Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1405/08.4BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:09/17/2020
Relator:MARIA CARDOSO
Descritores:DUPLICAÇÃO COLECTA
PAGAMENTO QUANTIA EXEQUENDA
ART. 5.º DO CPC
Sumário:I. Quando a Administração Tributária emite uma liquidação e o pagamento total desta obrigação tributária ocorre antes da instauração da execução fiscal, se esta vier a ser instaurada com base no título de cobrança anteriormente emitido para pagamento daquela liquidação, o fundamento de oposição, neste caso, é o de pagamento da dívida exequenda (artigo 204.º, n.º 1, alínea f) do CPPT) e não o de duplicação de colecta (artigo 204.º, n.º 1, alínea g) do CPPT).
II. Ao abrigo do princípio da oficiosidade do conhecimento e aplicação do direito aos factos, actualmente previsto n.º 3, do artigo 5.º do CPC, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, podendo analisar as questões submetidas à sua apreciação com base em argumentos ou razões distintas daquelas que foram suscitadas pelas partes.
III. Assim, ao tribunal incumbe proceder à qualificação jurídica que julgue adequada, dentro da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito prático-jurídico pretendido.
IV. No caso em apreço, as partes tiveram a possibilidade de ter em conta a factualidade alegada e dada como provada, não tendo o fundamento jurídico sido omitido, pelo que é desnecessário proceder à audição das partes previamente ao enquadramentos dos factos dados como provados no fundamento de oposição à execução fiscal, previsto na alínea f), do n.º 1 do artigo 204.º, do CPPT, por o pagamento da quantia exequenda ter sido considerado pelas partes, não configurando, por isso, uma decisão surpresa.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

I - RELATÓRIO

1. FAZENDA PÚBLICA, veio interpor recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a oposição judicial deduzida por “Q... – Sociedade de Construções SA” contra o processo de execução fiscal n.º 3..., onde é exigida coercivamente a quantia exequenda, relativa a IRC do exercício de 2002, no montante de €107.040,19, acrescida de juros de mora, no montante total de €109.504,13.

2. A Recorrente apresentou as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:

I - Pelo elenco de fundamentos acima descritos, infere-se que a douta sentença, ora recorrida, julgou procedente a oposição à margem referenciada com as consequências aí sufragadas, por ter considerado há duplicação de colecta.

II – Neste âmbito, o thema decidendum, assenta em determinar se há ou não duplicação de colecta

III – A liquidação adicional de IRC, relativa ao exercício de 2002, com o n.º 2007 8..., emitida em 27/06/2007 é a que se encontra activa.

IV – Da liquidação mencionada no ponto anterior consta como (i) colecta do regime geral, 2.º escalão o montante de € 712.324,12; (ii) retenções na fonte o montante de € 310,70; (ii) pagamentos por conta / autónomos o montante de € 1.500,00; (iv) IRC a recuperar o montante de € 1.810,70; (v) derrama municipal o montante de € 71.232,41;L (vi) juros compensatórios o montante de € 64.093,62; (vii) juros de mora o montante de € 144.574,97; e (viii) pagamento de autoliquidação no montante de € 753.700,95, sendo apurado o montante de € 236.713,47.

V – Quer dizer, na mencionada liquidação foi apurado um montante total a pagar, para o exercício de 2002, de € 990.414,42, sendo que € 781.745,83 dizem respeito a colecta liquida, € 64.093,62 a juros compensatórios e € 144.574,97 a juros de mora.

VI – Na verdade, a oponente efectuou vários pagamentos de autoliquidação para o exercício de 2002, no montante total de € 753.700,95. Vide art.º 9.º do presente recurso.

VII – Contudo, o valor da nota de cobrança a emitir seria de € 236.713,47 tendo sido abatido a este montante os pagamentos efectuados nas anteriores liquidações, num total de € 72.238,42, ou seja, (i) em 13/12/2004 pagou o montante de € 28.044,88 e, (ii) em 20/03/2006 pagou o montante de € 44.193,54.

