Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:00218/04
Secção:Contencioso Administrativo - 2º Juízo
Data do Acordão:02/03/2005
Relator:António Coelho da Cunha
Descritores:ASILO POLÍTICO
LEI Nº 15/98, DE 26 DE MARÇO
PRÁTICA DE ATROCIDADES
EXCLUSÃO DO DIREITO AO ASILO OU AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA
Sumário:Incumbe ao requerente do pedido de asilo a prova de factos concretos demonstrativos da perseguição de que tenha sido objecto, por virtude das suas convicções políticas ou da sua actividade em favor da democracia, da liberdade e dos direitos humanos.
II - A simples prova de envolvimento em conflitos armados não constitui base para a concessão do asilo ou autorização de residência.
III - A prática de atrocidades tipificadoras de crimes de guerra, incompatível com os valores vigentes numa sociedade democrática, exclui a possibilidade de concessão do asilo ou autorização de residência (art. 13º nº 1 da Lei 15/98 e apartado F do nº B1 da Convenção de Genebra).
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam no 2º Juízo do T.C.A. Sul

1. Relatório.
Abdul ...., nacional de Serra Leoa, requerente de asilo político em Portugal com o processo de Asilo nº 254-c/99 no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras; interpôs no T.C.A.L. recurso contencioso de anulação da decisão final do Sr. Comissário Nacional para os Refugiados, de 12.01.00, que confirmou a decisão do Sr. Director do S.E.F. de recusa do pedido de asilo e de autorização de residência por motivos humanitários.
O Mmo. Juiz do T.A.C.L., por decisão de 7.11.02, negou provimento ao recurso.
O recorrente interpôs para este T.C.A. recurso jurisdicional, no qual enuncia as conclusões seguintes:
1ª) O ora recorrente logrou demonstrar, inequivocamente, a existência de motivos concretos que fundamentam, objectivamente, que o regresso ao pais de origem constitui um sério e fundado receio de insegurança, perseguição e ameaças; -
2ª) O Sr. Juiz “a quo” não rebateu nenhum dos factos alegados pelo ora recorrente.
3ª) Tais factos, na verdade, preenchem os requisitos do direito de asilo e da autorização de residência por razões humanitárias;
4ª) A posição do ora recorrente foi sustentada nas alegações finais;
5ª) O Sr. Juiz “a quo” apenas e tão só aprecia, vaga e subjectivamente, a acção do ora recorrente, separando-o do grupo social organizado a que pertenceu e do cenário de guerra civil que viveu, já que omite tomar posição quanto aos factos alegados na petição de recurso, nomeadamente nos seus artigos 4º, 5º, 6º, 7º e 19º.
6ª A devolução do ora recorrente ao pais de origem viola o princípio do “non refoulement” (princípio de expulsar e repelir), previsto no art. 33º da Convenção de Genebra e Protocolo de Nova Iorque e art. 3º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem;
7ª) Na douta decisão recorrida, o Sr. Juiz “a quo” não tomou, pois, posição quanto ao alegado pelo ora recorrente nos arts. 4º, 5º, 6º, 7º, 10º, 11º, 12º, 13º, 14º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º e 21º da petição de recurso;
8ª) A decisão “a quo” não julga bem, tendo sido cometido erro de julgamento, com fundamento em vício de violação de lei;
9ª) E é nula, uma vez que o Sr. Juiz “a quo” não se pronunciou sobre questões que devia apreciar;
10ª) Foram violadas as normas jurídicas dos artigos 1º e 8º da Lei nº 15/98, de 26 de Março, 1º e 33º da Convenção de Genebra e Protocolo de Nova Iorque e 3º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e também as normas dos arts. 659º nº 3 e 668º nº 1, alínea d), primeira parte, ambos do C.P. Civil; -
11ª) No entender do ora recorrente, as normas jurídicas dos arts. 1º e 8º da Lei nº 15/98, de 26 de Março, deviam ter sido interpretadas e aplicadas no sentido da concessão do direito de asilo ou da autorização de residência por razões humanitárias; -
Não houve contra-alegações.
