Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:13325/16
Secção:CA-2º JUÍZO
Data do Acordão:12/15/2016
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:DECLARAÇÕES DE PARTE
Sumário:I - As partes (ou o tribunal – cfr. artigos 411º, 466º/2 e 452º/1 do Código de Processo Civil) podem requerer, até ao início das alegações orais em 1ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto.

II - O sistema jurídico (do qual faz parte o modo como os juizes devem valorar os meios de prova), sistema não alheio à condição humana e à realidade comum, assume que as declarações testemunhais de uma parte interessada são, em princípio, por imperativos de bom senso e racionalidade, um meio de prova que é, por natureza, mais frágil do que os outros para efeitos de demonstração dos factos que permitam fundar o direito invocado na ação.

III – As declarações de parte têm valor probatório autónomo e suficiente (i) quanto a factualidade essencial que, segundo os articulados, apenas teve lugar entre as partes, sem a presença de terceiros intervenientes; (ii) quanto aos factos complementares de factos essenciais; e (iii) quanto aos factos concretizadores de factos essenciais.

IV - Só no primeiro caso (factualidade essencial que apenas teve lugar entre as partes, sem a presença de terceiros intervenientes) é que vale invocar o direito à prova (artigo 20º/1 da Constituição da República Portuguesa) para sustentar o valor probatório autónomo e suficiente das declarações de parte; nos outros dois casos, não, porque as partes não estão impedidas de indicar meios de prova “normais”, sem a fragilidade intrínseca ou “natural” deste meio de prova.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul

I. RELATÓRIO

· AFONSO …………….., divorciado, aposentado, NIF ……………, residente na Rua ……………, nº 5, 11º, Lisboa,

intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de Sintra ação administrativa comum de condenação, emergente de responsabilidade civil extracontratual, contra

· MUNICIPIO DE ……… e

· N………… – Comunicação ………………, Lda.

Pediu o seguinte:

- Condenação dos RR a lhe pagarem a quantia de 48.655,50€, acrescida de juros demora à taxa legal anual de 4%, a contar desde a citação e até integral pagamento.

Por decisão de 12-11-2015, o referido tribunal decidiu absolver os réus do pedido.

*

Inconformado com tal decisão, o autor interpôs o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

1) A matéria de facto deve ser alterada nos termos supra expostos (1), após reexame da prova gravada e após devida valoração da prova por declarações de parte.

2) Em função da alteração requerida à matéria de facto, existe o dever de os Recorridos indemnizarem o Recorrente, com base no DL n.º 48051, pois verificam-se os quatro pressupostos geradores do dever de indemnizar:

O facto ilícito – a produção de lesão muito considerável na saúde do Recorrente;

A culpa – violação do dever de cuidado e culpa in vigilando;

O prejuízo – danos patrimoniais e não patrimoniais;

E o nexo de causalidade – existe nexo entre a pancada que gerou a lesão e todos os danos sofridos.

3) Provado que sejam os factos ora em apreço, é manifesto que os Recorridos, na conceção e execução do espetáculo, bem sabendo que haveria bailarinos a dançar por entre o público, em dois corredores, com adereços nas mãos, não acautelaram que o pudessem fazer sem produzir danos físicos em terceiros.

4) Violaram um dever geral de cuidado previsto no art.º 483.º/CC, e o dever de indemnizar emerge daí, nos termos gerais, e nos termos consagrado no art. 6.º/DL 48051, incorrendo ainda em culpa in vigilando.

5) A violação do dever geral de cuidado foi causa adequada a que, no exercício da coreografia, um dos bailarinos tivesse atingido o Recorrente – os danos, incluindo os da saúde psicológica já foram dados como provados na douta sentença.

6) Todos estes danos, incluindo os não patrimoniais, merecem a tutela do direito nos termos quantificados na p.i. e no pedido.

7) Fere a consciência jurídica de cada um que se possa assistir a um espetáculo, que um bailarino – não um terceiro, como um membro do público por exemplo – atinja com gravidade um espectador e não exista – no demais contexto fáctico dos autos – o dever de indemnizar. Não só fere, como repugna.

8) Normas violadas:

a) Artigos 483.º, 491.º, 496.º, 562.º, 563.º, 564.º, todos do Código Civil.

b) Artigo 6.º/DL 48051 de 21/NOV/1967;

c) Artigo 466.º/CPC.

*

O recorrido município contra-alegou.

*

O M.P., através do seu digno representante junto deste tribunal, foi notificado para o seguinte fim legal: pronunciar-se em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, como previsto no nº 1 do art. 146º.

