Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:147/19.0BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:01/30/2020
Relator:CRISTINA SANTOS
Descritores:DISCIPLINA DESPORTIVA
IMPUTAÇÃO E PUNIÇÃO DO CLUBE A TÍTULO DE AUTORIA
EXECUÇÃO MATERIAL DO ILÍCITO POR SÓCIO OU SIMPATIZANTE DO CLUBE
Sumário:1. Por disposição expressa do artº 35º do Regulamento das Competições organizadas pela LPFP/2018, a titularidade do dever, colocada na esfera jurídica do clube desportivo sob a forma especial de dever de garante, constitui o fundamento da responsabilidade disciplinar do clube por delito de omissão do dever de evitar o resultado jurídico desvalioso tipificado nos artºs. 127º/187º do  RD –LPFP/2018 no contexto do “terreno de jogo” e “dentro dos limites do recinto desportivo”.
2. Tal significa que a entidade administrativa com poderes regulamentares  –  a Liga, LPFP – quis vincular a autoria pelo cometimento dos ilícitos disciplinares dos artºs. 127º/187º do  RD–LPFP/2018 à violação do dever jurídico de garante da observância dos deveres elencados no artº 35º do Regulamento Disciplinar das Competições da LPFP/2018.
3. Consequentemente, recai sobre a pessoa colectiva, i.e, sobre o clube desportivo a imputação de autoria dos ilícitos descritos nos artºs.127º/187º do RD–LPFP/2018 por violação dos deveres normativamente elencados no âmbito do dever jurídico de garante que incumbe ao próprio clube desportivo.
4. O que significa que o sócio ou simpatizante executor do ilícito disciplinar tem de ser uma pessoa singular devidamente identificada no processo disciplinar através da sua identidade civil para, por seu intermédio, se fazer a imputação funcional do comportamento ilícito do sócio ou simpatizante, devidamente identificado, ao clube desportivo, na exacta medida em que, nos termos expostos, o critério da autoria repousa na titularidade dos deveres elencados nos artºs 34º a 35º do Regulamento Disciplinar das competições organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional/2018.
5. Não é juridicamente admissível presumir a qualidade de sócio ou simpatizante do clube relativamente à pessoa singular desconhecida e, como tal, não existente no processo, que executa os actos materiais tipificados nos artºs. 127º/187º do RD–LPFP/2018, que é o sócio ou simpatizante do clube, e que assim concretiza a infracção, nos termos já expostos, materializando o comportamento proibido pelo tipo de ilícito disciplinar.
6. Se não se sabe quem é a pessoa singular, porque não está identificada no processo disciplinar, não é possível fazer derivar por presunção e dar como provado que a pessoa em causa é sócia ou simpatizante do clube desportivo para efeitos de imputação da autoria à pessoa colectiva.
7. Por força do artº 32º nºs 2 e 10 da Constituição, no direito sancionatório, seja criminal seja disciplinar, não se presume a autoria do tipo de ilícito, o que se presume, a partir de uma base fáctica provada (base da presunção), são comportamentos expressos em factos susceptíveis de imputação subjectiva ou objectiva.
Votação:UNANIMIDADE, COM DECLARAÇÃO DE VOTO
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:   - Futebol SAD, sociedade com os sinais nos autos, inconformada com o acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto de 09.10.2019 dele vem recorrer ao abrigo do regime constante do artº 8º nºs. 1 e  4 da Lei 74/2013, 06.09 com as alterações introduzidas pela Lei 33/2014, 16.06, concluindo como segue:

1. O presente recurso tem por objecto o acórdão de 09.10.2018 do Tribunal Arbitral do Desporto, que confirmou a condenação da recorrente pela prática das infracções disciplinares p. e p. pelos arts. 127.°-l e 187.°-1 a) e b) do RD, alegadamente cometidas aquando dos jogos realizados a ….….2018 (entre - Futebol SAD e Clube Desportivo de …... - Futebol SAD) e a 07.10.2018 (entre ….. - Futebol SAD e …. - Futebol SAD), punindo-a em multas no valor total de €3.538,00, e fixando as custas no total de € 6.125,40.

-II-
2. Considerando as infracções p. e p. pelos arts. 127.°-1 e 187.°-1, a) e b) do RD em causa nos autos, era necessário que o Conselho de Disciplina tivesse carreado aos autos prova suficiente de que os comportamentos indevidos foram perpetrados por sócio ou simpatizante da ….. - Futebol SAD, e ainda, que tais condutas resultaram de um comportamento culposo da …..futebol SAD.
3. O ónus da prova em processo disciplinar cabe ao titular do poder disciplinar, pelo que, não tem arguido de provar que é inocente da acusação que lhe é imputada.
4. Aliado ao ónus da prova que recai sobre o titular da acção disciplinar, vigora ainda o princípio da presunção de inocência, o qual tem como um dos seus principais corolários a proibição de inversão do ónus da prova, não impendendo sobre o arguido - in casu a recorrente - o ónus de reunir as provas da sua inocência.
5. É precisamente o princípio de inocência que exigia ao Tribunal formular um juízo de certeza sobre o cometimento das infracções para condenar a Recorrente.
6. Nem mesmo a presunção de veracidade dos relatórios prevista no art. 13.°, f), do RD, pode contrariar este quadro normativo, dado que, mesmo beneficiando de uma presunção de verdade, não se trata de prova subtraída à livre apreciação do julgador, não se permitindo daí inferir um início de prova ou sequer uma inversão do ónus da prova.
7. A míngua de meios de prova demonstrativos da violação de deveres de cuidado, o Tribunal a quo presumiu que a demandante falhou nos seus deveres, entendendo que caberia à demandante ilidir a presunção de culpa pela qual o Tribunal se segue; recorrendo a um critério da primeira aparência.
8. Resulta claro da leitura do acórdão que o Tribunal a quo confirmou a condenação da demandante somente com base na prova da primeira aparência e num esquema argumentativo e racional fundado numa distribuição de ónus da prova: à demandada, titular do poder punitivo disciplinar, cabe fazer a prova da primeira aparência; e à demandante, uma vez comprovada essa primeira aparência, compete refutá-la, destruindo essa indiciação.
9. Este critério decisório viola o princípio da presunção de inocência, direito fundamental de que a demandante é titular e, do mesmo passo, implica que para a prova dos factos fundamentadores de responsabilidade disciplinar não será necessária uma racional e objectiva convicção da sua verificação, para além de qualquer dúvida razoável, sendo suficiente uma sua simples indiciação.
10. Sucede que o arguido em processo disciplinar presume-se inocente, correspondendo o princípio da presunção de inocência em processo disciplinar a um direito, liberdade e garantia fundamental, ancorado no direito de defesa do arguido (art. 32.°, nºs 2 e 10 da CRP), no princípio do Estado de Direito (art. 2.° da CRP) e no direito a um processo equitativo (art. 20.°-4 da CRP) (cf. Ac. do Pleno da Secção do CA do STA de 18-04-2002, Proc. 033881 e Ac. do STA de 20-10-2015, Proc. 01546/14, www.dgsi.pt).
11. O critério decisório adoptado pelo Tribunal a quo - da prova da primeira aparência, com imposição de ónus da prova ao arguido - contraria aberta e frontalmente a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo.
12. Pelo exposto, cumpre repor a legalidade, revogando-se o Acórdão recorrido e impondo-se ao Tribunal a quo que adopte um critério decisório em matéria de valoração da prova consentâneo com o princípio da presunção de inocência, exigindo-se, designadamente, que a prova de todos os elementos constitutivos da infracção corresponda a um convencimento para além de qualquer dúvida razoável, e não numa convicção da verificação decorrente da verificação de simples indícios resultantes de uma prova de primeira aparência, e que não se imponha à demandante (arguida no processo disciplinar) o ónus de demonstração da não verificação de qualquer elemento tipicamente relevante,
13. Mas mais, nem mesmo acolhendo a presunção de verdade prevista no art. 13.°, f) do RD ou jurisprudência recente do Supremo Tribunal Administrativo (processo n.° 297/2018 de 18-11-2018) se alcançaria a condenação da aqui recorrente, porquanto sempre se mostra por preencher pressuposto de imputação e condenação :a a actuação culposa da recorrente.
14. Nos relatórios de jogo, prova documental nos autos que beneficia da presunção de verdade, não se descreve um único facto relativamente ao que fez ou não fez o clube, por referência a concretos deveres legais ou regulamentares, nem tão-pouco se descreve por que forma essa actuação do clube facilitou ou permitiu o comportamento que é censurado; sendo a actuação culposa um dos "demais elementos das infracções" que se impunha à FPF, aqui recorrida, provar, sempre se mostrava prejudicada a condenação do Clube por falta de preenchimento de pressuposto legal exigido pelos arts. 127.°-l e 187º -1, a) e b) do RD.
15. Assim não se entendendo, antecipa-se como inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.°, n.°s 2 e 10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.°-4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art.º 2º da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.° da CRP), a interpretação dos artigos 127.°, n.° 1,187.°, n.° 1, alíneas a) e b), e 258.°, n.° 1, do RDLPFP de 2017, no sentido de que a indiciação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube.
16. Tem-se como inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.°, n.°s 2 e 10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.°-4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art. 2.° da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.° da CRP), a interpretação dos artigos 127.°, n.° 1, 187.°, n.° 1, alíneas a) e b), e 258.°, n.° 1, do RDLPFP de 2017, no sentido de que se dá como provado que o clube violou deveres regulamentares e legais de vigilância, controlo e formação dos seus sócios e simpatizantes quando se prove, com base com base no artigo 13.°, al. f), do RDLFPF, que esses sócios ou simpatizantes adoptaram um comportamento social ou desportivamente incorrecto, cabendo ao clube aportar prova demonstradora do cumprimento desses seus deveres.

-III-
17. O parâmetro da violação do dever de prevenção adoptado pelo Tribunal a quo é o mesmo para a imputação da infracção p. e p. pelo art. 187.°, n.° 1, a) do RD, correspondente ao comportamento incorrecto dos adeptos consubstanciado em cânticos grosseiros e ofensivos de terceiros.
18. Acontece que é completamente impossível à recorrente impedir manifestações vocais desse tipo e fica sempre por demonstrar a efectividade de qualquer possível esforço pedagógico nesse sentido.
19. Responsabilizar disciplinarmente os clubes pelas grosserias ditas pelos seus adeptos significa puni-los por algo que, objectivamente, não estão em condições de prevenir ou evitar, o que equivale a uma responsabilidade objectiva.
20. Pelo que, não podia o Tribunal a quo condenar a recorrente pela violação do art. 187.°-1, a) do RD.
21. Além do mais, o dever que impende sobre a recorrente é um dever de vigilância, o qual resultou demonstrado da prova documental junta ao processo disciplinar que correu termos na Secção Profissional do Conselho de Disciplina sob o n.° …../19 - designadamente a acta de reunião de segurança respeitante ao jogo disputado entre a recorrente e o Clube Desportivo de …...
22. O único dever da recorrente encontra-se a montante: garantir que se encontram no recinto ARD's e agentes da PSP para prevenirem estas situações e pôr-lhes cobro quando ocorram, o que fez, mas nem mesmo as forças de autoridade presentes no recinto desportivo, autoridades capazes e legitimadas para prevenir estas situações - conseguiram conter esta acção destemperada dos adeptos.
23. Estando em falta um elemento imprescindível para a imputação da infracção à recorrente: a capacidade de agir para dar cumprimento ao dever que impende sobre o agente, fica necessariamente prejudicada a decisão do Tribunal a quo ao confirmar a condenação da aqui recorrente pela prática das infracções p. e p. pelos arts. 127.°-l e 187.°-1, a) e b) do RD.

