Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:12565/15
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:06/16/2016
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:EXECUÇÃO, DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO, MARGEM DE LIVRE DECISÃO
Sumário:I –A execução ou cumprimento do caso julgado anulatório, um dos momentos da verdade do Estado de Direito, implica sempre aquilo que está previsto nos nº 1 e nº 2 do artigo 173º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, onde se inclui, inter alia, a eventual substituição da decisão ilegal por uma decisão legal, sendo certo que o que tem efeito retroativo é a anulação e não o ato de substituição do ato anulado (incluindo o eventual “ato administrativo renovatório” de um ato renovável anulado pelo tribunal), ato de substituição esse que só vale desde a data em que é emitido.

II – A garantia constitucional da fundamentação do ato administrativo, como concretizada no Código do Procedimento Administrativo, exige que a decisão administrativa exteriorize sempre, tanto (i) na justificação (ii) como na motivação, (iii) os respetivos discursos justificativos, ou seja, os raciocínios fundamentadores (iv) da conclusão ou de cada uma das conclusões em que assenta (iv) a decisão administrativa;

III - A evidência de a fundamentação variar em qualidade e quantidade, consoante os casos concretos, não exclui o dever constitucional de exteriorização do processo decisório (necessariamente racional), isto é, dos raciocínios fundamentadores de cada uma das conclusões em que assenta a decisão contida no ato administrativo.

IV – É precisamente no exercício da margem de livre decisão administrativa, incluindo nesta os chamados “poderes discricionários da função administrativa” e a chamada “liberdade avaliativa de administração pública”, que o dever de fundamentação implica (devido à natureza dos poderes exercidos e ao maior perigo objetivo de arbítrio) uma exigência acrescida quanto à exteriorização dos raciocínios fundamentadores das conclusões apresentadas em sede de motivação; está em causa impedir o esvaziamento dos princípios jurídico-administrativos fundamentais (i) da “juridicidade e legalidade”, (ii) do “procedimento transparente e equitativo” e (iii) da “tutela jurisdicional efetiva”.

V - Violam o “dever constitucional e legal de fundamentar os atos administrativos de um modo expresso, racional, coerente, suficiente e claro” todas as decisões administrativas que se limitem a exteriorizar como seus fundamentos (i) adjetivos qualificativos, (ii) avaliações numéricas e ou (iii) opiniões, já que se tratam de meras conclusões e não de discursos justificativos, isto é, de raciocínios fundamentadores de conclusões.

VI – Só se pode contrapor a rara e inexigível figura da “fundamentação da fundamentação” quando a fundamentação apresentada pela decisão administrativa em causa não se limitar a exteriorizar apenas (i) conclusões, (ii) adjetivos qualificativos ou (iii) atribuição de valores numéricos.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

· O S……. - Sindicato …………………………………., Pessoa Coletiva nº …………………….., com sede na Rua ………, nº 20 F …………..– 126 Lisboa, em representação da sua Associada Adelaide ………………………………….., Assistente Operacional, NIF …………………., intentou no Tribunal Administrativo de Almada

ação administrativa especial contra:

· MUNICÍPIO DE SETÚBAL

Pediu o seguinte:

a)- Declaração de nulidade ou anulação do despacho da Vereadora, com competência delegada, da Câmara Municipal de Setúbal, de 21/06/2011, que homologou a lista unitária de classificação final do procedimento concursal comum de recrutamento para a carreira geral e categoria de assistente operacional – área de limpeza e espaços públicos, a que se reporta o Aviso n. º 4904/2011.

b)- Declaração de nulidade ou anulação do procedimento concursal, no segmento relativo à aplicação do método de seleção da entrevista profissional e

c)- Que a entidade demandada seja condenada a “proferir despacho que determine e proceda à expurgação de todos os vícios e irregularidades do procedimento concursal, repetindo o mesmo”.

*

Por decisão de 30-04-15, o referido tribunal decidiu julgar a ação administrativa especial procedente e, em consequência,

-Anular o despacho da Vereadora da Câmara Municipal de Setúbal, de 21/06/2011, que homologou a lista unitária de ordenação final, e

- Condenar a entidade demandada a praticar um novo ato, devendo a classificação atribuída aos candidatos na entrevista profissional de seleção ser devidamente fundamentada.

*

Inconformado, o Réu recorre de apelação para este Tribunal Central Administrativo Sul, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

a) O douto acórdão sob recurso considerou a classificação da entrevista profissional, da representada do A., prestada no concurso em causa nos autos, insuficientemente fundamentada, no que, salvo o devido respeito, carece de razão.

b) Com efeito, a fundamentação da classificação da entrevista foi efetuada através da ficha constante do processo, que constitui uma grelha ou matriz por onde se molda a avaliação a atribuir à prova, grelha essa que estava fixada no programa do concurso.

c) Aliás, tal grelha torna perfeitamente percetível o percurso cognoscitivo que determinou a atribuição da classificação, na medida em que define os parâmetros porque se determinou a avaliação da entrevista e define os valores atribuídos a cada um desses parâmetros e a avaliação qualitativa que corresponde a cada um deles.

d) Desse modo, da análise dessa ficha resulta claro e perfeitamente percetível que os elementos do júri consideraram que a representada do A. só a nível reduzido satisfazia os diversos parâmetros sobre os quais incidiu a entrevista, dando-lhe possibilidade, caso considerasse que tal avaliação era errada, de contrariar a convicção formada pelo júri relativamente a cada um desses parâmetros.

e) Sendo certo que o A. não alega, minimamente, quaisquer factos de onde pudesse resultar a existência de um erro grosseiro ou grave na avaliação atribuída pelos elementos do júri, o que, dado estar-se perante atos praticados no quadro de uma discricionariedade técnica, teria de invocar e comprovar.

f) Aliás, a transparência e seriedade da avaliação de uma entrevista são garantidas não só pela exigência de fundamentação, mas também pelo facto de a entrevista ser pública e a decisão ser coletiva.

g) Por outro lado, a entender-se, como parece ser pressuposto pela douta sentença sob recurso, que a fundamentação da entrevista profissional de seleção, para ser suficientemente fundamentada, teria de reproduzir, ainda que sucintamente, as perguntas feitas e as respostas que foram dadas e ainda os motivos pelos quais se consideraram tais respostas de nível elevado, bom, suficiente, reduzido ou insuficiente, conduziria a tornar perfeitamente inviável uma prova de seleção deste tipo, num concurso com a amplitude do aqui em causa.

