôs em crise a conformidade legal do início de execução dos contratos, bem como a legalidade da despesa e, nessa medida, recusou o visto aos contratos celebrados, impedindo assim a sua eficácia.

III – Após o que o Recorrido Réu (apesar de afirmar à sociedade que os contratos não tiveram execução física nem material) notificou o aqui Recorrente da anulação das 3 notas de encomenda, em 07/12/2017, e posteriormente informou os autos da anulação da respetiva despesa, assim interferindo nos procedimentos administrativos de formação e execução dos contratos que se encontravam legalmente suspensos por força do art.º 103.º-A do CPTA desde 16/08/2017.

IV- Neste contexto, concluiu o Tribunal a quo que o interesse manifestado pela aqui Recorrente, na prossecução dos autos, “é alheio ao objeto da presente lide” (cfr. § 5º da pág 7 da sentença, com sublinhados e realces nossos), porquanto, por facto superveniente, “ (…) o procedimento já foi extinto (por decisão do Réu) e não pode nem juridicamente nem de facto, vir a ser retomado.” (cfr. primeiro § da pág 7 da sentença, com sublinhados e realces nossos), e “não persistindo o procedimento concursal no seio do qual se inscreveram os actos cuja validade se pretendia discutir, não é passível de ser alcançada a anulação daqueles” (cfr. § 3º da pág 7 da sentença, com sublinhados e realces nossos).
V- O fundamento da sentença para a declaração da extinção da instância reside na asserção de “que o procedimento concursal no qual se inscreveram o acto de adjudicação e os subsequentes (3) contratos impugnados nos presentes autos não se encontra a ser executado nem voltará a ser retomado”, porque:
i) “ em execução do Acórdão do Tribunal de Contas (…) foi “anulada” a despesa em que aquele se baseava bem como “anuladas” as notas de encomenda relativas aos fornecimentos subjacentes à execução daqueles três contratos”
ii) “Do ponto de vista financeiro, foram os contratos em causa já declarados nulos, conforme decisão do Tribunal de Contas”
(cfr. último§ da pág 6 da sentença, com sublinhados e realces nossos).

VI – Ora, o ato cuja ilegalidade foi suscitada pela Recorrida Autora (ato de adjudicação e consequentemente celebração dos 3 contratos, decorrentes do procedimento administrativo de formação de contratos aberto pelo Réu) situam-se a montante da verificação do requisito de eficácia dos mesmos, porém, até à sentença e ao contrário do que nela é proferido, não havia qualquer declaração de nulidade ou anulação dos contratos e/ou do ato de adjudicação, como não havia qualquer extinção do procedimento administrativo que lhes deu lugar, nem em sede judicial, nem por qualquer entidade administrativa.

VII- A recusa de visto do Tribunal de Contas, que é já um requisito de legalidade dos procedimentos de execução dos contratos a cargo do Recorrido Réu (já não objeto de processos urgentes), tem como única consequência impedir a eficácia dos 3 contratos (em 30/11/2017) que se encontravam já suspensos desde 16/08/2017 por força do art.º 103º-A do CPTA.
VIII – O visto prévio do Tribunal de Contas, quando necessário, insere-se no procedimento administrativo de formação dos contratos e é mera condição de eficácia do contrato (CFr. LOFTC e por toda a Doutrina Vd. Pedro Costa Gnçalves “Direito dos Contratos Públicos”, 2ª Edição, Vol I, Almedina, 2018): quando o Tribunal de Contas constate a existência de nulidades em contratos celebrados profere decisão de recusa de visto ( como sucedeu no caso em apreço), retirando assim eficácia (financeira ou jurídica) aos mesmos.

IX – Não existe (nem poderia existir, face à suspensão determinada pelo art.º 103º-A do CPTA), pois, qualquer ato ou facto superveniente (válido e legal) que tenha a virtualidade de declarar a nulidade ou proceder à anulação dos procedimentos de formação dos 3 contratos celebrados com a aqui Recorrente, cuja legalidade foi suscitada pela Recorrida Autora ao Tribunal a quo.

X – Se o Tribunal a quo pretendia retirar qualquer outro efeito decorrente da recusa de visto pelo Tribunal ade Contas (como fez), teria, com o devido respeito, de ter procedido à apreciação de mérito da causa e teria de situar o litigio em sede do procedimento de formação dos contratos, suspenso por força do art.º 103ºA do CPTA.