-IV-
24. A modificação do valor da causa promovida pelo Tribunal a quo para € 30.000,01 - ao invés do total da multa por que foi a recorrente condenada - foi feita em violação do previsto no art. 33.°, b) do CPTA, pelo que se impõe repor a legalidade, fixando-se o valor da acção no montante de € 3.538,00 daí se extraindo as devidas consequências.
25. Os custos fixados pelo TAD comprometem de forma séria e evidente o princípio da tutela jurisdicional efectiva (arts. 20.°-l e 268.°-4 da CRP).
26. Considerando o critério da nossa jurisprudência constitucional, não são compatíveis com o direito fundamental de acesso à justiça (arts. 20.° e 268.°-4 da CRP) soluções normativas de tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efectivo exercício de um tal direito, como é o caso do TAD.
27. Uma vez que as normas conjugadamente aplicadas pelo Tribunal a quo para fixar o valor das custas finais (art. 2.°- 1 e -5, conjugado com a tabela constante do Anexo I (2.a linha), da Portaria n.° 301/2015, articulado ainda com o previsto nos arts. 76.71/2/3 e 77.74/5/6 da Lei do TAD) são inconstitucionais, por violação do princípio da proporcionalidade (art. 2.° da CRP) e do princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.°-1 e 268.°-4 da CRP), devem essas normas ser desaplicadas (art. 204.° da CRP).

Termos em que se requer a V. Exas. seja o presente recurso julgado procedente, revogando-se a decisão arbitrai recorrida e assim também a condenação da recorrente pelas infracções disciplinares p. e p. pelos arts. 127.°-1, 187.°, n.° 1, a) e b), do RDLPFP, e anulando-se o correspondente acto administrativo do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, conforme o alegado em III supra.

Sem prescindir, caso se entenda não haver motivo para, de imediato, absolver a recorrente, requer-se a revogação do acórdão recorrido e o reenvio do processo ao TAD para que reaprecie a matéria de facto com base em critérios de valoração da prova consentâneos com o princípio da presunção de inocência do arguido, exigindo-se, nomeadamente, a formação de uma convicção para além de toda a dúvida razoável e a não imposição de um ónus da prova à demandante.

Sem prescindir, e uma vez mais subsidiariamente, requer-se a V. Exas. se dignem julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação do disposto art. 2.°, n.os 1 e 5 (e respectiva tabela constante do Anexo I, 2.a linha, da Portaria n.° 301/2015, com o previsto nos artigos 76.71/2/3 e 77.74/5/6 da Lei do TAD, por violação dos princípios da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.°-l e 268.°-4 da CRP) e da proporcionalidade (art. 2.° da CRP), com as legais consequências.


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A Federação Portuguesa de Futebol contra-alegou, concluindo como segue:


1. O presente Recurso de Apelação foi interposto pela Recorrente do Acórdão do Tribunal Arbitral do Desporto, datado de 9 de outubro de 2019, que confirmou a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que sancionou a Recorrente em multas por aplicação dos artigos 127º e 187º, nº 1, al. a) e b) do RD da LPFP.
2. Em causa nos presentes autos está o comportamento incorreto dos adeptos da ….. e a responsabilização desta sociedade anónima desportiva por violação de deveres a que estava adstrita de modo a evitar a ocorrência de tais comportamentos, em jogos em que a equipa da ora Recorrente participou na qualidade de visitada e de visitante.
3. Sinteticamente, de acordo com os relatórios do jogo e de policiamento desportivo, os adeptos da Recorrente arremessaram objetos para o terreno de jogo, rebentaram objetos pirotécnicos proibidos por lei de entrar no recinto desportivo e levaram a cabo outros comportamentos incorretos. A Recorrente não coloca em causa que estes factos aconteceram, coloca em causa, sim, que tenha qualquer responsabilidade sobre o comportamento levado a cabo por outras pessoas.
4. O processo sumário é um processo propositadamente célere, em que a sanção, dentro dos limites regulamentares definidos, é aplicada no prazo-regra de apenas 5 dias (cfr. artigo 25º do RD da LPFP) somente por análise do relatório da equipa de arbitragem, das forças policiais e dos delegados da LPFP. Com efeito, tais relatórios têm, como se sabe, presunção de veracidade dos respetivos conteúdos (cfr. artigo 13º, al. f) do RD da LPFP).
5. Recorde-se, aliás, que esta forma de processo consta do Regulamento Disciplinar da LPFP, aprovado pelas próprias SAD's que disputam as competições profissionais em Portugal, entre elas a ora Recorrente.
6. Entende a Recorrente que cabia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta dos Relatórios dos Delegados da LPFP e do Relatório de Policiamento Desportivo) que a Recorrente violou deveres de formação, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, entende que cabia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo, o que, como se sabe, não é possível.
7. Assim, os Relatórios elaborados pelos Delegados da LPFP, atento o seu conteúdo, são perfeitamente suficientes e adequados para sustentar a punição da Recorrente no caso concreto. Ademais, há que ter em conta que existe uma presunção de veracidade do conteúdo de tal documento (artigo 13º al. f) do RD da LPFP).
8. Isto não significa que o Relatório dos Delegados da LPFP contenha uma verdade completamente incontestável: o que significa que o conteúdo do Relatório, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que a Recorrente incumpriu os seus deveres.
9. Para abalar essa convicção, cabia ao clube apresentar contraprova, colocando em causa aquela veracidade. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346º do Código Civil.
10. Para além da presunção de veracidade dos factos constantes nos relatórios dos Delegados da LPFP, bem como dos esclarecimentos adicionais prestados pelos mesmos, ter-se-á, ainda, que atender à força probatória dos relatórios das forças policiais. Tal como resulta de toda a prova carreada no processo, a factualidade provada resulta, também, dos factos constantes dos Relatórios de Policiamento Desportivo das Forças de Segurança do jogo dos autos. Neste particular, os relatórios das forças policiais, por serem exarados por "autoridade pública" ou "oficial público", no exercício público das "respetivas funções" (para as quais é competente em razão da matéria e do lugar), constituem documento autêntico (arº 363º, nº 2 do Código Civil), cuja força probatória se encontra vertida nos artigos 369º e ss. do Código Civil. Com efeito, tal relatório faz "prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora" (cf. artº 371º, nº 1 do Código Civil). Tal valor probatório apenas pode ser afastado com base na sua falsidade (artº 372º, nº 1 do Código Civil), sendo que, no contexto processual penal e nos termos do artº 169º do Código de Processo Penal, se consideram "provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa".
11. Ao contrário do que afirma a Recorrente, em sede sancionatória o "arguido" não pode simplesmente remeter-se ao silêncio, aguardando, sem mais, o desenrolar do procedimento cabendo-lhe, pelo menos, colocar uma dúvida na mente do julgador correndo o risco de, não o fazendo, ser punido se as provas reunidas forem todas no mesmo sentido.
12. Do lado do Conselho de Disciplina, todos os elementos de prova carreados para os autos iam no mesmo sentido dos Relatórios elaborados pelos Delegados da LPFP, pelo que dúvidas não subsistiam (nem subsistem) de que a responsabilidade que lhe foi assacada pudesse ser de outra entidade que não da Recorrente. Isto mesmo entendeu, e bem, o Tribunal a quo.
13. De modo a colocar em causa a veracidade do conteúdo dos Relatórios, cabia à Recorrente demonstrar, pelo menos, que cumpriu com todos os deveres que sobre si impendem, designadamente em sede de Recurso Hierárquico Impróprio apresentado ou quanto muito em sede de ação arbitral. Mas a Recorrente nada fez, nada demonstrou, nada alegou, em nenhuma sede.
14. Decorre de forma claríssima da Regulamentação aplicável que os clubes e sociedades desportivas podem (e devem) impedir comportamentos como os sub judice através do cumprimento dos deveres informando e in vigilando dos seus adeptos, em especial, do cumprimento dos deveres estatuídos no artº 35º, n.º 1, als. a), b), c) e o) do Regulamento das Competições da LPFP.
15. Com efeito, a imputação culposa das condutas infratoras dos adeptos da Recorrente, pelas quais esta é diretamente responsável (tal como determina a previsão legal das infrações disciplinares em causa), resulta, pois, do incumprimento culposo de deveres de prevenção e de ação no âmbito da violência associada ao Desporto que lhe estão cometidos e que levaram, em nexo de causalidade adequado e direto, ao resultado aqui verificado: os comportamentos perigosos e incorretos dos seus adeptos e simpatizantes, num espetáculo desportivo.
16. Ainda que se entenda - o que não se concede - que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir a Recorrente, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido - a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos da Recorrente e a violação dos respetivos deveres - foi retirado de outros factos conhecidos.
17. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com o princípio da presunção de inocência, ao contrário do que refere a Recorrente, de acordo com jurisprudência, quer dos tribunais comuns, quer dos tribunais administrativos.
18. Há ainda que notar que o próprio Tribunal Arbitrai do Desporto, por várias outras ocasiões, já se pronunciou em sentido diverso ao entendimento sufragado pela Recorrente, assim como o STA por mais de 10 vezes em sede de recurso de revista e o TCA Sul uma vez em sede de recurso de apelação.
19. Carece de fundamento a alegação de que as normas dos artigos 13º, al. f), 127º e 187º, nº 1, alíneas a) e b) do RD da LPFP são inconstitucionais, porquanto o próprio Tribunal Constitucional já se pronunciou em matéria em tudo idêntica, defendendo a responsabilidade subjetiva neste âmbito, o que se revela conforme à CRP.
20. Em causa no presente recurso de apelação está, ainda, um alegado erro na fixação do valor da causa em € 30.000,01 (trinta mil e um euros) e, por conseguinte, a violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da tutela jurisdicional efetiva.
21. Sinteticamente, entendeu o Tribunal a quo que, in casu, preponderará o critério relativo a bens imateriais do artigo 34º, nº 1 do CPTA.
22. De facto, o interesse imaterial que subjaz à pretensão da Recorrente é muito mais do que uma mera revogação de uma decisão disciplinar, indo muito além do valor económico que as sanções pecuniárias que estão em análise demonstram.
23. Ao aludir ao princípio da culpa, constata-se que os interesses invocados, são de ordem constitucional e excedem claramente meros limites quantitativos, motivo pelo qual, o Tribunal o quo, ao utilizar o critério supletivo constante do artigo 34.9 do CPTA, não violou o disposto no artigo 33º, al. b) do mesmo Código.
24. Por outra parte, o valor das custas finais fixado pelo Tribunal a quo não é, como alega a Recorrente, desproporcional, nem compromete, de forma séria e evidente, o princípio da tutela jurisdicional efetiva (artigos 20º, nº 1 e 268º, nº 4 do CRP).
25. Neste sentido entendeu, e bem, o Tribunal Constitucional, mediante Acórdão datado de 16 de outubro de 2019, não julgar inconstitucionais as normas constantes do artigo 2º, nºs 1 e 4, da Portaria nº 301/2015, de 22 de setembro, em conjugação com a primeira linha da tabela do seu Anexo I.
26. Motivo pelo qual deverá, também, improceder a inconstitucionalidade suscitada resultante da conjugação do disposto no art. 2, nºs 1 e 5 (e respetiva tabela constante do Anexo I, 2º linha, da Portaria nº 301/2015), com o previsto nos artigos 76º, nºs 1, 2 e 3 e 77º, nºs 4, 5 e 6 da Lei do TAD, por violação dos princípios da tutela jurisdicional efetiva e da proporcionalidade.
27. O TAD apenas poderia alterar a sanção aplicada pelo Conselho de Disciplina da FPF se se demonstrasse a ocorrência de uma ilegalidade manifesta e grosseira - limites legais à discricionariedade da Administração Pública, neste caso, limite à atuação do Conselho de Disciplina da FPF.
28. Assim, não existindo nenhum vício que possa ser imputado ao acórdão do Conselho de Disciplina que levasse à aplicação da sanção da anulabilidade por parte deste Tribunal Arbitral, andou bem o Colégio de Árbitros ao decidir manter a condenação da Recorrente pelas infrações disciplinares p. p. pelo artigo 127º e 187º, 1, al. a) e b) do RD da LPFP.

Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, deve ser negado provimento ao Recurso Jurisdicional e, consequentemente, ser mantido o Acórdão Arbitrai recorrido, assim se fazendo o que é de lei e de justiça.


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 Substituídos os vistos legais pela entrega das competentes cópias aos Exmos. Juízes Adjuntos, vem para decisão em conferência.


