Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1440/19.7BELRA
Secção:CT
Data do Acordão:07/09/2020
Relator:HÉLIA GAMEIRO SILVA
Descritores:RECLAMAÇÃO DE ATOS DO ÓRGÃO DE EXECUÇÃO FISCAL
NULIDADE DA DECISÃO
DEFICIT INSTRUTÓRIO
Sumário:I. As causas de nulidade da sentença encontram-se elencadas no n.º 1 do artigo 615.º do CPC e bem assim no artigo 125.º do CPPT, neste âmbito, a nossa jurisprudência tem vindo a assumir que, não basta a indicação de que a decisão se mostre deficiente, incompleta ou não convincente, para que se julgue verificado este vício, sendo substancial que a falta de fundamentação seja absoluta.
II. O princípio do inquisitório obtém plena eficácia, em sede de apreciação da matéria de facto e o juiz adquire aí, a incumbência legal de proceder a todas as diligências conducentes á descoberta da verdade material, trata-se de um dever que flui do disposto no artigo 411.º do NCPC e que é seguido no processo tributário nos artigos 13.º do CPPT e 99. ° da LGT, no sentido de que o tribunal deve realizar ou ordenar todas as diligências que considerar úteis ao apuramento da verdade.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul

l – RELATÓRIO

A..., deduziu junto do Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Leiria, reclamação contra o ato de penhora do vencimento, realizada pelo Serviço de Finanças de Caldas da Rainha, no âmbito do processo de execução fiscal n.° 135... e apensos, instaurado para cobrança coerciva de dívida de IRS do ano de 2012 no valor de € 19.890,19.

O TAF de Leiria, por decisão de 13 de março de 2020, julgou parcialmente procedente a reclamação.

Inconformada, A..., veio recorrer contra a referida sentença, tendo apresentado as suas alegações e formulado as seguintes conclusões:

«A. O presente recurso é interposto da Douta sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria que julgou parcialmente procedente a ação de Reclamação de ato do órgão de execução fiscal, no que respeita ao acto de penhora de vencimento da ora Reclamante, tem do decidido, sumariamente, reduzir o valor da penhora, sem que tenha declarado a sua ilegalidade como peticionado.

B. A sentença recorrida claudicou na apreciação dos factos e do direito, de forma transversal, atendendo ao princípio da livre apreciação de prova, não tendo especificado os fundamentos de facto e de direito que justificam a sua decisão, em violação com o disposto na alínea c) do artigo 615.° do CPC, mais caindo numa situação de erro de julgamento, sem que se tenha pronunciado sobre questões sobre as quais se devia pronunciar ao nível do Direito, existindo, assim, omissão de pronúncia, violando o n.° 2 do artigo 608.° e da alínea d) do artigo 615.°, ambos do CPC, pelo que deverá a sentença ser revogada e declarada nula.

C. A sentença recorrida também padece de défice instrutório, atenta a falta de averiguação quanto à existência de outra penhora e seu montante em outro processo de execução, facto que foi dado como provado e assente na fundamentação de facto da sentença em causa - cfr. artigo 662.°, n.° 2, alínea c) do CPC e que acabou por não ter sido subsumido na Douta sentença.

D. O Mmo. Juiz a quo considerou provados, com relevância para a decisão e para o presente recurso os factos constantes dos números 1., 2., 3., 16. e 17. do ponto III. A) da Fundamentação de Facto, para os quais se remete, porém, entende a Recorrente que destes elementos, sobressaem factos suficientes para que pudesse ter decidido de forma diferente e tivesse considerado totalmente procedente o pedido formulado pela Reclamante.

E. O Tribunal a quo deu como provada a existência de duas ações executivas - pontos 3., 16. e 17. do ponto III., alínea A) da Fundamentação de Facto - que se encontram em fases processuais distintas, a correr termos em Tribunais distintos, para depois, em completa contradição, considerar que nos presentes autos a Autoridade Tributária tem legitimidade para cobrar coercivamente a divida de € 19.890,19, valor que engloba juros e o capital em divida dos dois processos de execução fiscal: i) n.° 135..., por dívida de IRS do ano de 2012 no valor de € 5.752,50 e, ii) n.° 1350..., por dívida de IRS do ano de 2012 no valor de € 10.687,99 - (€ 5.752,50 + € 10.687,99= € 16.440,46).