VIII - Assim, foi corrigido o valor da nota de cobrança emitida para o montante de € 164.475,05.

IX - Ora, em 04/04/2007, tendo a oponente pago parcialmente a nota de cobrança anterior, no montante de € 57.434,86, o seu remanescente foi de € 107.040,19.

X - Mas, em virtude do pagamento parcial da nota de cobrança, os pagamentos foram imputados de acordo com as normas do art.º 264.º do CPPT, sendo aplicados primeiro a juros de mora e juros compensatórios.

XI - E, foi o montante de € 107.040,19 que deu origem ao PEF n.º 3..., o qual corresponde a imposto.

XII - Por fim, no âmbito da penhora efectuada e aplicada, no remanescente do imposto em dívida, no montante de € 107.040,19, em 26/03/2008, foi extinto o PEF por pagamento.

XIII – Na verdade, em face dos requisitos consagrados no art.º 205.º do CPPT, estar pago o tributo, ser o mesmo exigido à mesma pessoa e referente ao mesmo facto tributário e ao mesmo período de tempo, infere-se que os mesmos não podem estar contemplados em virtude de o tributo não se encontrar pago na totalidade.

X – E, a ser assim, deveria ter improcedido o pedido quanto à duplicação de colecta, não o tendo sido feito, enferma a mesma de erro de julgamento.

XXXII – Pelo exposto, somos de opinião que o douto Tribunal “ad quo”, esteou a sua fundamentação na errónea apreciação das razões de facto e de direito, em clara e manifesta violação dos requisitos legalmente consignados no art.º 205.º do CPPT.

Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que declare a oposição improcedente, com as devidas consequências legais.

PORÉM V. EX.AS DECIDINDO FARÃO A COSTUMADA JUSTIÇA.

3. A recorrida não apresentou contra-alegações.

4. Recebidos os autos neste Tribunal Central Administrativo Sul, e dada vista ao Exmo. Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer, no sentido da improcedência do recurso.

5. Colhidos os vistos legais, vem o processo à Conferência para julgamento.

II – QUESTÕES A DECIDIR:

O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Assim, considerando o teor das conclusões apresentadas, importa apreciar e decidir sobre (i) a admissibilidade da junção dos documentos apresentados pela Recorrente com as alegações; (ii) se a sentença recorrida incorre em erro de julgamento, consubstanciado numa errónea apreciação dos factos e de direito ao concluir pela verificação da duplicação de colecta.


*

III - FUNDAMENTAÇÃO

1. DE FACTO

A sentença recorrida deu como provada a seguinte matéria de facto:

A) Através da Ordem de Serviço OI2005…, a sociedade oponente foi objeto de uma ação de inspeção tributária que consistiu em verificar o cumprimento das obrigações tributárias relativas ao exercício de 2002 de IRC;

(Cf. doc. 2 junto com a PI)

B) Resulta do ponto VI das conclusões do Relatório Inspetivo o seguinte:

«(…)


«Imagem no original»

(…)»

(Cf. doc. 2 (fls 27 e 28) junto com a PI)

C) Em 21.03.2007, através da Guia de Pagamentos de IRC Modelo P1, com o número 57 328 1008…, a oponente efetuou pagamento do IRC (Autoliquidado), no montante de €378.700,95, referente ao exercício de 2002, tendo remetido à Direção de Finanças de Lisboa uma missiva com o seguinte conteúdo:

«(…)


«Imagem no original»

(Cf. doc. 2 (Anexo 7) junto com a PI)

D) Em 05.03.2007 foi efetuada uma liquidação adicional n.º 2007 2…, relativa ao exercício de 2002 com o seguinte teor:

«(…)


«Imagem no original»

(Cf. doc. 3 junto com a PI)

E) Na mesma data foi a ora oponente notificada da Demonstração de Liquidação de Juros com o seguinte teor:

