Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:627/09.5BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:04/29/2021
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:IVA
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
CONTRATO DE LOCAÇÃO
RENÚNCIA À ISENÇÃO
DIREITO À DEDUÇÃO
PRINCÍPIO DA NEUTRALIDADE
Sumário:I- Os sujeitos passivos que pratiquem operações de locação de imóveis isentas nos termos do artigo 9.°, nº30, do CIVA, podem optar pela aplicação do IVA à transmissão ou à locação dos bens imóveis ou partes autónomas destes, ficando com direito à dedução do imposto suportado para a realização dessas operações, segundo as regras definidas nos artigos 19.° e seguintes do CIVA e sem prejuízo do disposto nas normas especiais estabelecidas, à data, pelo Decreto-Lei n.º 241/86, de 20 de agosto.
II- O nomen iuris atribuído pelas partes ao contrato não é determinante para a respetiva qualificação, havendo, por isso, que ponderar o concreto clausulado dele dimanante.
III-A exigência da licença de utilização tem subjacente a necessidade de obrigar os proprietários dos imóveis (novos, reconstruídos ou alterados) ao cumprimento de todas as normas legais, quer relativas à construção, quer de segurança, salubridade ou estética, donde tem subjacente a proteção do utilizador, no caso o arrendatário, em nada podendo ser transposta para efeitos de valoração e qualificação, no âmbito fiscal, da existência ou não de uma relação de locação.
IV-Se do teor do clausulado do contrato o mesmo integra, em si, o contrato definitivo de locação, previsto no artigo 1022.º do CC, realidade essa confirmada por um acordo e uma declaração com a intervenção de ambas as partes, então não se encontra legitimada a atuação da AT, ao partir de uma mera meramente exigência formal, que não tem subjacente quaisquer efeitos fiscais, e desconsiderar, tout court, a dedução de imposto, efetivamente, suportado. Ademais, nunca tendo sido colocada em causa a efetividade da realidade fática subjacente tal determinaria, no limite, uma violação do princípio da neutralidade fiscal.
V-Tendo a Recorrente apresentado impugnação judicial e formulado pedido de indemnização pela prestação de garantia dentro do prazo contemplado na lei, a falta de quantificação dos prejuízos respetivos não contende com aquele reconhecimento, impondo apenas que o seu apuramento seja relegado para execução de sentença.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I-RELATÓRIO

A....., SA, veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, a qual julgou totalmente improcedente a impugnação judicial deduzida contra o despacho de indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada contra a liquidação adicional de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) e respetivos Juros Compensatórios (JC) referente ao período de abril de 2006, no valor global de €938.112,10.

A Recorrente, apresenta as suas alegações de recurso nas quais formula as conclusões que infra se reproduzem:

“1. O presente recurso jurisdicional vem interposto da sentença de JJs. ..., proferida nos autos referidos em epígrafe, a qual negou provimento à impugnação judicial deduzida pela ora recorrente contra a liquidação adicional de IVA, no valor total de €917.991,73, relativa ao período de 04/2006, e, bem assim, a correspondente liquidação de juros compensatórios, no valor de € 20.120,37;

2. Em causa está o entendimento do Tribunal a quo, de que, para efeitos de dedução do IVA suportado num imóvel relativamente ao qual houve, por parte do locador, renúncia à isenção daquele tributo, não se pode reconhecer ao contrato-promessa de arrendamento celebrado entre a recorrente e a A....., Lda., os mesmos efeitos do contrato definitivo;

3. A Recorrente não se conforma com o sentido da sentença proferida pelo tribunal a quo, uma vez que há um erro de julgamento quanto à análise da matéria de facto, fazendo aquele tribunal, igualmente, uma errada interpretação do direito aplicável;

4. Ao contrário do que sustenta o Tribunal a quo, em juízo não estava a equiparação de um contrato-promessa a um contrato definitivo para efeitos do direito à dedução do IVA mas antes a correcta qualificação do contrato celebrado entre as partes como contrato definitivo de locação (e não, como foi designado, de promessa de locação), e, nessa medida, atribuir-lhe os respectivos efeitos jurídicos, mormente no que respeita à dedução do IVA;

5. Os documentos juntos não foram bem apreciados pelo tribunal a quo, o que, por si só, impõe solução diversa daquela a que se chegou: na verdade, os documentos que o tribunal a quo dá “por reproduzidos” sem mais, evidenciam, inequivocamente e sem sombra de dúvidas, a existência de um contrato de locação;

6. E, se assim o é, como é bom de ver, à aqui recorrente assistiria o direito, nos termos legais, de poder deduzir a totalidade do IVA suportado na construção do imóvel, de acordo com as disposições legais aplicáveis;

7. Na verdade, o sistema de renúncia à isenção constante dos art.os 9.° e 12.° do CIVA e, bem assim, do Decreto-Lei n.° 241/86 de 20 de Agosto basta-se, conforme se viu, com a verificação substancial daquela locação do imóvel, ou seja, que o imóvel está de facto a ser utilizado com carácter de permanência, por contrapartida de uma remuneração, por outro sujeito passivo de IVA que utiliza o imóvel numa actividade tributada, facto que determina que o IVA que incide sobre a renda é por este dedutível;

8. E foi, de facto, o que sucedeu desde Abril de 2006: a impugnante, aqui recorrente, deu o imóvel de arrendamento à A..... — sujeito passivo de IVA —, com efeitos a partir de Abril de 2006, que o utiliza — desde essa data — com carácter de permanência, e em actividades tributadas, pagando as correspectivas rendas, estipuladas contratualmente;

9. Como é bom de ver, é indisputável que o direito à dedução do IVA não pode ficar precludido com base, simplesmente, na falta de uma licença de utilização — sendo esta um elemento dirigido ou instituído para tutelar interesses muito distantes e até desinteressados da temática da tributação directa que aqui nos atém;

10. A que acresce a circunstância de que da ausência de tal elemento não decorre qualquer prejuízo, como bem se compreende, para a substância económica da relação efectivamente existente entre as partes — no caso em apreço, entre a impugnante, agora recorrente, e a A.....;