F. A Autoridade Tributária não pode cobrar coercivamente no presente processo de execução fiscal o valor de € 10.687,99 que respeita ao outro processo de execução, cujos termos ainda decorrem, sem que tenha sido proferida sentença.

G. Ao fazê-lo o Tribunal a quo viola a regra existente no ordenamento jurídico português que é a inadmissibilidade da litispendência, pois o mesmo valor encontra-se a ser alvo de dois processos judiciais distintos, com causas de pedir distintas dado que as certidões de divida são distintas e o valor de imposto alegadamente em divida comporta períodos distintos também - cfr. artigo 580.° do CPC. Tal situação gera, indubitavelmente, a nulidade do acto administrativo.

H. Ainda que na página 7 da Douta sentença, no campo de Direito, o Mmo. Juiz a quo refira de forma superficial que a Reclamante reagiu contra a liquidação de IRS, encontrando-se uma ação julgado e transitada em julgado e outra ainda a correr termos, a verdade é que o Tribunal a quo continuaria a não poderia fazê-lo, precisamente pela pendência de um dos processos.

I. É fulcral referir que tendo a Reclamante se encontrado em estado de insolvência e tendo, nesse processo, o Administrador da Insolvência procedido à alienação dos bens apreendidos para a massa por valor superior àquele pelo qual tinham sido adquiridos pela insolvente, ora Reclamante, conforme referido em Acórdão da Relação de Guimarães “…o imposto (IRS) devido pelas mais-valias dai decorrentes deve ser considerado uma dívida da massa insolvente nos termos do disposto no artigo 51º n.º 1 alínea c) do CIRE.”, o que acaba por não ser atendido neste processo.

J. Ou seja, o raciocínio da Douta sentença até estaria correto se apenas existisse uma execução a correr termos contra a Reclamante. Porém tal não é a realidade dos autos. Existem duas ações executivas distintas, com valores diferentes e respeitantes a liquidações distintas também.

K. O Tribunal a quo não poderia decidir como decidiu sem primeiro averiguar se na outra execução há penhora e qual o seu montante, existindo, em consequência, défice instrutório por falta de averiguação quanto à existência de penhora e seu montante na outra execução.

L. A Reclamante não pode ficar com menos do que o SMN, considerado o mínimo de subsistência, em relação a todas as penhoras. Foi, assim, violado o disposto no n.º 1 do artigo o artigo 99.º da LGT e o disposto no artigo 13.º do CPPT, donde se retira que a sentença deve ser anulada – cfr. n.º 2, alínea c) do artigo 662.º do CPC. Veja-se a este respeito o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, no âmbito do processo n.º 3177/12.9BELRS, de 12.12.2017, em que foi relator o Exmo. Sr. Juiz Desembargador Joaquim Condesso.

M. Se por um lado o Mmo. Juiz a quo andou bem ao ter considerado provados os factos identificados nos números 1., 2., 3., 16. e 17. do ponto III. A) da Fundamentação de Facto, sem que a Reclamante os tenha chamado expressamente à colação na sua Reclamação, a verdade é que já não é assim, no humilde entendimento da Reclamante, quando não considera a subsunção dos factos ao direito na Douta sentença.

N. O Mmo. Juiz a quo, agindo de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, deveria ter baseado a sua decisão transversalmente, atendendo não só às alegações das partes, como, à sua análise e avaliação dos meios de prova trazidos ao processo, como a prova documental, e a averiguação oficiosa no Sitaf, tudo de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas tomando em consideração o principio de direito civil do bónus pater familiae.

O. O Tribunal a quo deveria ter desmaterializado tais factos ao novel do Direito na sentença, o que não fez, omitindo a pronúncia a seu respeito.