«(…)


«Imagem no original»

(Cf. doc. 4 junto com a PI)

F) Na mesma data foi a oponente ainda notificada da Demonstração de Acerto de Contas com o seguinte teor:

«(…)


«Imagem no original»

(Cf. doc. 5 junto com a PI)

G) Em 04.04.2007, através do Documento de Cobrança, com o número 2007 00000... a oponente efetuou pagamento dos referidos Juros de Mora e Juros Compensatórios referenciados, em E) e F), no montante de €57.434,86 (606,83 +56.828,03;

(Cf. doc. 7 junto com a PI)

H) Em 17.05.2007 foi instaurado no Serviço de Finanças de Lisboa-8 o processo de execução fiscal n.º3... para cobrança coerciva do montante de €107.040,19, com base na certidão de dívida n.º2007/391324, referente a imposto (IRC), custas e juros de mora;

(Cf. fls. 52 dos autos)

I) Em 21.05.2007 foi a oponente citada para o processo de execução fiscal acima identificado para efetuar o pagamento da quantia de €109.504,13 relativo a imposto (IRC) €107.040,19, juros de mora €2.140,80, e custas do processo €323,14; «(…)


«Imagem no original»

J) Em 05.07.2007, a oponente deu entrada no Serviço de Finanças de Lisboa-8, da presente oposição onde tomou o número 14880;

(Cf. fls. 2 dos autos)

III.II - Factos não Provados

Não se provaram outros factos com relevância para a presente decisão.

Motivação.

A convicção do tribunal formou-se com base na prova documental que se encontra juntos aos autos, referida no probatório, com remissão para as folhas dos autos onde se encontram.


*

2. DA JUNÇÃO DE DOCUMENTOS COM AS ALEGAÇÕES DE RECURSO

A Recorrente juntou com as alegações dois documentos, pelo que previamente à apreciação das questões suscitadas haverá que apreciar da possibilidade de junção de documentos com as alegações do recurso.

O recurso não é normalmente o meio próprio para juntar documentos aos autos, por a sede própria para a instrução da causa ser o tribunal de primeira instância, revestindo natureza excepcional a admissão de documentos nesta sede, uma vez que a reapreciação das decisões dever ser efectuada em função dos meios de prova constantes dos autos no momento da prolação das mesmas (artigo 627.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).

Efectivamente, o recurso como meio de impugnação de uma decisão judicial, apenas pode incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas e não sobre questões novas, salvaguardando-se sempre as questões de conhecimento oficioso.

Da interpretação conjugada do disposto nos artigos 640.º, n.º 1 e 662.º, n.º 1, ambos do CPC resulta que afasta, também, a possibilidade de o Tribunal de recurso com competência em matéria de facto efectuar um novo julgamento ao fazer recair sobre o recorrente o ónus de, primeiro, indicar os concretos pontos de facto que pretende ver modificados e, segundo, indicar os concretos meios probatórios constantes do processo, do registo ou da gravação que imponham decisão diversa sobre aqueles pontos de facto.

Vejamos agora o regime legal que se aplica à junção de documentos, em sede de recurso.

De acordo com o preceituado no artigo 651.º, n.º 1 do CPC as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.

Nos termos do disposto no artigo 425.º do CPC depois de encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até aquele momento.

Em sede de recurso, é possível as partes juntarem documentos com as alegações, quando a sua apresentação não tenha sido possível até esse momento, em virtude de ter ocorrido superveniência objectiva (documento formado depois de ter sido proferida a decisão) ou subjectiva (documento cujo conhecimento ou apresentação apenas se tornou possível depois da decisão e ou se tenha revelado necessária em virtude do julgamento proferido) (vide, entre outros, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2014, p. 191 e segs.).

Nas palavras de Antunes Varela. J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, a lei não abrange, neste último caso, a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da acção (ter perdido, quando esperava obter ganho de causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado na 1ª instância. O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objecto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser preterida (vide Manual de Processo Civil. 2ª ed., pags. 533 e 534).