11. Nao pode, então, pretender-se fundar na não emissão da licença de utilização do imóvel em causa a negação do exercício do direito à dedução em apreço, uma vez que é inquestionável — e a Administração fiscal não a questiona — a existência de uma locação cujos efeitos económicos se produzem nos termos normais, e tal cominação se revelaria manifestamente desproporcionada face à natureza e substância das operações;

12. Aliás, caso assim não se entendesse, estaríamos, naturalmente, perante uma incompreensível prevalência da forma sobre a substância quando é justamente o contrário que a lei pretende;

13. Em suma, há, de facto, uma locação de um bem imóvel (“fracção D”), vertida num contrato reduzido a escrito pelas partes, que configura um verdadeiro contrato de arrendamento na medida em que houve a entrega de um bem locado, a sua ocupação com carácter de permanência e o pagamento das rendas,

14. Pelo que não pode o Tribunal a quo partindo de uma mera exigência formal de índole administrativa, sem qualquer aplicação teleológica aos intentos das normas fiscais mobilizadas, retirar os efeitos propostos — desconsiderar a dedução de imposto validamente efectuada e, consequentemente, liquidá-lo adicionalmente;

15. Tal importaria não só uma interpretação da lei sem fundamento — da sua letra e, principalmente, do seu espírito — como redundaria ainda numa incomportável violação do princípio fiscal (basilar) da capacidade contributiva;

16. No caso em apreço importa relevar que, sob o ponto de vista fiscal, dúvidas não restam de que face à substância económica da locação do imóvel, não pode a recorrente ser obrigada a suportar imposto para além do que a lei obriga — designadamente, pela inadmissibilidade das deduções efectuadas, e cujos fundamentos substanciais estão demonstrados;

17. Assim, os actos tributários impugnados são ilegais por violação do disposto nos art.os 9.° e 12.° do CIVA, Decreto-Lei n.° 241/86 de 20 de Agosto, do princípio da substância sob a forma e da capacidade contributiva;

18. A que acresce também a ilegalidade da liquidação de juros compensatórios por violação do disposto no art.° 89.° do CIVA e do art.° 35.° da LGT.

PELO QUE:

19. A sentença proferida pelo Tribunal a quo deve ser anulada por erro de julgamento quanto à análise da matéria de facto e por errada interpretação do direito aplicável e, concomitantemente, devem ser anulados os actos tributários impugnados.

TERMOS EM QUE DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE, REVOGANDO V. EXAS. A DECISÃO DE PRIMEIRA INSTÂNCIA, E, CONSEQUENTEMENTE, ORDENANDO A ANULAÇÃO DOS ACTOS TRIBUTÁRIOS IMPUGNADOS, COM TODAS AS DEMAIS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS.”


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A Recorrida optou por não apresentar contra-alegações.

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A Digna Magistrada do Ministério Público (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

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II-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:

“Com interesse para a decisão, considera-se provada a seguinte factualidade

constante dos autos:

A) O impugnante é uma sociedade anónima que se dedica à actividade de promoção imobiliária, enquadrado em IVA no regime normal mensal, tendo solicitado, em 20.03.2006, a renúncia à isenção de IVA ao abrigo do disposto nos n°s 4 e 6, do art° 12° do CIVA, o qual mereceu despacho de deferimento pelo Chefe de Finanças de Lisboa 3, devidamente notificado ao interessado, tendo-se emitido o correspondente certificado comprovativo Cfr documento de fls 107 a 109, e Ofício de fls 110 e Certificado de fls 111, dos autos.

B) Tendo apresentado a respectiva declaração periódica do mês de Abril do ano de 2006 , em que deduziu a totalidade do IVA suportado na construção do prédio urbano mencionado supra, requereu o reembolso do imposto nos termos do art° 22° do CIVA, em resultado da situação de crédito de imposto então apurado, tendo sido processado o reembolso de imposto solicitado - cfr fls 119, dos autos e informação elaborada pelos serviços de fls 147 a 155, do P.A apenso

C) Na sequência do reembolso do imposto referido supra, foi efectuada uma acção inspectiva ao sujeito passivo, tendo-se elaborado o respectivo relatório final e despacho de correcção do IVA dedutível e apurado o imposto em falta, por se ter considerado que apenas poderia deduzir o imposto até à concorrência do imposto liquidado correspondente ao imóvel em causa, em resultado de os documentos de suporte ao pedido de reembolso dizerem respeito a um contrato- promessa de arrendamento e não o contrato definitivo, não sendo permitido solicitar o reembolso de imposto antes da celebração do contrato de locação, sendo que até essa data apenas poderá ser deduzido o imposto até à concorrência do referido imposto liquidado relativo ao mesmo imóvel- cfr Relatório da I.T. de fls 139 a 146 do P.A. apenso .

D) Em 20.02.2007, foi emitida a nota de liquidação de imposto em falta e de juros compensatórios apurados - cfr nota de liquidação adicional do imposto e de juros compensatórios, de fls 36 e 37, dos autos.

E) Dá-se aqui por reproduzido o contrato - promessa de arrendamento celebrado pelo sujeito passivo com a sociedade A....., relativo ao prédio urbano a que foi concedido o certificado a que se refere a alínea a), supra, assim como o Acordo e Declaração subscrito pelas partes, em 30.10.06. - cfr documento de fls 75 a 106 e de fls 113 a 115 e de fls 117e 118, dos autos.

F) Da liquidação referida supra foi deduzida reclamação graciosa em 27.07.07, a qual mereceu despacho de indeferimento proferido em 27.02.09. -cfr fls 2 e segs do Proc. Recl. Gracioso anexo.


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A decisão recorrida consignou como factualidade não provada o seguinte:

“Dos factos com interesse para a decisão da causa e constantes da impugnação, todos objecto de análise concreta, não se provaram os que não constam da factualidade supra descrita.”


