Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:12325/15
Secção:CA-2º JUÍZO
Data do Acordão:11/24/2016
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:CONTRATO PÚBLICO – DECLARAÇÃO NEGOCIAL TÁCITA – AUTONOMIA LOCAL – INALEGABILIDADE FORMAL
Sumário:I - O sistema para captação, tratamento e distribuição de água, para recolha, tratamento e rejeição de efluentes e para recolha, tratamento e destino final de resíduos sólidos, é constituído por imóveis, infraestruturas e equipamentos cuja propriedade foi transmitida para o Estado pelo Decreto-Lei 115/89, de 14 de Abril, que depois transitou para o Instituto da Água (INAG) por força do disposto no artigo 18.º-A do Decreto-Lei 191/93, de 24 de Maio, acrescentado a este último diploma pelo Decreto-Lei 110/97, de 8 de Maio, e que serve, parcialmente, os municípios de Santiago do Cacém e Sines, obriga a ora autora concessionária do Estado, ante o Estado, a assegurar de forma regular, continua e eficiente (i) o abastecimento de água para consumo público e industrial e (ii) a proceder igualmente ao tratamento e rejeição de efluentes canalizados, cujo destino seja o seu sistema, (iii) bem como o processamento de resíduos industriais - cfr. a cláusula 3 do contrato de concessão.

II - Se o suposto devedor nega a dívida invocada pelo alegado credor, este tem de provar o crédito que invoca (cfr. o artigo 342º do Código Civil), o que pressupõe, desde logo, a demonstração da existência e a identificação correta da contraparte, isto é, do devedor.

III - Nada liga o ora réu município a esta autora concessionária do Estado, para que possamos concluir por uma relação jurídica contratual: não existe norma legal (cfr. Decreto-Lei nº 171/2001), nem contrato, a vincular o município réu à autora, no âmbito dos serviços mencionados nas faturas emitidas pela autora, relativas a tratamento de águas residuais ou efluentes domésticos.

IV - Não se pode presumir a vontade do réu município, no sentido de ter celebrado um contrato público informal com a autora (nulo – ex vi artigos 220º e 294º do Código Civil, artigos 184º e 185º/3-b) do Código do Procedimento Administrativo/96 e artigo 94º do Código dos Contratos Públicos), já que não está demonstrado qualquer comportamento do réu nos termos exigidos pelo artigo 217º, nº 1, do Código Civil, segundo o qual a declaração negocial só é tácita quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelem; com efeito, estes factos não estão provados; aliás, nem foram alegados.

V – Além disso, a Lei nº 159/99 (cfr. o artigo 26º, nº 1, als. a) e b)) não permite transformar a ausência de qualquer declaração negocial do ora réu, para com a autora, em vinculação contratual.

VI – Por outro lado ainda, não existe qualquer deliberação municipal para a aquisição do tipo de serviço mencionado nas faturas emitidas unilateralmente pela autora, atento o disposto no artigo 64º, nº 1, al. d), da Lei nº 169/99.

VII – O que significa que não existe um contrato público (nulo) entre a autora e o réu.

VIII – E, como não está provado que o réu município fosse ou seja o beneficiário ou o utilizador dos serviços da autora, nem que o réu tenha aderido ao serviço prestado pelo réu em decorrência do Decreto-Lei nº 171/2001 e do contrato de concessão celebrado com o Estado, não se pode falar numa realidade contratual factual.

IX – A inalegabilidade formal é a situação da pessoa que, por exigências do sistema, não se possa prevalecer da nulidade de um negócio jurídico causada por vício de forma; tem os seguintes pressupostos: um comportamento gerador de confiança, por a falta de forma do negócio resultar de comportamento de quem invoca a nulidade; existência de uma situação de confiança; efetivação de um investimento de confiança; frustração da confiança por parte de quem a gerou; devem estar em jogo apenas os interesses das partes envolvidas, e não, também, os de terceiros de boa fé; a situação de confiança deve ser censuravelmente imputável à pessoa a responsabilizar; o investimento de confiança deve ser sensível, sendo dificilmente assegurado por outra via.

X – O ora réu não adotou qualquer comportamento gerador de confiança na autora, no sentido por esta pressuposto na petição inicial ou na alegação de recurso: o réu município não causou a falta de forma escrita do alegado contrato, nem atuou por modo a aceitar para si próprio a prestação da autora.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam no Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

· ÁGUAS ………………., S.A., melhor identificada nos autos, intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de Beja

Ação administrativa comum contra

· MUNICÍPIO DE SANTIAGO …………………….

Pediu o seguinte:

- Condenação do R. no pagamento da quantia de € 73.396,36 (setenta e três mil, trezentos e novena e seis euros e trinta e seis cêntimos), acrescida de juros vincendos à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento, bem como as custas e demais encargos, a título de enriquecimento sem causa.

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Por sentença de 28-9-2014, o referido tribunal decidiu julgar improcedente a ação (embora sem expressamente absolver o réu do pedido).

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Inconformada, a autora recorre de apelação para este Tribunal Central Administrativo Sul, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

« Texto no original»

*

O recorrido contra-alegou, concluindo:

« Texto no original»

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O MP, através do seu digno representante junto deste tribunal, foi notificado para se pronunciar em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, como previsto no nº 1 do art. 146º.

Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência. (1)

*

Os recursos, seja para o Tribunal Central Administrativo, seja para o Supremo Tribunal Administrativo, devem ser dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido e os respetivos fundamentos.

Os recursos têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso, alegação que apenas pode incidir sobre as questões que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. FACTOS PROVADOS

Com interesse para a decisão a proferir, está provado o seguinte quadro factual (redação do tribunal a quo):

A. Em 25-05-2001, foi constituída a sociedade Águas …………. S. A. – AdSA, ora A., sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos e concessionária, em regime de exclusivo, da concessão da exploração e gestão do sistema de abastecimento de água, de saneamento e de resíduos sólidos de Santo André - Sistema: cfr. D.L. N.º 171/2001, de 25 de maio;

B. O referido sistema serve parcialmente o território dos municípios de SANTIAGO DO CACÉM e de SINES: por acordo;

C. Esta exploração e gestão compreendem a conceção, a construção das obras e equipamentos, bem como a sua exploração, reparação, renovação e manutenção do Sistema concessionado: por acordo;

D. Em 2001-12-27, o Estado Português, na qualidade de primeiro outorgante, e a AdSA ora autor, na qualidade de segundo outorgante, outorgaram o contrato de concessão, no qual acordaram os termos e as condições da exploração e gestão do Sistema acima referido: cfr. Doc. 1 junto com a Petição Inicial – PI;

E. O Estado Português concessionou à A. todo o sistema em funcionamento nos moldes em que o próprio Estado o vinha exercendo, através do INSTITUTO DA ÁGUA – INAG: por acordo;

F. Foram transferidos para a A. o património mobiliário e imobiliário afeto ao sistema, assim como todos os direitos: por acordo, vide D.L. N.º 171/2001, de 25 de maio, Art.º 12 N.º 2, e clausula 7.ª do Contrato de Concessão;

G. No património acima mencionado incluem-se: a propriedade dos imóveis infraestruturas e equipamentos que constituem o sistema de saneamento básico de Santo André, criado pelo extinto GABINETE DA ÁREA DE SINES - GAS, e posteriormente transferidas para o INAG, com exceção das redes de drenagem de águas residuais domésticas e de águas pluviais do centro urbano da cidade de V.N.S.A.: por acordo; vide D.L. N.º 171/2001, de 25 de maio e D.L. N.º 115 /1989, de 14 de Abril art.º 1 n.º 2 al. b);

H. Para o ano de 2012, as tarifas foram aprovadas por despacho da Senhora Ministra do Ambiente e do Ordenamento do Território: cfr. Doc. 2 junto com a PI;

I. A água é captada, tratada, distribuída, utilizada e uma vez utilizada é recolhida, tratada e rejeitada numa parte, que constitui o efluente doméstico: por acordo;

J. As águas residuais urbanas, isto é, os efluentes domésticos de V.N.S.A., e outras pequenas localidades do Concelho de Santiago do Cacém, são recolhidas pela rede municipal do Réu Município de Santiago do Cacém e tratadas na ETAR (Estação de tratamento de águas residuais) de Ribeira de Moinhos, propriedade da AdSA: por acordo;

K. No ponto de recolha de V.N.S.A., procede-se à recolha de rede dos esgotos seguintes: Vila Nova de Santo André (efluentes gerados por cerca de 10.000 habitantes), Brescos, e de Giz: por acordo;

L. Todas as infraestruturas de transporte, a partir do ponto de recolha, tratamento e rejeição dos efluentes domésticos são propriedade e da responsabilidade da AdSA, a partir da receção até ao destino final: por acordo;

M. A fatura nº…………….., com a data de emissão de 31.12.2011 e vencimento em 29.02.2012, no valor de €22.308,31 (vinte e dois mil, trezentos e oito euros e trinta e um cêntimos), referente a efluentes domésticos rececionados no Sistema e provenientes da cidade de V.N.S.A., com o volume de 49.126 m3: cfr. Doc. 3 junto com a PI;

N. A fatura nº……………, com a data de emissão de 31.01.2012 e vencimento em 31.03.2012, no valor de €24.955,96 (vinte e quatro mil, novecentos e cinquenta e cinco euros e noventa e seis cêntimos), referente a efluentes domésticos rececionados no Sistema e provenientes da cidade de V.N.S.A., com o volume de 53.350 m3: cfr. Doc. 4 junto com a PI;

O. A fatura nº…………., com a data de emissão de 29.02.2012 e vencimento em 29.04.2012, no valor de €8.399,88 (oito mil, trezentos e noventa e nove euros e oitenta e oito cêntimos), referente a efluentes domésticos rececionados no Sistema e provenientes da cidade de V.N.S.A., com o volume de 17.957 m3: cfr. Doc. 5 junto com a PI;

P. A fatura nº………….., com a data de emissão de 31.03.2012 e vencimento em 30.05.2012, no valor de €16.774,99 (dezasseis mil, setecentos e setenta e quatro euros e noventa e nove cêntimos), referente a efluentes domésticos rececionados no Sistema e provenientes da cidade de V.N.S.A., com o volume de 35.861 m3: cfr. Doc. 6 junto com a PI;

Q. Até à presente data, o R. não pagou o valor das faturas acima melhor identificadas, devolvendo-as sistematicamente ao A.: por acordo;

R. O R. não cobra aos seus munícipes o saneamento básico da cidade V.N.S.A.: por acordo;

S. Os “utilizadores” dos serviços de recolha, tratamento e destino final de efluentes domésticos são os munícipes da Cidade de V.N.S.A.: por acordo;

T. O R. não foi chamado a intervir nas negociações que tiveram por conclusão o contrato de concessão celebrado entre o Estado Português e a A.: cfr. confronto entre a prova testemunhal e documental produzida;

U. A. fatura os serviços de recolha em alta e tratamento de efluentes domésticos que presta aos utentes/clientes de V.N.S.A.: cfr. resulta do depoimento da Testemunha BRANCA ……. e do confronto com a demais prova testemunhal e documental produzida;

V. A A. foi criada, existe e presta os serviços visados nesta ação, abrangendo também o território sob jurisdição do R.: cfr. resulta do confronto de toda a prova testemunhal e documental produzida e ainda A) a G) da matéria assente;

W. A A. não tem contrato com os Munícipes quanto ao saneamento, tendo, contudo, contrato com cerca de 5600 clientes na Cidade de V.N.S.A. quanto à água para consumo humano: cfr. resulta do depoimento da Testemunha BRANCA …………. e do confronto com a demais provas testemunhais e documentais produzida;

X. A A. recebe, trata e dá destino final aos efluentes domésticos provenientes dos residentes na Cidade de V.N.S.A.: cfr. resulta do confronto entre toda a prova testemunhal e documental produzida;

Y. O sistema de efluentes domésticos de V.N.S.A. inicia-se no Concelho de Santiago do Cacém, na cidade de V.N.S.A., existindo para o efeito aí um ponto de recolha da A.: cfr. confronto entre toda a prova testemunhal e documental produzida;

Z. O R. encaminha os efluentes domésticos provenientes da cidade de V.N.S.A., recebidos em “Baixa” na rede municipal de recolha para o sistema concessionado à A.: cfr. confronto entre toda a prova testemunhal e documental produzida;

AA. A A. sempre recebeu e tratou na ETAR, de Ribeira de Moinhos, os efluentes domésticos, procedendo à sua adequada rejeição: cfr. confronto entre toda a prova testemunhal e documental produzida, vide depoimento testemunha AMADEU ………..

BB. O R. não foi chamado a intervir, nem, por qualquer meio, interveio nas negociações que tiveram por conclusão o contrato de concessão celebrado entre o Estado Português e a A.: cfr. resulta do depoimento das Testemunhas JOSÉ .… e JOSÉ ………. e confronto com a demais prova testemunhal e documental produzida;

CC. Nem nunca esse contrato foi formalmente comunicado ao R., cujo teor integral só chegou ao seu conhecimento, por mero acaso: cfr. resulta do depoimento da Testemunha JOSÉ CAMPOS e confronto com a demais prova testemunhal e documental produzida;

DD. A A., fornece, em exclusivo, água aos residentes na Cidade de V.N.S.A.: cfr. resulta do depoimento das Testemunhas MARTA PEREIRA e SUSANA ESPADA;

EE. Até à criação da A., o Estado Português, através da Direção Geral de Recursos Naturais e depois INAG (Instituto Nacional da Água), geriu esse sistema, fornecendo água e recolhendo e tratando os efluentes domésticos aos residentes na Cidade de V.N.S.A.: cfr. depoimento das Testemunhas AMADEU ……… e JOSÉ ………….. e ainda do confronto com a demais prova testemunhal e documental produzida;

FF. E nunca cobrou ou faturou ao Município R, e nunca a autarquia pagou fosse o que fosse, a qualquer título, por aquela gestão, e mais concretamente pela recolha e tratamento de efluentes domésticos de V.N.S.A.: cfr. depoimento das Testemunhas AMADEU ……….. e JOSÉ ………..e ainda do confronto com a demais prova testemunhal e documental produzida;

GG. A A. usa, sem acordo ou autorização expressa do Município R., e sem lhe pagar qualquer contrapartida, a rede de esgotos que é propriedade da autarquia, para a condução dos efluentes que recolhe e trata e dá destino: cfr. prova testemunhal e documental produzida;

HH. É o Município R. que procede à reparação e conservação da rede de esgotos (suportando, assim, os correspondentes custos): cfr. resulta do depoimento das Testemunhas JOSÉ ……….., VIRGILIO ……………….., FERNANDO ………..e DIAMANTINO …………..;

II. A A. fatura os serviços de recolha em alta e tratamento de efluentes domésticos que presta aos utentes/clientes de V.N.S.A.: cfr. resulta do depoimento da Testemunha BRANCA ……… e do confronto com a demais prova testemunhal e documental produzida;

JJ. Nos locais de receção, os efluentes domésticos provenientes da recolha em “Baixa” pelos municípios e entregues nos locais de receção, são sujeitos a um método de controlo e medição do caudal, por meio de caudalímetros: cfr. resulta dos depoimentos das Testemunhas LUÍS ………… e AMADEU ………..;

KK. A tarifa devida pela recolha, tratamento e destino final de efluentes domésticos é sempre calculada de acordo com a água individualmente fornecida a cada utilizador: cfr. resulta do depoimento da Testemunha BRANCA ………… e do confronto com a demais prova testemunhal e documental produzida;

LL. A água é fornecida pela A. que a cobra, diretamente, a cada utilizador o respetivo consumo: cfr. depoimentos das Testemunhas BRANCA ………. E MARTA …………….

*

Continuemos.

II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Aqui chegados, há condições para se compreender este recurso e para apreciar o seu mérito de acordo com os princípios estruturantes de um Estado constitucional e democrático de Direito, designadamente os princípios estruturantes da juridicidade e legalidade (2), da igualdade substantiva de tratamento de todas as pessoas humanas, da segurança jurídica e da tutela jurisdicional efetiva. Utilizamos, por isso, um método (3) de Ciência do Direito adequado à garantia efetiva dos direitos dos cidadãos (4), cidadãos que são quem dá legitimidade jurídico-democrática a toda e qualquer atividade de exercício público de poderes de autoridade (com ou sem margem de livre decisão), o que exige uma correta argumentação jurídica, necessária aos diálogos e aos “polilogos multipartes” próprios do processo jurisdicional europeu continental, capaz de garantir com efetividade o disposto nos importantes artigos 2º, 17º, 18º/2, 20º, 266º e 268º da Constituição e 3º ss do Código de Procedimento Administrativo.

A questão a resolver consiste em apurar se o Tribunal Administrativo de Círculo errou (de direito), ao considerar que

(i) não existe entre as partes qualquer contrato administrativo (de prestação de serviços) válido (por falta da forma escrita; cfr. artigo 184º do Código do Procedimento Administrativo/96 e artigos 220º e 294º do Código Civil) e que

(ii) não há lugar à restituição do possível (equivalente à utilidade retirada pelo devedor) prevista nos artigos 285º/1 e 289º do Código Civil, uma vez (i) que o R não aceita nem reconhece e devolveu as faturas apresentadas pela A (como consta da factualidade provada e da contestação) e (ii) que o serviço cobrado pela A foi prestado aos habitantes do município e não a este (como consta da factualidade provada).

a)

A recorrente, para fundar a sua discordância quanto à sentença, alega que:

- O utilizador do seu (seu, por concessão atribuída pelo Estado: cfr. o contrato junto como doc. 1 da pet.i.) “sistema físico de abastecimento de água, de saneamento e de resíduos sólidos” seria o ora réu (sem o justificar) e não os consumidores e produtores de resíduos domésticos (isto apesar de o facto provado S nos dizer o seguinte: «Os “utilizadores” dos serviços de recolha, tratamento e destino final de efluentes domésticos são os munícipes da Cidade de V.N.S.A.»);

- O réu, embora não tenha celebrado qualquer acordo escrito com o Estado ou com a autora, teria aceite tacitamente o “sistema jurídico intermunicipal” decorrente de normas legislativas abaixo identificadas (que nunca se referem aos municípios) e do Contrato de Concessão celebrado pela ora autora/recorrente com o Estado em 2001 (doc. 1 da pet.i.), onde se integra o alegado contrato administrativo informal de prestação de serviços em que se baseiam as faturas cuja cobrança é aqui reclamada pela autora;

- Haveria, da empresa autora para o ora réu município e não para os munícipes ou particulares residentes na cidade, uma prestação factual de serviços de tratamento e rejeição dos efluentes domésticos provenientes dos munícipes da cidade de Vila Nova de Santo André - V.N.S.A., cidade que territorialmente pertence ao Município réu;

- Pelo que haveria que aplicar aqui o previsto nos artigos 285º/1 e 289º/1 do Código Civil (ex vi artigo 185º/1/3-b do Código do Procedimento Administrativo/96), por causa da nulidade do alegado contrato com o réu, como resulta dos artigos 220º e 294º do Código Civil e dos artigos 184º e 185º/3-b) do Código do Procedimento Administrativo/96 – trata-se, esta, de matéria jurídica já abordada q.b. pelas partes e pelo Tribunal Administrativo de Círculo de acordo com o artigo 9º do Código Civil e com a jurisprudência e doutrina atuais (Ou seja: «II - No domínio da nulidade do contrato e do seu regime especial de restituição de tudo o que tiver sido prestado (art. 289º, nº 1, do C. Civil), está vedado o recurso aos princípios do instituto do enriquecimento sem causa, em função do carácter subsidiário deste. III - A declaração de nulidade do negócio jurídico tem efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado (art.º 289.º, n.º 1, do C. Civil). IV - Mas, não sendo possível nos contratos de execução continuada, como é o caso da empreitada - em virtude de a obra feita nunca mais poder ser restituída -, a restituição em espécie, haverá, então, que condenar o réu no pagamento do "valor correspondente" à utilidade advinda da sua realização» (Acórdão do STA-P de 18-2-2010, Processo nº 0379/07));

- A conduta do réu, de não pagar aqueles serviços, constituiria um abuso de direito, devendo aplicar-se ao caso a figura das inalegabilidades formais;

- O preço ou tarifa em causa é fixado administrativamente pelo Governo (cfr. o artigo 7°, n°3, do Decreto-lei 171/2001, de 25 de Maio e a cláusula 27, n°1, alínea b), do contrato de concessão; fixação feita para «assegurar a proteção dos interesses dos utilizadores, a gestão eficiente do sistema, o equilíbrio económico-financeiro da concessão e as condições necessárias para a qualidade do serviço durante e após o termo da concessão - cláusula 15 do contrato de concessão») (5), pelo que seria oponível ao réu.

b)

O contexto normativo do presente litígio resulta dos

-Decreto-Lei nº 372/93 (que alterou a Lei nº 46/77, de 8 de julho - lei de delimitação de sectores - no que se refere ao acesso pelas entidades privadas ou outras entidades da mesma natureza, as atividades económicas de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, de recolha, tratamento e rejeição de efluentes e de resíduos sólidos, e de telecomunicações),

-Decreto-Lei nº 379/93 (regime de exploração e gestão dos sistemas multimunicipais e municipais de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, de recolha, tratamento e rejeição de efluentes e de recolha e tratamento de resíduos sólidos),

-Decreto-Lei nº 294/94 (regime jurídico da concessão de exploração e gestão dos sistemas multimunicipais de tratamento de resíduos sólidos urbanos) e

-Decreto-Lei nº 171/2001 (constitui a sociedade Águas ………….., S. A., concessionária da exploração e gestão do sistema de abastecimento de água, de saneamento e de resíduos sólidos de Santo André).

Releva ainda o contrato de concessão celebrado ente a ora A/recorrente e o Estado.

Ora, o sistema para captação, tratamento e distribuição de água, para recolha, tratamento e rejeição de efluentes e para recolha, tratamento e destino final de resíduos sólidos, é constituído por imóveis, infraestruturas e equipamentos cuja propriedade foi transmitida para o Estado pelo Decreto-Lei 115/89, de 14 de Abril, que transitou para o Instituto da Água (INAG) por força do disposto no artigo 18.º-A do Decreto-Lei 191/93, de 24 de Maio, acrescentado a este último diploma pelo Decreto-Lei 110/97, de 8 de Maio, e que serve, parcialmente, os municípios de Santiago do Cacém e Sines, passou a ter a designação de “sistema de abastecimento de água, de saneamento e de resíduos sólidos de Santo André”.

E com a outorga do contrato de concessão com o Estado, a concessionária ora recorrente obrigou-se (ante o Estado) a assegurar de forma regular, continua e eficiente,

(i) o abastecimento de água para consumo público e industrial e

(ii) a proceder igualmente ao tratamento e rejeição de efluentes canalizados, cujo destino seja o seu sistema,

(iii) bem como o processamento de resíduos industriais - cfr. a cláusula 3 do contrato de concessão.

Ora, tendo presente tudo o já exposto neste acórdão, devemos afirmar que o primeiro passo para apurar se o Tribunal Administrativo de Círculo decidiu bem ou mal é identificar o que é que liga, eventualmente, a pessoa jurídica do réu a esta autora, no contexto dos factos apurados.

É que quase toda a discussão havida na 1ª instância tomou como pressuposto, não justificado, que o réu é o devedor da autora, ou melhor, que o réu é contraparte contratual da autora como parece decorrer das faturas emitidas pela autora “contra” o réu.

Veremos que esse pressuposto não tem fundamentos.

c)

Contrato (civil ou administrativo) é o resultado de duas ou mais declarações negociais contrapostas, mas integralmente concordantes entre si, de onde resulta uma estipulação unitária de efeitos jurídicos.

Se o suposto devedor nega a dívida invocada, o credor tem de provar o crédito que invoca (cfr. o artigo 342º do Código Civil), o que pressupõe, desde logo e como parece lógico, a demonstração da existência e a identificação correta da contraparte, isto é, do devedor:

- trata-se de o alegado credor (a autora) alegar e ver a final provado que (i) prestou a este concreto réu (suposto devedor), (ii) a pedido deste ou (iii) por imposição legal, os serviços a que se reportam as faturas devolvidas pelo suposto devedor.

Ora, não é a lei que liga o réu a esta autora: não existe qualquer norma legal a vincular o município réu à autora, no âmbito dos serviços mencionados nas faturas da autora, relativas a tratamento de águas residuais ou efluentes domésticos.

Também não é a vontade do réu, como é notório. (i) O réu nada acordou verbalmente ou por escrito com a autora, (ii) recusa expressamente o teor das faturas e (iii) devolveu-as à autora, (iv) não sendo, ainda, razoável supor que o réu devesse impedir os cidadãos e munícipes de terem os seus efluentes domésticos recolhidos e tratados.

Por outro lado, não se pode aqui presumir a vontade do réu, no sentido de ter celebrado um contrato informal, já que não está demonstrado qualquer comportamento claro do réu nesse sentido (cfr. o artigo 217º do Código Civil: quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, revelam uma declaração negocial).

Não existe qualquer comportamento que o réu pudesse ter ou não ter, opcionalmente, relativamente (i) tanto à atividade da autora (imposta por lei e pelo contrato de concessão, note-se bem), (ii) como aos cidadãos ou munícipes utentes dos serviços públicos de água, saneamento e tratamento de resíduos.

É que isso, a declaração negocial, expressa ou tácita (como manda o Código Civil), é o mínimo exigível para se poder falar em acordo ou contrato informal entre as partes, relativamente às atividades que, aqui, a lei e o cit. contrato de concessão impõem à autora como concessionária do Estado.

Ora, nem a lei, nem a conduta provada do réu, permitem afirmar, com razoabilidade e probabilidade, que ele se comportou ante a autora como estando “a contratar” com ela as atividades de prestação de serviços referidas

(i) nas faturas,

(ii) no Decreto-Lei nº 171/2001 e

(iii) no contrato de concessão celebrado entre a autora e o Estado.

O réu é, pois, terceiro em relação à prestação aqui feita pela autora/recorrente.

E não é exigível ao réu que bloqueie a “sua” rede interna “pública” de saneamento ou águas (tarifas da água que, aliás, a autora cobra diretamente aos cidadãos), pois que isso prejudicaria de imediato os cidadãos que necessitam de tal rede municipal para se ligarem à rede da A/concessionária, ou seja, afetaria muito negativamente o bem comum ou interesse público.

Finalmente, cabe sublinhar que a Lei nº 159/99 (cfr. o artigo 26º/1-a)-b)) não permite transformar a ausência de qualquer declaração negocial do ora réu, para com a autora, em vinculação contratual.

Por outro lado, não existe qualquer deliberação municipal para a aquisição deste tipo de serviço mencionado nas faturas apresentadas pela autora (cfr. o artigo 64º/1-d) da Lei nº 169/99).

E haverá, ainda, que respeitar o princípio constitucional da autonomia local (cfr. artigos 235º ss da Constituição da República Portuguesa), do qual se pode extrair a conclusão de que este tipo de despesa (transporte e tratamento dos efluentes domésticos dos cidadãos residentes na área do município) terá de pressupor, necessariamente,

-o acordo do município ou

-a emissão de ato legislativo nesse sentido.

d)

Portanto, sem um acordo informal e claro de vontades (ainda que tácitas: cfr. o artigo 217º do Código Civil) relativamente às atividades da autora mencionadas nas faturas devolvidas pelo réu, nada existe a relacionar jurídico-contratualmente estas duas partes processuais; não há sequer uma relação contratual sem forma escrita.

É o que se provou no caso em apreço.

É, assim, desnecessário, porque ilegal, recorrer

-ao enriquecimento sem causa ou

-ao artigo 289º/1 do Código Civil

para compensar/pagar esta atividade prosseguida pela ora autora/recorrente (matérias amplamente discutidas na 1ª instância e nas alegações de recurso, bem como em jurisprudência administrativa superior já existente).

Apenas as faturas da autora, a cuja elaboração o réu é alheio, permitem falar do réu como contraparte contratual e devedor. Na verdade, a autora bem podia ter faturado os seus serviços (previstos na lei e no cit. contrato de concessão) aos cidadãos produtores dos efluentes (como faz com a água) e até pagar ao município pela utilização da rede municipal.

Mas não basta apresentar faturas a outrem para se poder concluir pela existência de um contrato entre duas entidades públicas, ainda que informal e nulo: é necessário que credor e devedor tenham vontades confluentes e claras, ainda que tácitas nos termos exigidos no artigo 217º do Código Civil, ou seja, um acordo de vontades; e sobretudo no sentido do sinalagma próprio deste tipo de contratos.

Isso não está demonstrado nos presentes autos.

e)

Concluímos, pois, que não existe base jurídica – lei ou contrato informal assente em declaração negocial tácita do réu - para considerar o ora réu como o contratante e o devedor daquela atividade da autora a que se reportam estas faturas (tratamento de águas residuais domésticas), a fim de se lhe aplicar o regime resultante do cit. artigo 289º/1 do Código Civil (pagamento do "valor correspondente" à utilidade advinda da realização por parte do credor, ora autora, da prestação obrigacional).

Nesse sentido vai ainda o facto provado sob S) («Os “utilizadores” dos serviços de recolha, tratamento e destino final de efluentes domésticos são os munícipes da Cidade de V.N.S.A.»), bem como o disposto nos seguintes artigos do Decreto-Lei nº 171/2001:

-Artigo 7º/3: «as tarifas a cobrar aos utilizadores serão aprovadas pelo concedente, após emissão de parecer do Instituto Regulador de Águas e Resíduos»;

-Artigo 11º: «são considerados utilizadores quaisquer pessoas singulares ou coletivas, públicas ou privadas, no caso da distribuição direta de água e da recolha direta de efluentes integradas no sistema, sendo obrigatória para os mesmos a ligação a este».

Não está provado, portanto:

- que o réu fosse ou seja beneficiário ou utilizador dos serviços da autora (vd. o facto provado S)),

- nem que o réu tenha aderido ao serviço prestado pelo réu; caso concreto diferente foi o julgado no Acórdão do STA de 10-11-2016, Processo nº 0391/16.

A “despesa” feita pela autora, ou melhor, a prestação realizada pela autora aos cidadãos residentes no território desta cidade e deste município existe, porque a lei e o contrato de concessão a obrigam a tal; e não porque o município réu o tenha querido (com uma vontade expressa ou tácita), nem porque a lei tenha imposto ao município réu a contraprestação pecuniária da prestação realizada pela aqui autora.

Não se pode, por isso, falar em contrato informal entre autora e réu.

f)

Caso houvesse um contrato público informal:

A recorrente considera ainda que o réu está a agir em “abuso do direito”.

É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (artigo 334º do Código Civil).

Ora, o réu/recorrido, ao recusar reconhecer as faturas e ao recusar pagar, não está a abusar de nada. Está, simplesmente, a afirmar a inexistência de uma obrigação, porque esta não tem fonte legal ou contratual, a exercer a sua autonomia e a defender o seu património material e jurídico.

Ainda nesta sede do abuso do direito, a recorrente invoca a figura da inalegabilidade formal.

Trata-se da situação da pessoa que, por exigências do sistema, não se possa prevalecer da nulidade de um negócio jurídico causada por vício de forma.

Tem os seguintes 7 pressupostos:

1- Um comportamento gerador de confiança, por a falta de forma do negócio resultar de comportamento de quem invoca a nulidade;

2- Existência de uma situação de confiança;

3- Efetivação de um investimento de confiança;

4- Frustração da confiança por parte de quem a gerou;

5- Devem estar em jogo apenas os interesses das partes envolvidas; não, também, os de terceiros de boa fé;

6- A situação de confiança deve ser censuravelmente imputável à pessoa a responsabilizar;

7- O investimento de confiança deve ser sensível, sendo dificilmente assegurado por outra via.

Como se vê, é claro que aqui não se verifica nenhum dos pressupostos, simplesmente porque o réu não adotou qualquer comportamento gerador de confiança na autora, no sentido por esta pressuposto na petição inicial ou na alegação de recurso: o réu não causou a falta de forma escrita do alegado contrato, nem atuou por modo a aceitar para si próprio a prestação da autora.

Não há abuso do direito, portanto, quando o ora réu invoca a nulidade formal de um contrato suposto pela autora, já que a falta da forma escrita não foi causada por aquele.

g)

Portanto:

A autora agiu como agiu, porque (i) a lei e (ii) o contrato de concessão a obrigaram e obrigam a isso. A prestação de serviços de tratamento de efluentes domésticos referida nas faturas não resultou de qualquer conduta do réu, mas sim da lei e do contrato de concessão cit.

Mas, como a lei e a concessão nada dizem sobre o modo de custear as despesas da autora, esta, sem fundamento na lei ou em contrato, resolveu pedir o pagamento ao ora réu, apesar de este ser um terceiro

(i) em relação ao Decreto-Lei nº 171/2001,

(ii) em relação ao contrato de concessão e, note-se bem,

(iii) em relação ao benefício resultante da prestação feita pela autora.

*

III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os Juizes da 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso, julgando-o improcedente.

Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 24-11-2016


(Paulo H. Pereira Gouveia - relator)

(Nuno Coutinho)

(Carlos Araújo)

(1)Para decidir, este tribunal superior tem omnipresente a nossa Constituição e as três dimensões do Direito (isto é, os valores éticos, as normas e os factos sociais). Dali resulta o seguinte:
I- O primado do Estado democrático e social de Direito, num contexto de uma vida socioeconómica submetida aos valores ético-jurídicos (i) da dignidade humana, (ii) da liberdade e (iii) do bem comum; II- Os princípios constitucionais estruturantes do Estado democrático e social de Direito, como (i) a juridicidade, (ii) a igualdade jurídico-material e jurídico-social de todos os seres humanos, (iii) a tutela jurisdicional efetiva e, ainda, (iv) a segurança jurídica de todas as pessoas; III- Os habituais comandos definitivos ou normas jurídicas que exigem algo de modo definitivo, dispositivo ou quase-conclusivo (i.e., as Normas-Regra, compostas por hipótese e estatuição ou consequência jurídica), sob a égide dos importantes artigos 9º a 11º do Código Civil, que se aplicam normalmente através da chamada subsunção; têm uma eficácia jurídica positiva ou simétrica; IV- Os (menos frequentes) coman­dos jurídicos gerais do sistema, quase sempre comprome­tidos axiológica e eticamente, como "razões de agir", i.e., os eventuais comandos que têm de ser otimizados no concreto (diferentes dos princípios constitucionais estruturantes ou valores constitucionais estruturantes), que exigem do aplicador a sua otimização transparente ante as possibilidades de facto e de direito existentes no caso concreto, através da ponderação ou sopesamento racional e justificado das aplicáveis normas colidentes que tenham significados não específicos ou valorativos (i.e., as Normas-Princípio, comandos quase sempre sem estatuição, normas não conclusivas, com objetiva textura aberta, ou objetiva ambiguidade semântica/sintática/pragmática, ou objetiva vagueza de linguagem no predicado ou com óbvio significado valorativo, numa exigência de fazer opções com base nos ideais de justiça, equidade ou moralidade, sendo ainda que a sua validade decorre do seu próprio conteúdo, e têm uma função explicadora e justificadora das regras concretas), ponderação pela qual se acaba por escolher a norma a concretizar adequadamente, depois, no caso de vida a resolver; estas normas-princípio têm uma eficácia jurídica negativa e têm na sua estrutura (i) uma metaregra “a se” (segundo a qual o “dever-ser ideal” ínsito na norma, decorrente do valor superior da Justiça, deve ser otimizado no concreto até ao “dever-ser real”, por causa do princípio estruturante da segurança jurídica) e (ii) a norma-princípio (o objeto da otimização, o “dever-ser ideal”); V- A máxima interpretativa da unidade e coerência atualista do sistema jurídico (importante também contra a omissão jurisdicional de controlo das chamadas “discricionariedades”); VI- E, quando for juridicamente lícito e objetivamente necessário, a máxima metódico-racional da proporcionalidade (cf. arts. 2º e 18º da Constituição e 335º do Código Civil); afinal, com a proporcionalidade, como máxima metódica transparente e racional, o tribunal, que nunca logra fazer uma concordância prática, exerce sim um duplo “poder discricionário” com racionalidade: o juiz cria uma hierarquia axiológica entre as normas colidentes, a fim de escolher uma delas, e depois continua objetivamente livre para modificar os valores comparativos dos dois princípios perante uma nova controvérsia ante os mesmos princípios.
(2)Com efeito, a lei é (i) o pressuposto, (ii) o fundamento e (iii) o limite das atividades de administração pública (direta, indireta, autónoma e, ainda, a novel e socialmente dispendiosa “Administração Pública independente ou de mera regulação”). Paradoxalmente, pode-se obter a diminuição do controlo jurisdicional e da tutela jurisdicional efetiva, através do expediente da chamada “regulação administrativa”, de desnecessária importação anglo-saxónica, normalmente aliada à perigosa autocontenção do legislador democrático defensor do bem comum e, pior ainda, aliada à expansão das chamadas autoridades administrativas independentes, correspetiva do encolhimento das direções-gerais da Administração Pública central de tipo europeu continental. Assim se consegue o domínio da “racionalidade técnica, mercantil ou funcional” sobre a racionalidade jurídica das atividades de administração pública num Estado democrático de Direito.
(3)Como exposição do modo de chegar à correção do conhecimento (cfr. I. KANT, Lógica, trad., Edições Texto & Grafia, 2009, Lisboa, pág. 131).
(4)Previamente à diferente e menos complexa obtenção de uma das premissas do silogismo judiciário (qualificação jurídica dos factos, aplicação do Direito, ou “fact-oriented interpretation” – MICHEL TROPER, “La théorie du droit, le droit, l' État”, ed. P.U.F., Paris, 2001, págs. 106 ss), o juiz deve fazer a exigente interpretação em sentido próprio, ou abstrato, da fonte de Direito (“text-oriented interpretation”), atividade esta que tem de respeitar (i) a Constituição, maxime os direitos fundamentais e o princípio estruturante da segurança jurídica, e (ii) as seguintes três máximas interpretativas para se inferir, das fontes de Direito, a regra jurídica aplicável ao caso concreto (e não para o tribunal criar novas normas jurídicas):
1ª Máxima lógico-interpretativa das fontes escritas de Direito - a interpretação da lei pelo juiz (conforme o art. 9º do Código Civil) é a reconstituição do pensamento legislativo atual - “deep meaning” - (i) sempre a partir dos textos normativos (“first meaning”; ou significado literal e filológico), tendo sobretudo em conta, sem contradições, (ii) o elemento lógico-sistemático atualista da interpretação (iluminado pelas ideias de sistema, de igualdade e de coerência), (iii) o elemento lógico-histórico da interpretação (a justificação para a produção da fonte de direito) e (iv) o elemento lógico-teleológico atualista da interpretação (a finalidade que justifica a vigência da fonte de Direito, ou “ratio legis”; o juiz atende aqui aos princípios jurídicos, formais e materiais, em que se funda a regra no presente, bem como às consequências previsíveis mais compatíveis com o sistema jurídico atual) – cf. JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito – Introdução e Teoria Geral, 13ª edição refundida, 2005, e ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, I, 4ª edição, 2012;
2ª Máxima lógico-interpretativa das fontes escritas de Direito - o pensamento legislativo atual assim apurado pelo juiz (“deep meaning”) deve ter sempre um mínimo de correspondência verbal na letra da lei. Trata-se de uma importante garantia contra o arbítrio interpretativo, violador da segurança jurídica, num sistema jurídico democrático de tipo romano-germânico, como é o português, onde se descobriu há vários séculos como diminuir a insegurança jurídica;
3ª Máxima lógico-interpretativa das fontes escritas de Direito - o juiz deve presumir que o legislador democrático consagrou as soluções mais acertadas e que soube exprimir-se em termos adequados. É também uma garantia contra o arbítrio interpretativo, que tende hodiernamente a confundir o modo específico de aplicar (de sopesar para concretizar) as excecionais normas-princípio com o modo de aplicar as habituais normas-regra, normas-regra que demandam do aplicador a utilização imediata e rigorosa dos arts. 9º a 11º do Código Civil, sem recurso à chamada “ponderação racional” como 3º subexame da máxima metódica da proporcionalidade. Note-se, ainda, que é somente depois da interpretação em sentido abstrato (“text-oriented interpretation”) que haverá lugar à subsunção, isto é, à “fact-oriented interpretation”. Também é nesse momento, posterior à interpretação da fonte, que o juiz poderá concluir que existe uma lacuna ou uma antinomia (assim R. GUASTINI, Problemi di interpretazione, in Le fonti del diritto e l´interpretazione, ed. Giuffrè, Milano, 1993, cap. XXV).
(5)A medição e faturação são efetuadas nos termos dos Regulamentos referidos no n°1 da cláusula 6, elaborados pela Concessionária e aprovados pelo Concedente" - cfr. Cláusula 33 do contrato de concessão.