O advérbio ”apenas”, usado na disposição legal significa que a junção só é possível se a necessidade do documento era imprevisível antes de proferida a decisão na 1ª instância.

Assim a junção de documentos às alegações da apelação só poderá ter lugar se a decisão da 1ª instância criar pela primeira vez a necessidade de junção de determinado documento quer quando se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes não contavam (vide Antunes Varela, RLJ, ano 115º, pág. 95).

Sobre esta questão pronunciou-se este Tribunal Central Adminsitrativo Sul, em acórdão de 08/05/2019, proferido no processo n.º 838/17.0BELRS, a cujo discurso fundamentador aderimos sem reserva, e do qual se transcreve a seguinte passagem:

«(…) A verificação das circunstâncias que se acabam de elencar tem como pressuposto necessário que os factos documentados sejam relevantes/pertinentes à decisão a proferir, o que decorre, desde logo, directamente da circunstância dos documentos cuja junção se pretende deverem ter por desiderato a prova dos fundamentos da acção e/ou da defesa (citado artº.523, do C.P.Civil) e, indirectamente e como consequência do que se vem de referir, do facto de o juiz se encontrar vinculado a mandar retirar do processo os que sejam impertinentes ou desnecessários, por força do estipulado no artº.543, do mesmo compêndio legal (cfr.ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 23/3/2011, proc.4593/11; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 28/11/2013, proc.6953/13; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 27/3/2014, proc.2912/09; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 9/6/2016, proc.8610/15; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 25/07/2016, proc.9718/16; José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, C.P.Civil anotado, Volume 3º., Tomo I, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 2008, pág.96 e seg.; António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 4ª. Edição, 2017, pág.229 e seg.).

No que diz respeito à hipótese de junção de documentos quando esta se torne necessária em virtude do julgamento efectuado em 1ª Instância (cfr.nº.4 supra), o advérbio “apenas”, usado no artº.693-B, do C. P. Civil (cfr.artº.651, nº.1, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6), significa que a junção só é possível se a necessidade do documento era imprevisível antes de proferida a decisão na 1ª Instância, isto é, se a decisão da 1ª Instância criar, pela primeira vez, a necessidade de junção de determinado documento. A lei quis, manifestamente, cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objecto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes da decisão da 1ª. Instância ser proferida. Por outras palavras, a jurisprudência sobre esta matéria não hesita em recusar a junção de documentos visando a prova de factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a demonstração, mais não podendo servir de pretexto da junção a mera surpresa quanto ao resultado (cfr.ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 28/11/2013, proc.6953/13; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 27/3/2014, proc.2912/09; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 9/6/2016, proc.8610/15; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 25/07/2016, proc.9718/16; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 25/10/2018, proc.6584/13; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 28/02/2019, proc.118/18.3BELRS; Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 1985, pág.533 e 534; António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 4ª. Edição, 2017, pág.230).» (vide ainda, a título de exemplo, no mesmo sentido Ac. do STJ, de 30/04/2019, processo n.º 22946/11.0T2SNT-A.L1.S2, ambos disponíveis em www.dgsi.pt/).

Analisados os documentos juntos verifica-se que se tratam de cópias de “prints” extraídos da base de dados da Administração Tributária relativos às liquidações, demonstração de compensações e notas de cobrança, todos já juntos aos autos em data anterior à prolação da sentença. Juntou ainda a Recorrente um mapa no qual se fez um apanhado das 4 liquidações emitidas.

Por maioria de razão, do confronto de datas resulta que os documentos, cuja junção se peticiona, foram produzidos em data anterior à decisão proferida nos presentes autos, não se verificando, por isso, a superveniência objectiva dos documentos, nem a sua superveniência subjectiva, visto que a sua apresentação não se tornou justificada atenta a decisão recorrida, até porque tais documentos já constavam dos autos, com excepção do mapa que faz unicamente o apanhado das liquidações e valores em dívida, que já constavam dos autos.