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Mais ficou consignado como motivação da matéria de facto o seguinte:

“A decisão da matéria de facto efectuou-se com base no exame dos documentos e informações oficiais, não impugnados, que dos autos constam, tudo conforme referido a propósito de cada uma das alíneas do probatório.


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Por se entender relevante à decisão a proferir, na medida em que documentalmente demonstrada adita-se ao probatório, ao abrigo do preceituado no artigo 662.º, nº 1, do CPC, ex vi artigo 281.º do CPPT, a seguinte factualidade:

G) Na sequência da emissão das notas de liquidação adicionais de IVA e respetivos juros compensatórios referidos em D), e em resultado da sua falta de pagamento, foi instaurado pelo Serviço de Finanças de Amadora 3, o processo de execução fiscal nº ....., cuja quantia exequenda ascendia a €938.112,00 (cfr. fls. 128 do PA apenso);

H) A 27 de julho de 2007, foi prestada garantia bancária nº ....., emitida pelo Banco Comercial Português, no valor de €1.545.473,27, por forma a suspender o processo de execução de fiscal referido na alínea antecedente (cfr. fls. 133  e 134 do PA apenso);


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III-FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

In casu, a Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra a liquidação adicional de IVA e respetivos JC respeitante ao período de abril de 2006.

Em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Assim, ponderando o teor das conclusões de recurso cumpre aferir se a sentença padece de erro de julgamento por errónea apreciação dos pressupostos de facto e de direito, competindo, para o efeito, analisar:
Ø Qual o âmbito objetivo do Decreto-Lei nº 241/86, de 20 de agosto, particularmente se abrange os contratos de promessa de locação de bens imóveis;
Ø Qual a qualificação jurídica do contrato em apreço;
Ø Há lugar à preterição do princípio da substância sobre a forma, porquanto nunca foi colocada em causa a substancialidade da operação.
Ø Há lugar, outrossim, à violação do princípio da capacidade contributiva.
Ø Tem a Recorrente direito à indemnização por prestação indevida de garantia.

Apreciando.

A Recorrente evidencia, desde logo, que, juridicamente, em momento algum o Decreto-Lei nº 241/86, de 20 de agosto distingue, para efeitos de aplicação do regime, entre o contrato de promessa e contrato de locação.

De todo o modo releva que, a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento de facto e de direito, porquanto contrariamente ao sustentado pelo Tribunal a quo, não estava em causa a equiparação de um contrato-promessa a um contrato definitivo para efeitos do direito à dedução do IVA, mas antes a correta qualificação do contrato celebrado entre as partes como contrato definitivo de locação, cuja documentação contemplada no probatório permite extrair tal assunção.

Mais evidenciando que desde abril de 2006, que a Recorrente deu o imóvel de arrendamento à A..... -sujeito passivo de IVA-, utilizando-o desde essa data, com carácter de permanência, e em atividades tributadas, pagando as correspetivas rendas, estipuladas contratualmente.

E por assim ser, o direito à dedução do IVA não pode ficar precludido com base, simplesmente, na falta de uma licença de utilização.

Até porque, enfatiza, não colocando a AT em causa a existência de uma locação cujos efeitos económicos se produzem nos termos normais, tal cominação revelar-se-ia manifestamente desproporcionada face à natureza e substância das operações, e com inerente violação do princípio da substância sobre a forma e capacidade contributiva.

A decisão recorrida defendeu a improcedência fundamentando a sua pretensão relevando, desde logo, que face ao disposto no artigo 4.o do Decreto-Lei n° 241/86, de 20 de agosto, que regulamenta a renúncia relativamente à locação e transmissão de bens imóveis, determina-se o seu reporte para a data do contrato de locação, estando, nessa medida, vedada a solicitação do reembolso de imposto antes dessa data, de acordo com o n°2, do referido preceito legal.

Densificando, para o efeito, que “[r]eferindo-se o preceito à celebração de contrato de locação não pode pretender o impte que o mesmo abarca o contrato-promessa anteriormente celebrado, já que não definindo a norma em causa um conceito distinto para efeitos tributários ter-se-á de considerar o conceito civilístico que lhe subjaz (…)”

Razão pela qual, conclui pela legalidade da “[c]orrecção efectuada ao reembolso de imposto efectuada ao contribuinte, tendo-se considerado apenas o direito à dedução de imposto até à concorrência do imposto devido pelas operações sujeitas a imposto em decorrência da efectividade da renúncia à isenção”.

Delimitadas as questões decidendas e a fundamentação jurídica em que se estribou a improcedência da decisão recorrida, importa convocar o regime jurídico e os conceitos de direito que relevam para o caso vertente.

Ab initio, cumpre destacar que atenta a natureza do IVA assente, como é consabido, no mecanismo do crédito de imposto, tal determina que as isenções revistam contornos especiais.

Com efeito, no âmbito do direito fiscal o conceito de isenção caracteriza-se, essencialmente, por uma inexistência de carga tributária, pese embora se verifiquem todos os pressupostos necessários à constituição da obrigação de imposto. Por seu turno, e inversamente, no campo específico do IVA as isenções produzem a interrupção do mecanismo de tributação, sem possibilidade, em muitos casos, de transferir a carga tributária para fases posteriores, porquanto o imposto suportado não vai ser recuperado e adicionar-se-á ao custo de produção do bem ou do serviço aumentando, nessa medida, o preço a pagar pelo consumidor[1].

Ainda neste conspecto, importa, outrossim, ter em atenção que as isenções internas tipificadas pela Diretiva IVA estão motivadas por razões de ordem económica e social (merit goods-artigo 132.º da Diretiva), e por razões de ordem técnica (har-to-tax-goods artigo 135.º da Diretiva).

Quanto à sua estrutura as mesmas subdividem-se em isenções simples e isenções completas. Sendo que, resumidamente, definir-se-ão as isenções simples como aquelas que não conferem direito à dedução do imposto suportado a montante, donde o sujeito passivo não liquidando IVA, também não tem direito a deduzi-lo. Por seu turno, as isenções completas são aquelas que conferem direito à dedução do imposto suportado, ou seja, ainda que o sujeito passivo não liquide IVA sobre a operação isenta poderá deduzir o IVA.