XI – Não o tendo feito, padece de erro e de vício a fundamentação da sentença do Tribunal a quo, ao sustentar a decisão de extinção da instância no facto de terem sido “os contratos em causa já declarados nulos, conforme decisão do Tribunal de Contas” (cfr. último § da pág 6 da sentença, com sublinhados e realces nossos).

XII – Inexistindo “declaração de nulidade” dos contratos, inexistindo anulação ou declaração de nulidade do ato de adjudicação e/ou do procedimento concursal, têm estes de manter-se válidos e incólumes na ordem jurídica e suspensos por força do art.º 103º A do CPTA (ainda que destituídos de eficácia), até que a entidade administrativa recorrida, ou judicialmente, seja declarada a sua nulidade ou anulação.

XIII – Assim sendo, as premissas tidas em consideração como fundamento da sentença sob recurso não permitem as conclusões que delas se retirou, ferindo-a de nulidade nos termos do 615º n.º1 alínea c) do CPC.

XIV – Sendo assim evidente que da mera falta de eficácia dos contratos suspensos (decorrente da recusa de visto), sem apreciação do mérito da causa, não pode extrair-se, nem a sua declaração de nulidade ou anulação, e muito menos a do ato de adjudicação, ou ainda (como se pretende na sentença recorrida) a extinção do procedimento concursal, que apenas podem decorrer ou de uma decisão judicial que conheça do mérito da causa, ou de decisão da entidade administrativa recorrida.

XV – Ainda que o Tribunal a quo, apreciando o mérito , declarasse os contratos nulos, restava o ato de adjudicação, precisamente aquele cuja legalidade (que, apesar a constatada nulidade dos contratos, permanece incólume na ordem jurídica) a Recorrida Autora quis sindicar, com a interposição da ação e com a suspensão automática daquele ato de adjudicação.

XVI – Sendo igualmente essa a pretensão que a Recorrente mantém, reiterando o seu interesse na manutenção da lide e na decisão de mérito que venha a recair sobre a legalidade do ato de adjudicação (que é válido até decisão em contrário e se mantém suspenso por imposição legal, desde 16/08/2018).

XVII – Essa apreciação da legalidade do ato de adjudicação (ou dos contratos) pelo tribunal a quo era, e é ainda, absolutamente fundamental para se aferir dos direitos da Recorrida Autora e da ora Recorrente, como para aferir ( ainda que noutra sede) da legalidade e constitucionalidade dos atos praticados pelo Réu até à citação e já na pendência da ação e do incidente de levantamento da suspensão dos mesmos.

XVIII – A sentença em apreço acaba por (pressupor e) pôr fim, sem apreciação de mérito e sem fundamento, não só aos contratos, como também ao ato de adjudicação (note-se, suspensos e sublinhe-se, cuja obediência competia ao Tribunal a quo apreciar e tutelar), e ainda ao próprio procedimento concursal, pelo que a sentença padece também de nulidade por omitir pronúncia sobre pedidos que lhe foram formulados e conhecer questões de que não podia tomar conhecimento ( Cfr. art.º 615.º n.º 1 alínea d)), desta forma, cerceando o direito de defesa contra os atos da Administração.

XIX – Padece ainda a sentença de violação de lei, por esquecer que a lei permite a sindicância, por meios graciosos, judiciais e tutelares de atos de “extinção” que o Réu praticou, como o que a sentença assume (embora sem fundamentar).

XX – Acresce que, não deixa a sentença, na sua fundamentação, de entrar em contradição com o reconhecimento do direito da Recorrente litigar contra o Réu, limitando os meios de que a Recorrente se pode socorrer para empreender aquele litígio (ainda que nouta sede).

XXI – Sendo certo que, ao nível do procedimento administrativo, nada permite a asserção de que o procedimento “ não pode, nem juridicamente nem de facto, vir a ser retomado”, atento o disposto no art. 163º nº 2 do CPA.

Por outro lado e sem prescindir,

XXII – Impõe-se corrigir, por de mero lapso de escrita se tratar, as datas constantes da sentença sob recurso pelas constantes das presentes alegações.

XXIII – Também não pode a Recorrente conformar-se com o facto de, na factualidade considerada pelo Tribunal a quo como relevante, não constar que aos contratos celebrados foi dado início de execução, mediante as notas de encomenda emitidas e notificadas pelo Réu À Recorrente (provadas por documentos juntos aos autos).