P. Se o Tribunal a quo dá como provado que existe a outra execução e omite qualquer pronúncia sobre essa questão na fundamentação de direito, mormente quanto à existência de penhora em tal processo, segue-se que os fundamentos estão em oposição com a decisão, pelo que a sentença é nula nos termos e para os efeitos do disposto na alínea c) do n.° 2 do artigo 615.° do CPC.

Q. Por outro lado, a Reclamante não pode aceitar a decisão do Tribunal a quo quanto à desconsideração das mesadas das duas filhas como sendo despesas do agregado familiar, o que gera erro de julgamento, pois dar-se-ia como provado que as despesas mensais do agregado familiar ascenderiam a € 1.220,00 e não como entende o Tribunal a quo a € 1.120,00 e que levaria em consequência a considerar um eventual valor de penhora disponível bem menor ao fixado na sentença.

R. As mesadas destinam-se a prover os filhos de dinheiro necessário para providenciar a compra de artigos de alimentação e/ou escolares que necessitem; não são gastos de lazer.

S. A necessidade e a medida dos alimentos que os pais devem providenciar aos filhos, deve ser adequada aos meios de que disponham, e, não podemos deixar de valorar essas necessidades de forma abrangente. Como nos parece obvio, duas filhas em idade escolar, não podem deixar de ter algum dinheiro mensal para fazer face a necessidades que não podem deixar de considerar-se básicas. Veja-se a este respeito o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, no âmbito do processo n.° 271/15.8T8BRG-C.G1, de 11.05.2017, em que foi relatora a Exma. Sra. Juiz Desembargadora Maria dos Anjos Nogueira.

T. A doutrina considera, para efeitos de determinação do montante equivalente ao SMN, que é relevante a parte sobrante, não executada, dos rendimentos do executado, ainda que a sua origem esteja, por exemplo, numa mesada dos pais - vide Rui Pinto, Penhora e Alienação de Outros Direitos, Execução Especializada sobre Créditos e Execução sobre Direitos não Creditícios na Reforma da Ação Executiva, in Themis - Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, 2003. PP. 142-143. 177, e Manual da Execução e Despejo, 1.a ed. Coimbra, Coimbra Editora, p. 511.

U. Se uma mesada pode ser considerada rendimento do executado, então ela tem também pode ser considerada "despesa" do mesmo, quando o fluxo de dinheiro beneficia outrem. A solução não pode ser a de desconsiderar a mesada como despesas, mas outrossim considera-la como tal quando for razoável.

V. Existe claramente um erro de julgamento, o qual deveria ter sido conhecido pelo Mmo. Juiz a quo, o qual não o tendo feito caiu na situação prevista na alínea d) do n.° 1 do artigo 615.°, viciando, deste modo, a sentença recorrida.

W. A sentença recorrida viola, entre outras as seguintes disposições legais e princípios jurídicos estruturantes no ordenamento jurídico português: princípio da livre apreciação de prova; as alíneas c) e d) do artigo 615.° do CPC; o n.° 2 do artigo 608.° do CPC; artigo 662.°, n.° 2, alínea c) do CPC; a inadmissibilidade da litispendência, cfr. artigo 580.° do CPC; o n.° 1 do artigo o artigo 99.° da LGT e o disposto no artigo 13.° do CPPT; o princípio do bónus pater familiae.

Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas. que se pede e espera, deverá o presente recurso ser considerado procedente por provado e, em consequência, ser declarada nula ou revogada a sentença recorrida, a qual, em qualquer caso, deverá ser substituída por outra que declare totalmente procedente a ação de Reclamação contra a prática ilegal de acto a Autoridade Tributária, assim se fazendo a verdadeira e costumada JUSTIÇA!»


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A RECORRIDA (FP), não contra-alegou.

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O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal, nos termos do artigo 289.º, n. º1 do CPPT, veio oferecer o seu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Com dispensa dos vistos, atento o carácter urgente dos presentes autos, vem o processo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Tributário para decisão.



II – QUESTÕES A APRECIAR

Em sede de aplicação do direito, a sentença recorrida julgou parcialmente procedente a reclamação e, anulou o ato de penhora reclamada na parte que excede o valor de € 40,50, determinando a redução da penhora a este montante, com as demais consequências legais.