Daí que, como doutrina Sérgio Vasques[2] “as isenções simples não representam, por isso, um verdadeiro benefício para o sujeito passivo, como sucede prototipicamente com as isenções de imposto, razão pela qual em certos sistemas de IVA estas isenções não sequer designadas como tal (…) Os contornos muito particulares das isenções simples levam deste modo a que a sua aplicação gere imposto oculto, pela incorporação do IVA incorrido a montante no preço dos bens e serviços fornecidos mais a jusante.”

Razão pela qual, o artigo 137.º da Diretiva IVA permite que os Estados-Membros concedam aos sujeitos passivos o direito de renunciar à isenção e optar pela tributação dessas operações, com exceção das operações de seguro.

Em termos de regulamentação nacional, a isenção referente à locação de bens imóveis estava, à data, regulada no artigo 9.º, nº 30, do CIVA.

Estando, por seu turno, o regime de renúncia à isenção do IVA consagrado no artigo 12.º, do CIVA, segundo o qual:
“1 - Poderão renunciar à isenção, optando pela aplicação do imposto às suas operações (…)
4 - Os sujeitos passivos do imposto que arrendem bens imóveis ou partes autónomas destes a outros sujeitos passivos do imposto, que os utilizem, total ou parcialmente, em atividades tributadas e que não sejam retalhistas sujeitos ao regime especial constante dos artigos 60.º e seguintes, poderão renunciar à isenção prevista no n.º 30 do artigo 9.º desde que na contabilidade os proveitos e custos relativos aos imóveis a arrendar com sujeição a imposto sejam registados separadamente. (…)
6 - Para exercer a renúncia prevista nos números anteriores o locador ou o alienante deverão apresentar declaração, de modelo aprovado, de que conste o nome do locatário ou do adquirente, a renda ou preço e demais condições do contrato. Comprovados os pressupostos referidos naqueles números, a administração fiscal emitirá um certificado, isento de selo, que será exibido aquando da celebração do contrato ou da escritura de transmissão.
7 - O direito à dedução do imposto, nestes casos, obedecerá às regras constantes dos artigos 19º e seguintes, salvo o disposto em normas regulamentares especiais.”

E no concernente aos termos e condições para o exercício da renúncia à isenção os mesmos estavam regulados pelo Decreto-Lei n.º 241/86, de 20 de agosto (atualmente pelo Decreto-Lei n.º 21/2007, de 29 de janeiro), que, no seu artigo 1.º, dispunha o seguinte:
“1. Os sujeitos passivos que nos termos dos n.ºs 4 a 6 do artigo 12.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, pretendam renunciar às isenções referidas nos n.ºs 30 e 31 do artigo 9.º do mesmo Código deverão entregar, em triplicado, na repartição de finanças competente, uma declaração conforme modelo aprovado.
2. Sempre que se encontrem preenchidos os pressupostos previstos nos n.ºs 4 e 5 do artigo 12.º do Código do IVA, a repartição de finanças emitirá o certificado a que se refere o n.º 6 do mesmo artigo no prazo máximo de 30 dias a contar da data de entrega da declaração mencionada no número anterior”.

Mais consignando, nos n.ºs 1 e 2 do seu artigo 4.º, o seguinte:
“1. Sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, os sujeitos passivos que renunciarem à isenção nos termos do artigo 1.º terão direito à dedução do imposto suportado para a realização das operações relativas a cada imóvel ou parte autónoma, segundo as regras definidas nos artigos 19.º e seguintes do Código do IVA.
2. Não será, todavia, permitido aos sujeitos passivos efetivar a dedução relativa a cada imóvel ou parte autónoma no imposto apurado em outros imóveis ou partes autónomas ou quaisquer outras operações, nem solicitar o respetivo reembolso nos termos dos n.ºs 5 e 6 do artigo 22.º do Código do IVA, antes da celebração da escritura de transmissão ou do contrato de locação dos imóveis”.

Resulta, ainda, do artigo 3.º do mesmo diploma legal o seguinte:
“1. Os sujeitos passivos que exerceram a renúncia à isenção nos termos do artigo 1.º deste diploma são obrigados ao envio da declaração prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 28.º do Código do IVA, na forma e nos prazos enunciados no artigo 40.º, a partir do mês ou trimestre seguintes da emissão do certificado a que se refere o n.º 2 do artigo 1.º, consoante os casos, observando o disposto nos números seguintes.
2. A declaração referida no número anterior juntar-se-ão tantos anexos de modelo aprovado quantos os imóveis ou partes autónomas relativamente aos quais foi exercida a renúncia, devendo neles figurar separadamente as operações referentes a cada imóvel ou parte autónoma.
3. Recebido o certificado a que se refere o n.º 2 do artigo 1.º, o sujeito passivo deverá liquidar o imposto relativamente aos adiantamentos recebidos.
4. Na primeira declaração e anexos a apresentar pelo sujeito passivo, nos termos do n.º 2, deverá ser evidenciado o imposto devido nos termos do número anterior, bem como o valor de todas as aquisições e o imposto nelas contido, relativamente aos respetivos imóveis ou partes autónomas”.

Face ao supra expendido, e da interpretação conjugada dos normativos supra evidenciados dimana que os sujeitos passivos que pratiquem operações de locação de imóveis isentas nos termos do nº 30 do artigo 9.° do CIVA, poderão optar pela aplicação do IVA à transmissão ou à locação dos bens imóveis ou partes autónomas destes, ficando com direito à dedução do imposto suportado para a realização dessas operações, segundo as regras definidas nos artigos 19.° e seguintes do CIVA e sem prejuízo do disposto nas normas especiais estabelecidas, à data, pelo Decreto-Lei n.º 241/86, de 20 de agosto.

Visto o regime jurídico e os conceitos de direito que relevam para o caso sub judice, regressemos ao caso vertente.