Termos em que não se admite a junção aos autos dos referidos documentos anexos às alegações, por inadmissibilidade legal, e, consequentemente, determina-se o desentranhamento dos mesmos e a sua entrega à apresentante.

Custas do incidente pela Recorrente, que se fixa pelo mínimo legal (artigo 7.º, n.º 4 do RCP).


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3. ADITAMENTO OFICIOSO DA MATÉRIA DE FACTO

Ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 1 do CPC, adita-se a seguinte matéria de facto, que igualmente se encontra provada:

K) A Oponente entregou a declaração, Mod. 22, respeitante a IRC, do exercício de 2002, em 10/11/2003 (declaração n.º 2003 2490002), que deu origem à emissão da liquidação n.º 2004 32…, em 17/06/2004 (cfr. fls. 69, 79, 80 e 100 da numeração dos autos de suporte físico);

L) O aviso/notificação de cobrança a que se refere a alínea F) tem como identificação o número 2007 000000… (cfr. fls. 44 da numeração dos autos de suporte físico – doc. n.º 3 da p.i.);

M) A certidão de dívida identificada na alínea H), que deu origem à instauração do processo de execução fiscal em 17/05/2007, indica como documento de origem o n.º 000000… (fls. 52 da numeração dos autos de suporte físico);

N) Em 27/06/2007 a Administração emitiu a liquidação n.º 2007 8... relativa a IRC, do ano de 2002, conforme decorre dos “prinsts” internos de “Demonstração de Liquidação – Detalhe” e “Movimentos de Compensação” de fls. 76 e 82 da numeração dos autos de suporte físico;


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4. DE DIREITO

O objecto do presente recurso é a sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou demonstrada a duplicação de colecta, fundamento de oposição previsto na alínea g), do n.º 1, do artigo 204.º do CPPT.

Entende a Recorrente Fazenda Pública, em síntese, que o tribunal a quo esteou a sua fundamentação na errónea apreciação das razões de facto e de direito, em violação dos requisitos legalmente consignados no artigo 205.º do CPPT.

Alega a Recorrente que a liquidação relativa a IRC, do ano de 2002, que se encontra activa é a liquidação n.º 2007 8..., emitida em 27/06/2007, que apurou o montante de imposto de € 236.713,47. Apresenta nas suas alegações uma série de contas relativas à identificada liquidação e valor da nota de cobrança a emitir, para concluir que abatido a esse montante os pagamentos efectuados subsistia ainda o valor de € 107.040,19 e que foi este montante que deu origem ao PEF n.º 3....

Vejamos.
Nos autos está em causa a cobrança de IRC do ano de 2002, cujo processo de execução fiscal foi instaurado com base em certidão extraída do título de cobrança do referido tributo (artigo 162.º, alínea a) do CPPT).

Melhor concretizando, a execução fiscal subjacente aos presentes autos foi instaurada com base na certidão de dívida n.º 2007/391324, cujo documento de origem, no caso nota de cobrança, respeita à liquidação n.º 2007 23…, conforme resulta das alíneas n.ºs D, E), F), L) e M) do probatório).

Ora, o título executivo limita o conteúdo da obrigação que se imputa ao executado, ou seja, tem como função a determinação dos limites da execução.

De realçar ainda que a execução fiscal foi instaurada em 17/05/2007 (alínea H) do probatório).

Assim sendo, não se pode dar razão à Recorrente quando alega nos pontos III e XI que a liquidação/nota de cobrança, relativa a imposto de IRC do ano de 2002, que deu origem ao PEF subjacente aos presentes autos é a liquidação n.º 2007 8....

Com efeito, basta olhar para a data a emissão da identificada liquidação (27/06/2007) para concluir pela total impossibilidade da certidão de dívida ter origem em tal liquidação/nota de cobrança, uma vez que, a data de emissão da liquidação é posterior à data de instauração do processo de execução fiscal (alíneas H) e N) do probatório).