O Digno Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
x x
2. Matéria de Facto
A matéria de facto é a fixada na decisão de 1ª instância, para cujos termos se remete na íntegra (cfr. art. 713º nº 6 do Cod. Proc. Civil).
x x
3. Direito Aplicável
A decisão “a quo” considerou improcedente o vício de lei invocado pelo requerente Abdul ...., e que consistiria na pretensa violação do art. 33º da Convenção de Genebra e Protocolo de Nova Iorque, no art. 3º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e nos artigos 1º e 8º da Lei 15/98, por parte do acto recorrido. Entendeu, pelo contrário, que no caso concreto existem motivos para a exclusão do pedido de asilo, por via da verificação do circunstancialismo contido no art. 8º da Lei nº 15/98, de 26 de Março.
Insurgindo-se contra tal entendimento, vem o recorrente invocar a nulidade da sentença por omissão de pronúncia e a violação das normas jurídicas dos arts. 1º e 8º da Lei 15/98, de 26 de Março, 1º e 33º da Convenção de Genebra e Protocolo de Nova Iorque e 3º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
O Digno Magistrado do Ministério Público no seu douto parecer, salienta que o recorrente não foi perseguido ou ameaçado em consequência de actividade a favor da democracia, da libertação e nacional e dos direitos da pessoa humana, pelo que se não pode incluir na previsão do art. 1º da Lei 15/98. Por outro, não se demonstrou impedido de regressar ao seu pais por motivos de grave insegurança, pelo que se não pode incluir na previsão do art. 8º do mesmo diploma, de molde a beneficiar da autorização de residência.
É esta a questão a analisar
No tocante à pretensa nulidade da sentença, esta não se verifica. Como é sabido, o julgador não tem que analisar todas as razões jurídicas que cada uma das partes invoque em abono das suas posições, embora lhe incumba resolver todas as questões suscitadas pelas partes; a fundamentação da sentença contenta-se com a indicação das razões jurídicas que servem de apoio à solução adoptada pelo julgador (cfr. Antunes Varela, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, p. 688). Além disso, é sabido que o conhecimento de algumas questões pode ficar prejudicado pela solução dada a outras (cfr. art. 660 nº 2 do Cód. Proc. Civil).
Ora, no caso concreto, a decisão recorrida considerou provada a matéria de facto de forma suficiente e de acordo com os dados emergentes do processo instrutor, mostrando-se os factos alegados pelo recorrente, face a tal matéria inidóneos e insuficientes para integrar os pressupostos legais da concessão de asilo. Na verdade, e como é sabido, o requerente de asilo tem de alegar factos concretos demonstrativos de perseguição ou ameaça de que tenha sido objecto em consequência da sua actividade em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana, exercida no Estado da sua nacionalidade ou residência (cfr. Ac. STA Pleno de 30.5.96; Ac. STA Pleno de 9.11.99, Rec. 37809, in “Antologia de Acordãos do STA e do TCA, Ano III, nº 1, p. 6 e seguintes), não bastando a mera invocação de um medo ou inquietação pessoal.
O recorrente alega que a decisão recorrida não tomou posição quanto ao alegados artigos 4º, 5º, 6º, 7º, 10º, 11º, 12º, 13º, 14º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º e 21º da petição, daí pretendendo inferir a invocada omissão de pronúncia.
Mas não lhe assiste razão.
A decisão recorrida teve em conta a alegação da referida matéria de facto, aliás efectuada de forma muito vaga, genérica, e até contraditória, tendo-a por isso considerado insuficiente e contraria à informação constante do processo instrutor, além de insusceptível de contrariar o teor do despacho recorrido, do Sr. Comissário Nacional para os Refugiados, de 12.1.00.
Senão vejamos:
Como se notou na decisão recorrida, os requisitos da admissibilidade do pedido de asilo são os seguintes:
a) que o requerente preencha os elementos objectivos e constitutivos do direito de asilo, consagrados nos números 1 e 2 do artº 1º da Lei nº 15/98, de 26 de Março.