*

Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

Para decidir, este tribunal (órgão de que é titular um juiz ou um colégio de juizes que, a requerimento de outrem e através de um procedimento equitativo, imparcial e independente, decide, com força obrigatória para os interessados, os factos integradores dos respetivos direitos e obrigações, aplicando-lhes o direito pertinente) tem omnipresente a nossa Constituição estatal, como síntese da ideia-valor de Direito vigente, cujo modelo político é de natureza ético-humanista e cujo modelo económico é o da economia social de mercado, amparado no Direito.

Consideramos as três dimensões do Direito como ciência do conhecimento prático - por referência à ação humana e ao dever-ser inspirador das leis -, quais sejam, (i) a dimensão factual social - que influencia muito e continuamente o direito legislado através das janelas de um sistema jurídico uno e real, (ii) a dimensão ética e seus princípios práticos - que influenciam continuamente o direito também através das janelas do sistema jurídico - e, a jusante, (iii) a dimensão normativa e seus princípios prático-jurídicos.

*

Cabe, ainda introdutoriamente, sublinhar que os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido e respetivos fundamentos, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso, alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas.

*

As questões a resolver neste recurso são as identificadas no ponto II.2, onde as apreciaremos.

*

II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. FACTOS PROVADOS segundo o Tribunal Administrativo de Círculo

Com interesse para a decisão a proferir, está provado o seguinte quadro factual:

1) O Autor [A], Afonso ……………., reside na Rua …………….., nº 5, 11º, Lisboa.

2) O Réu, Município de Oeiras, tem sede no Largo Marquês de Pombal, Oeiras.

3) A Ré, N………-Comunicação …….., Ld.ª [NCI-Ld.ª], tem sede na Rua ……………………, nº 37, Lisboa.

4) No dia 08/09/2000, o Município de Oeiras organizou um espetáculo intitulado «Os Descobrimentos», nos jardins do Palácio Marquês de Pombal, em Oeiras, cuja produção coube à Ré, N……, Lda.

5) Este espetáculo era de acesso gratuito ao público.

6) Este espetáculo foi apresentado e promovido pelo Município de Oeiras – cfr Agenda Cultural da CMO, de setembro/2000 – que o encomendou e adjudicou à Ré, N……-Ld.ª – doc 1, PI.

7) E que foi exibido no âmbito do plano de atividades culturais da edilidade.

8) Desse espetáculo, representando a chegada dos portugueses aos vários continentes através de 4 quadros da viajem de uma caravela, configurada pelos bailarinos, constava uma coreografia numa parte dedicada a África – doc fls 69-71 do Processo Inquérito criminal nº 208/00.9PFOER.

9) O espetáculo foi coreografado e coordenado pelo coreógrafo José …………..

10) A Ré, N……….-Ld.ª, foi intermediária, para a realização do espetáculo, entre o Município de Oeiras e o coreógrafo José ……….., que, por sua vez, contratara o grupo de bailarinos.

11) Durante a coreografia do espetáculo, um dos bailarinos africanos manuseava uma espécie de espada ou catana simulada, não metálica e sem lâmina cortante.

12) A funcionária técnica do Réu, Maria ………….., com vista à realização do espetáculo, visitou, com o coreógrafo, os jardins do Palácio Marquês de Pombal, para adaptar a disposição das cadeiras do público, que eram de plástico, no espaço dos referidos jardins.

13) O Autor assistiu ao referido espetáculo.

14) No dia 08/09/2000, durante a realização do espetáculo, o A sofreu uma lesão no olho esquerdo, melhor descrita nos exames periciais e relatórios médicos adiante referidos.

15) No dia 08/09/2000, pelas 23h16, o Autor deu entrada no serviço de Urgência do Hospital Egas Moniz, pelas 23h16, transportado por funcionária do MO e no próprio automóvel desta -doc 2 PI.

16) Em 08/09/2000, o A despendeu 4,99€ em consulta de urgência realizada no Hospital Egas Moniz -doc 5 PI.

17) No dia 09/09/2000, pelas 2h44, o Autor foi admitido no Serviço de Urgência do Hospital de S. Francisco Xavier, tendo tido alta pelas 13h36, tendo despendido 5.750$00 [26,68€] - doc 2 PI.

18) O Autor foi sendo assistido em momento ulterior por oftalmologistas do Hospital da Ordem Terceira -doc 4 PI.

19) Em 11/09/2000, o A despendeu 2,99€ em consulta externa realizada no Hospital Egas Moniz -doc 5 PI.

20) Em 02/10/2000, o A despendeu 2,99€ em consulta externa realizada no Hospital Egas Moniz -doc 5 PI.

21) Em 09/10/2000, o A despendeu 2,99€ em consulta externa realizada no Hospital Egas Moniz -doc 5 PI.

22) Em 07/03/2001, o A despendeu 2,99€ em consulta externa realizada no Hospital Egas Moniz -doc 5 PI.

23) No dia 08/09/2000, no referido serviço de urgência oftalmológica do Hospital Egas Moniz, durante o exame ocular o A sofreu uma “crise vagal”, com perda de sentidos.

