Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:13299/16
Secção:CA-2º JUÍZO
Data do Acordão:06/30/2016
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS; INTERESSE EM AGIR
Sumário:i) O interesse em agir, enquanto pressuposto processual autónomo, pode definir-se como a necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir determinada acção.

ii)Tem interesse em agir, dado necessitar de tutela judiciária, o sujeito processual que pretende que seja declarada a invalidade do acto de resolução do contrato em questão, considerando o direito previsto à resolução do Acordo-Quadro existente pela Entidade Demandada, assim tutelando a possibilidade jurídica de a Autora continuar a ser parte naquele Acordo-Quadro (interesse jurídicos) e, com isso, continuar a ser convidada no âmbito dos procedimentos contratuais lançados ao abrigo do mesmo (interesses patrimoniais).
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

E……… v…….. – Projectos ……………, Lda. (Recorrente), interpôs recurso jurisdicional da sentença da Mma. Juiz do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa que, no âmbito da acção administrativa proposta contra o Município de Lisboa, julgou procedente a excepção dilatória inominada de falta de interesse em agir e, consequentemente, absolveu a Entidade Demandada da instância.

As alegações de recurso que apresentou culminam com as seguintes conclusões:

A) A douta decisão de que se recorre é a que consta da sentença proferida a fls. … e ss. nos autos com o n.º 1401/14.2BELSB que correm termos no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa e que julgou procedente a exceção de falta de interesse em agir da Autora.

B) Nos presentes autos está em causa a anulação do ato de resolução do CONTRATO 6A.

C) Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 da Cláusula 19.ª do Caderno de Encargos do Acordo-Quadro, resulta que o Réu pode resolver o Acordo-Quadro com a Autora se o mesmo já tiver resolvido 2 contratos – celebrados ao abrigo do Acordo-Quadro com esta -, a título sancionatório.

D) O interesse em agir da Autora não é – ou não é a título principal – o de executar o CONTRATO 6A como se o mesmo não tivesse sido resolvido.

E) A Autora pretende impedir que na ordem jurídica não se mantenha uma decisão de resolução sancionatória na medida em que a simples existência de uma tal decisão afeta os interesses (contratuais) legalmente protegidos da Autora – concretamente, prevenir a resolução do Acordo-Quadro com fundamento na existência de 2 contratos resolvidos a título sancionatório.

F) O cenário da resolução do Acordo-Quadro não hipotético e/ou eventual, até porque, na presente data, tendo o Réu já resolvido, a título sancionatório, outros dois contratos celebrados ao abrigo do Acordo-Quadro, existe um risco real de o mesmo poder resolver o Acordo-Quadro, com fundamento na citada cláusula do Caderno de Encargos.

G) O Réu já impugnou as decisões de resolução dos outros dois contratos – relativos às zonas 5B e 5C – no âmbito dos processos n.ºs 1400/14.4BELSB e 1402/14.0BELSB que correm termos no Tribunal a quo, respetivamente.

H) É a existência de 3 contratos já resolvidos pelo Réu, a título sancionatório, que a Autora pretende eliminar da ordem jurídica, por entender que os mesmos são anuláveis.

I) O ato de anulação do CONTRATO 6A – ato cuja anulação e peticiona na presente ação -, não sendo já lesivo do direito da Autora no Acordo-Quadro, é-o, no entanto, quanto ao direito desta nele participar sem estar “a qualquer momento” sujeita ao jugo da resolução deste.

J) É precisamente para evitar que o Réu possa avançar com a resolução do Acordo-Quadro que, apesar de já resolvido o CONTRATO 6A continua a ser essencial que o Tribunal determine se o ato de resolução deste contrato é ou não anulável.

K) A Autora nunca pretendeu, com a presente ação, a execução específica do CONTRATO 6A, tanto mais que ela própria, com fundamentos diversos, resolveu esse mesmo contrato, tendo, no entanto, operado antes a resolução por iniciativa do Réu.

L) A Autora tem um interesse direito na anulação do ato de resolução do CONTRATO 6A: evitar que o Réu tenha o direito de resolver o Acordo-Quadro; continuar a ser parte no Acordo- Quadro e, com isso, continuar a ser convidada no âmbito dos procedimentos lançados pelo Réu ao abrigo desse mesmo Acordo-Quadro.