Para o efeito, comecemos por convocar a fundamentação em que se estribou a correção realizada constante no Relatório Inspetivo, porquanto é nela, e exclusivamente, nela que reside a justificação atinente à sua realização.

Do teor do Relatório Inspetivo, resulta que “[a]té à celebração da escritura de transmissão ou contrato de locação e após a emissão do certificado de isenção, apenas poderá ser deduzido imposto, até à concorrência do imposto liquidado correspondente ao mesmo imóvel.”

Mais sublinhando que “[o] direito ao reembolso de IVA não depende de cobrança prévia ou simultânea das rendas, após a emissão do certificado, mas sim da celebração do respectivo contrato de locação”. Até porque, enfatiza, que “[o] contrato de locação/arrendamento não tem os mesmos efeitos que “contrato-promessa” de locação/arrendamento”.

Convocando, ulteriormente, o artigo 9.º do RAU e daí extrapolando em cotejo com os requisitos contemplados no Decreto-Lei nº 241/86, de 20 de agosto, “[d]esignadamente quanto à celebração do contrato de arrendamento, por impossibilidade de realização formal do contrato definitivo por inexistência de licença de utilização”.

Concluindo, nessa medida, que “[a]té à celebração do contrato definitivo o sujeito passivo apenas pode deduzir o IVA, correspondente ao imóvel, até à concorrência do imposto liquidado correspondente ao mesmo imóvel”.

Apreciando.

De relevar, desde já, que o artigo 4.º, nº2, in fine, do citado Decreto-Lei nº 241/86, abrange, tão-só, o contrato de locação de imóveis, e não o contrato de promessa.

E isto porque se atentarmos no seu teor literal verificamos que o legislador enunciou, de forma clara, que não é possível solicitar “[o] respetivo reembolso nos termos dos n.ºs 5 e 6 do artigo 22.º do Código do IVA, antes da celebração da escritura de transmissão ou do contrato de locação dos imóveis.”

Ou seja, o legislador consignou de forma expressa “contrato de locação de imóveis”, não fazendo qualquer alusão, expressa ou implícita, a contrato de promessa, sendo que, como é consabido, são realidades jurídicas distintas, com efeitos igualmente distintos.

Com efeito, não decorre da letra da lei, nem do seu espírito, que o legislador tenha pretendido abarcar os contratos de promessa de locação. Aliás, se ponderarmos a expressão antecedente concatenada com a “escritura de transmissão” ter-se-á de inferir que o legislador pretendeu, tão-só, abranger as realidades tidas por “definitivas”.

Em ordem ao consignado no artigo 9.º, nº2, do CC e seguindo os ensinamentos de BAPTISTA MACHADO, ter-se-á de ter como assente que o texto da lei, constitui o ponto de partida do processo hermenêutico e também um seu limite, na medida em que não é possível considerar aqueles sentidos que não tenham nas palavras da lei qualquer apoio, “um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.[3]

Na tarefa hermenêutica não podem “distinguir-se situações que o legislador não distinguiu (ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus). O intérprete – no nosso caso, em primeira linha, a AT e, em segunda linha e sindicando a actuação desta, o tribunal – não pode relevar distinções que o legislador não estabeleceu, a menos que pudesse concluir com certeza que o pensamento do legislador fora atraiçoado na redacção da norma e, assim, que se impunha uma interpretação restritiva, o que, manifestamente, não é o caso, pois inexistem indícios no sentido de que o legislador tenha dito mais do que aquilo que queria dizer (Cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, pág. 186, que refere ainda que «[o] argumento em que assenta este tipo de interpretação costuma ser assim expresso: cessant ratione legis cessat eius dispositivo (lá onde termina a razão de ser da lei termina o seu alcance)[4]”.

Ademais, atentando, designadamente, no seu preâmbulo, o que está na génese deste diploma é a consagração das formalidades e os condicionalismos a observar pelos sujeitos passivos que decidem optar pela aplicação do IVA à transmissão ou locação de bens imóveis ou partes autónomas, por forma a acionar a renúncia e eliminar os efeitos cumulativos originados pela isenção simples aplicável à locação e à transmissão de imóveis ou partes autónomas, porquanto deve respeitar-se o princípio de interpretação estrita ou declarativa.

Interpretar, em matéria de leis, significa não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, dentro das várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva[5], e por assim ser conclui-se que quando o legislador se refere a contrato de locação de bens imóveis, reporta-se, tão-só, a esta realidade jurídica e não a qualquer outra distinta, mormente, contrato de promessa.

Questão diferente-e também convocada, expressamente, pela Recorrente- é a que redunda na própria qualificação jurídica do contrato. Competindo, assim, discernir se o mesmo congrega, um contrato de arrendamento que não de mera promessa, e de que forma, pode ou não relevar, a questão inerente à falta de licença de utilização.

Vejamos, então.

O contrato em apreço é, efetivamente, apelidado de “contrato de promessa de arrendamento de duração efectiva”, mas tal não obsta que, atendendo às declarações negociais constantes do documento formalizador do contrato as mesmas estejam desconformes com o nomen iuris ou, bem assim, que o mesmo permita inferir, seja por alocação a uma data ou outro elemento fático, que a partir desse momento se reporta a uma realidade diferente da epigrafada.

Dir-se-á, portanto, o nomen iuris atribuído pelas partes ao contrato não é determinante para a respetiva qualificação, havendo, por isso, que ponderar o concreto clausulado dele dimanante, razão pela qual se impõe, desde já, fazer uma incursão sobre o mesmo.

Para o efeito, importa atentar, em particular, na cláusula quarta cuja epígrafe “Início e fim do Prazo do Contrato Definitivo”.

Do teor da aludida cláusula, mormente, ponto 3 resulta, desde logo, que “o arrendamento do local arrendado ora prometido e assinatura do Contrato Definitivo terá início e ocorrerá no dia 14 (catorze) de Abril de 2006 ou se, se ocorrerem os circunstancialismos previstos na cláusula 4ª, nº7 a nº9, no dia em que ocorrer a ocupação efectiva do local arrendado pela A..... para exercício da sua actividade.”