Antes de mais, importa referir que, independentemente das questões que o Tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é pelas conclusões do recorrente nas alegações de recurso que se determina o âmbito de intervenção do tribunal (cfr. artigo 635.º, n.º 4 e artigo 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2003, de 26 de junho.

Assim e constituindo o recurso um meio impugnatório de decisões judiciais, neste apenas se pode pretender, salvo a já mencionada situação de questões de conhecimento oficioso, a reapreciação do decidido e não a prolação de decisão sobre matéria não submetida à apreciação do Tribunal a quo.

Termos em que a questão sob recurso que importa aqui decidir, consiste em aferir se a sentença recorrida enferma de:

a) nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a sua decisão e, bem assim, se deixou de se pronunciar sobre questões sobre as quais se devia ter feito;

b) deficit instrutório por falta de averiguação quanto à existência de outra penhora e seu montante em outro processo de execução, facto que foi dado como provado e assente na fundamentação de facto da sentença;

c) erro de julgamento ao desconsiderar as das mesadas das duas filhas da reclamante, como sendo despesas do agregado familiar para efeitos de cálculo da impenhorabilidade da parte líquida de vencimento da executada.


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III - FUNDAMENTAÇÃO

A sentença recorrida considerou os seguintes factos provados:

«1. Em 20-11-2013 foi emitida pelo Serviço de Finanças de Caldas da Rainha certidão de dívida em nome da Reclamante e P..., a qual deu origem ao processo de execução fiscal n.° 135..., por dívida de IRS do ano de 2012 no valor de € 5.752,50 (cfr. fls. 31 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

2. Em 03-01-2017 foi emitida pelo Serviço de Finanças de Caldas da Rainha certidão de dívida em nome da Reclamante e P..., a qual deu origem ao processo de execução fiscal n.° 1350..., por dívida de IRS do ano de 2012 no valor de € 10.687,99 (cfr. fls. 32 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

3. Por sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria em 20-02-2017 foi julgada improcedente impugnação judicial apresentada pela Reclamante e por P... contra a liquidação de IRS do ano de 2012, no valor de € 5.752,50 (cfr. fls. 33 a 35 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

4. Em 24-10-2019 foi remetida à sociedade «V... - Sociedade de Construções, Lda.» notificação para proceder à penhora do vencimento da Reclamante (cfr. fls. 36 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

5. Em 07-11-2019 a sociedade «V... - Sociedade de Construções, Lda.» apresentou junto do Serviço de Finanças de Caldas da Rainha requerimento a informar que iria proceder à penhora de 1/6 do vencimento da Reclamante, no valor de € 67,50 (cfr. fls. 40 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

6. Em 17-11-2019 foi emitida em nome da Reclamante, citação para o processo de execução fiscal n.° 135... e apensos, no valor de € 19.890,19 (cfr. fls. 39 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

7. A presente Reclamação foi remetida por correio registado ao Serviço de Finanças de Caldas da Rainha em 19-11-2019, tendo dado entrada neste Tribunal em 05-12-2019 (cfr. fls. 1 e 28 dos autos);

8. Em 20-11-2019 foi comunicada á Reclamante a penhora sobre o seu vencimento no âmbito do processo de execução fiscal n.° 135... e apensos (cfr. fls. 37 e 38 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

9. O agregado familiar da Reclamante é composto pela Reclamante, pelo seu cônjuge P... e por duas filhas dependentes (cfr. fls. 10 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

10. A Reclamante aufere mensalmente um salário de 750,00 ilíquidos que, com os descontos legais - IRS e Segurança Social - perfaz o montante líquido de € 640,50 (cfr. fls. 11 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

11. O cônjuge da Reclamante P... aufere mensalmente um salário de € 750,00 ilíquidos que, com os descontos legais - IRS e Segurança Social - perfaz o montante líquido de € 640,50 (cfr. fls. 12 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

12. O agregado familiar da Reclamante gasta, em média, mensalmente, cerca de € 600,00 com despesas de alimentação, € 80,00 de electricidade, € 50,00 de gás, € 40,00 de água e € 100,00 com despesas de saúde (cfr. facto que se extrai dos documentos de fls. 13 a 25 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, não contestados pela Fazenda Pública);