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Pelo Tribunal Arbitral foi julgada provada a seguinte factualidade:


A. No dia ….. de …… de 2018 realizou-se o jogo nº ….. (203.01.049), no ……, no ….., entre …..-Futebol SAD e Clube Desportivo de ….. -Futebol SAD., a contar para a …. Jornada …...
B. Uma zona da "Bancada Norte" (sector 28) e a "Bancada Sul" (sector 9) do referido estádio foram as zonas do estádio exclusivamente reservadas e ocupadas por grupos adeptos e simpatizantes afetos ao ….. - Futebol SAD, concretamente pelos grupos organizados "….." e os "…..";
C. Esses grupos de adeptos e simpatizantes estavam identificados pela indumentária alusiva à Demandante, nomeadamente com cachecóis, bandeiras, camisolas e tarjas de incentivo do clube;
D. Durante o desafio em causa, esses grupos de adeptos e os simpatizantes da demandada estavam colocados em zonas delimitadas;
E. Essas mesmas zonas da bancada do Estádio ..... estavam vedadas a adeptos da equipa visitante;
F. Aos 7 minutos da segunda parte, os adeptos e simpatizantes da Demandante, que integravam o Grupo Organizado "….." deflagraram um "flash light" e um petardo;
G. Aos 8 minutos da segunda parte, os adeptos e simpatizantes da Demandante, que integravam o Grupo Organizado "….." deflagraram um "flash light";
H. Por volta dos 24 e 36 minutos da segunda parte, os referidos adeptos e simpatizantes da Demandante, situados na bancada Sul, que integravam o Grupo Organizado "….." no momento em que o guarda redes da equipa C.D, T.….. executava o pontapé de baliza, entoaram o cântico "filho da puta".
I. No dia ….. de ….. de 2018 realizou-se o jogo nº …. (203.01.055), ….., em ……, entre …… - Futebol SAD e …… -Futebol SAD., a contar para a ….. Jornada …...
J. A bancada ….. (sectores 28 34) do …… foi a zona do estádio reservada aos adeptos e simpatizantes da equipa visitante, aqui Demandante, estando esta mesma zona vedada a adeptos da equipa visitada, ….. - Futebol SAD.
K. Esses grupos de adeptos e simpatizantes, da Demandante, estavam identificados pela indumentária alusiva à Demandante, nomeadamente cachecóis, bandeiras, camisolas e tarjas de incentivo do clube;
L. Entre os minutos 28 e 31 da primeira parte, os referidos adeptos e simpatizantes da Demandante, entoaram o cântico "..... é Merda".
M. Cerca das 17hl0m, um adepto e simpatizante da Demandante, que se encontrava nesse sector reservado, transportou uma tampa de sanita que veio a colar com fita cola no vidro que separa o sector 34 do 35.
N. O ….. não adotou as medidas preventivas adequadas e necessárias a fim de impedir que os seus adeptos entrassem, permanecessem e deflagrassem no interior do Estádio .....….., os artefactos pirotécnicos descritos nos factos provados em f) e g) (convicção fundada nas regras de experiência e segundo juízos de normalidade e razoabilidade);
O. O ….. não adotou as medidas preventivas adequadas e necessárias a evitar os acontecimentos protagonizados pelos seus adeptos, descritos em h), 1) e m) dos factos provados (convicção fundada nas regras de experiência e segundo juízos de normalidade e razoabilidade);
P. O ….. agiu de forma livre, consciente e voluntária bem sabendo que ao não evitar a ocorrência dos referidos factos perpetrados pelos seus adeptos e simpatizantes, incumpriu deveres legais e regulamentares de segurança e de prevenção da violência que sobre si impendiam, enquanto entidade organizadora do evento desportivo em causa e clube participante nos ditos jogos de futebol (convicção fundada nas regras de experiência e segundo juízos de normalidade e razoabilidade);
Q. Na presente época desportiva, à data dos factos, o ….. já havia sido sancionado, por decisão definitiva na ordem jurídica desportiva, pelo cometimento de diversas infrações disciplinares, cfr. cadastro disciplinar da ….. - Futebol SAD.

DO   DIREITO

a. decisão singular de mérito do relator - reclamação para a conferência;

O regime da decisão singular de mérito apenas proferida pelo Relator foi introduzido pelo DL 329-A/95, podendo a parte afectada pela decisão reclamar desta para a conferência conforme disposições conjugadas dos artºs. 705º e 700º nº 3 CPC, hoje, artºs. 656º ex vi 652º nº 1 c) e nº 3 CPC da revisão de 2013.

Deduzida reclamação para a conferência “(..) o colectivo de juízes reaprecia as questões que foram objecto da decisão singular do Relator e, nesse sentido, caso se esteja perante a decisão sumária do recurso, reaprecia novamente o recurso, naturalmente sem qualquer vinculação ao anteriormente decidido.

No entanto, se assim é, ou seja, se normalmente a intervenção da conferência, no caso em que se reclama de uma decisão sumária, faz retroagir o conhecimento do mérito da apelação ao momento anterior àquela decisão, importa ter presente que, nos termos gerais, no recurso ou na reclamação, o Recorrente ou o Reclamante podem restringir o seu objecto, isto é, o requerimento para a conferência (mesmo resultante de convolação do requerimento de interposição de recurso de revista) pode restringir o objecto próprio da reclamação, concretamente identificando a parte da decisão sumária de que discorda (da qual se sente prejudicado) (..)” – doutrina constante do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23.02.2015, tirado no rec. nº RP201502231403/04.7TBAMT-H.P1


     *

No citado Acórdão da Relação do Porto é feita referência expressa aos termos gerais de direito no que respeita à possibilidade de, em sede de reclamação da decisão singular do Relator, o Recorrente restringir o abjecto do recurso, “(..) identificando os segmentos decisórios sobre os quais demonstra o seu inconformismo. Trta-se, na prática, de uma solução que se encaixa na possibilidade de desistência do recurso, nos termos que constam do artº 632º nº 5, com a especificidade de a extinção da instância ser, aqui, parcial. (..)”  ([1])

O que implica precisar o pressuposto legal de delimitação do âmbito da pretensão recursória e das hipóteses legais de modificação.                                                                      

A delimitação objectiva do recurso é dada pelas conclusões, cfr. artºs. 635º nº 4, 637º nº 2 e 639º nºs 1 e 2 CPC, na medida em que “(..) A motivação do recurso é de geometria variável,  dependendo tanto do teor da decisão recorrida como do objectivo procurado pelo recorrente, devendo este tomar em consideração a necessidade de aí sustentar os efeitos jurídicos que proclamará, de forma sintética, nas conclusões. (..)

Mas, independentemente do âmbito definido pelo recorrente no requerimento de interposição, é legítimo restringir o objecto do recurso nas alegações, ou, mais correctamente, nas respectivas conclusões, indicando qual a decisão (ou parte da decisão) visada pela impugnação. (..) A restrição pode ser tácita em resultado da falta de correspondência entre a motivação e as alegações, isto é, quando, apesar da maior amplitude decorrente do requerimento de interposição de recurso, o recorrente restrinja o seu âmbito através das questões que identifica nas conclusões. (..)”, cfr. artº 635º nº 4 CPC([2])

No tocante à ampliação do objecto do recurso, o artº 636º nº 1 CPC permite que, embora a decisão seja favorável à parte e a parte vencida interponha recurso, caso no Tribunal a quo não tenha acolhido todos ou alguns dos fundamentos da acção (de facto ou de direito) suscitados pela parte vencedora, essas questões serão reapreciadas pelo Tribunal ad quem a requerimento do Recorrido em alegações complementares, isto é, o Tribunal de recurso reapreciará os fundamentos do segmento da sentença recorrida em que a parte vencedora tenha decaído.


  *

Do complexo normativo citado se conclui que o acto processual de convocação da conferência no regime do artº 652º nº 1 c) e nº 3 ex vi 656º CPC não é configurado como meio adjectivo próprio para alterar as conclusões de recurso, ressalvada a hipótese já mencionada de limitação do objecto (artº 635º/4 CPC), nem para desistir do recurso (artº 632º º 5 CPC), posto que “(..) a desistência do recurso apenas é possível até à prolação da decisão, tornando-se agora inequívoca a solução que já anteriormente se defendia. Representa uma medida que que valoriza o papel do tribunal superior, evitando que o recorrente accione o mecanismo da desistência depois de ter sido confrontado com o resultado do recurso.

Aliás, o momento que releva para o efeito nem sequer é o da notificação da decisão, mas antes o da sua prolação (..)”,.   ([3])

Neste sentido, junta aos autos a decisão singular de mérito sobre o objecto do recurso proferida pelo relator (artº 652º/1 c) ex vi 656º CPC) ocorre nessa data a preclusão de exercício do direito de desistência por parte do recorrente, cfr. artº 632º nº 5 CPC.

A reclamação para a conferência constitui o meio adjectivo próprio ao dispor da parte que se sinta prejudicada pela decisão individual e sumária do relator sobre o objecto do recurso, podendo o recorrente/reclamante, nessa reclamação, restringir o objecto do recurso no uso do direito conferido pelo artº 635º nº 4 CPC, mas não pode ampliar o seu objecto, faculdade limitada ao recorrido nos termos do artº 636º nº 1 CPC, isto é, limitada à parte vencedora que tendo decaído em alguns dos fundamentos da acção, apesar disso, obteve vencimento no resultado final.

Como se diz no Acórdão da Relação do Porto acima citado, no regime do artº 652º nº 1 c) e nº 3 ex vi 656º CPC a reclamação para a conferência da decisão sumária proferida apenas pelo relator faz retroagir o conhecimento em conferência do mérito da apelação ao momento anterior àquela decisão sumária, conhecimento limitado às questões especificadas pelo recorrente nas conclusões de recurso, sem prejuízo de o recorrente, ora reclamante, restringir na reclamação o objecto recursório anteriormente definido nos termos do artº 635º nº 4 CPC.


    *

Feito o enquadramento que compete, cumpre reapreciar as questões suscitadas nas conclusões, fazendo retroagir o conhecimento do mérito do recurso ao momento anterior à decisão singular de mérito proferida pelo Relator.

b. acórdão arbitral;

 Por acórdão de 09.10.2019 o TAD julgou improcedente o recurso interposto pela ora Recorrente ….. - Futebol SAD da decisão de 20.11.2018 proferida em via de recurso hierárquico impróprio nº...../19 pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, ora Recorrida (artº 287º nº 1 (1ª parte) RD–LPFP/2018).

Na decisão de 20.11.2018 a ora Recorrente ….. - Futebol SAD foi condenada na pena de multa no valor total de € 3.538,00€, pelo cometimento pelos adeptos da Recorrente de infracções disciplinares p.p. nos artºs 127º nº 1 [inobservância de outros deveres] e 187º nº 1 a) e a b) [comportamento incorrecto do público] do RD–LPFP/2018, regulamento disciplinar emitido em via da competência outorgada pelo artº 29º nº 2 DL 248-B/2008, 31.12.

c. ilícito disciplinar;

Diz-nos Eduardo Correia: “(..) na medida em que as penas disciplinares são um mal infligido a um agente, devem (..) em tudo quanto não esteja expressamente regulado, aplicar-se os princípios que garantem e defendem o indivíduo contra todo o poder punitivo (..)” ([4]).

Por seu turno, José Beleza dos Santos sustenta: “(..) As sanções disciplinares têm fins idênticos aos das penas crimes; são, por isso, verdadeiras penas: como elas reprovam e procuram prevenir faltas idênticas por parte de quem quer que seja obrigado a deveres disciplinares e essencialmente daquele que os violou. (..) aquelas sanções têm essencialmente em vista o interesse da função que defendem, e a sua actuação repressiva e preventiva é condicionada pelo interesse dessa função, por aquilo que mais convenha ao seu desempenho actual ou futuro (..) No que não seja essencialmente previsto na legislação disciplinar ou desviado pela estrutura específica do respectivo ilícito, há que aplicar a este e seus efeitos as normas do direito criminal comum. (..)” ([5]).

Do que vem dito decorre que, semelhantemente ao que acontece em direito penal, o quid de ilícito traduz o comportamento não querido pelo ordenamento jurídico, por reporte ao catálogo de deveres gerais como era o caso do artº 3º nºs. 3 e 4 alíneas a) a h) do DL 24/84 de 16.01 do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local (=ED) e dos nºs. 2 a 11 do artº 3º do Estatuto Disciplinar aprovado pela Lei nº 59/2008 de 09.09, do artº 73º nº 2 als. a) a j) da Lei nº 35/2014 de 20.06 e, presentemente, os deveres gerais que constituem infracção disciplinar nos termos do artº 183º por definição do  artº 73º da Lei 35/2014, 20.07 (Lei Geral do Trabalho em Funções Pública - LTFP), enunciação que não segue a técnica da tipificação do comportamento não querido pela norma, técnica própria do ilícito penal, cfr. artº 1º Código Penal.