XXIV – Este facto é absolutamente essencial para determinação do objeto da suspensão automática decorrente do art.º 103º-A do CPTA, com todas as consequências legais, sendo fundamental que se corrija aquela factualidade, uma vez que os factos a que se referem os pontos vi) a ix) correspondem, apenas e tao só, ao mesmo facto: a anulação das notas de encomenda em 11/12/2017 (sem prejuízo dos esclarecimentos solicitados e da reclamação apresentada, em sede de procedimento administrativo, pela ora Recorrente).

XXV – Finalmente, impõe-se a correção do Relatório, concretamente, na parte final do último parágrafo da pág. 4 da sentença recorrida, em que se refere que a aqui Recorrente “Aduz, por fim que, quando muito poderia existir antes uma situação de impossibilidade superveniente … imputável ao Réu.”, atento o alegado no artigo 47 do requerimento da Contra-Interessada, aqui Recorrente, não correspondendo à afirmação por si proferida.”

O ora Recorrido Centro Hospitalar de Lisboa, EPE, a contra-alegou pugnando pela manutenção do decidido.

Sem vistos, vem o processo submetido à conferência para julgamento.

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II – DA FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

A matéria de facto pertinente é a constante da sentença recorrida, a qual se dá aqui por reproduzida, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 663º, nº 6 do Cód. Proc. Civil, ex vi artigos 1.º e 140.º do CPTA.

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III – DA FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Veio o presente recurso jurisdicional interposto da sentença do TAC de Lisboa, que declarou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.

Em causa está o concurso público internacional para aquisição de 23 equipamentos de anestesia para o Serviço de Anestesiologia – Unidades de Cuidados Pós- Anestésicos, do Centro Hospitalar de Lisboa Norte – Hospital de Santa Maria, dividido por 3 lotes distintos (cfr. Anexo I ao Programa de Procedimento e Anexo I ao Caderno de Encargos).
No Relatório Final, o Júri manteve a proposta de decisão do Relatório Preliminar e adjudicou as propostas da D…. aos 3 lotes.
Em 31 de Julho de 2017 foram outorgados os 3 contratos , um por cada lote do concurso entre o Centro Hospitalar de Lisboa Norte e a D…
Os referidos contratos foram, nos termos da lei, submetidos a fiscalização prévia do Tribunal de Contas.
Por decisão de 30 de Novembro de 2017, transitada em julgado, o Tribunal de Contas recusou o visto àqueles contratos.
Face à recusa do visto do Tribunal de Contas o Tribunal a quo julgou extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide.

Vejamos o que se nos oferece dizer.
Face ao disposto no n.º 2 do artigo 45.º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto ( Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas), na sua actual redacção, a recusa de visto operada pelo Tribunal de Contas supra referida determina que os contratos celebrados com a contra-interessada D…. nunca poderão produzir quaisquer efeitos decorrentes desses contratos ou quaisquer outros que adviessem do referido concurso público.
Com efeito, o fundamento para tal impossibilidade de produção de efeitos é transversal e não passível de ser circunscrito apenas se o contrato for celebrado com este ou com aquele adjudicatário.
Desta forma, toda e qualquer análise do procedimento em questão quanto à validade ou não da adjudicação praticada e dos contratos celebrados visaria um resultado impossível – o fornecimento em execução dos contratos celebrados ou a adjudicação, celebração ou execução de contratos com a Autora dos presentes autos, consoante a decisão do Tribunal fosse julgar procedente ou improcedente a acção.
Decorre dos termos do artigo 277.º, al. e) do CPC, que “a instância extingue-se com a impossibilidade superveniente da lide”.
Como afirma JOSÉ LEBRE DE FREITAS in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, VOLUME I, 2ª Edição, pag. 555, § 3.º,A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do Auto não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providencia pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio”.
Ora, a superveniência ocorrida decorre da recusa de visto do Tribunal de Contas. Assim, face à forma como foram formulados os pedidos na petição inicial, a presente acção nos autos passou a ter um objecto impossível ( o pedido de impugnação e o pedido de condenação pressupõem a possibilidade de a final ser celebrado e executado um contrato com a Autora).

Em conformidade com o exposto, improcedem as conclusões da alegação da Recorrente (inclusive a nulidade da sentença nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. c) do CPC, que necessariamente fica prejudicado face aos considerandos supra tecidos), sendo de negar provimento ao recurso jurisdicional e confirmar a sentença recorrida.

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IV – DECISÃO

Acordam, pois, os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo deste TCAS em negar provimento ao recurso jurisdicional e confirmar a sentença recorrida.

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Custas pela Recorrente.


Lisboa, 6 de Junho de 2019


Relator:
António Vasconcelos

Catarina Jarmela

Paula Loureiro