Dimanando, igualmente, do ponto 4 da citada cláusula que “caso a A..... não disponha da documentação necessária ao local arrendado, para a assinatura do Contrato Definitivo, nos termos do número anterior, nomeadamente a competente licença de utilização a emitir pela Câmara Municipal, a A..... fica desde já autorizada a ocupar o local arrendado a partir do dia 14 de Abril de 2006, para início da sua actividade, a qual será considerada como a Data de Início (…)”

Estando, outrossim, consignado no ponto 6 da aludida cláusula que “fica desde já esclarecido entre as Partes que a A..... será exclusivamente responsável pelo pagamento de qualquer multa, coima, contra-ordenação, taxa ou encargo que venha a ser exigido, reclamado ou cobrado à A..... pela utilização do Local Arrendado sem a competente Licença de Utilização”.

Mais importa ter presente que as aludidas condições e clausulado, mormente, confirmação do uso e gozo são atestadas e confirmadas pelo acordo celebrado entre a Recorrente e a A..... em 30 de outubro de 2006, e bem assim da declaração outorgada na mesma data, factualidade essa expressa na alínea D).

Com efeito, no aludido acordo é expressamente evidenciado que a arrendatária ocupou o imóvel a partir de abril de 2006, sendo que para os efeitos consignados nos números 3 e 4 da cláusula quarta do contrato se deve considerar como data de início do contrato definitivo o dia 14 de abril de 2006, o mesmo se corroborando no documento intitulado de declaração, mormente, alíneas D) a G), onde, inclusive, se atesta que o arrendamento tem vindo a ser executado nas condições previstas no contrato e com a ocupação do local arrendado e pagamento de renda.

Ora, face ao supra expendido entende-se que assiste razão à Recorrente quando propugna que não obstante o nomen iuris, o mesmo integra, em si, o contrato definitivo de locação, previsto no artigo 1022.º do CC.

E isto porque, face ao clausulado supra transcrito, não tendo sido emitida licença de utilização-realidade não controvertida-, tal determina que o contrato vigente a partir de abril de 2006, se coadunou, efetivamente, com a locação consignada no citado artigo do CC, produzindo todos os seus efeitos-realidade, essa conforme veremos, igualmente, não controvertida-.

Independentemente do nomen iuris que as partes dão aos contratos, na interpretação e na qualificação destes, o que conta é a vontade expressa nas respetivas declarações negociais, entendidas estas com o sentido captável pelo declaratário normal, colocado no real circunstancialismo negocial, pelo que no sentido propugnado pela Recorrente, por vontade expressa das partes o contrato denominado “contrato-promessa de arrendamento de duração efectiva” foi, efetivamente, a partir de abril de 2006, o contrato de arrendamento definitivo.

É certo que a AT no seu Relatório Inspetivo convoca a inexistência de licença de utilização para efeitos de insusceptibilidade de qualificação enquanto tal, relevando, expressamente, que está vedada a realização formal do contrato definitivo por inexistência de licença de utilização.

Contudo, assim o não entendemos, visto que a inexistência de licença de utilização não poderá, per se, obstar a tal consideração.

É certo que o artigo 9.º, nº1 do RAU, dispunha, à data, que, “só podem ser objeto de arrendamento urbano os edifícios ou suas frações cuja aptidão para o fim pretendido pelo contrato seja atestado pela licença de utilização, passada pela autoridade municipal competente, mediante a vistoria realizada menos de oitos anos antes da celebração do contrato.”.

Estatuindo o nº 5 que “A inobservância do disposto nos nºs 1 a 3, por causa imputável ao senhorio, determina a sujeição do mesmo a uma coima não inferior a um ano de renda, observados os limites legais, salvo quando a falta de licença se fique a dever a atraso que não lhe seja imputável.”

Prescrevendo, por seu turno, o nº6 a possibilidade do arrendatário “[r]esolver o contrato, com direito a indemnização nos termos gerais ou requerer a notificação do senhorio para a realização das obras necessárias, aplicando-se o regime dos artigos 14º a 18º e mantendo-se a renda inicialmente fixada, salvo o disposto no número seguinte.”

Mas tal não permite retirar os efeitos almejados pela AT, desde logo, porque tal regulamentação tem subjacente a proteção do arrendatário em nada podendo ser transposta para efeitos de valoração e qualificação, no âmbito fiscal, da existência ou não de uma relação de locação, quando-de resto- a substancialidade da mesma nunca é colocada em crise.

Note-se que a exigência da licença de utilização tem subjacente a necessidade de obrigar os proprietários dos imóveis (novos, reconstruídos ou alterados) ao cumprimento de todas as normas legais, quer relativas à construção, quer de segurança, salubridade ou estética[6], sendo que, in casu, a arrendatária nunca sindica as condições e aptidão para o efeito, bem pelo contrário, conforme dimana do acordo e da declaração na qual assevera que desde a aludida data tem sido usado e fruído o locado para os efeitos pretendidos.

Ademais, à data, a falta de licença de utilização não feria com invalidade, relativa ou absoluta, o contrato de arrendamento celebrado sem observância desse requisito, apenas conferia ao arrendatário o direito de resolver o contrato ou exigir a realização das obras necessárias à obtenção da referida licença.

Como doutrinado, designadamente, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no processo nº 0756863, datado de 11 de fevereiro de 2008: “A falta de licença de utilização do locado não implica a nulidade do contrato (arts. 9 n.ºs 5 e 6 do RAU)”.

Não se encontra, por isso, legitimado à AT, partir de uma mera exigência formal, que não tem subjacente quaisquer efeitos fiscais, e desconsiderar, tout court, a dedução de imposto, efetivamente, suportado, ainda para mais quando a efetividade da realidade fática subjacente nunca é colocada em crise.

Com efeito, e no sentido propugnado pela Recorrente não sendo colocada em causa a substancialidade da operação, no fundo o uso e o gozo do imóvel, e todas as premissas inerentes à existência de uma locação de um bem imóvel -aliás a AT até advoga que não releva o pagamento das rendas- então sempre teria de admitir-se a dedução do IVA suportado.