O que não significa que o princípio da legalidade e consequente função garantística de direitos subjectivos públicos esteja arredada do direito sancionatório disciplinar. ([6]).


*

O ordenamento punitivo disciplinar desconhece o regime da tipicidade, antes opera mediante o elenco de substantivos identificativos das qualidades abstractas requeridas no desenvolvimento da relação jurídica funcional, designadamente, de emprego público que, no que respeita à LTFP ao ED são dez, explicitados por recurso à técnica legislativa da descrição de conteúdo de cada um dos deveres do catálogo e respectiva enumeração de parâmetros comportamentais esperados, no sentido permissivo e proibitivo.

Todo este labor legislativo é traduzido mediante a descrição normativa do desvalor de acção e de resultado no domínio do ilícito disciplinar por adopção de conceitos gerais e indeterminados, jurídicamente expressivos do conteúdo da relação funcional em causa, v.g. laboral (e, portanto, vinculativos).

O que outorga à autoridade administrativa no exercício da competência disciplinar, uma vez definidos quais os factos provados, uma margem de livre apreciação, subsunção e decisão, operações todas elas jurisdicionalmente sindicáveis no que concerne à definição do efeito jurídico no caso concreto (validade do acto), v.g. quanto à existência material dos pressupostos de facto ([7]).


*

O que significa que em sede disciplinar, o facto não assume a qualidade jurídica de facto típico tal como em sede criminal, porque não existe qua tale na descrição material da hipótese normativa, na medida em que esta recorre a conceitos substantivos das qualidades abstractas, em ordem a identificar e definir o comportamento não querido pela norma, mas é evidente que tem de existir factualidade ilícita e culposa subsumível a tais conceitos.

A operação de subsunção da factualidade provada ao conceito identificado pelos substantivos que qualificam os deveres gerais, em ordem a aplicar ao caso concreto a consequência jurídica definida pela norma, passa, assim, por dois planos:

  •  primeiro: pela interpretação e definição de conteúdo dos conceitos indeterminados que consubstanciam os deveres gerais;
  •  segundo: pelo juízo de integração ou inclusão dos factos apurados na previsão do normativo aplicável e consequente concretização dos referidos conceitos normativos.

Das transcrições doutrinais se retira que o direito sancionatório disciplinar pune os comportamentos que, consubstanciados pela factualidade apurada e definida no concreto procedimento disciplinar, em juízo subsuntivo não integrem as qualidades abstractamente descritas nos conceitos normativos dos deveres gerais elencados e acima citados.

Feito o enquadramento jurídico que compete em matéria de ilícito disciplinar, vejamos agora o enquadramento jurídico que compete em matéria do presente recurso.

d. artº 13º f) Reg. Disciplinar da LPFP/2018 - conceito de infracção disciplinar - artºs 17º, 127º e 187º Reg. Disciplinar da LPFP/2018 - artºs. 34º, 35º e 36º do Reg. das Competições da LPFP/2018;

O artº 13º f) Reg. Disciplinar da LPFP/2018 tem a seguinte redacção:

Artigo 13.º

Princípios fundamentais do procedimento disciplinar

O procedimento disciplinar regulado no presente Regulamento obedece aos seguintes princípios fundamentais:

a) separação e independência entre o desempenho das funções disciplinares instrutórias e o desempenho das funções disciplinares decisórias;

b) garantia de recurso para o Conselho de Justiça das decisões disciplinares lesivas de direitos ou interesses legalmente protegidos dos interessados;

c) possibilidade de o arguido constituir advogado em qualquer fase do processo;

d) observância dos direitos de audiência e de defesa do arguido, nos termos previstos no presente Regulamento;

e) direito do arguido a não prestar declarações e a não responder a quaisquer perguntas que lhe sejam formuladas;

f) presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga e dos autos de flagrante delito lavrados pelos membros da Comissão de Instrutores, e por eles percecionados no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa;

g) proibição de afastamento das decisões de facto proferidas pelos árbitros e relativas a situações ou condutas observadas e sancionadas pela equipa de arbitragem com a exibição de cartão amarelo ou ordem de expulsão, nos termos previstos nas Leis do Jogo;

h) liberdade de produção e utilização de todos os meios de prova em direito permitidos.


   *

O conceito normativo de infracção disciplinar adoptado no artº 17º do RD–LPFP/2018 é o seguinte:

Artigo 17º

Conceito de infracção disciplinar

1. Considera-se infracção disciplinar o facto voluntário, por acção ou omissão, e ainda que meramente culposo, que viole os deveres gerais ou especiais previstos nos regulamentos desportivos e demais legislação aplicável.

2. A responsabilidade disciplinar objectiva é imputável nos casos expressamente previstos.


  *

O artº 127º nº 1 do RD–LPFP/2018 pelos quais a ora Recorrente ….. - Futebol SAD foi condenada tem a seguinte redacção:

Artigo 127º

Inobservância de outros deveres

1. Em todos os outros casos não expressamente previstos em que os clubes deixem de cumprir os deveres que lhes são impostos pelos regulamentos e demais legislação desportiva aplicável são punidos com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 2 UC e o máximo de 10 UC.

2. Na determinação da medida da pena prevista no nº 1 do presente artigo, salvo se cometer a violação do mesmo dever violado na mesma época desportiva, não será considerada a circunstância agravante da reincidência prevista nos artigos 52º e 53º nº 1 alínea a) do presente regulamento.


   *

O artº 187º nº 1ª) e b) do RD–LPFP/2018 pelos quais a ora Recorrente ….. - Futebol SAD foi condenada tem a seguinte redacção:

Artigo 187º

Comportamento incorreto do público

1. Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, o clube cujos sócios ou simpatizantes adotem comportamento social ou desportivamente incorreto, designadamente através do arremesso de objetos para o terreno de jogo, de insultos ou de atuação da qual resultem danos patrimoniais ou pratiquem comportamentos não previstos nos artigos anteriores que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina é punido nos seguintes termos:

a)    o simples comportamento social ou desportivamente incorreto, com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 5 UC e o máximo de 15 UC;

b)    o comportamento não previsto nos artigos anteriores que perturbe ou ameace a ordem e a disciplina, designadamente mediante o arremesso de petardos e tochas, é punido com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 15 UC e o 66 máximo de 75 UC.    

2. Na determinação da medida da pena prevista na alínea a) do nº 1 do presente artigo não será considerada a circunstância agravante de reincidência prevista nos artigos 52.° e 53.°, n.° 1 alínea a) do presente regulamento.

3. Se do cumprimento social ou desportivamente incorreto resultarem danos patrimoniais cuja reparação seja assumida pelo clube responsável e aceite pelo clube lesado, através de acordo dado a conhecer ao delegado da Liga, não há lugar à aplicação da sanção prevista no n.° 1.

                                                                                              *

 Conforme Regulamento das Competições organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional/2018 adoptado ao abrigo do artº 29º nº 1 do Regime Jurídico das Federações Desportivas aprovado pelo DL 248-B/2008, 31.12, no tocante à segurança nos estádios de futebol os clubes desportivos estão sujeitos à observância dos seguintes deveres:

Artigo 34.º

Regulamento de segurança e utilização dos espaços de acesso público

1. Os clubes estão obrigados a elaborar um regulamento de segurança e utilização dos espaços de acesso ao público relativo ao estádio por cada um utilizado na condição de visitado e cuja execução deve ser concertada com as forças de segurança, a ANPC e os serviços de emergência médica e a Liga Portugal.

2. O referido regulamento deverá conter, designadamente, as seguintes medidas:

a) separação física dos adeptos, reservando-lhes zonas distintas, nas competições desportivas consideradas de risco elevado;

b) controlo da venda de títulos de ingresso, com recurso a meios mecânicos, eletrónicos ou eletromecânicos, a fim de assegurar o fluxo de entrada dos espectadores, impedindo a reutilização do título de ingresso e permitindo a deteção de títulos de ingresso falsos, nas competições desportivas consideradas de risco elevado;

c) vigilância e controlo destinados a impedir o excesso de lotação em qualquer zona do recinto, bem como a assegurar o desimpedimento das vias de acesso;

d) instalação ou montagem de anéis de segurança e adoção obrigatória de sistemas de controlo de acesso, de modo a impedir a introdução de objectos ou substâncias proibidas ou suscetíveis de possibilitar ou gerar atos de violência, nos termos previstos na lei;

e) proibição de venda, consumo e distribuição de bebidas alcoólicas, substâncias estupefacientes e substâncias psicotrópicas no interior do anel ou perímetro de segurança e do recinto desportivo, exceto nas zonas destinadas para o efeito no caso das bebidas alcoólicas, bem como adoção de um sistema de controlo

de estados de alcoolemia e de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas;

f) criação de áreas, no interior do recinto desportivo, onde é permitido o consumo de bebidas alcoólicas, no respeito pelos limites definidos na lei;

g) definição das condições de exercício da atividade e respetiva circulação dos meios de comunicação social no recinto desportivo;

h) elaboração de um plano de emergência interno, prevendo e definindo, designadamente, a atuação dos ARDs;

i) determinação das zonas de paragem e estacionamento de viaturas pertencentes às forças de segurança, à ANPC, aos bombeiros, aos serviços de emergência médica, bem como dos circuitos de entrada, de circulação e de saída, numa ótica de segurança e de facilitação;

j) determinação das zonas de paragem e estacionamento de viaturas pertencentes às comitivas dos clubes, árbitros bem como dos circuitos de entrada, de circulação e de saída, numa ótica de segurança e de facilitação;

3. Os regulamentos previstos no n.º 1 estão sujeitos a registo junto do órgão do IPDJ, sendo condição da sua validade.

Artigo 35.º

Medidas preventivas para evitar manifestações de violência e incentivo ao fair-play

1. Em matéria de prevenção de violência e promoção do fair-play, são deveres dos clubes:

a) assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança;

b) incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados; 

c) aplicar medidas sancionatórias aos seus associados envolvidos em perturbações da ordem pública, impedindo o acesso aos recintos desportivos nos termos e condições do respetivo regulamento ou promovendo a sua expulsão do recinto;

d) proteger os indivíduos que sejam alvo de ameaças e os bens e pertences destes, designadamente facilitando a respetiva saída de forma segura do complexo desportivo, ou a sua transferência para setor seguro, em coordenação com os elementos da força de segurança;

e) designar o coordenador de segurança;

f) garantir que são cumpridas todas as regras e condições de acesso e de permanência de espectadores no recinto desportivo;

g) relativamente a quaisquer indivíduos aos quais tenha sido aplicada medida de interdição de acesso a recintos desportivos, pena de privação do direito de entrar em recintos desportivos ou sanção acessória de interdição de acesso a recintos desportivos:

i. impedir o acesso ao recinto desportivo;

ii. impedir a obtenção de quaisquer benefícios concedidos pelo clube, associação ou sociedade desportiva, no âmbito das previsões destinadas aos grupos organizados de adeptos ou a título individual.