M) Pelo exposto, apesar de o CONTRATO 6A já ter terminado a sua vigência, a Autora mantém o seu interesse em agir nos presentes autos, razão pela qual julgou mal o Tribunal a quo quando decidiu que deveria proceder a exceção de falta de interesse em agir da Autora, violando o disposto na alínea a) do n.º 1do artigo 55.º do CPTA.

Termos em que, com o mui Douto e Venerando suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e, em consequência deve a Sentença recorrida ser revogada, devendo o Tribunal a quo conhecer das demais questões alegadas pela Autora na sua Petição Inicial.



O Recorrido não apresentou contra-alegações


Neste Tribunal Central Administrativo, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso.


Com dispensa de vistos legais (simplicidade), importa apreciar e decidir.


I. 1. Questões a apreciar e decidir:

As questões suscitadas pela Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, traduzem-se em apreciar se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao ter concluído que em face da circunstância de o contrato em questão nos autos já não estar em vigor, a Autora deixou de ter qualquer interesse relevante na acção, com o que veio a julgar procedente a excepção dilatória inominada de falta de interesse em agir.



II. Fundamentação

II.1. De facto

A matéria de facto pertinente é a constante da sentença recorrida, a qual se dá aqui por reproduzida, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 663.º, n.º 6, do CPC ex vi dos art.s 1.º e 140.º do CPTA.



II.2. De direito

Vem questionada no recurso a decisão da Mma. Juiz do TAC de Lisboa que considerou que encontrando-se o contrato extinto, em virtude de já ter decorrido o seu prazo de vigência (que terminou em 1.08.2014 - Cláusula Terceira – al. A) da factualidade assente), a Autora, ora Recorrente, não retiraria um benefício concreto, que directa e imediatamente se reflectisse na sua esfera jurídica pessoal, por não existir uma necessidade efectiva de tutela judiciária. Pelo que veio a concluir pela falta de interesse em agir da mesma, absolvendo a Entidade Demandada, o município ora Recorrido, da instância.

A Recorrente discorda deste entendimento, assentando a sua alegação no seguinte:

Na alínea a) do n.º 1 da Cláusula 19.ª do Caderno de Encargos do Acordo-Quadro – sob a epígrafe “Resolução Sancionatória do Acordo-Quadro” – é referido o seguinte:

«1. A ENTIDADE ADJUDICANTE tem o direito de resolução do ACORDO QUADRO com um qualquer CO-CONTRATANTE, sem que este tenha direito a qualquer indemnização, nas seguintes situações:

a) Se a ENTIDADE ADJUDICANTE tiver rescindido, a titulo sancionatório, dois CONTRATOS celebrados com o CO-CONTRATANTE;».

Perante tal enquadramento contratual, cumpre referir que o interesse em agir da Autora não é – ou não é a título principal – o de executar o CONTRATO 6A como se o mesmo não tivesse sido resolvido, mas antes, e sobretudo, impedir que na ordem jurídica se mantenha uma decisão de resolução sancionatória na medida em que a simples existência de uma tal decisão afeta os interesses (contratuais) legalmente protegidos da Autora – concretamente, prevenir a resolução do Acordo-Quadro com fundamento na existência de 2 contratos resolvidos a título sancionatório.

E não se pense que esse cenário é uma possibilidade meramente hipotética e/ou eventual, na medida em que, face à existência de já outros dois contratos resolvidos, a título sancionatório, existe, na presente data, o risco real de o Réu poder resolver o Acordo-Quadro, com fundamento na citada disposição do Caderno de Encargos.

Na verdade, na presente data, conforme já alegado nos Processos Cautelares n.ºs 789/14.0BELSB e 797/14.0BELSB que correm termos no Tribunal a quo, foram já resolvidos dois outros contratos celebrados ao abrigo do Acordo-Quadro - relativos às zonas 5B e 5C do Acordo-Quadro”.

Vejamos então, do acerto do decidido.

Intimamente conexionada com o pressuposto processual da legitimidade, mas que com ele não se confunde, situa-se o pressuposto processual inominado que é designado por interesse processual ou interesse em agir (1). A legitimidade, baseada na posição (subjectiva) da pessoa perante a relação controvertida distingue-se do interesse em agir, traduzido na necessidade objectivamente justificada de recorrer à acção judicial. Note-se que este interesse reside afinal na utilidade para as partes da decisão judicial, ou, dito de outro modo, um interesse que reclama a tutela judiciária.