Na sentença recorrida, na apreciação fáctico-jurídica da duplicação de colecta, pode ler-se a seguinte passagem:

Decorre do probatório que, no decorrer da ação de inspeção, a oponente, em relação às correções propostas pela inspeção tributária efetuou a regularização voluntária da sua situação tributária, face ao exercício de 2002 nomeadamente ao IRC apagar, bem como relativamente aos juros de mora de juros compensatórios.

Com efeito, naquela data (02.032007), procedeu à entrega de uma Declaração Modelo 22 de IRC de Substituição (3107-C0128-11) a qual reflete o acréscimo relativo às correções efetuadas ao lucro anteriormente declarado, no montante de €1.147.578,64.

Esta declaração de substituição deu origem a uma liquidação adicional de IRC ao exercício de 2002, n.º 2007 2310009357, efetuada em 05.03.2007, donde resultou um imposto adicional a pagar de €508.374,23.

Na mesma data foi a oponente notificada da Demonstração de Juros n.º 2007 00000… e da Demonstração de Acerto de Contas n.º 2007 000000…, com data da compensação de 19.03.2007.

Destes documentos resulta que foram liquidados juros compensatórios, desde 2003.06.03. a 2007.03.02 à taxa de 4%, sobre o valor de €378.700,95 já pagos, no montante de €56.815,51 e juros de mora liquidados entre 03.03.2007 e 19.03.2007, à taxa de 1%, no montante de €606,83, ambos respeitantes ao exercício de 2002, ou seja, de 01.01.2002 a 31.12.2002.

Em 21.03.2007, a oponente efetuou o pagamento de €378.700,95 de IRC e em 04.04.2007, o pagamento de €57.434,86 referente a Juros Compensatórios e Juros de Mora, no total de €436.135,81.

Ora, confrontando o documento de Demonstração de Acerto de Contas notificado à oponente com a liquidação resultante da declaração de substituição, verifica-se que, após as operações de estorno e o montante a pagar pela oponente com data limite de 26.04.2007 foi de €436.135,81.

Tendo a oponente efetuado o pagamento deste montante em 21.03.2007 e 04.04.2007, significa o imposto em divida IRC e os Juros Compensatórios e de Mora, resultante das correções efetuadas, aquando da ação de inspeção, encontram-se inteiramente pagos.

Neste conspecto, tendo a oponente sido citada para efetuar o pagamento, referente à mesma liquidação (3107- 0000…) de IRC e juros de mora relativos ao exercício de 2002, do montante de €107.040,19 e €2.140,80 respetivamente, podemos concluir que se trata efetivamente de uma duplicação de coleta, nos montantes referidos.

Não vislumbramos qualquer erro na apreciação dos factos pelo tribunal a quo que, aliás, merece a nossa total concordância.

Porém, já não secundamos o enquadramento dessa factualidade como duplicação de colecta e, neste segmento, entendemos estar a razão do lado da Recorrente.

Atentemos na letra da lei, quanto a este fundamento de oposição - duplicação de colecta -, cuja factualidade é matéria do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 175.º, 204.º, alínea f) e 205.º do CPPT).

O artigo 205º, n.º 1 do CPPT dispõe que haverá duplicação de colecta quando, estando pago por inteiro um tributo, se exigir da mesma ou de diferente pessoa um outro de igual natureza, referente ao mesmo facto tributário e ao mesmo período de tempo.

É, pois, necessária a verificação cumulativa dos seguintes requisitos:

a) unicidade de facto tributário;

b) identidade da natureza entre o imposto já pago e o que de novo se exige;

c) coincidência temporal entre o imposto pago e o que se pretende cobrar.