Noutra formulação dir-se-á que se a AT nada contesta, ou controverte quanto à a realidade fática que permite a assunção de uma locação, concretamente entrega de um bem locado, ocupação com caráter de permanência e o pagamento das rendas, então a substancialidade da operação sempre teria de prevalecer sob a, eventual, falta de qualquer formalidade, sob pena de violação do princípio da neutralidade e bem assim da proporcionalidade.

Aliás, o TJUE, em situações concatenadas com o preenchimento de formalidades -e ainda que não, exatamente, conexas com a questão dos autos, mas cujos princípios se entendem transponíveis- tem entendido que se deve dar prevalência à substancialidade da relação económica, em detrimento da omissão de uma mera formalidade, como são exemplos, designadamente, os Arestos que infra se descrevem, mormente, o prolatado no processo Nidera, proferido no processo nº C-385/09, de 21 de outubro de 2010, no qual se declarou que:

“A Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, deve ser interpretada no sentido de que se opõe a que um sujeito passivo do imposto sobre o valor acrescentado que preenche os requisitos materiais para deduzir este imposto, de acordo com as disposições desta directiva, e que se regista como sujeito passivo do imposto sobre o valor acrescentado num prazo razoável a partir da realização das operações que conferem o direito a dedução possa ser privado da possibilidade de exercer esse direito por uma legislação nacional que proíbe a dedução do imposto sobre o valor acrescentado pago no momento da aquisição dos bens quando esse sujeito passivo não se tenha registado como sujeito passivo do imposto sobre o valor acrescentado antes de utilizar estes bens para efeitos da sua actividade tributada.” (destaques e sublinhados nossos).

Doutrinando-se, igualmente, no Acórdão Kopalnia proferido no processo nº C-280/10, de 1 de março de 2012, que:

“ [o] Tribunal de Justiça declarou que o princípio fundamental da neutralidade do IVA exige que a dedução do imposto pago a montante seja concedida se os requisitos substanciais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais. Uma vez que a Administração Fiscal dispõe dos dados necessários para determinar que o sujeito passivo, enquanto destinatário das transações em causa, é devedor do IVA, não pode impor, no que diz respeito ao seu direito a dedução, requisitos adicionais que possam ter por efeito a inviabilização absoluta do exercício desse direito (v., no que respeita ao regime de autoliquidação, acórdão de 21 de outubro de 2010, Nidera Handelscompagnie, C-385/09, Colet., p. I-10385, n.o 42).” (destaques e sublinhados nossos).

No mesmo sentido aponta o Aresto Barlis processo nº C-516/14, de 15 de setembro de 2016, segundo o qual:

“42    O Tribunal de Justiça declarou que o princípio fundamental da neutralidade do IVA exige que a dedução deste imposto pago a montante seja concedida se os requisitos materiais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais. Por conseguinte, quando a Administração Fiscal dispõe dos dados necessários para saber que os requisitos materiais foram cumpridos, não pode impor condições suplementares ao direito do sujeito passivo de dedução do imposto que possam ter por efeito eliminar esse direito (v., neste sentido, acórdãos de 21 de Outubro de 2010, Nidera Handelscompagnie, C385/09, EU:C:2010:627, n.° 42; de 1 de Março de 2012, Kopalnia Odkrywkowa Polski Trawertyn P. Granatowicz, M. Wąsiewicz, C280/10, EU:C:2012:107, n.° 43; e de 9 de Julho de 2015, Salomie e Oltean, C183/14, EU:C:2015:454, n.ºs 58, 59 e jurisprudência aí referida).” (destaques e sublinhados nossos).

Ora, face ao supra aludido tendo presente que a substancialidade da operação nunca foi colocada em causa, a inexistência de um contrato formal apelidado enquanto locação de imóvel, não pode, de todo, determinar a insusceptibilidade de dedução do IVA suportado e, nessa medida, a decisão que assim o entendeu não pode manter-se e por conseguinte, os atos impugnados, por padecerem de vício de violação de lei.


***

Subsiste apenas por analisar o pedido de indemnização por prestação indevida de garantia, constante na petição inicial, no qual a Recorrente expressamente refere que “de acordo com o preceituado nos artºs 169.º, 199.º, 171.º e 183.º A do CPPT, a impugnante apresentou garantia idónea para suspender o inerente processo executivo, pretendendo vir a ser indemnizada, nos termos do artº 53.º da LGT, no caso de a garantia se julgar indevida”.

Vejamos, então.

Para o efeito cumpre fazer uma interpretação articulada de dois normativos legais, especificamente: os artigos 53.° da LGT, e 171.° do CPPT.

Preceituava o artigo 53.º da LGT, com a redação à data aplicável, e sob a epígrafe de “Garantia em caso de prestação indevida” que:

“1- O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objeto a dívida garantida.

2- O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.

3-A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.”

Por sua vez, dispõe o artigo 171.º do CPPT, com a epígrafe “Indemnização em caso de garantia indevida” que:

“1-A indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda.

2-A indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou, em caso de o seu fundamento ser superveniente, no prazo de 30 dias após a sua ocorrência.”

Resulta, assim, do teor dos normativos legais citados que no domínio do contencioso tributário se “(…) consagra o direito do contribuinte a ser indemnizado, total ou parcialmente, pelos prejuízos resultantes da prestação de garantia bancária ou equivalente que tenha oferecido para obter a suspensão da execução fiscal, no caso de esta vir a revelar-se indevida por força do vencimento do procedimento ou processo tributário em que era controvertida a legalidade da dívida exequenda (…)”[7]

No que concerne ao modo de exercício de tal direito, cumpre ainda relevar que o nº 3 do artigo 52.º da LGT refere expressamente que a indemnização pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente, sendo que o facto de os lesados não requererem a indemnização pela prestação indevida de garantia bancária no âmbito do processo de impugnação judicial, não preclude a possibilidade de se requerer essa indemnização no âmbito da execução de julgado anulatório.