13. A Reclamante e o cônjuge gastam, em média, mensalmente, cerca de € 250,00 com actividades extracurriculares das filhas dependentes e cerca de € 100,00 com vestuário e calçado (cfr. facto que se extrai dos documentos de fls. 13 a 25 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, não contestados pela Fazenda Pública);

14. A Reclamante e o cônjuge pagam o IMI da casa onde vive o agregado familiar, no valor anual de € 420,24, apesar de o imóvel não lhes pertencer (cfr. facto que se extrai do documento de fls. 26 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, não contestado pela Fazenda Pública);

15. O agregado familiar da Reclamante tem, mensalmente, em média, despesas fixas no valor de cerca de € 1.120,00 (cfr. facto que se extrai dos documentos de fls. 13 a 25 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, não contestados pela Fazenda Pública);

16. Corre termos neste Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, o processo de oposição à execução fiscal com o n.° 389/17.2BELRA, apresentada pela Reclamante e pelo seu cônjuge P... no processo de execução fiscal identificado em 2) (cfr. facto que se extrai por consulta pública à plataforma SITAF);

17. Corre termos neste Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, o processo de impugnação judicial com o n.° 307/17.8BELRA, apresentada pela Reclamante e pelo seu cônjuge Pedro contra liquidação de IRS do ano de 2012, no valor de € 16.440,49 (cfr. facto que se extrai por consulta pública à plataforma SITAF);


* * *

B) FACTOS NÃO PROVADOS

Não existem factos não provados, em face das possíveis soluções de direito, com interesse para a decisão da causa.


* * *

A convicção do Tribunal baseou-se na análise crítica de toda a prova documental produzida nos autos, designadamente nas informações oficiais e documentos constantes dos autos e do de execução fiscal junto aos autos, não impugnados, conforme remissão efectuada em cada número do probatório.

Importa referir que, quanto ao facto provado n.° 15, o Tribunal considerou provado o valor médio mensal gasto pelo agregado familiar da Reclamante em € 1.120,00 mensais e não em € 1.220,00 como invocado, pois não teve em conta o valor alegadamente suportado com as mesadas pagas pela Reclamante e pelo seu marido às filhas dependentes, no valor de € 100,00, que, mesmo que tivesse sido demonstrado, nunca poderia ser considerando como despesa do agregado familiar, atendendo a que não está em causa um valor que seja devido quer a título legal, quer a título contratual, não podendo por isso considerar-se uma despesa do agregado familiar.»


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De Direito

Nos presentes autos a impetrante vem reclamar contra o ato que ordenou a penhora de vencimento proferido no âmbito do processo de execução fiscal n.º 135... e apensos, instaurados para cobrança coerciva de dividas de IRS de 2012, no montante de 16.440,49, acrescido de juros de mora e custas o que perfaz um total de € 19.890,19.

O montante penhorado corresponde a € 67,50 por desconto mensal no vencimento que lhe é pago por “V... – Sociedade de Construções Lda.”.

Pronunciando-se o tribunal de 1.º Instância concede parcial provimento à reclamação por entender, em suma, que o ato de penhora é ilegal na parte que desconsiderou a totalidade dos descontos que obrigatoriamente incidem sobre o rendimento do trabalho da reclamante aqui recorrente.

Em sede do presente recurso, a Recorrente discorda da sentença por considerar que a mesma deveria ter culminado com a declaração de ilegalidade como foi peticionado e, para alcançar tal desiderato, suscita os vícios que deixamos listados na delimitação do objeto do recurso.

Atendendo á natureza dos vícios elencados e ao disposto no artigo 608.º do CPC, procederemos à sua analise dando prioridade às questões de natureza processual que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica.

1. Nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão e, omissão de pronuncia – (concl. B. e D.)

Diz a recorrente que a sentença recorrida não especifica “… os fundamentos de facto e de direito que justificam a sua decisão, em violação com o disposto na alínea c) do artigo 615. ° do CPC, …” que consubstancia no facto de a mesma ter claudicado “… na apreciação dos factos de forma transversal, atento ao principio da livre apreciação da prova ...”