Em suma, haverá interesse em agir quando o direito do demandante esteja carecido de tutela judicial, representando o interesse em utilizar a acção judicial e em utilizar o processo respectivo, para ver satisfeito o interesse substancial lesado pelo comportamento da parte contrária.

É certo que o interesse em agir não está expressamente consagrado na lei processual, mas, não obstante, a jurisprudência e a doutrina têm entendido que se trata de um pressuposto processual (inominado) que se traduz na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer seguir a acção.

Também como ensinam Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha (cfr. Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª ed., 2010, pp. 369 e 371): “Como se vê, o interesse legitimador para o exercício da acção impugnatória reveste-se de uma grande amplitude: não se confina à titularidade de uma relação jurídica administrativa, bastando-se com um interesse de facto e, portanto, com um mero interesse processual (…)// O requisito exigido para o impulso processual a título individual consiste no interesse directo e pessoal na anulação do acta (n.° 1, alínea a)) . Esse interesse vem a traduzir-se na utilidade, benefício ou vantagem, de natureza patrimonial ou meramente moral, que poderá advir da anulação do acto impugnado e que pode não corresponder à titularidade de um direito subjectivo ou interesse legalmente protegido, mas à simples detenção de um mero interesse de facto (…)”

Deste modo, e retomando a questão acima enunciada, importa averiguar se a Recorrente tem (ou não) interesse não no objecto do processo, mas no próprio processo em si. Isto é, não basta a invocação de um direito ou interesse legalmente protegido, necessário é achar-se em situação tal que necessita do processo – rectius, do tipo/meio processual efectivamente em uso –, para a sua tutela. Isto é, que seja capaz de se traduzir numa utilidade, benefício ou vantagem, que poderá advir da anulação do acto impugnado.

Ora, atenta a causa de pedir vertida na p.i., que consubstancia matéria impugnatória do acto de resolução do contrato em causa nos autos, com o consequentemente pedido da sua anulação, e a alegação efectuada no recurso e supra transcrita, salvo o devido respeito, facilmente se vê o interesse – interesse na sua acepção jurídica estrita – que a Recorrente pode avocar relativamente à pronúncia judicial a emitir nos autos: a invalidade o acto de resolução deste contrato, considerando a medida de resolução prevista na alínea a) do n.º 1 da Cláusula 19.ª do Caderno de Encargos do Acordo-Quadro. Sendo que a Autora, com a presente acção, nunca pretendeu a execução específica do Contrato 6A.

Na verdade, o que vem defendido pelo Ministério Público nesta instância, espelha bem a situação em presença e o erro de julgamento cometido pelo Tribunal a quo:

O referido contrato teve início na data em que foi celebrado e deveria cessar em 1-8-2014, se a entidade demandada não tivesse decidido resolvê-lo de acordo com o disposto na alínea a) do nº l da cláusula 44ª do Caderno de Encargos, com base em mais de 12 pontos de incumprimento por parte da autora, ora recorrente, no âmbito do indicador de desempenho 11, definido na cláusula 40º do Caderno de Encargos do já citado Acordo Quadro, do qual foi destacado o estado dos espaços verdes nos meses de Setembro e Outubro de 2013.

Segundo a sentença, na senda da excepção invocada na contestação da demandada, a autora não declarou qual o interesse ou direito que pretende fazer valer nesta acção, alegando, apenas, que o acto de resolução é ilegal.

Ora, é manifesto que se o contrato deveria vigorar até 1-8-2014 e foi resolvido em 26-2-2014 pela entidade adjudicante, a recorrente como adjudicatária tem interesse em impugná-lo por lesão do seu interesse em não ver o contrato rescindido com base no. alegado incumprimento pela sua parte, o qual originou a aplicação de penalidades à recorrente, traduzidas na redução em 20% do valor da facturação do mês de Setembro.