h) usar de correção, moderação e respeito relativamente a outros promotores de espetáculos desportivos e organizadores de competições desportivas, associações, clubes, sociedades desportivas, agentes desportivos, adeptos, autoridades públicas, elementos da comunicação social e outros intervenientes no espetáculo desportivo;

i) não proferir ou veicular declarações públicas que sejam suscetíveis de incitar ou defender a violência, o racismo, a xenofobia, a intolerância ou o ódio, nem tão pouco adotar comportamentos desta natureza;

j) zelar por que dirigentes, equipa técnica, jogadores, pessoal de apoio, ou representantes dos clubes ajam de acordo com os preceitos das alíneas h) e i);

k) não apoiar, sob qualquer forma, grupos organizados de adeptos, em violação dos princípios e regras definidos na Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, com a redação dada pela Lei n.º 52/2013, de 25 de julho;

l) zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube participem do espectáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas, xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente, no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos;

m) manter uma lista actualizada dos adeptos de todos os grupos organizados apoiados pelo clube fornecendo-a às autoridades judiciárias, administrativas e policiais competentes para a fiscalização do disposto na presente lei;

n) a requisição de policiamento e pagamento dos respetivos encargos, nos termos previstos no decreto-lei n.º 216/2012, de 9 de outubro;

o) desenvolver acções de prevenção socioeducativa, nos termos da lei;

p) designar e comunicar ao IPDJ a lista de coordenadores de segurança, para efeitos da lei n.º 39/2009, de 30 de julho, com a redação dada pela lei n.º 52/2013, de 25 de julho;

q) corrigir e/ou implementar as medidas de segurança recomendadas pelas entidades policiais competentes;

r) manter um registo sistematizado e actualizado dos filiados no grupo organizado de adeptos do respetivo clube, de acordo com o designado na lei, e remetê-lo trimestralmente para o IPDJ;

s) reservar, nos recintos desportivos que lhe são afectos, uma ou mais áreas específicas para os filiados dos grupos organizados de adeptos;

t) instalar e manter em funcionamento um sistema de videovigilância, de acordo com o preceituado nas leis aplicáveis;

u) dispor, nos recintos desportivos que lhe são afetos, de acessos especiais para pessoas com deficiência ou incapacidades;

2. Para efeito do disposto na alínea f) do número anterior, e sem prejuízo do estabelecido no artigo 24.º da lei n.º 39/2009, de 30 de julho e no Regulamento de prevenção da violência constante do Anexo VI, são considerados proibidos todos os objectos, substâncias e materiais susceptíveis de possibilitar actos de violência, designadamente:

a) bolas, chapéus-de-chuva, capacetes;

b) animais, salvo cães guia ou cães polícia quando permitido o seu acesso nos termos da lei;

c) armas de qualquer tipo, munições ou seus componentes, bem como quaisquer objectos contundentes, nomeadamente facas, dardos, ferramentas ou seringas;

d) projécteis de qualquer tipo tais como cavilhas, pedaços de madeira ou metal, pedras, vidro, latas, garrafas, canecas, embalagens, caixas ou quaisquer recipientes que possam ser arremessados e causar lesões;

e) objectos volumosos como escadas de mão, bancos ou cadeiras;

f) substâncias corrosivas ou inflamáveis, explosivas ou pirotécnicas, líquidos e gases, fogo-de-artifício, foguetes luminosos (very-lights), tintas, bombas de fumo ou outros materiais pirotécnicos;

g) latas de gases aerossóis, substâncias corrosivas ou inflamáveis, tintas ou recipientes que contenham substâncias prejudiciais à saúde ou que sejam altamente inflamáveis;

 h) apontadores laser ou outros dispositivos luminosos que sejam capazes de provocar danos físicos ou perturbar a concentração ou o desempenho dos atletas e demais agentes desportivos.

3. Os clubes, seus dirigentes, delegados, jogadores, técnicos e funcionários, bem como os árbitros e demais agentes desportivos devem abster-se de, antes, durante e após a realização dos jogos, por intermédio dos órgãos da comunicação social ou por outro meio, proferir declarações que incitem à prática de violência.

4.. Os dirigentes e funcionários das sociedades desportivas e dos clubes fundadores não podem participar, na qualidade de intervenientes regulares, em programas televisivos que se dediquem exclusiva, ou principalmente, à análise e comentário do futebol profissional.

5. Quando os dirigentes e funcionários das sociedades desportivas e dos clubes fundadores participem, na qualidade de convidados, nos programas referidos no número anterior, apenas podem analisar e comentar aspectos positivos do jogo e das competições, abstendo-se de analisar e de comentar decisões da equipa de arbitragem, comportamentos de jogadores, treinadores, outros agentes desportivos ou do público, quando esteja em causa algum aspecto susceptível de causar um impacto negativo na imagem e percepção pública de um jogo em particular, das competições profissionais ou da Liga ou dos seus associados.

6. Para além do disposto nos números anteriores, os clubes visitados, ou considerados como tal, devem proceder à colocação, em todas as entradas do estádio, de um mapa-aviso, de dimensões adequadas, com a descrição de todos os objectos ou comportamentos proibidos no recinto ou complexo desportivo, nomeadamente invasões do terreno de jogo, arremesso de objectos, uso de linguagem ou cânticos injuriosos ou que incitem à violência, racismo ou xenofobia, bem como a introdução e ingestão de bebidas alcoólicas, estupefacientes ou material produtor de fogo-de artifício ou objectos similares, e quaisquer outros susceptíveis de possibilitar a prática de actos de violência.

Artigo 36.º

Regulamentos de prevenção da violência

As matérias relativas à prevenção e punição das manifestações de violência, racismo, xenofobia e intolerância nos espetáculos desportivos encontram-se regulamentadas no presente Regulamento, no Regulamento Disciplinar das competições organizadas pela Liga Portugal e no ANEXO VI ao presente Regulamento.


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   Feitas as transcrições normativas, voltemos ao caso concreto.

e. imputação e punição do clube a título de autoria  –  execução material do ilícito por sócio ou simpatizante do clube  -  Acórdão nº 730/95 de 14.DEZ.1995 do Tribunal Constitucional;

Atenta a conformação substantiva dos artºs 127º nº 1 [inobservância de outros deveres] e 187º nº 1 a) e a b) [comportamento incorrecto do público] do RD–LPFP/2018, interessa aqui destacar a circunstância de o efeito jurídico punitivo do poder disciplinar recair sobre o clube desportivo   -   no caso, sobre a pessoa colectiva empresarial na medida em que se trata de uma SAD.

 Efectivamente, por disposição expressa do artº 35º do Regulamento das Competições organizadas pela LPFP/2018, a titularidade do dever, colocada na esfera jurídica do clube desportivo sob a forma especial de dever jurídico de garante (em que o omittere é equiparado ao facere - artº 10º nºs 1 e 2 CP), constitui o fundamento da responsabilidade disciplinar do clube por delito de omissão imprópria do dever de evitar o resultado jurídico desvalioso tipificado nos artºs 127ºnº 1 e 187º nº 1 a) e b) do RD–LPFP/2018 no contexto do “terreno de jogo”.

Ou seja, a imputação ao clube do delito omissivo impróprio por violação do dever jurídico de garante plasmado no artº 35º do Regulamento das Competições da Liga está associada à imputação e punição desse mesmo clube pelos ilícitos disciplinares comissivos (por acção) tipificados nos artºs 127º nº 1 [inobservância de outros deveres] e 187º nº 1 a) e a b) [comportamento incorrecto do público] do RD–LPFP/2018), na exacta medida em que a consumação requer a produção de um resultado em sentido material (proibido), concretizado pelo comportamento de um sócio ou simpatizante do clube.

Isto é, o dever jurídico de garante que onera a esfera jurídica do clube desportivo configura um dos pressupostos jurídicos do juízo subjectivo de imputação jurídica e punição do clube a título de autoria pelo cometimento dos ilícitos praticados pelo terceiro (o sócio ou simpatizante) nos termos dos artºs 127º e 187º do RD–LPFP/2018, com fundamento na violação pelo clube do dever jurídico de garante da observância dos deveres elencados nos artºs 34º, 35º e 36º do Regulamento das Competições da LPFP/2018.

O que significa que a entidade administrativa com poderes regulamentares  – a Liga, LPFP – quis vincular a autoria pelo cometimento dos ilícitos disciplinares dos artºs 127ºnº 1 e 187º nº 1 a) e b)  do RD–LPFP/2018 à violação pelo clube do dever jurídico de garante da observância dos deveres elencados nos artºs 34º, 35º e 36º  do Regulamento das Competições da LPFP/2018.

Consequentemente, recai sobre a pessoa colectiva, i.e, sobre o clube desportivo, a imputação de autoria dos ilícitos descritos nos artºs 127º nº 1 e 187º nº 1 a) e b) do RD–LPFP/2018 por violação dos deveres normativamente elencados no âmbito do dever jurídico de garante que incumbe ao próprio clube desportivo.

Estamos, assim, fora do paradigma clássico do direito sancionatório, seja criminal seja disciplinar, assente sobre uma construção individual tanto do lado do agente como do lado do titular do bem jurídico ofendido, isto é, utilizando a expressão cunhada por Figueiredo Dias, “Caim matou Abel”.


*

Nesta construção jurídica de ilícito imputado a pessoas colectivas, que constitui uma novidade no âmbito do ilícito disciplinar mas já há muito conhecida do direito criminal e contra-ordenacional interno, v.g. do direito penal da empresa, cumpre atender a um aspecto muito específico: é que a infracção ao dever apenas se concretiza quando ocorre a materialização do comportamento não querido pela norma regulamentar que descreve o tipo de ilícito disciplinar.   ([8])

Materialização evidenciada por parte da pessoa singular nomeada nas normas que descrevem o comportamento proibido pelo tipo de ilícito disciplinar  -   no caso trazido a recurso, a pessoa singular em causa é o sócio ou simpatizante do clube, conforme determinado nos artºs 127º/187º do RD–LPFP/2018.

É o sócio ou simpatizante do clube quem materializa o ilícito disciplinar imputado ao clube desportivo a título de autoria, ao realizar uma das diversas descrições materiais de acção dolosa constante dos artºs 127ºnº 1 e 187º nº 1 a) e b) do RD–LPFP/2018 associadas à violação do dever jurídico de garante do clube desportivo no âmbito do elenco de deveres especificados nos citados artºs 34º a 36º do Regulamento das Competições da LPFP/2018.


   *

Aplicando o que vem de ser dito ao caso concreto, a imputação de autoria do ilícito disciplinar ao clube desportivo ora Recorrente só se concretiza no momento em que

· “(..) os sócios ou simpatizantes adotem comportamento social ou desportivamente incorreto, designadamente através do arremesso de objetos para o terreno de jogo, de insultos ou de atuação da qual resultem danos patrimoniais ou pratiquem comportamentos não previstos nos artigos anteriores que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina (..) – artº 187º nº 1 RD –LPFP/2018

· “(..)os sócios ou simpatizantes adoptem  (..) o simples comportamento social ou desportivamente incorrecto (..)” - artº 187º nº 1 a)  RD–LPFP/ 2018

· “(..)os sócios ou simpatizantes adoptem  (..) o comportamento não previsto nos artigos anteriores que perturbe ou ameace a ordem e a disciplina, designadamente mediante o arremesso de petardos e tochas (..)” - artº 187º nº 1 b)  RD –LPFP/2018

isto é, no momento em que o sócio ou simpatizante do clube desportivo  realiza uma das acções dolosas descritas na norma regulamentar, e não qualquer outra.


   *

O que significa que o sócio ou simpatizante executor do ilícito disciplinar tem de ser uma pessoa singular devidamente identificada no processo disciplinar através da sua identidade civil para, por seu intermédio, se fazer a imputação funcional do comportamento ilícito do sócio ou simpatizante, devidamente identificado, ao clube desportivo (pessoa colectiva), pelas duas razões já expostas:

a.   por um lado, a pessoa singular está ligada funcionalmente ao clube pela sua qualidade de sócio ou simpatizante

b. e, por outro, o critério da autoria do clube face aos ilícitos dos artºs 127º/187º RD –LPFP/2018 repousa na titularidade dos deveres elencados nos artºs 34º a 36º do Regulamento das Competições organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional/2018.

Ou seja, não só é juridicamente obrigatório carrear para o processo disciplinar os meios de prova referentes aos factos que configuram o comportamento não querido pela norma (no caso, desvalor de acção e de resultado de ilícito comissivo doloso (artºs 127º/187º RD–LPFP/2018) como também é obrigatório carrear o meio probatório relativo à identificação da pessoa singular que realizou a acção em contrário do dever legal (imputação subjectiva da acção ao sujeito executor) e da sua ligação funcional ao clube desportivo em função da sua qualidade de sócio ou simpatizante (imputação da autoria ao clube), nos exactos termos da norma incriminadora do clube a título de autoria, v.g. artºs 127º/187º do RD–LPFP/2018.


     *

Do quadro normativo que vem de ser exposto decorre, como condição necessária, a exigência de identificação processual do sócio ou simpatizante do clube, na medida em que essa identificação pessoal constitui, a par do dever de garante já referido, um dos pressupostos jurídicos do juízo subjectivo de imputação e punição do clube a título de autoria pelo cometimento dos ilícitos praticados pelo terceiro (o sócio ou simpatizante) nos termos dos artºs 127º e 187º do RD–LPFP/2018, com fundamento na violação pelo clube do dever de garante da observância dos deveres elencados nos artºs 34º a 36º do Regulamento das Competições da LPFP/2018.


 *

A exigência de identificação processual do sócio ou simpatizante do clube faz parte do discurso jurídico fundamentador exarado no Acórdão nº 730/95 (Guilherme da Fonseca) do Plenário do Tribunal Constitucional, tirado em 14.DEZ.1995 no processo nº 328/91.

Em análise ao regime da interdição dos recintos desportivos previsto no DL 270/89, 18.08 – regime actualmente previsto no artº 176º por referência aos artºs. 173º/174º do Regulamento Disciplinar das Competições da LPFP/2017  - o citado Acórdão nº 730/95 do TC destaca a identificação civil do sócio ou simpatizante que executa os actos materiais descritos nas normas tipificadoras do ilícito disciplinar, nos segmentos que se transcrevem, sendo o negrito e sublinhados nossos:

“(..) convém reter que as sanções referidas nos artigos 3º a 6º do Decreto-Lei nº 270/89 são aplicadas aos clubes desportivos, por condutas ilícitas e culposas das respectivas claques desportivas (assim chamadas e que são os sócios, adeptos ou simpatizantes, como tal reconhecidos) condutas que se imputam aos clubes, em virtude de sobre eles impenderem deveres de formação e de vigilância que a lei lhes impõe e que ele não cumpriram de forma capaz. (..)

(..) Não é, pois, em suma, uma ideia de responsabilidade objectiva que vinga in casu, mas de responsabilidade por violação de deveres. Afastada desde logo aquela responsabilidade objectiva pelo facto de o artigo 3º exigir, para aplicação da sanção de interdição dos recintos desportivos, que as faltas praticadas pelos espectadores nos recintos desportivos possam ser imputadas aos clubes.

E no mesmo sentido milita a referência que nesse mesmo preceito (7º) e no artº 6º (nºs 1 e 2) é feita ao clube responsável (pelos distúrbios).

Por fim o processo disciplinar que se manda instaurar (artigo 4º) servirá precisamente para se averiguar todos os elementos da infracção, sendo que, por essa via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube). (..)”


 *

Evidentemente que o “reconhecimento” do espectador no quadro dos “sócios, adeptos ou simpatizantes” do clube, bem como a prova de que o “espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clubetem implícito o pressuposto de que não se trata de alguém desconhecido, pelo contrário, constitui um requisito essencial do juízo de imputação do ilícito disciplinar ao clube desportivo (pessoa colectiva), que no processo disciplinar haja notícia e resulte provada a identidade de quem se trata através da identificação civil da pessoa física.

 *

Cabe, pois, importar para o juízo sancionatório no plano disciplinar os modelos de imputação do facto criminal à pessoa colectiva.  ([9])

Para este efeito seguindo, com as devidas adaptações, o direito objectivo nesta matéria, de acordo com o regime subsidiário em matéria de direito adjectivo por disposição expressa do artº 16º nº 1 do RD–LPFP/2018, das disposições do regime disciplinar dos trabalhadores da Administração Pública consagrado na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, Lei 35/2014, 20.06 (LTFP), conjugada com o disposto, em matéria sancionatória disciplinar, no artº 201º nº 2, LTFP que procede ao reenvio para os princípios de processo penal.

O que significa que onde forem omissos o processo comum ou os processos especiais do presente do RD–LPFP/2018 rege o disposto no Código de Processo Penal.

f. presunções relativas – excepções ao princípio in dubio pro reo;

Por força do artº 32º nº 2 e 10 da Constituição, no direito sancionatório, seja criminal seja disciplinar, não se presume a autoria do tipo de ilícito, o que se presume, a partir de uma base fáctica provada (base da presunção), são comportamentos expressos em factos susceptíveis de imputação subjectiva ou objectiva.

Dito de outro modo, não é juridicamente admissível presumir a qualidade de sócio ou simpatizante do clube relativamente à pessoa singular desconhecida e, como tal, não existente no processo, que executa os actos materiais referidos ou descritos nos artºs 127º e 187º do RD–LPFP/2018, que é o sócio ou simpatizante do clube, e que assim concretiza a infracção, nos termos já expostos, materializando o comportamento proibido pelo tipo de ilícito disciplinar.

Se não se sabe quem é a pessoa singular, porque não está identificada no processo disciplinar, não é possível fazer derivar por presunção e dar como provado que a pessoa em causa é sócia ou simpatizante do clube para efeitos de imputação da autoria ao clube desportivo.


    *

 Vejamos o regime da presunção em sede sancionatória.

No campo das presunções judiciais em matéria sancionatória maxime de natureza criminal, importa atender às considerações exaradas no Acórdão do STJ de 19.06.2019 tirado no procº 881/16.6 JAPRT-A.P1.S1 (Pires da Graça):

 “(..) O artigo 127º do CPP estabelece três tipos de critérios para avaliação da prova, com características e natureza completamente diferente: uma avaliação da prova inteiramente objectiva quando a lei assim o determinar, (o caso dos documentos autênticos), outra, também objectiva, quando for imposta pelas regras da experiência, finalmente umas outra, eminentemente subjectiva, que resulta da livre convicção do julgador.

Porém não há que confundir o grau de discricionariedade implícito na formação do juízo e valoração do julgador com o mero arbítrio: a livre ou íntima convicção do juiz não poderá ser nunca puramente subjectiva ou emotiva, e, por isso, há-de ser fundamentada, racionalmente objectivada e logicamente motivada, de forma a susceptibilizar controlo.

A livre apreciação da prova liberta do rígido sistema da prova tarifada, ou prova legal, realiza-se obedecendo a critérios lógicos e objectivos, determinando uma convicção racional e, por isso objectivável e explicável. (v. vg acs do STJ de: 4 de Novembro de 1998, 21 de Janeiro de 1999 e 18 de Janeiro de 2001, respectivamente na CJ, Acs do STJ VI, tomo 3, 201; SAASTJ nº 27, 38; nº 47, 88.

Costuma distinguir-se entre prova directa e prova indiciária, referindo-se aquela ao thema probandum, aos factos a provar, e respeitando a prova indirecta ou indiciária a factos diversos (instrumentais) do tema probatório, mas que possibilitam, pelo uso das regras da experiência, extrair ilações no domínio do thema probandum, de convicção racional e objectivável do julgador.

O princípio da legalidade da prova perfilhado pelo artº 125º do CPP considera “admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.” (..)

Nas provas admissíveis são incluídas as presunções judiciais (ou seja, «as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido»: art. 349.º do CC).

Daí que a circunstância de a presunção judicial não constituir «prova directa» não contraria o princípio da livre apreciação da prova, que permite ao julgador apreciar a «prova» (qualquer que ela seja, desde que não proibida por lei) segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal (art. 127.º do CPP). Não está, por isso, vedado às instâncias, ante factos conhecidos, a extracção – por presunção judicial – de ilações capazes de «firmar um facto desconhecido. (..)”.


      *

  Feito o devido enquadramento, voltemos ao caso concreto.

Como já referido, por disposição expressa do artº 16º nº 1 do Regulamento Disciplinar das Competições da LPFP/2018, em matéria de direito adjectivo, nomeadamente sobre meios de prova admissíveis no processo disciplinar regem, subsidiariamente, as disposições do regime disciplinar dos trabalhadores da Administração Pública consagrado na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, Lei 35/2014, 20.06 (LTFP).

Por sua vez, nesta matéria sancionatória disciplinar o artº 201º nº 2, LTFP procede ao reenvio para os princípios de processo penal, o que significa que onde forem omissos o processo comum ou os processos especiais do presente Regulamento Disciplinar das Competições da LPFP/2018 rege o disposto no Código de Processo Penal, nomeadamente em sede de diligências indispensáveis à instrução do processo.

 Em juízo de indispensabilidade impõem-se as diligências instrutórias que possibilitem o exercício do contraditório por parte do clube desportivo no tocante à imputação de autoria por violação do dever geral de garante relativamente aos deveres consagrados nos artºs 34º, 35º e 36º do Regulamento das Competições da LPFP/2018 em razão do cometimento pelo sócio ou simpatizante da matéria delitual referida ou descrita nas normas sancionatórias dos artºs 127º/187º do RD–LPFP/2018.

De modo que em matéria de presunções cabe observar o regime consagrado no Código de Processo Penal.


*

Diz-nos a doutrina da especialidade neste ramo do Direito que,

“(..) As presunções constituem, em processo penal, excepções ao princípio in dubio pro reo. Como excepções devem ser interpretadas nos precisos termos textuais da lei, não podendo ser aplicadas analogicamente. (..)

As presunções legais relativas fazem inverter o ónus da prova. Em obediência à presunção, o julgador terá de dar o facto como provado, no caso de incerteza. “A presunção legal relativa tem natureza processual e actua, precisamente, quando, incerto o facto probando (mas somente quando incerto) o legislador permite, perante essa incerteza, a equiparação de um facto indiciante a um facto presumido incerto, da prova do primeiro fazendo derivar então as mesmas consequências que teriam lugar com a prova do segundo.

E assim, as presunções simples ou naturais são meios lógicos de apreciação das provas, são meios de convicção. Cedem perante a simples dúvida sobre a exactidão no caso concreto” (Cavaleiro de Ferreira, Curso, II) (..)”  ([10])

Exactamente por isso, diz-se no Acórdão do STJ de 16.05.2019 tirado no procº nº 27908/16.6 T8LSB.L1.S1 (Rosa Tching) que,

“(..) o erro na livre apreciação das provas, salvo quando, nos termos do artigo 674.º, n.º 3, do CPC, a utilização desse critério de valoração ofenda uma disposição legal expressa que exija espécie de prova diferente para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova, ou ainda quando aquela apreciação ostente juízo de presunção judicial revelador de manifesta ilogicidade, ofensivo de qualquer norma legal ou extraído a partir de factos não provados (..) [configuram] verdadeiros erros de direito (..)”.

A nosso ver, é o que ocorre nas circunstâncias do caso trazido a recurso.

Não se suscitam dúvidas quanto a que nenhum dos citados normativos (127º/187º RD-LPFP/2018) estabelece expressamente a presunção de que a execução dos factos ilícitos referidos ou descritos tem como efeito jurídico automático a operatividade da imputação da autoria ao clube, desde que tais factos sejam cometidos a partir do ajuntamento de pessoas identificadas pelas suas camisolas, bonés, cachecóis, tarjas, bandeiras, etc. etc., atavios próprios dos sócios, simpatizantes e das claques dos clubes, estilo “no name boys”, “juventude leonina”, “super dragõeset altri, acantonadas num determinado espaço dos recintos desportivos aquando da realização do jogo. 

Uma interpretação nestes termos, de considerar a imputação da autoria ao clube e consequente punição um efeito automático decorrente da materialização dos eventos ilícitos constantes da previsão dos citados normativos (127º/187º) do RD–LPFP/2018, equivaleria a assumir que a entidade regulamentar consagrou uma assunção automática da posição de garante do clube desportivo e, consequentemente, de autoria.

Consequentemente, equivaleria a atribuir a autoria por responsabilidade disciplinar objectiva do clube por decorrência do cometimento dos factos ilícitos descritos nas normas sancionatória, factos oriundos do ajuntamento de pessoas da claque desportiva em tumulto, presumindo que todas aquelas pessoas têm a qualidade funcional (de ligação ao clube) exigida pela norma, isto é, de “sócios ou simpatizantes”. 


*

Todavia, como já referido, a responsabilidade objectiva mostra-se afastada pela circunstância de ambos os normativos em causa (127º/187º) do RD–LPFP/2018 exigirem para efeito de imputação aos clubes e punição destes por factos ocorridos nos recintos desportivos, que as faltas sejam praticadas por espectadores sócios ou simpatizantes do  clube.

Por esta razão, porque as normas exigem a imputação da qualidade pessoal de sócio ou simpatizante ao clube especificamente objecto da punição, do ponto de vista jurídico não é admissível presumir a qualidade de sócio ou simpatizante relativamente a pessoa que nem se sabe quem é por não estar identificada no processo disciplinar, para efeitos de operatividade da ligação funcional do (desconhecido) sócio ou simpatizante ao clube desportivo nos termos consignados nos artºs. 127º/187º do RD–LPFP/2018.

Efectivamente, a interpretação dos artºs. 127º/187º do RD–LPFP/2018 no sentido

(i) da imputação de autoria ao clube por efeito automático da concretização dos ilícitos disciplinares comissivos referidos ou descritos nos citados artigos (127º/187º), cometidos por pessoa física cuja identidade é desconhecida,

(ii) presumindo a qualidade funcional de “sócio ou simpatizante” (ligação ao clube) exigida pela norma (182º/187º) relativamente a essa pessoa física de identidade desconhecida,

(iii)  associando à concretização dos ilícitos (182º/187º) o efeito automático de imputação ao clube do delito omissivo impróprio de violação do dever jurídico de garante (artº 35º do Regulamento das Competições da LPFP/208),

configura-se inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência em sede de processo disciplinar, à luz do regime constante do artº 32º nºs. 2 e 10 CRP.


*

Só os cachecóis, camisolas, bandeiras e tarjas com a heráldica do clube, bem como os cânticos tribais escatológicos alusivos à equipa adversária e a circunstância de as pessoas assistirem na zona do estádio reservada ao clube – vd. alíneas B, C, D, E, H, J, K e L do probatório  - , não chega para dar operatividade à imputação de autoria ao clube, posto que, nos termos já referidos, tal é vedado pelo artº 32º nºs. 2 e 10 da Constituição.


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No mesmo sentido o acórdão deste TCAS tirado em 09.MAI.2019 no rec. nº 42/19.2BCLSB no segmento do discurso jurídico fundamentador que se transcreve:

“(..)Na verdade, também perfilhamos o entendimento expresso pela recorrente e já supra afirmado, de que nos relatórios de jogo, prova documental nos autos que beneficia da presunção de verdade, não se descreve um único facto relativamente ao que fez ou não fez o clube, por referência a concretos deveres legais ou regulamentares, nem tão-pouco se descreve por que forma essa actuação do clube facilitou ou permitiu o comportamento que é censurado; sendo a actuação culposa um dos "demais elementos das infracções" que se impunha à FPF, aqui recorrida, provar, sempre se mostrava prejudicada a condenação do Clube por falta de preenchimento de pressuposto legal exigido pelos arts. 186º 2 e 187º l a) e h) do RD.

Daí, pois, se concorde que é inconstitucional, por violação do princípio jurídico- constitucional da culpa (art. 2º da CRP) e do princípio da presunção de inocência, presunção de que o arguido beneficia em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa (arts. 32º 2 e 10 da CRP), a interpretação dos artºs 13º f) e 186º 2 e 187º 1 a) e h) do RDLPFP no sentido de que a indicação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube, o que desde já se argui, para todos os efeitos e consequências legais: e inconstitucional, porque, materialmente, na prática, significa impor ao clube uma responsabilidade objectiva por facto de outrem (2º e 30º 3 da CRP). (..)”.


     *

Pelos fundamentos expostos conclui-se que a decisão de 20.11.2018 proferida em via de recurso hierárquico impróprio nº ...../19 pela Secção Disciplinar do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol se mostra inquinada de vício de violação de lei por erro de facto e de direito sobre os pressupostos, passível de anulação nos termos do artº 163º nº 1 CPA.


    *

Tudo visto, não se acompanha o entendimento sustentado no acórdão do TAD de 09.10.2019, ora sob recurso, de considerar “(..) nos termos e com os fundamentos nesta sede elencados, decide-se julgar improcedente o recurso confirmando-se na íntegra a decisão recorrida (..)”; consequentemente, procede a questão trazida a recurso nos itens 14 a 16 das conclusões e prejudicadas todas as demais suscitadas no elenco de conclusões dos itens 1 a 23 pela solução dada à antecedente.

g. sanção disciplinar – valor da causa -  custas processuais;

Nos itens 24 a 27 vem assacado o acórdão do TAD de incorrer em erro de julgamento por modificação do valor da causa em violação do regime estabelecido no artº 33º b) CPTA, no que assiste razão à Recorrente na medida em o objecto da causa consubstancia a cumulação de pedidos de impugnação da decisão sancionatória de aplicação da pena de multa no valor total de € 3.538,00 por concurso real de infracções; tal significa que compete aplicar o regime específico referente ao critério do conteúdo económico do acto, a saber, o montante da sanção de carácter pecuniário que foi aplicada, correspondente à soma dos valores unitários em razão da cumulação real de pedidos, nos termos conjugados dos artºs. 33º b) e 32º nº 7 CPTA([11])

Exactamente porque o valor da causa é o montante pecuniário da multa, podendo esta não atingir o valor da alçada dos TCA’s  - € 30000 mais € 0,01  -, o regime de recurso em matéria sancionatória segue o disposto no artº 142º nº 3 b) CPTA sendo justificada a admissibilidade de recurso independentemente do valor da causa, pela especificidade da matéria – direito sancionatório - e pela natureza dos direitos e interesses em causa.

Consequentemente, no caso presente o valor que compete é o resultante do somatório dos pedidos de anulação das multas aplicadas em regime de cumulação real de infracções, no valor total de € 3.538,00, a saber,

o pena de multa pelo cometimento de uma infracção disciplinar p.p. no artº 127º nº 1 [inobservância de outros deveres] no jogo de 28.09.2018 ,

o pena de multa pelo cometimento de duas infracções disciplinares p.p. no artº 187º nº 1 a) e b) [comportamento incorrecto do público] no jogo de 28.09.2018,

o pena de multa pelo cometimento de uma infracção disciplinar p.p. no artº 187º nº 1 a) [comportamento incorrecto do público] no jogo de 07.10.2018.

sendo, pois, nos termos conjugados dos artºs. 33º b) e 32º nº 7 CPTA, de atribuir à causa o valor de € 3.538,00.

                                                                                              *

                Pelo exposto, procede a questão trazida a recurso no item 24 das conclusões.

                                                                                              *

Quanto à questão suscitada nos itens 25 a 27 das conclusões de recurso, em que a Recorrente sustenta que “(..) Os custos fixados pelo TAD comprometem de forma séria e evidente o princípio da tutela jurisdicional efectiva (arts. 20.°-l e 268.°-4 da CRP). Considerando o critério da nossa jurisprudência constitucional, não são compatíveis com o direito fundamental de acesso à justiça (arts. 20.° e 268.°-4 da CRP) soluções normativas de tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efectivo exercício de um tal direito, como é o caso do TAD (..)”, adere-se à corrente jurisprudencial seguida em acórdão deste TCAS de 22.08.2019, tirado no rec. nº 96/9.1BCLSB, em que se fundamentou como se transcreve:

“(..) Também este TCAS já se pronunciou sobre a questão, considerando infundadas as alegações da desproporcionalidade das custas devidas pela intervenção do TAD, designadamente no Ac. 30/18.6BCLSB, de 22-11-2018, onde se refere o seguinte: “9. Já no que respeita à questão das custas suscitada pelo Recorrente..., trata-se de matéria recorrentemente trazida à apreciação deste TCA, tendo sido já objecto de recurso obrigatório do Ministério Público para o Tribunal Constitucional;

10. De qualquer modo, sempre se referirá que, sem prejuízo de maior aprofundamento nesta matéria, estamos perante um pleito em sede de Jurisdição Arbitral e, como tal, sujeita às regras, nomeadamente de custas, ali definidas pelo legislador e aceites pelas partes;

11. Porém, é certo que os montantes devidos pelas partes em sede de custas, quando comparados com os montantes devidos em sede de Jurisdição Administrativa, poderão revelar-se algo desfasados do regime das custas judiciais;

12. Ora, tal comparação não nos parece totalmente legítima, na justa medida em que as partes pleiteiam em Jurisdições diferenciadas e que, pela sua própria natureza, são, também a nível de regime legal de custas, incomparáveis;

13. Para além de que o TAD se rege por normas próprias de funcionamento, devendo o respectivo regime de custas, além do mais, reflectir e suportar essa realidade;

14. Trata-se de uma verdadeira encruzilhada jurídica na justa medida em que se está perante um Tribunal (TAD) onde, à primeira vista, se dirimem interesses de natureza privada, mas que, no fundo, tendo em conta a natureza jurídica dos intervenientes, nomeadamente as Federações desportivas e o respectivo regime jurídico associado, se tratam de questões de natureza eminentemente pública;

15. Encruzilhada essa que se traduziu nas vicissitudes de natureza constitucional que precederam o difícil processo de criação do TAD e que, infelizmente, ainda acompanham o seu funcionamento;

16. Como seja o caso da especialmente particular opção do legislador em sede do regime legal da arbitragem, mais especificamente ao criar a figura jurídica da "arbitragem necessária", em oposição à denominada "arbitragem voluntária", opção essa que, com todo o respeito, acabou por criar situações como as referidas nos Autos em que as partes são obrigadas a recorrer à arbitragem, quando, na sua essência, a arbitragem deveria, obrigatoriamente, reflectir algo de natureza voluntária...” – em sentido idêntico, vide os Acs. deste TCAS n.º 94/17.0BCLSB em 04-10-2017, n.º 75/18.6BCLSB, de 18-10-2018, n.º 30/18.6BCLSB, de 22-11-2018 ou n.º 79/18.9BCLSB, de 06-12-2018. (..)”.


       *

Pelo exposto improcede a questão trazida a recurso nos itens 25 a 27 das conclusões.

***

                Tudo visto, acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em

a) julgar procedente o recurso interposto pela sociedade ….. - Futebol SAD,

b) anular a decisão de 20.11.2018 proferida em via de recurso hierárquico impróprio nº ...../19 pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol e

c) revogar o acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto de  09.10.2019,

d) fixar o valor da causa em € 3.538,00.

Custas a cargo da Recorrida Federação Portuguesa de Futebol.


                                                                                                               Lisboa, 30.JAN.2020


 (Cristina dos Santos) ………………………………………………………


 (Sofia David) ………………………………………………………………

                                         (com declaração de voto que segue em anexo)

(Paula Loureiro) ……………………………………………………………


Declaração de voto:

Voto a decisão, com a qual concordo integralmente.

Sem embargo, daria também procedência ao recurso por entender que, no caso, não está verificada a culpa do Clube de futebol ou a violação culposa dos seus deveres de conduta.

O Recorrente foi punido por infracção aos art.°s 127.°, n.° 1 e 187.°, n.° 1, al. b), do RD.

Vem sendo defendido pelo STA que não ocorre aqui uma situação de responsabilidade objectiva, mas, sim, subjectiva, que depende da verificação da culpa do Clube, decorrente da infracção dos seus deveres de cuidado, nomeadamente dos previstos no art.° 35.° do RC - cf. neste sentido, entre outros, os Ac. do STA n.° 033/18.0BCLSB, de 21-02-2019, n.° 01/18.2BCLSB, de 19-06-2019, n.° 073/18.0BCLSB, de 02-05-2019, n.° 040/18.3BCLSB, de 04- 04-2019 ou n.° 030/18.6BCLSB, de 04-04-2019.

Assim, para o Clube ser punido nos termos dos indicados preceitos terá de resultar provado no procedimento disciplinar que foram omitidos os deveres que lhe incumbiam, de prevenir e reprimir eventuais condutas incorrectas dos seus sócios, adeptos ou simpatizantes, designadamente, que foram omitidos os deveres gerais que vêm previstos no art.° 35.° do RC, ou algum dos deveres específicos aí indicados.

 Ou seja, seguindo a indicada jurisprudência do STA, para a punição do Clube não basta a ocorrência de comportamentos e condutas incorrectas, perpetradas pelos sócios, adeptos ou simpatizantes, que estejam atestadas em relatórios oficiais, mas é, também, preciso ficar provado no procedimento disciplinar que o indicado Clube omitiu deveres de vigilância e cuidado, porque não levou a cabo as condutas necessárias para efectivar os deveres legais que lhe incumbiam.

Terá que ficar provado no procedimento disciplinar que o Clube tinha de ter adoptado determinadas acções visando a prevenção e repressão das condutas incorrectas dos seus sócios e simpatizantes e que omitiu esse seu dever jurídico.

A culpa do Clube tem de ser uma culpa efectiva, não uma culpa presumida.

Têm de existir factos no procedimento punitivo que comprovem uma efectiva abstenção do Clube em adoptar certos comportamentos ou acções, que constituíssem um dever jurídico, fossem os adequados a obstar à violência e às condutas impróprias dos sócios, adeptos ou simpatizantes do Clube.

Como se refere na decisão ora tomada, no caso, estar-se-á a punir por um ilícito omissivo impróprio ou comissivo por omissão, em que resultado se inclui no próprio tipo legal.

Por conseguinte, no facto delitual exige-se incluída quer a acção adequada a produzir o indicado resultado, como a omissão adequada a evitá-lo.

Tal como decorre dos art.°s 17°, 1127.°, 182.°, 187.° do RD e 35.° do RC, o Clube tem um dever de garante face à actuação dos seus sócios, adeptos e simpatizantes. Tal dever estará justificado pela proximidade entre estes e o Clube e pela possibilidade do Clube assumir o domínio do facto ou uma posição de controlo sob os referidos sócios, adeptos e simpatizantes.

Assim sendo, tal com se julga através do presente Acórdão, para a punição do Clube terá de resultar provada a ligação funcional, ou de proximidade ao Clube, do sócio ou simpatizante que cometeu as condutas impróprias, com a sua identificação processual. Mas, para além disso, terá também que ficar provado nos autos que existiu um comportamento, comissivo ou omissivo, imputável ao Clube, que originou um risco na verificação do resultado que se pretendia evitar, ou que o Clube provocou ou potenciou esse resultado com a omissão dos seus deveres jurídicos.

Ora, nada disso ficou provado na decisão recorrida. Nessa decisão não foi dado por assente, por provado, um único facto concreto relativo à materialização da violação pelo Clube dos deveres de prevenir e reprimir eventuais condutas incorrectas dos sócios, adeptos ou simpatizantes, por se ter abstido, em termos efectivos (e não presumidos) da prática de certas acções, comportamentos ou actividades.

Na verdade, o que se deu por provado em N, O e P, não se reconduz a uma realidade fáctica, mas a meras afirmações conclusivas e a juízos de valor que não podem ser atendidos enquanto realidades existentes, da vida. As afirmações contidas em tais segmentos do julgamento de facto incluem, também, desde logo, a solução da questão jurídica que se dirime nos presentes autos e que é o objecto do litígio ou thema decidendum, a saber, acerca do dever jurídico de vigilância e cuidado.

Portanto, consideramos que o vem vertido nos pontos N, O e P deve ser expurgado do julgamento de facto e dado por não escrito, pois não se reconduz a realidades da vida mas a conclusões e a juízos de valor, genéricos e conclusivos sobre que encerram matéria de Direito ou subsunções jurídicas.

Como se explica no Ac. do STJ n.° 306/12.6TTCVL.C1.S1, de 29-04-2015 “Dispunha o n.° 4 do art. 646.° do C.P.C./1961 (disposição que não foi mantida, ao menos em termos de directa correspondência, na disciplina homóloga da nova Codificação[7 Ante a sua eliminação, vem-se entendendo poder manter-se o mesmo entendimento das coisas interpretando, a contrario sensu, o actual n.° 4 do art. 607°, segundo o qual, na fundamentação da sentença, o Juiz declara quais os factos que julga provados...]) que se têm por não escritas as respostas do Tribunal sobre questões de direito ... assim como as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.

Não se contemplava a circunstância de se tratar  - ...como, em parte, no caso -  de matéria (respostas de facto) vaga, genérica e conclusiva.

Foi-se consolidando, porém, na produção jurisprudencial - ...por se ter admitido que assume feição de recorte jurídico a operação de escrutinar se determinada proposição de facto tem ou não natureza conclusiva o entendimento de que [8 Usamos as palavras do paradigmático Acórdão desta Secção, de 23.9.2009, tirado na Revista n.° 238/06.7TTBRG.S1, consultável no site da DGSI.PT, secundadas por tantos outros Arestos, dentre eles, v.g,, o prolatado no Proc. n.° 30/08.4TTLSB.U.S1, de 19.4.2012.] ”...não porque tal preceito contemple expressamente a situação de sancionar como não escrito um facto conclusivo, mas (...) porque, analogicamente, aquela disposição é de aplicar a situações em que em causa esteja um facto conclusivo, as quais, em rectas contas, se reconduzem à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos, objecto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no thema decidendum.” Cf. também, em idêntico sentido, entre muitos, os Acs. do STA n.° 659/12.6TVLSB.L1,S1, de 28-09-2017 ou n.° 4073/04.9TBMAI.P1, de 03-11 -2009.

Tudo o que se levou aos pontos N) e O) da fundamentação de facto da sentença recorrida são conclusões sucessivas baseadas em afirmações genéricas e abstractas. Naqueles pontos não se indica quais os comportamentos concretos que não foram tomados pelo ora Recorrente ou quais os comportamentos que foram insuficientes.

Também não se indica que condutas é que ficaram por tomar que acautelariam, preveniriam ou formariam o espírito ético e desportivo junto dos adeptos. Basicamente, naquele ponto resolve-se também todo o litígio afirmando a omissão dos deveres legais de vigilância e cuidado do Clube.

Quanto ao afirmado no ponto P, é um juízo totalmente conclusivo e de Direito e configura, ainda, uma subsunção jurídica. Conclui-se que por terem sido omitidos os deveres legais de vigilância e cuidado que vinham afirmados em N) e O), ocorreram as condutas dos sócios, adeptos ou simpatizantes pelas quais o Clube é punido.

Portanto, todas aquelas afirmações haviam de ser dadas por não escritas, pois delas não se extraem quaisquer factos.

No restante, da decisão recorrida não resulta nenhum facto assente, por provado, relativo a uma concreta e específica omissão do Clube quanto a deveres de formação dos seus sócios, adeptos ou simpatizantes, visando o incentivo do espírito ético e desportivo, uma maior polidez de trato ou de expressão oral, ou a contenção da violência individual e colectiva.

Aliás, a decisão recorrida não invoca que esteja comprovada a efectiva abstenção de certos comportamentos do Clube. Tal decisão limita-se a afirmar, conclusivamente, que o Clube violou os seus deveres de cuidado e vigilância, sem indicar, concretamente, como se efectivou ou em que termos se efectivou a abstenção que se afirma conclusivamente.

A decisão recorrida não deu por provados factos que atestem a omissão de certas e determinadas medidas de segurança, ou relativos à não prolação de regulamentos internos que punam os sócios, adeptos ou simpatizantes quando incorrectos e violentos, sendo a prolação desses regulamentos exigível.

 Na decisão recorrida não vem provada a omissão de algum concreto comportamento do Recorrente que concorresse para a prevenção da violência dos adeptos.

 Não vem provada a omissão de comportamentos do Recorrente que impedissem aquela violência ou que concorressem para a sua diminuição ou abolição.

 Não vem dado por provada a omissão de concretas medidas formativas, de sensibilização dos adeptos e grupos organizados, de educação dos mesmos, de formação para o espírito ético e desportivo, para a civilidade, ou de formação para a não violência, para o pacifismo e para o fair play.

 Não vem provado que o Clube punido não tenha aplicado medidas sancionatórias aos seus associados envolvidos em perturbações da ordem pública.

Não vem dado por provado que o Clube tenha omitido comportamentos concretos relativos à protecção dos outros utentes do Estádio ou de outros indivíduos ou que não tenha cooperado com as forças de segurança ou requisitado e pago o necessário policiamento.

Não vem provado que o Clube punido não tenha designado um coordenador de segurança.

Não está provado que o Clube punido tenha incumprido regras concretas relativas às condições de acesso e de permanência de espectadores no recinto desportivo.

 Não vem provado que o Clube que foi punido tenha permitido, não tenha evitado ou não tenha impedido a entrada no recinto desportivo de sócios que antes tenham sido punidos por praticarem actos de violência.

Não está provado que o Clube punido tenha incitado à violência ou à intolerância por via de qualquer concreto comportamento que tenha sido adoptado, antes, durante e depois do jogo.

Por conseguinte, atendendo à matéria de facto apurada nos autos não podemos concluir pela violação de quaisquer obrigações formativas do Clube ou pela omissão de determinadas condutas que lhe fossem exigíveis.

 Ou seja, atendendo à factualidade provada nos autos não podemos concluir pela violação comprovada de nenhum dever de vigilância por banda do Clube. Nessa mesma medida, não podemos concluir pela verificação do pressuposto culpa efectiva (não valendo em termos disciplinares, a existência de uma culpa meramente presumida, por aqui regerem os princípios de direito penal que a tal se opõem).

Atendendo à factualidade apurada nos autos não se pode concluir que o Clube tenha tomado alguma actuação que possa ser a causa da violência ocorrida, ou que tenha omitido determinada conduta, que lhe era exigível e que seria adequada a evitar o resultado.

Frente à factualidade apurada, apenas se pode concluir que o Clube adoptou medidas tendentes a controlar a actuação dos sócios, adeptos e simpatizantes.

Frise-se, que tal como parece decorrer assente da jurisprudência do STA, aqui não existe uma responsabilidade objectiva, nem uma culpa presumida, por a tal responsabilidade e culpa se oporem os princípios de direito penal e disciplinar e o art.° 32.°, n.° 2, da CRP.

Logo, seguindo a indicada jurisprudência do STA, porque para a punição do Clube nos termos dos citados art.°s. 127.° n.°1 e 187.° do RD é necessária a culpa subjectiva, uma culpa in vigilando, não estando provados nos autos e designadamente na decisão punitiva factos que permitam concluir pela violação de tal dever de cuidado, é a indicada decisão inválida e anulável, por erro nos pressupostos de facto e de Direito.

Consequentemente, nestes autos não ficou provada a culpa do Clube, ainda que a título de negligência, por falta de cumprimento dos seus deveres de cuidado e vigilância.

Assim, também por estas razões revogaria a decisão recorrida e julgaria a decisão sancionatória como inválida e anulável, por padecer de erro nos pressupostos de facto e de Direito, por dos autos não resultarem factos concretos e especificados em que se possa alicerçar a culpa do Clube.

Razões por que se faz a presente declaração de voto, sem embargo de também se acompanhar, no restante e na sua integralidade, a fundamentação adoptada no presente Acórdão.


Lisboa, 30 de Janeiro de 2020.

                (Sofia David) ……………………


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[1] Abrantes Geraldes, in Recursos no novo Código de Processo Civil, Almedina/2013, pág. 85.
[2] Abrantes Geraldes, in Recursos no novo Código de Processo Civil, págs. 115, 84/85.
[3] Abrantes Geraldes, Recursos do novo Código de Processo Civil, págs. 71/72.
[4] Eduardo Correia, Direito Criminal, I, Almedina, 1971, pág. 37.
[5] José Beleza dos Santos, Ensaio sobre a introdução ao direito criminal, Atlântida Editora SARL/1968, págs. 113 e 116.
[6] Luís Vasconcelos Abreu, Para o estudo do procedimento disciplinar no direito administrativo português vigente: as relações com o processo penal, Almedina, Coimbra/1993,pág.30; Francisco Liberal Fernandes, Autonomia colectiva dos trabalhadores da administração - Crise do modelo clássico de emprego público, Boletim da Faculdade de Direito, Studia Iuridica, 9, Coimbra/1995, págs.146/147.
[7] Mário Esteves de Oliveira, Lições de Direito Administrativo – FDL/1980, págs.621e 787; Bernardo Diniz de Ayala, O défice de controlo judicial da margem de livre decisão administrativa, Lex, 1995, pág. 91.
[8] Susana Aires de Sousa, Questões fundamentais de direito penal da empresa, Almedina/2019, págs.64- 65, 81-87; José de Faria Costa, Direito penal, INCM/2017, págs. 260-265.
[9] Susana Aires de Sousa, Questões fundamentais … págs. 89-91.
[10] Maia Gonçalves, Código de Processo penal, - anotado e comentado, Almedina/2005, comentário ao artº 126º CPP, pág. 315
[11] Aroso de Almeida/Carlos Cadilha, Comentário ao CPTA, Almedina/2017, págs .230/232 e 226/227.