E isto porque, a leitura do artigo 171.º do CPPT tem de ser conjugada com o dever de “plena reconstituição da legalidade do ato ou situação objeto do litígio” que o artigo 100.° da LGT impõe à Administração Tributária em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo. Neste sentido, convoque-se, designadamente, o Aresto proferido pelo STA no processo nº 0216/11, em 22 de junho de 2011, chamando à colação a doutrina vertida no Acórdão de 24 de novembro de 2010, proferido no processo nº 01103/09[8].

São, portanto, pressupostos da concessão do direito à indemnização pela prestação indevida da garantia: a prestação da garantia por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objeto a dívida garantida ou a invalidade do ato de liquidação, fundada em erro imputável aos serviços, peticionado no processo que tenha por objeto a ilegalidade da dívida exequenda, ou em sede de execução de julgados.

Atentemos, então, no que resulta do acervo probatório dos autos:

Para cobrança coerciva da dívida correspondente à liquidação de IVA e respetivos JC, nos presentes autos foi instaurado o processo de execução fiscal nº ....., cuja quantia exequenda ascendia a €938.112,00.

Nessa sequência, e por forma a suspender o processo executivo, foi prestada garantia bancária nº ....., emitida pelo Banco Comercial Português, no valor de €1.545.473,27, por forma a suspender o processo de execução de fiscal supra referido.

Ora, atenta a factualidade assente e chamada à colação anteriormente, encontram-se preenchidos os requisitos para a atribuição da indemnização por prestação indevida de garantia, desde logo, porque a mesma foi prestada em 27 de julho de 2007, tendo, portanto, sido cumprido o requisito do prazo de 3 anos contemplado no citado artigo 53.º, nº1, da LGT.

Neste particular, é de sublinhar que não constam dos autos quais os encargos, em concreto, que a Recorrente suportou com a prestação da garantia. A verdade, porém, é que tal facto não obsta a que este Tribunal reconheça esse direito, relegando-se o apuramento do seu quantum para execução de sentença.

Noutra formulação, dir-se-á, que tendo a Recorrente apresentado impugnação judicial e formulado pedido de indemnização pela prestação de garantia dentro do prazo contemplado na lei, a falta de quantificação dos prejuízos respetivos não contende com aquele reconhecimento, impondo apenas que o seu apuramento seja relegado para execução de sentença, como se fará no dispositivo do presente Acórdão[9].


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Uma nota final quanto à dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, constante no artigo 6.º, nº 7 do RCP.

No Aresto do STA, proferido no processo nº 01953/13, de 07 de maio de 2014[10]: resulta claramente que: “A norma constante do nº7 do art. 6º do RCP deve ser interpretada em termos de ao juiz, ser lícito, mesmo a título oficioso, dispensar o pagamento, quer da totalidade, quer de uma fracção ou percentagem do remanescente da taxa de justiça devida a final, pelo facto de o valor da causa exceder o patamar de €275.000, consoante o resultado da ponderação das especificidades da situação concreta (utilidade económica da causa, complexidade do processado e comportamento das partes), iluminada pelos princípios da proporcionalidade e da igualdade”.

No caso sub judice, considera-se que o valor de taxa de justiça devida a final, calculado nos termos do tabela I.B., do RCP, é excessivo. Porquanto, ponderadas as circunstâncias do caso vertente à luz dos critérios escolhidos pelo legislador, em especial, o comportamento processual das partes litigantes, sem qualquer reparo negativo a apontar, a complexidade do processo – atendendo a que as questões decidendas não exigiram do julgador especiais e diversos conhecimentos técnicos e jurídicos, antes se mantiveram dentro de parâmetros normais e comuns, encontra-se preenchido o circunstancialismo do n.º 7, do artigo 6.º do RCP, decretando-se a dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça.


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IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na Segunda Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida, julgar procedente a impugnação judicial, e anular as liquidações impugnadas, condenando-se a Recorrida a pagar à Recorrente uma indemnização por prestação indevida de garantia cujo apuramento se relega para execução de sentença.

Custas a cargo da Recorrida, com a dispensa do remanescente da taxa de justiça, na parte em que excede os €275.000,00.

Registe. Notifique.


Lisboa, 29 de Abril de 2021

[A Relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo artigo 3.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Desembargadores Susana Barreto e Vital Lopes]

Patrícia Manuel Pires


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[1] Vide, neste sentido, Patrícia Noiret Cunha, anotações ao CIVA, edição ISG, 2004, p.197.
[2] O Imposto sobre o Valor Acrescentado, Almedina, reimpressão, fevereiro de 2020, p.313.
[3] Cfr. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, págs. 182, 188 e 189.
[4] In cit. Acórdão do STA, proferido no processo nº 0706/11, de 31.01.2012
[5] Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais do Direito Civil, vol. 1º, 6ª ed., pág. 145
[6] cfr. artigo 62.º, nº 1, do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, e pelos Decretos-Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, 97/2017, de 10 de agosto, Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02 de outubro, 136/2014, de 09 de setembro, 266-B/2012, de 31 de dezembro, 26/2010, de 30 de março, 116/2008, de 04 de julho, 18/2008, de 29 de janeiro, 157/2006, de 08 de agosto, e 177/2001, de 04 de junho, que estabelece o regime jurídico da urbanização e edificação - RJUE
[7] In Acórdão do STA, proferido no recurso nº 01032/10, de 13 de abril de 2011.
[8] Neste sentido, vide também Acórdão proferido pelo STA no processo nº 01032/10 de 13.04.2011, no Acórdão proferido pelo STA, no processo nº 09/02, de 09.10.2002, no Acórdão proferido pelo STA no processo nº 0299/10, de 24.11.2010, no Acórdão proferido pelo STA no processo nº 0620/11, de 2.11.2011, entre outros, todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.
[9] Vide, designadamente, Aresto do TCA Norte proferido no processo nº 00233/06.6BEPNF de 2.02.2012
[10] integralmente disponível para consulta em www.dgsi.pt.