Como é sabido, tais elementos consistem em não possuir nacionalidade portuguesa ou ser apátrida e haver sido objectivamente perseguido no seu pais de origem por ter lutado pelas causas acima indicadas (democracia, liberdade e defesa dos direitos humanos);
b) Que, como se disse, a situação de inquietação e intranquilidade não seja meramente subjectiva, mas derive de uma perseguição ou ameaça efectiva; derivada das opiniões políticas, religião ou inserção em determinado grupo social;
c) Que não se verifique a situação prevista no art. 13º da Lei nº 15/98, em virtude do cometimento de crimes de guerra ou contra a humanidade (cfr. o apartado F. do nº B.1 da Convenção de Genebra de 1951).
Tais requisitos não se verificam, manifestamente, no caso concreto.
Em primeiro lugar não se vislumbra que o recorrente tenha alguma vez lutado pela liberdade e democracia, e nem o mesmo sequer invoca esses valores na sua petição, limitando-se a assinalar as suas ligações com a Armed Forces Revolucionary Council até Fevereiro de 1998, “altura em que foram expulsas, o que lhe causou represálias, tendo até a sua casa em Bo sido destruída”, razão pela qual se terá integrado nas forças rebeldes desde Fevereiro de 1998 até Novembro de 1999 (arts. 4º e 5º da petição).
Em segundo lugar, e contraditoriamente, o recorrente declara e assume ter cometido atrocidades, quando integrado nessas forças, facto que integra o fundamento nuclear do indeferimento do pedido, como se verifica pela declaração destacada na sentença recorrida: “Durante o tempo que permaneci com os rebeldes participei em muitos ataques efectuados pelos rebeldes, incluindo o ataque a Freetown em Janeiro passado, e cometi muitas atrocidades, tais como matar pessoas e cortar braços e pernas”. cfr. fls. 19, da informação do S.E.F.
Na mesma declaração, o recorrente afirma ter tido consciência do cometimento de tais atrocidades, e que abandonou os rebeldes por estar em curso um processo de paz e temer que as pessoas o reconhecessem. Por este motivo, o acto recorrido considerou, com justeza, que as declarações do demandante, reafirmadas no requerimento para reapreciação do pedido, pertimem concluir que a sua actuação, enquanto elemento pertencente às forças rebeldes, é de molde a permitir o seu enquadramento nas alíneas a), b) e c) do apartado F) nº 1 da alínea B) do art. 1º da Convenção Relativa ao Estatuto de Refugiado, de 28-7-1951, sendo inadmissível, por via do art. 13º da Lei nº 15/98, de 26 de Março, a concessão do asilo ao requerente. Fundamentação esta que a sentença recorrida acolheu na íntegra, acentuando que o princípio do “non refoulement” não pode ser aplicado a pessoas que praticaram crimes de guerra, sob pena de permitir a inserção na sociedade democrática de pessoas que demonstraram “não ter qualquer respeito pela vida humana, a não ser pela própria (que pretende salvar a todo o custo)”.
É de concluir, portanto, que o ora recorrente não só não demonstra a sua participação em quaisquer actos na defesa da democracia, liberdade ou direitos humanos, como até confessa a prática de actos incompatíveis com os princípios que regem o direito de protecção humanitária, excludentes da protecção asilar, e pelos quais poderia e deveria ser julgado. E que, por outro lado não se encontra suficientemente indiciada qualquer perseguição por este sofrida no seu pais de origem em virtude das suas convicções políticas, mas tão sómente o seu envolvimento em conflitos armados, verificando-se todavia uma evolução positiva na actual situação político-militar, ocorrida na Serra Leoa, com a celebração de um acordo de paz entre as forças governamentais e as forças alinhadas com a facção rebelde.
Bem andou, pois, a decisão recorrida, ao concluir pela verificação do condicionalismo previsto no art. 13º nº 1 da Lei 15/98 e apartado F do nº B1 da Convenção de Genebra, assim fundamentando com justeza o indeferimento da pretensão do recorrente.
x x
4- Decisão.
Em face do exposto acordam em negar provimento ao recurso e em confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 200 Euros e a procuradoria em 100 Euros, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário concedido.
Lisboa, 27.01.05, digo, 3.02.05
as.) António de Almeida Coelho da Cunha (Relator)
Maria Cristina Gallego dos Santos
Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa