Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:639/19.0BELRA
Secção:CT
Data do Acordão:09/30/2019
Relator:CRISTINA FLORA
Descritores:FUNDAMENTOS DA SENTENÇA;
NÃO CONHECIMENTO DO OBJECTO DO RECURSO
Sumário:I. Se em sede de recurso a Recorrente não impugna um dos fundamentos da sentença recorrida em que assentou a procedência da acção, e, portanto, verifica-se o trânsito em julgado da decisão quanto ao fundamento que não foi sindicado em recurso;
II. Assim sendo, o efeito jurídico que se pretende com o presente recurso, ou seja, a improcedência da reclamação decorrente da revogação da sentença recorrida por este tribunal, não é possível de alcançar, uma vez que, ainda que este tribunal concedesse provimento ao recurso na parte sindicada, a procedência da reclamação sempre se manterá na ordem jurídica por força do trânsito em julgado da decisão quanto ao fundamento não sindicado em recurso.
III. Não sendo o efeito jurídico pretendido com o recurso juridicamente possível, nos circunstancialismos dos presentes autos, o tribunal ad quem não deve tomar conhecimento do recurso, porque aos tribunais está vedada a prática de actos inúteis (art. 130.º do CPC aplicável
ex vi art. 2.º, alínea e) do CPPT).
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

A FAZENDA PÚBLICA vem apresentar recurso da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria que julgou procedente a reclamação da decisão do Chefe do Serviço de Finanças de Leiria 1 apresentada por L..... dos actos de penhora dos imóveis urbano inscrito na matriz predial sob o artigo 9… e rústico descrito na matriz predial sob o artigo 1…, ambos da União de freguesias de Leiria, Pousos, Barreira e Cortes, no âmbito do processo de execução fiscal n.º 1384…….

A FAZENDA PÚBLICA apresentou as suas alegações e formulando as seguintes conclusões:
«A. O pedido de constituição de garantia (ainda que parcial) está expressamente previsto no nº 2 do artigo 169º do CPPT, de acordo com o qual a suspensão do processo executivo só opera após a prestação efetiva de garantia e é essa prestação efetiva que tem que ser submetida à apreciação do OEF para que se pronuncie sobre a sua validade, o que não sucedeu no processo ora em causa e não foi considerado na sentença recorrida.
B. O procedimento que regula a suspensão do processo executivo, em caso de pedido de dispensa de garantia, está previsto nos nº 4 do artigo 52º da LGT e 170º do CPPT, de acordo com os quais, os executados a devem requerer no prazo de 15 dias a contar da apresentação do processo contencioso, pelo que, para suspender a execução o ora recorrido tinha que interpor de imediato o processo contencioso que entendesse e requerer a referida dispensa de garantia no prazo de 15 dias, o que não fez.

Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas., deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, mantendo-se o ato de constituição de penhora com o que será feita a costumada JUSTIÇA.»

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O recorrido, devidamente notificado para o efeito, não apresentou contra-alegações.
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Foram os autos a vista da Magistrada do Ministério Público que emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Com dispensa dos vistos legais, atento o carácter urgente dos autos, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.

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As questões a decidir no presente recurso são as seguintes:
_ Aferir da possibilidade do conhecimento do presente recurso;
_ Sendo possível o conhecimento, importa aferir se a decisão recorrida enferma de erro de julgamento de facto e de direito ao anular a penhora, porquanto entende a Recorrente que o pedido apresentado pelo Reclamante, ora Recorrido, é de constituição de garantia parcial, o que não constitui um verdadeiro pedido com a virtualidade de suspender a execução fiscal, e nessa medida, não se verifica a violação do disposto do 169.º do CPPT. O pedido de dispensa parcial de garantia quanto ao remanescente da dívida que foi formulado pelo Reclamante pressupõe que seja apresentado de imediato meio contencioso nos termos dos artigos 52.º, n.º 4 da LGT e art. 170.º do CPPT, o que não fez.

II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Matéria de facto
A decisão recorrida deu como provada a seguinte matéria de facto:
«1) Corre termos, no Serviço de Finanças de Leiria 1, o processo de execução fiscal número 13842……., instaurado contra o reclamante, com base na certidão de dívida número 19/00……, emitida em 14/01/2019, por dívidas de IRS e juros compensatórios relativos ao ano de 2014, no valor de 74.841,43€ e acrescido (notificações de penhora e citação pessoal de fls. 12, 13 e 44 do processo físico).
2) Por ofício datado de 16/01/2019, enviado ao reclamante por correio postal registado com a referência RQ698……., cujo aviso de recepção foi assinado em 22/01/2019, foi-lhe comunicado que conta si corre o processo de execução fiscal referido no número anterior (citação e aviso de recepção de fls. 44 e 45 do processo físico e fls. 87 e 88 do SITAF).
3) Por requerimento expedido em 21/02/2019, por correio postal registado com a referência RH3254……, o reclamante requereu, junto do Chefe do Serviço de Finanças de Leiria 1, a aceitação da garantia parcial a constituir através de hipoteca voluntária sobre os prédios rústicos nele identificados, sobre o quinhão hereditário e sobre o veículo com a matrícula 92-……. e, na parte em que as hipotecas não fossem suficientes para garantir a dívida exequenda e demais acrescidos, requereu a dispensa parcial de prestação de garantia (requerimento e envelope de fls. 15 a 17 do processo físico e fls. 100 a 147 do SITAF).
4) Em 12/03/2019 foi efectuada a penhora do prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo 9….. da União de freguesias de Leiria, Pousos, Barreira e Cortes, Concelho e Distrito de Leiria, da qual foi dado conhecimento ao reclamante por ofício datado de 22/03/2019 (notificação de penhora de fls. 12 do processo físico).
5) Em 12/03/2019 foi efectuada a penhora do prédio rústico inscrito na matriz predial sob o artigo 1….. da União de freguesias de Leiria, Pousos, Barreira e Cortes, Concelho e Distrito de Leiria, da qual foi dado conhecimento ao reclamante por ofício datado de 22/03/2019 (notificação de penhora de fls. 13 do processo físico).
6) Por despacho de 14/03/2019 foi determinada a prossecução da execução com a penhora de bens pertencentes ao executado para cobrança dos montantes em dívida (despacho de fls. 92 do SITAF).
7) Em 15/03/2019 foi elaborada informação, propondo o indeferimento do requerimento referido em 3), sobre a qual recaiu despacho de concordância e de remessa para a Direcção de Finanças de Leiria para apreciação e decisão (informação e despacho de fls. 93 a 98 do SITAF).
8) Por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de Leiria em 19/03/2019, outorgada pelo reclamante e esposa, foi por estes declarado que “constituem, a favor da FAZENDA NACIONAL, NIPC 600….., hipoteca voluntária sobre os sete bens acima identificados, um móveis e seis imóveis, aos quais, para efeitos deste acto, atribuem o indicado valor, no global de setenta e um mil quatrocentos e onze euros e trinta e um cêntimos, destinada a garantir o integral pagamento da quantia exequenda, juros de mora e custas, acrescida ainda de vinte e cinco por cento, ascendendo ao montante máximo de setenta e um mil quatrocentos e onze euros e trinta e um cêntimos, no âmbito do referido processo de execução fiscal número 1384……, Serviço de Finanças de Leiria – 1 – Direcção de Finanças de Leiria – Direcção Geral dos Impostos – Autoridade Tributária e Aduaneira, em que é devedor L....., NIF 118….., ora outorgante (…)”, de que o reclamante deu conhecimento ao Chefe do Serviço de Finanças de Leiria 1 em 05/04/2019 (certidão de escritura pública de fls. 18 a 23 do processo físico e fls. 153 a 161 do SITAF).
9) A presente reclamação foi apresentada no dia 05/04/2019 (carimbo a fls. 4 do processo físico e fls. 153 do SITAF).

Nenhum outro facto foi considerado provado ou não provado com interesse para a presente decisão.
A convicção do Tribunal baseou-se nos elementos documentais existentes nos autos, tal como indicado à frente de cada facto provado que, não tendo sido postos em causa, foram considerados credíveis.»

*
Com base na matéria de facto supra enunciada a Meritíssima Juíza do Tribunal administrativo e Fiscal de Leiria julgou procedente a reclamação entendendo que a penhora é ilegal, por um lado, porque o órgão de execução prosseguiu com o processo de execução fiscal sem se pronunciar sobre o requerimento do Reclamante ignorando o disposto artigo 169.º, n.ºs 2, 3 e 4 do CPPT, e por outro lado, por violação do princípio da boa-fé, na sua vertente da tutela da confiança “cuja aplicação é hoje inquestionável em sede da actividade administrativa tributária, sendo que, pese embora não estejam expressamente referidos no artigo 55.º da LGT, a sua aplicabilidade resulta, em primeira linha, do disposto no artigo 266.º da Constituição da República.”

Com efeito, escreveu-se na sentença recorrida, na parte com relevo para a presente decisão, o seguinte (destaques nossos):
“(…) Entende o reclamante que a administração tributária não podia ter procedido à penhora de bens do seu património sem antes se pronunciar sobre o pedido de dispensa de prestação de garantia e nem sequer podia ter penhorado a sua casa de morada de família, motivo pelo qual os actos de penhora devem ser anulados.
Por seu turno, a Fazenda Pública alega que não foi prestada efectivamente qualquer garantia dentro do prazo legalmente previsto para o efeito, mas apenas existiu uma manifestação de intenções, motivo pelo qual os actos de penhora reclamados devem manter-se.
Vejamos.
O regime da suspensão da execução fiscal encontra-se previsto no artigo 169.º do CPPT que, na parte relevante para a presente decisão, prevê o seguinte:
(…)
Decorre deste preceito legal que, por regra, para suspender a execução fiscal, o executado deve oferecer garantia idónea que assegure a cobrabilidade da dívida tributária na íntegra e acrescidos.
No caso vertente, ficou provado que a administração tributária instaurou contra o reclamante processo de execução fiscal por dívida de IRS, em 14/01/2019, tendo procedido à sua citação em 22/01/2019 (vd. factos provados 1) e 2)).
Em 21/02/2019, ou seja, antes de terminado o prazo, o reclamante remeteu ao Serviço de Finanças de Leria 1, requerimento a propor a constituição de garantia através da constituição de uma hipoteca sobre seis bens imóveis e um bem móvel e a requerer a dispensa de prestação de garantia na parte em que esta não for suficiente para garantir a totalidade da dívida exequenda e acrescido, manifestando, simultaneamente, intenção de reclamar graciosamente contra as liquidações que originaram a dívida em causa (vd. facto provado 3).
Em 05/04/2019, o reclamante apresentou no Serviço de Finanças de Leiria 1 certidão da escritura pública da constituição de hipoteca voluntária a favor da Autoridade Tributária, ora referida, datada de 19/03/2019 (vd. facto provado 8)).
Sem se ter pronunciado sobre a aceitação da garantia oferecida pelo reclamante e sobre a dispensa parcial de prestação de garantia, quanto ao remanescente e até mesmo antes de proferido o despacho que ordena a continuação da tramitação do processo de execução fiscal para a penhora de bens do património do executado, a administração tributária, em 12/03/2019 procedeu à penhora de dois bens imóveis, um urbano e um rústico, sendo que o despacho que as sustenta, só foi proferido dois dias depois, em 14/03/2019 (vd. factos provados 4), 5), 6) e 7)).
Todavia, fê-lo sem se suportar em qualquer uma base legal.
Efectivamente, conforme resulta do disposto no artigo 169.º, n.ºs 2, 3 e 4 do CPPT, até ao fim do termo do prazo legal de pagamento voluntário a execução fica suspensa se dentro deste prazo for apresentado pelo executado requerimento a oferecer bens em garantia ou se requerer a sua dispensa e indicar que pretende exercer o seu direito de apresentação do meio gracioso ou judicial para discussão da legalidade ou da exigibilidade da dívida exequenda.
Este requerimento conduz à abertura de um procedimento administrativo dentro do processo de execução fiscal para apreciação e decisão do requerido pelo executado e que será extinto se no prazo legal não for apresentado o correspondente meio processual.
No caso vertente, a administração tributária ignorou totalmente estes preceitos legais.
(…)
Como refere Jorge Lopes de Sousa, ob. cit., pág. 219, “[o] pedido de dispensa de prestação de garantia tem o mesmo efeito que o pedido de prestação da garantia, a nível do prosseguimento da execução fiscal, que fica suspensa provisoriamente, como se depreende do n.º 7 deste art.º 169.º, conjugado com o n.º 6 (…), de que resulta que a execução só prossegue depois de decorrido o prazo de prestação de garantia, sem que esta seja prestada.”.
Por conseguinte, no caso vertente, só perante a recusa de prestação da garantia e/ou da dispensa parcial da prestação da garantia requerida pelo reclamante, é que poderiam ser ordenadas as penhoras, tal como resulta da conjugação dos artigos 52.º, n.º 1 da LGT e 169.º, n.º 2 e 170.º do CPPT (neste sentido, pronunciaram-se os Acs. do STA de 06/08/2014, proc. n.º 0742/14), de 08/02/2017, proc. n.º 0177/15) e de 25/03/2015, proc. n.º 0249/15).

Os actos de penhora ora sindicados são também anuláveis por violarem o princípio da boa-fé, na sua vertente da tutela da confiança, cuja aplicação é hoje inquestionável em sede da actividade administrativa tributária, sendo que, pese embora não estejam expressamente referidos no artigo 55.º da LGT, a sua aplicabilidade resulta, em primeira linha, do disposto no artigo 266.º da Constituição da República, onde vem consagrado que:
“1. A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
2. Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.”.
A jurisprudência, mormente, por todos, o Ac. do STA de 21/09/2011, proc. n.º 0753/11, tem vindo, também, a admitir que a violação pela administração tributária dos deveres procedimentais segundo as regras da boa fé e da tutela da confiança, podem consistir em vício autónomo de violação de lei.
Com efeito, tem-se entendido que a actuação da administração tributária, ao proceder à pratica de actos de penhora ou compensação enquanto decorre o prazo para a apresentação de garantia idónea e antes de se pronunciar sobre a mesma, viola o princípio da boa-fé, na sua vertente da tutela da confiança, não porque frustre a expectativa de deferimento da pretensão, mas por frustrar a legítima expectativa de apreciação desse pedido, ancorada no princípio da decisão, previsto no artigo 56.º da LGT, cujo n.º 1 refere que “a administração tributária está obrigada a pronunciar-se sobre todos os assuntos da sua competência que lhe sejam apresentados por meio de reclamações, recursos, representações, exposições, queixas ou quaisquer outros meios previstos na lei pelos sujeitos passivos ou quem tiver interesse legítimo.”.
Por isso, também com este fundamento, não pode admitir-se, sob pena de violação do princípio da boa-fé, na sua vertente da tutela da confiança, que a administração tributária proceda à penhora de bens do executado sem que previamente se pronuncie sobre a garantia por este oportunamente oferecida e/ou sobre o pedido de dispensa da sua prestação, total ou parcial, em ordem à suspensão do processo de execução fiscal, em virtude da manifestação de vontade de apresentação de reclamação graciosa.
A entender-se de outra forma, ficaria no livre arbítrio da administração tributária o momento para apreciar a garantia oportunamente oferecida e, consequentemente, a suspensão da execução fiscal, no âmbito da qual poderia, entretanto, ir praticando diversos actos ofensivos do património do executado, incompatíveis com aquela pretensão oportunamente aduzida.
Esta solução tem sido adoptada pela jurisprudência do STA em situações idênticas, quer relativamente a actos de compensação, quer relativamente à penhora de créditos efectuada pelo órgão da execução fiscal, ambos praticados antes da pronúncia devida sobre a garantia oferecida ou sobre o pedido de dispensa de prestação da mesma (neste sentido, Acs. do STA de 15/02/2012, proc. n.º 89/12 e de 19/05/2010, proc. n.º 344/10).
Padecem, assim, os actos reclamados do vício de violação de lei, por violação dos preceitos legais supramencionados, impondo-se, por isso, a sua anulação.”
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Portanto, a sentença recorrida julgou ilegal a penhora sindicada pelo Reclamante com base em dois fundamentos distintos a saber:
i) Por violação do disposto no art. 169.º, n.ºs 2, 3 e 4 do CPPT;
ii) Por violação do princípio da boa-fé, na sua vertente da tutela da confiança (artigo 266.º da Constituição da República).

Sucede que a Recorrente Fazenda Pública, nem nas suas alegações de recurso, nem tão-pouco nas suas conclusões, vem sindicar o segundo fundamento em que assentou a decisão da Meritíssima Juíza do TAF de Leiria para julgar procedente a reclamação, nomeadamente, a violação do princípio da boa-fé.

Com efeito, se lermos atentamente as conclusões de recurso o erro de julgamento que é assacado à sentença versa unicamente sobre o seguimento da decisão que considerou ilegal a penhora por violação do disposto no art. 169.º do CPPT. Para tanto a Recorrente, e apenas quanto a este fundamento a sentença, assaca erro de julgamento de facto e de direito por entender que a o pedido apresentado pelo Reclamante, ora Recorrido, é de constituição de garantia parcial, o que não constitui um verdadeiro pedido com a virtualidade de suspender a execução fiscal, e nessa medida, não se verifica a violação do disposto do 169.º do CPPT. Mais invoca que o pedido de dispensa parcial de garantia quanto ao remanescente da dívida que foi formulado pelo Reclamante pressupõe que seja apresentado de imediato meio contencioso nos termos dos artigos 52.º, n.º 4 da LGT e art. 170.º do CPPT, o que não fez.

Porém, em momento algum a Recorrente se insurge contra a violação do princípio da boa-fé que também constitui fundamento da decisão recorrida como fica claro e cristalino pela expressão da Meritíssima Juíza a quo (…) também com este fundamento, não pode admitir-se, sob pena de violação do princípio da boa-fé”. De resto a sentença recorrida faz o devido enquadramento factual e de direito, invocando-se, inclusive jurisprudência para este fundamento autónomo e cumulativo da decisão. Sublinhe-se, nem mesmo nas alegações de recurso a Recorrente se insurge quanto a este fundamento da decisão que se pudesse considerar por meio do aperfeiçoamento do recurso.

Ora, o recurso só tem a virtualidade de se repercutir na decisão recorrida, ou seja, só terá utilidade se a Recorrente atacar todos os fundamentos em que aquela assentou, pois, não sindicando um dos fundamentos, como sucede in casu, verifica-se o trânsito em julgado da decisão quanto a este fundamento, e nessa medida, a decisão recorrida que julgou procedente a reclamação também com esse segundo fundamento, sempre se manterá incólume, por força do trânsito em julgado.

Aqui chegados, nada mais resta do que constatar que o efeito jurídico que se pretende com o presente recurso, improcedência da reclamação decorrente da revogação da sentença recorrida por este tribunal de recurso, não é possível de alcançar. Por conseguinte, não se poderá tomar conhecimento dos fundamentos do presente recurso por consubstanciar prática de acto inútil nos termos do art. 130.º do CPC aplicável ex vi art. 2.º, alínea e) do CPPT:

“Nesta circunstância, em que o efeito jurídico pretendido com o recurso não é juridicamente possível, o tribunal ad quem não deve tomar conhecimento do recurso, porque aos tribunais está vedada a prática de actos inúteis (cfr. art. 130.º do CPC).” – cfr. Acórdão do STA de 14/01/2015, proc. n.º 0973/13.

Com efeito, nesta matéria subscrevemos a fundamentação deste acórdão do STA, em tudo aplicável ao caso dos autos:

“Como resulta do que deixámos já dito, a impugnação judicial foi julgada improcedente com mais do que um fundamento.
Na verdade, o Juiz, começou por apreciar a excepção peremptória invocada pela Fazenda Pública – abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium –, que considerou proceder e determinar a absolvição da Fazenda Pública do pedido.
A nosso ver, porque o Juiz considerou que a impugnação constituía abuso de direito e, por isso, absolveu a Fazenda Pública do pedido (decisão que ora não cumpre sindicar porque fora do objecto do recurso) deveria a sentença ter-se quedado por aí, pois, as demais questões suscitadas nos autos – respeitantes aos vícios do procedimento inspectivo que esteve na origem da liquidação impugnada e que alegadamente se repercutiram na legalidade desse acto tributário – ficaram prejudicadas pela solução dada à questão do abuso do direito [cfr. art. 608.º, n.º 2 («O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».), do Código de Processo Civil (CPC)]. No entanto, o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel entendeu prosseguir na apreciação das questões suscitadas pela Impugnante na petição inicial, julgando-as a todas improcedentes.
Acontece, porém, que a Impugnante atacou a sentença apenas quanto a esta última decisão – relativa à parte em que foram apreciados os vícios por ela assacados ao procedimento inspectivo –, nada dizendo no recurso relativamente à primeira parte, ou seja, àquela em que foi apreciada a excepção peremptória inominada do abuso de direito e, em consequência, se absolveu a Fazenda Pública do pedido. É certo que, como decorre dos n.ºs 2 e 4 do art. 635.º do CPC («[…] 2. Se a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas, é igualmente lícito ao recorrente restringir o recurso a qualquer delas, uma vez que especifique no requerimento a decisão de que recorre.
[…] 4. Nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso. […]»), pode o recorrente restringir o recurso a uma parte da sentença quando esta contiver decisões distintas, desde que o especifique no requerimento de interposição do recurso ou essa restrição do objecto do recurso resulte, expressa ou tacitamente, das conclusões do recurso. Mas, fazendo-o, a parte da sentença que não seja recorrida transita em julgado, como resulta do disposto no art. 628.º do CPC («A decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação».) – com os efeitos previstos no n.º 1 do art. 619.º do CPC («1. Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º».) – e o afirma expressamente o n.º 5 do citado art. 835.º do CPC («5. Os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo».).

Ou seja, no caso sub judice, a sentença transitou em julgado na parte em que nela se considerou verificada a excepção peremptória inominada do abuso de direito e, em consequência, se absolveu a Fazenda Pública do pedido.
Assim, a apreciação do recurso revela-se inútil, uma vez que, ainda que fosse provido, nunca a Recorrente obteria o efeito jurídico pretendido – a revogação da sentença –, uma vez que sempre se manteria o julgamento nela efectuado, de absolvição do pedido com fundamento na excepção do abuso de direito.
A apreciação e decisão do recurso não teria qualquer interesse processual (Revestindo mero interesse teórico ou académico, que aos tribunais não compete tutelar.), interesse que constitui uma condição da admissibilidade do próprio recurso.
Neste sentido se tem vindo a pronunciar a jurisprudência (Vide, por mais recentes, os seguintes acórdãos desta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo: - de 17 de Outubro de 2012, proferido no processo n.º 583/12, publicado no Apêndice ao Diário da República de 8 de Novembro de 2013 (
http://www.dre.pt/pdfgratisac/2012/32240.pdf), págs. 3006 a 3010, também disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/9f4ccd5a4dc9034880257aa10033483b?OpenDocument; - de 24 de Outubro de 2012, proferido no processo n.º 696/12, publicado no Apêndice ao Diário da República de 8 de Novembro de 2013 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2012/32240.pdf), págs. 3177 a 3185, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/3434984cdb89a15f80257aa8003b5358?OpenDocument;- de 13 de Novembro de 2013, proferido no processo com o n.º 1020/13, publicado no Apêndice ao Diário da República de 26 de Junho de 2014 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2013/32240.pdf), págs. 4474 a 4477, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/caec64fb82bc19fd80257c29004adb24?OpenDocument.) e a doutrina (Vide JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, IV volume, anotação 12 ao art. 279.º, pág. 337.).
Por tudo o que deixámos dito, não tomaremos conhecimento do recurso.”

Pelo exposto, e em suma, considerando que a Recorrente Fazenda Pública não atacou em sede do presente recurso o outro fundamento da sentença recorrida que também conduziu à procedência da reclamação, o efeito jurídico pretendido pela Recorrente com o presente recurso não é juridicamente possível devido ao trânsito em julgado da sentença recorrida na parte não impugnada, e nessa medida, não se toma conhecimento do objecto do recurso, porque aos tribunais está vedada a prática de actos inúteis (art. 130.º do CPC aplicável ex vi art. 2.º, alínea e) do CPPT).
Em matéria de custas o artigo 527.º do CPC consagra o princípio da causalidade de acordo com o qual paga custas a parte que lhes deu causa. Vencida na presente causa a Recorrente, esta deu causa às custas do presente processo (n.º 2), e, portanto, deve ser condenada nas respectivas custas (n.º 1, 1.ª parte).

Sumário do acórdão


I. Se em sede de recurso a Recorrente não impugna um dos fundamentos da sentença recorrida em que assentou a procedência da acção, e, portanto, verifica-se o trânsito em julgado da decisão quanto ao fundamento que não foi sindicado em recurso;

II. Assim sendo, o efeito jurídico que se pretende com o presente recurso, ou seja, a improcedência da reclamação decorrente da revogação da sentença recorrida por este tribunal, não é possível de alcançar, uma vez que, ainda que este tribunal concedesse provimento ao recurso na parte sindicada, a procedência da reclamação sempre se manterá na ordem jurídica por força do trânsito em julgado da decisão quanto ao fundamento não sindicado em recurso.


III. Não sendo o efeito jurídico pretendido com o recurso juridicamente possível, nos circunstancialismos dos presentes autos, o tribunal ad quem não deve tomar conhecimento do recurso, porque aos tribunais está vedada a prática de actos inúteis (art. 130.º do CPC aplicável ex vi art. 2.º, alínea e) do CPPT).

III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em não tomar conhecimento do objecto do recurso.
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Custas pela Recorrente.
D.n.
Lisboa, 30 de Setembro de 2019.

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Cristina Flora




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Tânia Meireles da Cunha




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Mário Rebelo