h) Desse modo, atendendo à natureza do ato em causa e às finalidades de exigência de fundamentação, o ato impugnado satisfaz os requisitos previstos no artº 125° do C.P.A.

i) Ao assim não decidir e ao considerar insuficientemente fundamentada a classificação atribuída à representada do A. na prova de entrevista de seleção, o douto acórdão recorrido fez uma errada aplicação da referida disposição legal, violando-a.

j) o douto acórdão recorrido, pelo menos aparentemente, como resulta aliás, da condenação também na sua repetição, anula todas as provas da entrevista profissional de seleção prestada no quadro do concurso.

k) Ora, a presente ação é interposta pelo Sindicato A. exclusivamente em representação de uma sua associada e apenas à entrevista desta assaca o vício da falta de fundamentação.

l) Por tal, ainda que se considerasse que idêntico vício ocorreria nas demais entrevistas, a sentença recorrida ao considerar a sua anulabilidade e condenar na repetição de todas elas, decide "ultra petita", em ofensa ao disposto no artº 3°, nº 1, do N.C.P.C. e no nº 2 do artº 95° do C.P.T.A., incorrendo na nulidade prevista na alínea d) do nº 1 do artº 615° daquele código.

m) Aliás, o A. apenas instaurou a presente ação em representação de uma sua associada, pelo que a legitimidade que daí lhe advém é a correspondente à legitimidade desta, que não sofria, nem invoca sofrer qualquer prejuízo direto das classificações atribuídas aos demais concorrentes, carecendo, assim, de legitimidade para as impugnar.

n) E, não tendo sido impugnadas tais classificações, mesmo que padecessem de vício de falta de fundamentação, o mesmo importaria a sua mera anulabilidade, que já estaria sanada pela sua não impugnação, pelo que, ao declarar a sua nulidade e ordenar a repetição das entrevistas, a douta sentença recorrida violou também o disposto nos arts 133° e 135° do C.P.A e 58° do C.P.T.A.

o) O douto acórdão recorrido, em face da anulabilidade que atribuiu à classificação da prova da entrevista profissional de seleção da representada do A., ato antecedente da homologação da lista de classificação final impugnada nos autos, declarou a nulidade da totalidade dessa lista enquanto ato consequente do ato (ou atos) que declara anuláveis.

p) Ora, salvo o devido respeito, tal anulação é completamente desproporcional em relação às exigências de reposição da legalidade, colidindo com os direitos subjetivos de todos os opositores ao concurso que foram integrados e ordenados na lista final.

q) Desse modo, por força do princípio da proporcionalidade previsto no nº 2 do artº 5° do C.P.A., que impõe o aproveitamento da parte dos atos administrativos que não resulte inquinada por um vício que colida com a sua legalidade, e ainda por força do disposto na alínea i) do nº 2 do artº 133° do mesmo código, a decisão deveria limitar a repercussão, no ato de homologação da lista final unitária, do pretenso vício de falta de fundamentação, apenas no estritamente necessário para reposição de legalidade.

r) E, atendendo a que a anulação do ato antecedente, tendo como fonte um vício meramente formal poderá até ser renovado "in totum", o douto acórdão recorrido nunca poderia anular a totalidade da lista unitária, apenas podendo condenar o R. a introduzir nessa lista as alterações que se impusessem para reposição da legalidade, consequente à anulação do ato antecedente de classificação da entrevista da representada do A.

s) O que poderá até consistir na total manutenção dessa lista ou apenas, em virtude da eventual inclusão na mesma da representada do A., na sua alteração parcial restrita à sua colocação numa ordenação que, no mais, se manterá.

t) Desse modo, ao fazer repercutir a pretensa anulabilidade da classificação da representada do A. na prova de entrevista profissional de seleção na totalidade da lista final unitária, declarando a nulidade de toda ela, o douto acórdão recorrido fez uma errada interpretação e aplicação dos princípios legais atrás referidos.

u) Por outro lado, o douto acórdão recorrido ao determinar a repetição de todas as entrevistas sem nada de substancial definir relativamente ao direito que possa caber à representada do A., está apenas a definir procedimentos de execução da sentença.

v) O que colide com a margem de liberdade da administração para dar execução espontânea às decisões judiciais anulatórias dos seus atos quando, como é o caso, estando em causa vícios de natureza meramente formal, o tribunal ainda não tem poderes de definir, em concreto, o que é de direito na relação jurídico administrativa controvertida.

w) Ao assim não decidir, o douto acórdão recorrido fez uma errada interpretação e aplicação do disposto no nº 4 do artº 95° do C. P.T.A.

x) Deste modo, o douto acórdão recorrido violou todas as disposições legais atrás referidas, devendo, como tal, ser revogada.

*

O recorrido contra-alegou, concluindo:

1. O douto acórdão do tribunal a quo, não merece qualquer censura, não está afetado por nenhum erro ou vício e fez uma correta interpretação e aplicação do Direito à matéria de facto e de direito provada.

2. Contrariamente ao defendido pela douta alegação de recurso do recorrente, a classificação atribuída à associada e representada do ora recorrido, não se encontra devidamente fundamentada à luz das exigências legais constitucionais e ordinárias, cfr. art. 268°, n. º3 do CRP e arts 124º e 125º do CPA.

3. O preenchimento da ficha classificativa, (apenas com a classificação atribuída pelo júri), não permite alcançar e compreender as razões pelas quais lhe foi atribuída determinada pontuação e não outra.

4. A definição dos parâmetros avaliativos e a avaliação qualitativa que corresponde a cada um deles, não integra ou preenche as exigências de fundamentação legalmente exigíveis.

5. Não desconhece o recorrido que a fundamentação é um conceito relativo, mas em situação de avaliação de mérito não dispensa a clara, congruente e suficiente perceção e compreensão do iter cognoscitivo do autor do ato, para assim poder preencher as funções da fundamentação dos atos da administração - cfr. fls. 9 do douto acórdão parágrafo 3°.

6. Sem conhecer de forma completa o itinerário cognoscitivo do júri do concurso, cujo ato final de homologação acolhe, não pode a avaliada ou qualquer outro candidato "apontar erros grosseiros ou graves", pese embora a montante poder indicar que o deficit fundamentador inquina todo o procedimento e aquele método de seleção (EPS).

7. O douto acórdão recorrido determina a anulação do ato de homologação por concluir que a classificação atribuída pelo júri do concurso na entrevista profissional de seleção não se encontra devidamente fundamentada.