24) No dia 09/09/2000, em consequência da crise vagal, o Autor foi enviado para a urgência oftalmológica do Hospital de São Francisco Xavier, onde deu entrada pelas 2h44m -doc 2 e fls 332/ss do Processo Crime 207/00.9; e doc 3.

25) No dia 09/09/2000, pelas 6H40m, o A manifestou quadro hipotensivo com sudurese, mas sem sinais de isquémia.

26) No dia 09/09/2000, pelas 13h40m, o A teve alta hospitalar -doc 2 e 3, PI; fls 332 do Processo Crime 207/00.9.

27) No dia 09/10/2000, o A efetuou tratamento com raios laser, para fixação da retina, na Secção de Retina do Hospital de Egas Moniz -DOCs. 2 e 3.

28) Em 17/04/2002, o A foi observado no Hospital de Egas Moniz, apresentando acuidades visuais e tensões oculares praticamente simétricas.

29) Ao exame no biomicroscópio os segmentos anteriores não apresentavam lacerações.

30) A fundoscopia revelou no fundo ocular do olho esquerdo um disco ótico de bordos nítidos e cor rosada, com retina aplicada -DOCs. 2 e 3.

31) O A foi acompanhado em consultas externas quer de Oftalmologia quer de Neurologia do Hospital de Egas Moniz.

32) O A foi acompanhado pela consulta de oftalmologista do Hospital da Ordem Terceira.

33) Simultaneamente com os tratamentos e acompanhamento pelo Hospital de Egas Moniz, o A foi sendo também acompanhado junto de oftalmologistas do Hospital da Ordem Terceira - DOCs. 4 e 5, PI.

34) No dia 13/09/2000, o A apresentou queixa-crime na PSP de Oeiras, contra «um indivíduo de etnia Africana, cuja identificação se desconhece, sabendo apenas indicar que fazia parte dum grupo de dança, do tema DESCOBRIMENTOS, de coreografia de José …………. NCI, que atuava num palco nos Jardins do Palácio Marquês de Pombal, nesta Vila de Oeiras, acusando também a organização de tal espetáculo, a cargo da Câmara Municipal de Oeiras », tendo essa queixa dado origem ao Processo Inquérito criminal nº 208/00.9PFOER, que correram termos, na sua fase final, junto do 3° Juízo de Competência Criminal de Oeiras -doc fls 237-246.

35) No referido Processo criminal nº 208/00.9PFOER, ocorreram, entre outros, os atos que ora se passam a destacar:

A) -No dia 15/09/2000, o A foi sujeito a exame direto do perito médico-legal, de cujo «auto de exame direto», ora se destaca que «(…) A– Lesões: (Tipo, extensão e localização): Refere ter sido vítima de agressão da qual terá resultado traumatismo craniano. Refere atingimento da região supraciliar esquerda e internamente, com atingimento também da região malar esquerda e do olho do mesmo lado, acompanhado de derrame (hematoma), lesões estas que neste momento não apresentam quaisquer sinais. Não refere nem se observam quaisquer outras lesões.

B– Instrumento Utilizado ou causa das lesões: contundente ou atuando como tal.

C– Tempo de Doença (com ou sem incapacidade para o trabalho): -----

D– Consequências Definitivas das Lesões (aleijão, deformidade, cortamento, privação, etc.): -----

E– Exame de Sanidade (quando necessário): ---

F– Observações: solicita-se ao Hospital São Francisco Xavier (08.09.00) e ao Hospital Egas Moniz – Serviço de Oftalmologia (08.09.00), a documentação clínica para que o Sr Perito Médico se possa pronunciar da gravidade e extensão das lesões sofridas.

O(a) Perito(a) Médico(a), (…) O(A) Funcionário(a), (…)» - fls 9, vol I.

36) No dia 12/12/2000, o A foi sujeito a exame de sanidade do perito médico-legal, de cujo «auto de exame de sanidade», ora se destaca que «(…) Que segundo documentação clínica junto aos autos a fls 21 e segs, sofreu traumatismo craniano e ocular com consequente edema do ângulo interno do olho esquerdo. Dado que o examinado fez tratamentos na consulta de oftalmologia Hospital Egas Moniz pede- se a respetiva documentação clínica para melhor esclarecimento da gravidade e extensão das lesões sofridas, para que o Sr Perito médico se possa pronunciar. O(a) Perito(a) Médico(a), (…) O(A) Funcionário(a), (…)» - fls 38, vol I.