A jurisprudência e a doutrina têm entendimento unanime quanto à exigência dos requisitos acabados de referir (vide entre outros Acs. do STA de 18/12/2013, proc. n.º 01181/12, e de 23/10/2019, proc. n.º 0492/16; Ac. do TCAS de 11/03/2003, proc. n.º 04593/00; e do Ac. do TCAN de 8/11/2012, proc. n.º 01128/05.6BEPRT, todos disponíveis em www.dgsi.pt/ ).

Ora, como resulta da factualidade apurada, não se verificam os três requisitos, desde logo porque não estamos perante uma situação de aplicação do mesmo preceito legal mais do que uma vez ao mesmo facto tributário ou situação tributária concreta.

No caso em apreço, foi emitida uma liquidação, cuja nota de cobrança foi totalmente paga, e com base neste título de cobrança foi emitida certidão para cobrar novamente a mesma dívida (cfr. alíneas n.ºs D, E), F), L) e M) do probatório).

Quando a Administração Tributária emite uma liquidação e o pagamento total desta obrigação tributária ocorre antes da instauração da execução fiscal, se esta vier a ser instaurada com base no título de cobrança anteriormente emitido para pagamento daquela liquidação, o fundamento de oposição, neste caso, é o de pagamento da dívida exequenda (artigo 204.º, n.º 1, alínea f) do CPPT) e não o de duplicação de colecta (artigo 204.º, n.º 1, alínea g) do CPPT).

Assim sendo, o fundamento de oposição que se enquadra no caso em apreço é do de pagamento da dívida exequenda, previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo 204.º do CPPT.

Nas palavras de Jorge Lopes de Sousa «Nos casos em que é efectuada uma única liquidação e é emitido um único título de cobrança, se, depois de paga a obrigação tributária que ele exprime, for instaurada execução fiscal para cobrar novamente a mesma dívida com base nesse mesmo título, o interessado pode opor-se invocando o pagamento, previsto na referida alínea f) do n.° 1 do art. 204.°.» (in CPPT, anotado e comentado, 6.ª Edição, *Áreas Editora, Vol. 3, nota 7 ao artigo 205.º, pág. 529).

Não obstante ter-se que dar razão à Recorrente, visto que o caso dos autos não é enquadrável como duplicação de colecta, o recurso não pode proceder, porque a factualidade alegada e dada como provada – pagamento da totalidade da dívida exequenda - é enquadrável na alínea f), do n.º 1, do artigo 204.º do CPPT, que também se inscreve no âmbito da pretensão formulada pela Oponente.

Com efeito, na petição inicial de oposição a Recorrida invoca o pagamento da totalidade da liquidação de IRC do ano de 2002, a que se refere o título de cobrança, que serviu de base à instauração da execução fiscal (pontos 16, 17 e 18 da p.i.), que enquadrou como duplicação de colecta.

E conforme resulta da matéria de facto dada como provada, a nota de cobrança que deu origem à instauração da execução fiscal subjacente aos presentes autos foi paga na totalidade em data anterior à instauração da execução fiscal (cfr. alíneas D), E), F) e G) do probatório), tendo o Meritíssimo Juiz a quo concluído, a nosso ver mal, tratar-se de duplicação de colecta.

Ao abrigo do princípio da oficiosidade do conhecimento e aplicação do direito aos factos, actualmente previsto n.º 3, do artigo 5.º do CPC, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, podendo analisar as questões submetidas à sua apreciação com base em argumentos ou razões distintas daquelas que foram suscitadas pelas partes.

Assim, ao tribunal incumbe proceder à qualificação jurídica que julgue adequada, dentro da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito prático-jurídico pretendido.

No caso em apreço, as partes tiveram a possibilidade de ter em conta a factualidade alegada e dada como provada, não tendo o fundamento jurídico sido omitido, pelo que é desnecessário proceder à audição das partes previamente ao enquadramentos dos factos dados como provados no fundamento de oposição à execução fiscal, previsto na alínea f), do n.º 1 do artigo 204.º, do CPPT, por o pagamento da quantia exequenda ter sido considerado pelas partes, não configurando, por isso, uma decisão surpresa.