8. Mais refere, citamos. "A anulação do ato impugnado com fundamento no vício de falta de fundamentação (vício de forma) faz impender sobre a entidade demandada o dever de praticar um novo ato expurgado do referido vício, não implicando, no entanto, a repetição do procedimento concursal, na medida em que tal vício não contende com a validade dos demais atos procedimentais praticados".

9. Perante o exposto, caem por terra, salvo o devido e merecido respeito e, melhor opinião, as conclusões i); j); k); I); m); n); o); p); q); r); s); t); u); v); w); x); das alegações de recurso do recorrente.

*

O MP, através da sua digna representante junto deste tribunal, foi notificado para se pronunciar em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, como previsto no nº 1 do art. 146º, tendo emitido Parecer no sentido de não ser concedido provimento ao recurso.

Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência. (1)

*

II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. FACTOS PROVADOS

Com interesse para a decisão a proferir, está provado o seguinte quadro factual:

a) Pela deliberação n. º29/2011, de 19/01/2011, da Câmara Municipal de Setúbal, foi aprovada a abertura de procedimento concursal comum para ocupação de dezasseis postos de trabalho de assistente operacional – limpeza de espaços públicos – da carreira geral de assistente operacional [documento de fls. 12 a 15 dos autos].

b) Por despacho da Vereadora da Câmara Municipal de Setúbal para a área de gestão de recursos humanos, de 25/01/2011, foi aberto procedimento concursal comum com vista à ocupação de dezasseis postos de trabalho de assistente operacional – limpeza de espaços públicos – da carreira geral de assistente operacional [documento de fls. 12 a 15 dos autos].

c) No despacho referido em b), consta, designadamente, o seguinte:

«(Texto original)»

[documento de fls. 12 a 15 dos autos].

d) A associada do autor Adelaide Cristina Rodrigues Cordeiro da Silva candidatou-se ao concurso referido em b) [acordo].

e) A associada do autor Adelaide Cristina Rodrigues Cordeiro da Silva obteve a classificação de 17.7 valores na prova de conhecimentos e de 8 valores na entrevista profissional de seleção [documento de fls. 24 a 27 dos autos].

f) Na “Ficha Individual de Classificação: Entrevista Profissional de Seleção” da associada do autor, consta o seguinte:

«(Texto original)»

[cfr. volume IV do processo administrativo].

g) Na Lista Unitária de Ordenação Final, elaborada pelo júri do concurso, a associada do autor Adelaide ………………………. foi excluída, por ter obtido classificação inferior a 9,5 valores na entrevista profissional de seleção [documento de fls. 24 a 27 dos autos].

h) Por despacho da Vereadora da Câmara Municipal de Setúbal para a área de Gestão de Recursos Humanos, de 21/06/2011, foi homologada a lista unitária de ordenação final [documento de fls. 20 e de fls. 24 a 27 dos autos].

i) A presente ação deu entrada no dia 22/09/2011 [cfr. carimbo aposto na petição inicial].

*

Continuemos.

II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Aqui chegados, há condições para se compreender esta apelação e para, num dos momentos da verdade do Estado de Direito (o do controlo jurisdicional do agir administrativo), ter presentes, inter alia, os seguintes princípios fundamentais: (i) juridicidade e legalidade administrativa (as administrações públicas prosseguem sempre o bem comum, só podendo agir se e quando tal for permitido pela Constituição e pela lei, sob pena de invalidade causada por patologias nos pressupostos legais e de facto do agir administrativo ou nos respetivos motivos (2)); (ii) igualdade de tratamento de todas as pessoas humanas; (iii) certeza e segurança jurídicas (princípio fundamental de onde se retira que a ponderação de bens, interesses e valores só pode ser feita, em Direito, no caso de estarmos perante textos jurídicos que, por implicarem opções com base nos ideais de justiça, equidade ou moralidade, têm de ser otimizados ante as possibilidades de facto e de direito existentes no caso concreto, e não perante textos jurídicos que exijam algo de modo definitivo, dispositivo ou quase-conclusivo); e (iv) tutela jurisdicional efetiva, no âmbito do direito fundamental a um processo e a um procedimento equitativos (3) (tudo reflexo da ordem axiológica de um Estado democrático de juridicidade material (4)).

Utiliza-se, por isso, um método de Ciência do Direito adequado à garantia efetiva, previsível e transparente dos direitos dos “cidadãos administrados”, com um processo decisório teleologicamente orientado à concretização dos valores da Constituição administrativa (5) e ao controlo racional de coerência dos nexos do sistema jurídico (6) que precedam a resolução do caso (racionalidade decisória transparente; princípio da não contradição (7). A resolução dos casos exige um rigoroso respeito pelo art. 9º do Código Civil na busca do “pensamento legislativo da fonte dentro do sistema jurídico atual” e, nos casos residuais em que se justifique, pela metodologia racional ponderativa de bens, interesses e valores aplicáveis (8).

Cabe, ainda introdutoriamente, sublinhar que os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido e respetivos fundamentos, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso, alegação que apenas pode incidir sobre as questões que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas.

Identifiquemos e resolvamos, pois, as questões a apreciar por este tribunal.

1ª - DO EXCESSO DE PRONÚNCIA e DO NOVO ATO ADMINISTRATIVO A PRATICAR

1.1.

O ato administrativo impugnado e anulado pelo Tribunal Administrativo de Círculo foi emitido na sequência do previsto no artigo 53º da Lei 12-A/2008.

Considera o recorrente que o Tribunal Administrativo de Círculo cometeu a nulidade decisória de “excesso de conhecimento ou de pronúncia”, prevista no artigo 615º/1-d) do Código de Processo Civil.

O Tribunal Administrativo de Círculo, após considerar que o ato administrativo impugnado está indevidamente fundamentado, anulou-o (não declarou a nulidade, ao contrário do que se refere na alegação de recurso) e, bem ou mal, decidiu «condenar a entidade demandada a praticar um novo ato, devendo a classificação atribuída aos candidatos na entrevista profissional de seleção ser devidamente fundamentada».

Ora, esta última parte da decisão do Tribunal Administrativo de Círculo integra-se claramente no pedido que identificámos no relatório sob c). Era, assim, uma questão a resolver.

Não houve, portanto, excesso de pronúncia, face aos artigos 660º/2 do Código de Processo Civil e 95º/1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Pelo que a recorrente não tem razão neste ponto.

1.2.

Mas, por outro lado, o recorrente também diz que o Tribunal Administrativo de Círculo não podia ter decidido esta condenação, porque a autora interessada não teria legitimidade processual para o pedir.