Com esta alegação pretende a recorrente, segundo o entendemos, consubstanciar um vício de nulidade da sentença recorrida, devido a falta de especificação dos fundamentos de facto da decisão.

As causas de nulidade da sentença encontram-se elencadas no n.º 1 do artigo 615.º do CPC e bem assim no artigo 125.º do CPPT, enunciando, ambos os preceitos,” a não especificação dos fundamentos de facto e de direito da decisão”.

Neste âmbito, a nossa jurisprudência tem vindo a assumir que, não basta a indicação de que a decisão se mostre deficiente, incompleta ou não convincente, para que se julgue verificado este vício, sendo substancial que a falta de fundamentação seja absoluta.

Isto dito no tom em que o fez o acórdão proferido por este tribunal em 28/09/2017 no processo 105/17.9BCLSB significa que se tem por nulidade da sentença “(…), a falta absoluta de motivação, tanto de facto, como de direito.”

E continua o aresto acolhido.

“ Já a mera insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, podendo afectar o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada em recurso, mas não produz nulidade. Igualmente não sendo a eventual falta de exame crítico da prova produzida (cfr.artº.607, nº.4, do C.P.Civil) que preenche a nulidade sob apreciação (cfr.Prof. Alberto dos Reis, C.P.Civil anotado, V, Coimbra Editora, 1984, pág.139 a 141; Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 1985, pág.687 a 689; Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, 2ª. edição, Almedina, 2009, pág.36).

(…)

Na realidade, a fundamentação de facto da decisão judicial deve incluir, não só a indicação dos elementos de prova que foram utilizados para formar a convicção do juiz, como a sua apreciação crítica, sendo caso disso, de forma a ser possível conhecer as razões por que se decidiu no sentido em que o foi e não noutro. Assim, a fundamentação de facto não deve limitar-se à mera indicação dos meios de prova em que assentou o juízo probatório sobre cada facto, devendo revelar o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo juiz ao decidir como decidiu sobre todos os pontos da matéria de facto, tudo dependendo do meio probatório em causa. (…)”

Ora, na situação que nos ocupa, como é bom de ver, a questão submetida ao Tribunal foi a da legalidade da penhora, e essa, concorde-se ou não como o decidido, o Tribunal apreciou, cumprindo assim o que a lei impõe ao juiz sobre o dever se conhecimento das questões submetidas a julgamento, se o fez com acerto ou não é outra questão.

Sendo certo que, no que, especificamente, se refere ao exame crítico das provas produzidas, considera este tribunal que a apreciação levada a efeito pela decisão recorrida com vista a apurar o valor da penhora se encontra apoiado e justificado pela prova elencada e pelos documentos juntos aos autos, para os quais aquela remete.

Termos em que se conclui que a sentença recorrida não padece, nesta parte, da arguida nulidade.

Nesta sede vem também alegado que o tribunal deixou de se pronunciar sobre questões sobre as quais o devia ter feito.

Na verdade, decorre do estatuído do normativo a que nos vimos referindo (artigo 615° n.º 1 al. d) do CPC e 125°n.º 1 do CPPT) que a sentença é nula quando deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Porém, também aqui não vislumbramos para onde aponta a invocada nulidade já que a recorrente se limita a invocar sem, contudo, mais uma vez, especificar ou concretizar a sua existência.

Termos em que, concluímos também aqui pela inverificabilidade, da alegada nulidade.

2. Deficit instrutório – (concl. C., E. e K.);

Defende a recorrente que a sentença recorrida padece, de défice instrutório, “(…) atenta a falta de averiguação quanto à existência de outra penhora e seu montante em outro processo de execução, facto que foi dado como provado e assente na fundamentação de facto da sentença em causa - cfr. artigo 662.°, n.° 2, alínea c) do CPC e que acabou por não ter sido subsumido na Douta sentença.”, sem, mais uma vez, lograr explicar a relevância positiva ou negativa da questão invocada.