De facto, ainda que a recorrente comunicasse à recorrida que "pretendia também resolver o contrato, logo após ter sido notificada para se pronunciar sobre o projecto de acto de resolução do contrato de 9-01-2014, ao abrigo da alínea c) do nº l e do nº3 do artº 332º do Código dos Contratos Públicos, por se verificarem pagamentos em atraso por parte da recorrida de valor superior a 25% do preço do contrato, a verdade é que a entidade demandada se antecipou e praticou acto resolutivo final em 14-3-2014 portanto 7 dias antes de a resolução da autora produzir os seus efeitos, nos termos do nº4 do artº 332º do CCP.

E como a resolução da entidade demandada não foi suspensa no processo cautelar instaurado para o efeito, a mesma produziu todos os efeitos lesivos na esfera jurídica da recorrente.

E operando eficazmente a título sancionatório, vai fazer perigar o direito da recorrente a participar no Acordo Quadro, nos termos da alínea a) do nº l da Cláusula 19ª do CE.

Assim, não pode, quanto a mim, deixar de se considerar o acto resolutivo em análise, lesivo dos direitos e interesses da recorrente nos termos do contrato celebrado com a entidade demandada.

Isto tanto mais que, pelos vistos, já existem mais duas resoluções parciais do contrato em análise, susceptíveis de fazer perigar o acordo quadro.

Aliás, é a própria sentença que refere textualmente que "a decisão resolutiva produz efeitos externos e afectou a esfera jurídica da Autora uma vez que esta deixou de poder continuar a prestação de serviço contratado", com os inerentes prejuízos daí decorrentes.

Ora, assim sendo, não se vê como é que se pode negar à recorrente legitimidade para impugnar um acto que é lesivo dos seus direitos contratuais, e detém eficácia externa.

(…)”

Com efeito, como por si alegado, a ora Recorrente tem até um interesse directo na anulação do acto de resolução do contrato em questão, o qual se consubstancia em evitar que a Demandada tenha o direito de resolver o Acordo-Quadro. Ou dito de modo diverso: continuar a ser parte no Acordo-Quadro e, com isso, continuar a ser convidada no âmbito dos procedimentos contratuais lançados ao abrigo desse mesmo Acordo-Quadro.

Assim, de acordo com o disposto no art.s 55.º, n.º 1, al. a) do CPTA, é a ora Recorrente parte legítima, e tem interesse em agir, com o que a suscitada excepção terá que improceder, contrariamente ao que vem decidido.

Razões pelas quais, procedendo as conclusões de recurso, tem a sentença recorrida, que absolveu a Entidade Demandada da instância com fundamento na procedência da excepção inominada de falta de interesse em agir, que ser revogada, prosseguindo os autos ulteriores termos em vista à prolação de decisão de mérito, se a tal nada mais obstar.



III. Conclusões

Sumariando:

i) O interesse em agir, enquanto pressuposto processual autónomo, pode definir-se como a necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir determinada acção.

ii) Tem interesse em agir, dado necessitar de tutela judiciária, o sujeito processual que pretende que seja declarada a invalidade do acto de resolução do contrato em questão, considerando o direito previsto à resolução do Acordo-Quadro existente pela Entidade Demandada, assim tutelando a possibilidade jurídica de a Autora continuar a ser parte naquele Acordo-Quadro (interesse jurídicos) e, com isso, continuar a ser convidada no âmbito dos procedimentos contratuais lançados ao abrigo do mesmo (interesses patrimoniais).



IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida, baixando os autos ao TAC de Lisboa a fim de aí prosseguirem ulteriores termos, se a tal nada mais vier a obstar.

Sem custas.

Lisboa, 30 de Junho de 2016



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Pedro Marchão Marques


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Maria Helena Canelas


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António Vasconcelos


(1) Interesse em agir ou interesse processual pode definir-se como o interesse da parte activa em obter a tutela judicial de um direito subjectivo através de um determinado meio processual e o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessão daquela tutela – cfr. Miguel Teixeira de Sousa, As Partes, O Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lisboa, 1995, p. 97. O interesse em agir é configurado como um pressuposto processual autónomo inominado pelo qual se afere a utilidade ou vantagem que o sujeito processual que busca a composição do litígio pode retirar da sentença que vier a ser proferida (cfr., i.a., o ac. deste TCAS de 11.04.2013, proc. n.º 5815/10 ou o ac. de 1.10.2014, proc. n.º 7883/14 , este por nós relatado).