Ora, as questões da legitimidade processual, exceção dilatória, já foram decididas, sem recurso, na fase dos artigos 87º a 89º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, não podendo ser agora apreciadas, conforme manda o nº 2 do artigo 87º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Pelo que a recorrente não tem razão neste ponto.

1.3.

Finalmente, a recorrente considera que foi violado o nº 4 do artigo 95º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, segundo o qual quando, na hipótese prevista no número anterior (condenação da Administração à adoção dos atos e operações necessários para reconstituir a situação que existiria se o ato impugnado não tivesse sido praticado), o quadro normativo permita ao tribunal especificar o conteúdo dos atos e operações a adotar para remover a situação diretamente criada pelo ato impugnado, mas do processo não resultem elementos de facto suficientes para proceder a essa especificação, o tribunal notifica a Administração para apresentar, no prazo de 20 dias, proposta fundamentada sobre a matéria, ouvindo em seguida os demais intervenientes no processo.

Ora, o que o Tribunal Administrativo de Círculo determinou foi um modo de cumprir o julgado anulatório, matéria regulada nos nº 1 e 2 do artigo 173º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, no âmbito de um dos pedidos formulados na petição inicial.

Com efeito:

1º - A execução ou cumprimento do caso julgado anulatório, o momento da verdade do Estado de Direito, implica sempre aquilo que está previsto nos nº 1 e nº 2 do artigo 173º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos:

a) eventual poder de praticar novo ato administrativo, logicamente com respeito pelos limites ditados pela autoridade do caso julgado, ou seja, sem as ilegalidades detetadas pelo tribunal (eventual substituição sanatória, decorrente de sentença invalidante, sentença normalmente com efeito retroativo: cfr. artigo 173º/1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e artigos 161º, 162º, 163º e 166º do Código do Procedimento Administrativo); aqui, cumpre sublinhar que o que tem efeito retroativo é a sentença anulatória (efeito constitutivo) e não, como por vezes parece ser subentendido, o chamado “ato administrativo renovatório do ato jurisdicionalmente anulado” por vícios de forma, ato de substituição este que só vale desde a data em que é emitido, não tendo efeitos retroativos como que eliminando da ordem jurídica a ilegalidade formal cometida e como se não tivesse havido uma sentença de anulação (é um ato ilícito, ponto; e indemnizável aliás: cfr. assim a Declaração de Voto no Ac. do Supremo Tribunal Administrativo de 29-11-2005, Proc. Nº 41321-A; ED. GARCIA DE ENTERRÍA, “La responsabilidad del Estado…”, in Perspetivas del Derecho Publico en la segunda mitad del siglo XX…, Madrid, 1969, pág. 887; MARGARIDA CORTEZ, Studia Iuridica 52 - Responsabilidade Civil da Administração por Actos Administrativos Ilegais e …, 2000, pág. 68; MÁRIO AROSO, T.G.D.A., 3ª ed., págs. 513 ss; SÉRVULO CORREIA, in XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, 2009, págs. 102-105);

b) dever de reconstituir a situação que existiria atualmente sem o ato anulado, incluindo a obrigação de praticar atos dotados de eficácia retroativa e a obrigação de remover, reformar ou substituir atos jurídicos (convalidação do ato: cfr. artigo 164º do Código do Procedimento Administrativo) e alterar situações de facto que possam ter surgido na pendência do processo e cuja manutenção seja incompatível com a execução da sentença de anulação; e

c) dever de dar cumprimento aos deveres que não tenha cumprido com fundamento no ato entretanto anulado, por referência à situação jurídica e de facto existente no momento em que deveria ter atuado;

2º - Tratam-se de óbvios corolários dos princípios constitucionais (i) do Estado de Direito, (ii) da tutela jurisdicional efetiva e (iii) da autoridade de caso julgado das decisões jurisdicionais;

3º - Por outro lado, porque o que se impõe é sempre cumprir o previsto nos nº 1 e 2 do artigo 173º cit., o disposto no n.º 3 do art.º 176.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos não significa a vinculação do tribunal a seguir o caminho indicado pelo exequente, nada impedindo o tribunal de condenar a Administração em coisa diversa do que seja pedido, desde que isso constitua a forma legalmente adequada de execução do julgado invalidante. Isto é assim, porque o que está em causa é o cumprimento do decidido no processo declarativo, repondo a ordem jurídica violada, e a forma como tal deve ser feito, e, sendo assim, se houver desacordo entre as partes ou inércia, cabe ao tribunal indicar a forma correta de dar cumprimento à decisão jurisdicional transitada em julgado. Vd., assim, o Ac. do Supremo Tribunal Administrativo de 22.3.2007, P. nº 024690-A, e o Ac. do Supremo Tribunal Administrativo-Pleno de 18-9-2008, P. nº 024690A.

Portanto, sem prejuízo da já ultrapassada questão da ilegitimidade processual quanto a esta parte do petitório constante da petição inicial (cfr. artigo 87º/2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos), o decidido sob c) do dispositivo referido no relatório supra não tem, em rigor, a ver com o nº 4 do artigo 95º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos: concretizar, além da reposição retroativa da legalidade, os atos e operações concretos materiais para tal reposição.

É que, aqui, o Tribunal Administrativo de Círculo limitou-se a desdobrar o conceito de invalidação, de anulação do ato administrativo; anulado o ato (seja por que motivo for), este deixou de existir no mundo jurídico, pelo que haverá que praticar outro.

Considera a recorrente que se trataria de anulação parcial, logo de “reconstituição” parcial, referente apenas à representada pelo sindicato autor. Só que, embora o Tribunal Administrativo de Círculo não o diga, tal é aqui impossível (juridicamente): tendo o Tribunal Administrativo de Círculo concluído que o ato administrativo, que é só um com vários destinatários (ato plural), é ilegal por não estar fundamentado, e estando nós no âmbito concursal, a consequência logico-necessária da falta de fundamentação geral e genérica do ato plural, detetada, afeta todos os outros concorrentes. A causa da invalidade tem a ver com a fundamentação de todo o ato administrativo concursal; logo, a correção da ilegalidade geral detetada implica a emissão de um ato “totalmente” novo, de uma classificação dos concorrentes totalmente nova.

Não faria sentido (nem possibilidade jurídica racional) um novo ato administrativo avaliativo e classificatório, com a fundamentação como exigida pelo Tribunal Administrativo de Círculo, apenas quanto à concorrente aqui representada pelo autor, num contexto em que os elementos de tal fundamentação-avaliação são exatamente os mesmos para os restantes concorrentes, visados pelo mesmo ato administrativo plural.