A decisão da matéria de facto pode ser impugnada, em sede de recurso, pelo recorrente, nos casos em que os elementos fornecidos no processo conduzam a uma decisão diversa insuscetível de ser destruída por qualquer outra prova (1), porém, ao abrigo do deficit instrutório a recorrente vem imputar ao tribunal uma inação relativamente a uma averiguação que em seu, entender o tribunal deveria ter levado a cabo.

A doutrina tem entendido que o que está aqui em causa não é o exercício de um poder discricionário por parte do juiz, mas a atribuição legal de um poder-dever que se impõe com vista ao apuramento da verdade material e à justa composição do litígio.(2)

Neste sentido, incube ao juiz do processo, a missão de indagar de todas as questões diligenciando por obter prova documental sobre os factos atinentes e, mesmo tratando-se de factos que resultem da instrução da causa (factos instrumentais) nada impede que o Tribunal indague sobre eles, faculdade que era admitida no processo civil já antes da reforma de 1995/1996 (Cfr. ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual, págs. 412 a 417.) (3).

Sendo certo, porém que, relativamente à matéria de facto, o juiz não tem o dever de pronúncia sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar apenas a que considera relevante para a decisão, tendo em conta a causa (ou causas) de pedir que fundamenta(m) o pedido formulado pelo autor (cfr. artigos 596.º, nº.1 e 607.º, nºs. 2 a 4, do NCPC) e consignar se a considera provada ou não provada (cfr. artigo n.º 123.º nº.2, do CPPT).

Se este dever é já relevante no domínio do processo tributário, por maioria de razão o será quando esteja em causa o princípio da dignidade da pessoa humana, constitucionalmente consagrado em matéria de penhora de prestações que garantam a subsistência das pessoas, defendendo a manutenção da disponibilidade de um valor pelo menos equivalente ao salário mínimo nacional, permitindo o sustento a uma existência minimamente digna (artigos 59.º n.º 1 e 65.º da CRP e Ac. do Tribunal Constitucional de nº 96/2004, de 11.02.2004).

Aqui chegados, não podemos deixar de considerar que, a existência de qualquer outra penhora em outro processo executivo suscetível de criar novos encargos no universo patrimonial da recorrente, iria influenciaria, necessariamente, a decisão a proferir nos presentes autos.

Termos em que, importa esclarecer quais os processos executivos que se encontram apensos àquele onde foi efetuada a penhora de vencimentos e salários, aqui em conflito (PEF 135...) e bem assim se em nome da recorrente e/ou do sue cônjuge existem outros processos de execução fiscal onde tenham sido efetuadas outras penhoras do mesmo tipo de bens (vencimentos ou quaisquer outras prestações desta natureza – artigo 738.º n.º 1 do CPC).

Entendemos, assim, que a decisão sob recurso está inquinada de erro de julgamento, por um deficit instrutório, já que estes sendo, factos instrumentais não carecem de alegação, o que significa que, quanto aos mesmos, não há ónus de alegação quanto aos mesmos, pelo que poderão ser livremente averiguados pelo juiz (artigo 5.º do CPC).

Face ao exposto, impõe-se concluir que, o processo terá que baixar à 1.ª instância a fim de em cumprimento do artigo 99.º da LGT e 13.º do CPPT no sentido de obter elementos de esclarecer os factos referidos.

Procede assim o presente recurso, anulando-se a sentença por défice instrutório, ficando, assim, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.

III- Decisão
Termos em que, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do TCA Sul em conceder provimento ao recurso e anular a sentença recorrida e ordenar a baixa dos autos à 1.ª instância para que a matéria de facto seja ampliada nos termos acima determinados, com oportuna prolação de nova decisão.

Sem Custas.

Lisboa, 09/07/2020


Hélia Gameiro Silva – relatora

Benjamim Barbosa – 1.º Adjunto

Ana Pinho – 2.ª Adjunta

(Assinado digitalmente)


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(1) Vide António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Filipe Pires de Sousa in CPC Anotado Vol. I, em anotação ao artigo 662.º - pag.795

(2) Vide Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª edição, pág. 208.

(3) Vide neste sentido o AC do TCAS proferido no processo n.º 01121/06 em 09/05/2006 consultável na internet na pag. da DGSI