«As decisões-surpresa são apenas aquelas que assentam em fundamentos que não foram ponderados pelas partes, ou seja, aquelas em que se detecte uma total desvinculação da solução adoptada pelo tribunal relativamente ao alegado.

A simples aplicação de uma norma que não foi invocada não justifica, por si só, a audição prévia das partes, só devendo ter lugar quando o enquadramento legal convocado pelo julgador for absolutamente díspar daquele que as partes preconizaram ser aplicável.» (conclusões III e IV do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/03/2018, proc. n.º 2057/11.0TVLSB.L1.S2, disponível em www.dgsi.pt/).

Ora, resulta da factualidade provada que a certidão de dívida que deu origem à execução fiscal foi extraída da nota de cobrança da liquidação n.º 2007 23… e não da liquidação n.º 2007 8..., pelo que esta liquidação não pode ser considerada neste processo executivo, como pretende a Recorrente.

Verifica-se, assim, no caso sub judice uma situação de exigência indevida do pagamento de uma obrigação tributária extinta.

Tal não significa que a Recorrida não possa ser devedora à Administração Tributária, de quantia relativa a IRC do ano de 2002, com origem na liquidação adicional n.º 2007 8.... Porém, para a sua cobrança coerciva devem ser observados os procedimentos legais aplicáveis, designadamente, a extracção de certidão de dívida da nota de cobrança da liquidação adicional, caso esta não tenha sido paga no prazo de pagamento voluntário, e só depois haverá lugar à instauração da execução fiscal.

Tendo presente o expendido e o quadro jurídico traçado, conclui-se pela improcedência das conclusões da alegação da Recorrente e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida, embora com fundamentação diversa.

Pelos fundamentos expostos, improcede o presente recurso jurisdicional.


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Conclusões/Sumário:

I. Quando a Administração Tributária emite uma liquidação e o pagamento total desta obrigação tributária ocorre antes da instauração da execução fiscal, se esta vier a ser instaurada com base no título de cobrança anteriormente emitido para pagamento daquela liquidação, o fundamento de oposição, neste caso, é o de pagamento da dívida exequenda (artigo 204.º, n.º 1, alínea f) do CPPT) e não o de duplicação de colecta (artigo 204.º, n.º 1, alínea g) do CPPT).

II. Ao abrigo do princípio da oficiosidade do conhecimento e aplicação do direito aos factos, actualmente previsto n.º 3, do artigo 5.º do CPC, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, podendo analisar as questões submetidas à sua apreciação com base em argumentos ou razões distintas daquelas que foram suscitadas pelas partes.

III. Assim, ao tribunal incumbe proceder à qualificação jurídica que julgue adequada, dentro da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito prático-jurídico pretendido.

IV. No caso em apreço, as partes tiveram a possibilidade de ter em conta a factualidade alegada e dada como provada, não tendo o fundamento jurídico sido omitido, pelo que é desnecessário proceder à audição das partes previamente ao enquadramentos dos factos dados como provados no fundamento de oposição à execução fiscal, previsto na alínea f), do n.º 1 do artigo 204.º, do CPPT, por o pagamento da quantia exequenda ter sido considerado pelas partes, não configurando, por isso, uma decisão surpresa.


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IV – DECISÃO

Face ao exposto, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Em julgar inadmissível, porque ilegal, a junção aos autos dos documentos anexos às alegações de recurso e, em consequência, determina-se o desentranhamento de tais documentos e a sua devolução à apresentante;

b) Negar provimento ao recurso e confirmar a sentença, embora com a presente fundamentação.

Custas pela Recorrente.

Custas do incidente a cargo da Recorrente pelo mínimo.

Notifique.

Lisboa, 17 de Setembro de 2020



Maria Cardoso - Relatora
Jorge Cortês – 1.ª Adjunto
Lurdes Toscano – 2.ª Adjunta

(assinaturas digitais)