Pelo que a recorrente não tem razão neste ponto.

2ª - DO ERRO DE DIREITO DO Tribunal Administrativo de Círculo QUANTO À FUNDAMENTAÇÃO INSUFICIENTE

2.1.

Decorre da lei fundamental (artigo 268º/3 da Constituição), como concretizada pela lei ordinária (artigos 152º a 154º do atual CPA), que toda a fundamentação deve ser uma declaração (em regra) escrita e, sob pena de anulabilidade (artigo 163º/1 do CPA), com exposição clara, coerente e suficiente das razões de facto e de direito da decisão administrativa, ou uma declaração de concordância com os (claros, coerentes e suficientes) fundamentos de facto e de direito de anteriores pareceres, informações ou propostas – cfr. D. FREITAS DO AMARAL, Curso…, II, 2ª ed., pág. 391; MÁRIO AROSO, T.G.D.A., 3ª ed., pág. 299, no nº 114.

Trata-se de um direito ou garantia fundamental, de tipo procedimental, consagrado expressamente no cit. nº 3 do artigo 268º da Constituição da República Portuguesa, e não de uma mera formalidade sem substância. Garante valores essenciais numa democracia: transparência, rigor, verdade, autocontrolo e heterocontrolo.

Afinal, o procedimento administrativo, onde se inclui esta garantia fundamental, é um mecanismo limitativo do livre arbítrio do caminho da Administração (PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, I, 2016, pág. 31), envolvendo um postulado geral de publicidade e transparência (autor e obra cits., pág. 35).

Sem prévia ou simultânea explicação racional, coerente e verdadeira, não há atividade administrativa fiscalizável, o que é incompatível com o Estado democrático de Direito.

Assim, um ato administrativo só estará devidamente fundamentado, como se explica há várias décadas, se um destinatário normal puder (1º) ficar ciente do sentido dessa mesma decisão e das razões ou argumentos que contextualmente a sustentam, permitindo-lhe apreender o itinerário cognoscitivo e valorativo (= raciocínios) seguido pela entidade administrativa (a justificação em sentido lato), e depois (2º) optar conscientemente entre concordar com a decisão e sua justificação ou, então, promover a tutela jurisdicional efetiva (direito fundamental), isto é, o acionamento dos meios legais de heterocontrolo, (3º) para efeitos de fiscalização independente e efetiva da juridicidade em sede (i) das exigências legais relativas ao sujeito administrativo (competência, etc.), (ii) das exigências legais relativas ao quid do ato (possibilidade, etc.), (iii) das exigências legais relativas ao procedimento administrativo, (iv) dos pressupostos de facto da decisão, (v) dos pressupostos racionais e de direito da decisão e ou (vi) dos motivos racionais da atuação administrativa.

Caso contrário, de nada valeria o dever imposto no artigo 268º/3 da Constituição da República Portuguesa.

A fundamentação não pode, por isso, assentar apenas em meras conclusões, meras valorações adjetivantes ou em meras opiniões. Pouco ou muito consoante o caso concreto, a fundamentação de uma decisão administrativa tem sempre um discurso justificativo, isto é, os raciocínios fundamentadores; e, por isto, tal discurso justificativo deve ser exteriorizado, não sendo concebível num Estado democrático de Direito que se tolere o exercício de um poder administrativo decisório, potencialmente lesivo, com a mera utilização de adjetivos e sem a exteriorização do respetivo raciocínio fundamentador de um modo controlável pela generalidade das pessoas.

Afinal, sem discurso justificador e exteriorizável, o direito fundamental à fiscalização jurisdicional ficaria bloqueado, defraudando-se o Estado democrático de Direito. É que nenhuma parte decisória da atividade administrativa pública está fora do Direito e, portanto, imune à fiscalização jurisdicional. O que é o mesmo que dizer que nenhuma pessoa está constitucionalmente desprotegida ante a possibilidade de abuso de quaisquer poderes jurídicos das administrações públicas.

Assim, em especial (como diz D. FREITAS DO AMARAL, in Curso…, II, 2ª ed., pág. 113) as várias vertentes da chamada discricionariedade administrativa, ou melhor, da margem de livre decisão administrativa (incluindo as chamadas “discricionariedade técnica” e “liberdade avaliativa”(9)) estão, sob pena de fraude aos nucleares artigos 266º e 268º/3/4 da CRP, sujeitas a tutela jurisdicional efetiva e, com esta, ao dever de exteriorizar os raciocínios fundamentadores do decidido, dever este previsto na Constituição da República Portuguesa e no Código do Procedimento Administrativo.

Afinal, todas as vertentes da atividade administrativa dependem do princípio jurídico fundamental da prossecução do interesse público, no âmbito de um Estado democrático de Direito (cf., assim, PAULO OTERO, Legalidade e Administração Pública, 2003, pp. 763-768; MARCELO REBELO DE SOUSA/A.S.M., Direito Administrativo Geral, Tomo I, 2ª ed., §9º; PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, I, 2013, §23º; MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, T.G.D.A., 3ª ed., pontos nº 9 a nº 13 e ponto nº 120; SÉRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, 1987, pp. 476 ss; e ainda, de certo modo, D. FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, II, 2ª ed., pp. 387 ss e 112 ss). Mesmo que algumas possam ser “protegidas” pelo princípio da separação de poderes.

No mínimo e como escreveu AFONSO QUEIRÓ, in Reflexões sobre a Teoria do Desvio de Poder em Direito Administrativo, Coimbra Ed., 1940, pág. 79 (cit. por CELSO BANDEIRA DE MELLO, Curso de Direito Administrativo, 27ª ed., São Paulo, 2010, pág. 109, a propósito da razoabilidade no controlo da discricionariedade), «o facto de não se poder saber o que uma coisa é não significa que não se possa saber o que ela não é»; isto aponta para a velha máxima (de duvidosa constitucionalidade) de, ao contrário do Direito privado, só haver controlo de evidência no caso da margem de livre decisão administrativa (como se a Administração Pública fosse legislador constitucional). Mas, claro está, sem a exteriorização suficiente dos raciocínios em que assenta a decisão administrativa é impossível apurar se há ou não um erro grosseiro e se há ou não uma violação de algum dos muitos princípios jurídicos vinculativos de toda a atividade administrativa.

Essa fundamentação há de ser, portanto, de molde a permitir conhecermos não só os pressupostos e os motivos em que assentou a decisão, bem como aquilatarmos se foram (ou não) cumpridas as normas do procedimento administrativo, se a decisão reflete (ou não) a exatidão material dos factos, se houve (ou não) erro manifesto de apreciação e se existiu (ou não) desvio de poder.

Enfim, a Constituição da República Portuguesa e o Código do Procedimento Administrativo exigem, especialmente em sede de exercício de margem de livre decisão administrativa, as razões do decidido, isto é, a «motivação» da decisão (J.C. VIEIRA DE ANDRADE, Lições…, 2ª ed., pág. 177).

Com efeito, o facto de a lei conceder margem de livre decisão administrativa só agrava mais a potencial necessidade de fiscalização jurisdicional, precisamente porque o perigo de arbítrio ou de ilegalidade é especialmente elevado, num contexto em que nenhuma parte do imposto no artigo 266º da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 3º ss do Código do Procedimento Administrativo foi tornada dispensável. Sendo a fundamentação “motivação” e “justificação”, citemos, pois, Gomes Canotilho e Vital Moreira: «em relação aos atos praticados no exercício de poderes discricionários, a fundamentação é mesmo um requisito essencial, visto que sem ela ficaria substancialmente frustrada a possibilidade de impugnar com êxito os seus vícios mais típicos» (GOMES CANOTILHO/V.M., Constituição da República Portuguesa Anotada, II, 4ª ed., in comentários nº XII a XV ao artigo 268º/3, págs. 825-827).

Por isso, como escreve GUIDO CORSO (Manuale di Diritto Amministrativo, 6ª ed., G. Giappichelli Edit., Torino, 2013, pág. 260), a Administração tem o dever de «evidenciar a ponderação» (ou avaliação) feita no âmbito do exercício dos chamados “poderes discricionários”.

E, assim, o juiz só estará a violar a reserva de função administrativa se se debruçar sobre o campo de liberdade relativa suposto na lei e que efetivamente venha a remanescer no caso concreto, de modo que a A.P., segundo critérios de conveniência e oportunidade, esteja concretamente autorizada a optar entre várias soluções admissíveis perante a situação vertente, tendo sempre em vista o correto entendimento da finalidade legal, ante a impossibilidade de ser objetivamente identificada qual das soluções seria a única correta. Ora, para aquela violação da “reserva de função” alheia ocorrer mesmo, é necessário que, lógica e previamente, o destinatário e o juiz possam conhecer os raciocínios fundamentadores das conclusões que conduziram à decisão administrativa.

2.2.

O ato administrativo aqui anulado pelo Tribunal Administrativo de Círculo teve a sua fundamentação apenas numa “ficha individual de classificação” na forma de quadro ou grelha com “números” (2, 4, 6, etc.) imediata e diretamente ligados apenas a “adjetivos qualificativos ou a conclusões avaliativas qualitativas tabelares” (suficiente, bom, elevado, etc.), sem qualquer discurso justificativo de permeio; nada mais; meras conclusões ou qualificações (isto é, “muito bom” porque tem “10 pontos”; ou vice-versa; ficando-se sempre sem saber a motivação (10) para o adjetivo qualificativo “muito bom” e ou para os “10 pontos”).

Os cits. números e as cits. expressões qualitativas de tipo adjetival são, em termos de argumentação e justificação, a mesma coisa, ou seja, conclusões puras: o destinatário (ou este tribunal) não consegue saber por que se atribuiu 4 pontos ou por que se atribuiu “bom” em dado fator ou subfator; quer dizer, obteve-se o “bom” (adjetivo qualificativo) porque se obteve 4 pontos, e obteve-se 4 pontos porque se obteve “bom” em dado fator ou subfator. Trata-se de um vazio circular e conclusivo, sem raciocínio ou silogismo densificado, que impede qualquer pessoa e qualquer tribunal de questionar racionalmente o decidido, ou seja, impedindo tanto a aceitação social do decidido, como a tutela jurisdicional efetiva.

Com efeito, faltou ao júri densificar ou sustentar tais números e tais expressões adjetivais; faltou «evidenciar a ponderação», como já referido; faltou, de todo, um discurso justificativo, ou seja, (pelo menos) um raciocínio com premissas e conclusões, do tipo do silogismo judiciário (assim também: GUIDO CORSO, op. et loc. cits.).

No Direito administrativo moderno e democrático, a opacidade não tem lugar e já não há súbditos (cfr. PAULO OTERO, Manual…, I, págs. 221-222), pelo que os júris estão proibidos de apresentar apenas, “como de cátedra, com mero argumento de autoridade”, as suas conclusões ou adjetivos qualificativos, sem os explicar ou motivar racionalmente, isto é, com raciocínios fundamentadores dirigidos sobretudo aos destinatários da avaliação-ponderação.

Temos por certo que é isto o que resulta, necessariamente, da Constituição da República Portuguesa (artigo 268º/3) e do Código do Procedimento Administrativo; e é também isto o que, num caso com contornos não gerais, quis dizer o Ac. de U.J. do Supremo Tribunal Administrativo nº 2/2014, Proc. Nº 1790/13, na linha de centenas de acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo como os seguintes:

-de 8-11-95, Processo nº 018744: a fundamentação dos atos administrativos só é suficiente se dá a conhecer ao interessado o itinerário lógico-cognoscitivo e valorativo daqueles atos, isto é, as razões de facto e direito, em concreto, que motivaram a sua prática, por forma a habilitar os interessados a optar pela sua conformação com esses atos ou pela respetiva impugnação contenciosa;

-de 1-4-98, Processo nº 043188: o dever de fundamentar os atos administrativos tem como escopo, não só a defesa dos administrados, dando-lhes a conhecer os motivos que conduziram à tomada da decisão e não de outra qualquer, mas também o interesse público e uma função de autocontrole da própria administração. Porque assim é, impõe-se que na fundamentação se contenham todas as razões de facto e de direito atuantes na génese da decisão, ou sejam as concorrentes para a sua formação e que por isso constituem a sua total motivação e justificação.

Portanto, qualquer ponderação de administração pública, tem sempre, por causa da efetividade dos princípios constitucionais reguladores da atividade administrativa (incluindo a tutela jurisdicional efetiva), o dever fundamental de exteriorizar (1º) os raciocínios ponderativos ou avaliativos (11) em que necessariamente assentam (2º) as conclusões afirmadas (no texto, quadro ou grelha) e, por via destas, (3º) as decisões emitidas.

E tais raciocínios ponderativos ou avaliativos, como é evidente e lógico, nunca consistem apenas em meros números ou adjetivos.

Seria, por isso, uma falácia (que vem sendo cada vez mais tentada) e seria ainda uma fraude à juridicidade e legalidade administrativas falarmos aqui de uma fundamentação da fundamentação, pela simples razão de que ali só há conclusões; aliás, só há conclusões com números e as suas gémeas conclusões com palavras.

Portanto, os júris e outros decisores administrativos, enquanto administração pública ou investidos de autoridade administrativa, não podem, de acordo com o artigo 268º/3-2ª parte da Constituição da República Portuguesa e 153º do atual Código do Procedimento Administrativo, adotar decisões cuja base consista apenas em adjetivos ou conclusões, sem as explicar e motivar racionalmente (isto é, com raciocínios fundamentadores)

Afinal, (1º) só o raciocínio (o pensamento racional, o itinerário intelectual subjacente) permite adotar conclusões e decisões humanas. E (2º) só o pensamento racional pode obter concordância, aceitação social, discordância e heterocontrolo.

Como já se referiu, é precisamente no âmbito das várias vertentes da margem de livre decisão administrativa (onde se inclui o chamado poder-dever discricionário) que a exteriorização das justificações ou premissas da conclusão e da decisão adquire especial centralidade e relevância, sendo manifestamente intolerável uma fundamentação que consista em meros adjetivos qualificativos. Por razões óbvias.

Ora, à luz dos artigos 268º/3 da Constituição da República Portuguesa e do artigo 153º do Código do Procedimento Administrativo/2015 (e artigos 124º/1 e 125º/1 do Código do Procedimento Administrativo/1991), este quadro avaliativo meramente conclusivo (numérico e adjetival) não satisfaz a garantia procedimental fundamental do “direito à fundamentação das decisões administrativas”.

Com efeito e como está aqui provado, aqui, a entrevista visou (legalmente) avaliar

(i) a experiência profissional e, inter alia,

(ii) a capacidade de comunicação e de relacionamento interpessoal dos concorrentes.

Mas, como se vê no quadro cit., nada se disse em termos de raciocínio avaliativo, nada se explicou, não se exteriorizando minimamente a análise feita sobre tais aspetos.

É uma clara violação do dever de fundamentação imposto nos artigos 268º/3 da Constituição da República Portuguesa e 124º/1 e 125º/1 do Código do Procedimento Administrativo/1991, pois equivale à falta de fundamentação a adoção de fundamentos que, por insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do ato (artigo 125º/2 do Código do Procedimento Administrativo/1991).

Desta forma, aliás, ficou aqui assegurada a impossibilidade de aferir a legalidade da decisão administrativa à luz dos princípios gerais de direito administrativo, que o Direito impõe que funcionem como limites (reais) à margem de livre decisão administrativa.

Cfr. ainda: Acs. do Supremo Tribunal Administrativo de 17-2-2000, Processo nº 037227; e de 15-5-2014, Processo nº 037/14.

Pelo que a recorrente não tem razão neste ponto.

*

SUMÁRIO:

I –A execução ou cumprimento do caso julgado anulatório, um dos momentos da verdade do Estado de Direito, implica sempre aquilo que está previsto nos nº 1 e nº 2 do artigo 173º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, onde se inclui, inter alia, a eventual substituição da decisão ilegal por uma decisão legal, sendo certo que o que tem efeito retroativo é a anulação e não o ato de substituição do ato anulado (incluindo o eventual “ato administrativo renovatório” de um ato renovável anulado pelo tribunal), ato de substituição esse que só vale desde a data em que é emitido.

II – A garantia constitucional da fundamentação do ato administrativo, como concretizada no Código do Procedimento Administrativo, exige que a decisão administrativa exteriorize sempre, tanto (i) na justificação (ii) como na motivação, (iii) os respetivos discursos justificativos, ou seja, os raciocínios fundamentadores (iv) da conclusão ou de cada uma das conclusões em que assenta (iv) a decisão administrativa;

III - A evidência de a fundamentação variar em qualidade e quantidade, consoante os casos concretos, não exclui o dever constitucional de exteriorização do processo decisório (necessariamente racional), isto é, dos raciocínios fundamentadores de cada uma das conclusões em que assenta a decisão contida no ato administrativo.

IV – É precisamente no exercício da margem de livre decisão administrativa, incluindo nesta os chamados “poderes discricionários da função administrativa” e a chamada “liberdade avaliativa de administração pública”, que o dever de fundamentação implica (devido à natureza dos poderes exercidos e ao maior perigo objetivo de arbítrio) uma exigência acrescida quanto à exteriorização dos raciocínios fundamentadores das conclusões apresentadas em sede de motivação; está em causa impedir o esvaziamento dos princípios jurídico-administrativos fundamentais (i) da “juridicidade e legalidade”, (ii) do “procedimento transparente e equitativo” e (iii) da “tutela jurisdicional efetiva”.

V - Violam o “dever constitucional e legal de fundamentar os atos administrativos de um modo expresso, racional, coerente, suficiente e claro” todas as decisões administrativas que se limitem a exteriorizar como seus fundamentos (i) adjetivos qualificativos, (ii) avaliações numéricas e ou (iii) opiniões, já que se tratam de meras conclusões e não de discursos justificativos, isto é, de raciocínios fundamentadores de conclusões.

VI – Só se pode contrapor a rara e inexigível figura da “fundamentação da fundamentação” quando a fundamentação apresentada pela decisão administrativa em causa não se limitar a exteriorizar apenas (i) conclusões, (ii) adjetivos qualificativos ou (iii) atribuição de valores numéricos.

*

III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os Juizes da 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso, julgando-o improcedente e mantendo o decidido, com a presente fundamentação.

Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 16-6-2016

(Paulo Pereira Gouveia - relator)

(Nuno Coutinho)

(Carlos Araújo)

(1)Para decidir, este tribunal superior tem omnipresente a nossa Constituição e as três dimensões do Direito como ciência do conhecimento prático que é, por referência à ação e ao dever-ser (I. KANT, Lógica, trad., Ed. Texto & Grafia, Lisboa, 2009, p. 86), isto é, a dimensão ética, a normativa e a factual social. Dali resulta, não uma economicista “output legitimacy” do Estado democrático e social de Direito, mas sim a consideração pelos aplicadores do Direito do seguinte quadro jurídico de base: I- O primado do Estado democrático e social de Direito, num contexto de uma vida socioeconómica submetida aos valores ético-jurídicos (i) da suprema dignidade de cada ser humano, (ii) da liberdade e (iii) do bem comum; II- Os princípios constitucionais estruturantes do Estado democrático e social de Direito, como (i) a juridicidade, (ii) a igualdade jurídico-material e jurídico-social de todos os seres humanos, (iii) a tutela jurisdicional efetiva e, ainda, (iv) a segurança jurídica de todas as pessoas; III- Os habituais comandos definitivos ou normas jurídicas que exigem algo de modo definitivo, dispositivo ou quase-conclusivo (i.e., as Normas-Regra, compostas por hipótese e estatuição ou consequência jurídica), sob a égide dos importantes artigos 9º a 11º do Código Civil, que se aplicam normalmente através da chamada subsunção; têm uma eficácia jurídica positiva ou simétrica; IV- Os (menos frequentes) coman­dos jurídicos gerais do sistema, quase sempre comprome­tidos axiológica e eticamente, como "razões de agir", i.e., os eventuais comandos que têm de ser otimizados no concreto (diferentes dos princípios constitucionais estruturantes ou valores constitucionais estruturantes), que exigem do aplicador a sua otimização transparente ante as possibilidades de facto e de direito existentes no caso concreto, através da ponderação ou sopesamento racional e justificado das aplicáveis normas colidentes que tenham significados não específicos ou valorativos (i.e., as Normas-Princípio, comandos quase sempre sem estatuição, normas não conclusivas, com objetiva textura aberta, ou objetiva ambiguidade semântica/sintática/pragmática, ou objetiva vagueza de linguagem no predicado ou com óbvio significado valorativo, numa exigência de fazer opções com base nos ideais de justiça, equidade ou moralidade, sendo ainda que a sua validade decorre do seu próprio conteúdo, e têm uma função explicadora e justificadora das regras concretas), ponderação pela qual se acaba por escolher a norma a concretizar adequadamente, depois, no caso de vida a resolver; estas normas-princípio têm uma eficácia jurídica negativa e têm na sua estrutura (i) uma metaregra “a se” (segundo a qual o “dever-ser ideal” ínsito na norma, decorrente do valor superior da Justiça, deve ser otimizado no concreto até ao “dever-ser real”, por causa do princípio estruturante da segurança jurídica) e (ii) a norma-princípio (o objeto da otimização, o “dever-ser ideal”); V- A máxima interpretativa da unidade e coerência atualista do sistema jurídico (importante também contra a omissão jurisdicional de controlo das chamadas “discricionariedades”); VI- E, quando for juridicamente lícito e objetivamente necessário, a máxima metódico-racional da proporcionalidade (cf. arts. 1º, 2º e 18º da Constituição Portuguesa escrita e 335º do Código Civil); afinal, com a proporcionalidade, como máxima metódica transparente e racional, o tribunal, que nunca logra fazer uma concordância prática, exerce sim um duplo “poder discricionário” com racionalidade: o juiz parece criar uma hierarquia axiológica entre as normas colidentes, a fim de escolher uma delas, e depois continua objetivamente livre para modificar os valores comparativos dos dois princípios perante uma nova controvérsia ante os mesmos princípios.

(2) Cfr. PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Vol. I, 2016, págs. 498-530 e 597-694; ROGÉRIO SOARES, Direito Administrativo, 1978, págs. 276-77; MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, T.G.D.A., 3ª ed., 2015, págs. 261-320; FREITAS DO AMARAL, Curso…, II, 2ª ed., 2011, págs. 419-462.

(3) Cfr. PAULO OTERO, Direito do Procedimento Administrativo, Vol. I, págs. 73 ss e 48 ss.

(4) Pelo que relevam ainda outros importantes princípios fundamentais, a ter em conta pelos tribunais: boa fé e tutela da confiança; bem-estar; subsidiariedade e eficiência; participação administrativa dos interessados; respeito pelas posições jurídicas ativas dos cidadãos; dever de fundamentação das decisões administrativas; dever de informação administrativa; arquivo aberto; dever de decisão administrativa em prazo razoável; responsabilidade civil da Administração Pública.

(5) Cfr. PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, vol. I, 2013, págs. 331-359.

(6) O Direito é ciência e é sistema. Cfr. PAULO OTERO, Legalidade e Administração Pública, 2003, págs. 203-337; KARL LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, trad. do original de 1991, 3ª ed., Lisboa, 1997, págs. 230 ss e 621 ss; A. MENEZES CORDEIRO, Introdução à edição portuguesa da obra de C-W Canaris, Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito, Lisboa, 1989; M. TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução ao Direito, 2012, §13º.

(7) Cfr. FRANCO BASSI, La Norma Interna – Lineamenti di una teorica, Editorial Giuffrè, Milano, 1963, págs. 287 ss e 552 ss; HANS KELSEN, Teoria Geral das Normas, trad., Porto Alegre, 1986, págs. 238 ss; ROBERT ALEXY, Teoria de la Argumentacion Juridica, trad., Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1989, págs. 119 ss, 185 ss e 283 ss.

(8) Cfr. PAULO PEREIRA GOUVEIA, O método e o juiz…, in O Direito, Ano 145º, I/II, 2013, págs. 51 ss, sobre a interpretação das leis e sobre a ponderação-concretização no contencioso administrativo das normas de textura aberta; PAULO OTERO, Manual de Direito Administrativo, vol. I, 2013, págs. 432-449, maxime págs. 443-447; ROBERT ALEXY, A construção dos direitos fundamentais, in Direito & Política, nº 6, 2014, págs. 38 ss; ROBERT ALEXY, Direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade, in o Direito, Ano 146º, IV, 2014, págs. 817 ss; M. KLATT/M. MEISTER, The Constitutional Structure of Proportionality, Oxford, 2012, págs. 7-13 e 135 ss; e ainda G. ZAGREBELSKY, Manuale de Diritto Costituzionale, Torino, 1991, págs. 107 ss; RICCARDO GUASTINI, A propósito del neoconstitucionalismo, trad., in Gaceta Constitucional, Tomo 67, Julio-2013, Lima, págs. 231-240.

(9) Tal como nos tribunais cíveis, também nos tribunais administrativos o juiz pode e deve socorrer-se da prova pericial.

(10) No sentido mais estrito (especifico da atividade administrativo predominantemente discricionária) a que se referem a jurisprudência e a doutrina (v.g., J.C. VIEIRA DE ANDRADE, Lições…, 2ª ed., pág. 177): evidenciar a ponderação feita no âmbito “discricionário” (cfr. GUIDO CORSO, op. et loc. cits.).

(11) Na antiga e igualmente acertada linguagem: o itinerário intelectual subjacente ao processo decisório.