37) No dia 20/03/2001, o A foi sujeito a exame de sanidade do perito médico-legal, de cujo «auto de exame de sanidade», ora se destaca que «(…) Que o examinado não se encontra curado das lesões descritas na informação clínica junto aos autos a fls 22 a 25. Mantém consultas de neurologia no Hospital de Egas Moniz; e consultas de oftalmologia no Hospital de Ordem Terceira pelo que se solicita a ambos os hospitais a informação clínica para a perita médica se poder pronunciar da gravidade e extensão das lesões. – O Perito Médico, O(A) Funcionário(a) (…).» - fls 46, vol I.

38) Em 30/04/2001, o médico Dr João Branco, Assistente Hospitalar de Oftalmologia, que assistiu o Autor, na Urgência de Oftalmologia do HEM, no dia 9/9/2000, elaborou o relatório do qual ora se destaca o seguinte:

«(…) o Exmº Sr Afonso …………………… de 61 anos de idade foi por mim assistido na Urgência de Oftalmologia no dia 9/9/2000 por traumatismo do olho esquerdo, durante um espetáculo de bailado africano em Oeiras.

Na observação efetuada no Serviço de Urgência verifiquei que se apresentava muito perturbado. Não tenho o registo das acuidades visuais registadas, mas foi detetado na biomicroscopia que apresentava uma pequena laceração da conjuntiva bulbar deste olho.

Na fundoscopia após dilatação verifiquei que apresentava um pequeno buraco na periferia da retina do olho esquerdo às 12 horas, pelo que foi referenciado para tratamento laser para a Secção de Retina do Hospital de Egas Moniz no dia 11/9/2000.

Durante a fundoscopia perdeu os sentidos, tendo tido paragem respiratória e pequena convulsão, pelo que foi referenciado para a Urgência do Hospital de S. Francisco Xavier onde ficou internado.

Compareceu na consulta no dia 11/9/2000, mas pediu para não ser efetuado o tratamento laser por se sentir ainda muito combalido, foi por isso marcada nova consulta para o dia 15/9/2000, na qual não compareceu. Compareceu no dia 20/9/2000 onde solicitou uma observação por Neurologista, foi por isso enviado à Consulta de Neurologia, tendo sido marcada nova observação em Consulta de Oftalmologia no dia 4/10/2000 à qual não compareceu. Compareceu nesta consulta no dia 9/10/2000 tendo nesse dia sido repetido a fundoscopia do olho esquerdo sob dilatação, e confirmado que apresentava uma pequena laceração na periferia retiniana às 12 horas, pelo que foi efetuada barragem com laser de árgon. Ficou marcada nova Consulta para reavaliação à qual não compareceu. Nunca mais foi avaliado pelo que não nos é possível avaliar a repercussão final do traumatismo em termos de acuidade visual e da consequente repercussão funcional. Lisboa, 30 de abril de 2001 (…).» - fls 85, vol I.

39) No dia 17/05/2002, o A foi sujeito a exame de sanidade do perito médico-legal, de cujo «auto de exame de sanidade», ora se destaca que

«(…) Segundo documentação clínica junta aos autos a fls 124 o examinado encontra-se curado das lesões neurológicas referidas no BC de fls 23 (traumatismo Craniano) quanto à leão ocular referida nesta mesma folha segundo documentação Clínica do Hospital a fls 131, o examinado não se encontra curado tendo tido a última consulta à 15 dias no Hospital Egas Moniz e há uma semana no Hospital da Ordem Terceira pelo que se solicita novo relatório Clínico da situação atual para a Perita Médica se poder pronunciar da gravidade e extensão das Lesões. O Perito Médico, O(A) Funcionário(a) (…).» - fls 147, vol I.

40) No dia 04/04/2003, --após solicitação de elementos do HEM, no auto de exame de sanidade de 04/10/2002, fls 163--, o A foi sujeito a exame de sanidade do perito médico- legal, de cujo «auto de exame de sanidade», ora se destaca que «(…) Dentro da normal evolução e terapêutica o examinado encontra-se curado sem aleijão nem deformidade das lesões descritas no auto de exame médico direto a fls 9 e auto de exame médico de sanidade a 147 e documentação clínica junta aos autos a fls 124, 131, 157, e 178. Estas lesões produziram 60 dias de doença sendo os quinze primeiros com incapacidade para o trabalho. (…) – O Perito Médico, O(A) Funcionário(a) (…).» - Fls 183, vol I.

41) No dia 05/08/2004, Instituto Nacional de Medicina Legal, Delegação de Lisboa, elaborou relatório pericial relativamente ao Autor, do qual consta, como ora se destaca que:

«I– PREÂMBULO

Para avaliação do Dano no âmbito do Direito Cível procedeu-se no dia 09 de julho de 2004 ao EXAME DIRECTO DE CLÍNICA MÉDICO-LEGAL solicitado peio ofº nº 2139795 de 06/5/2004 (Proc° n° 208/00) do M° P° – 2ª Sec do Tribunal da Comarca de Oeiras.

II– IDENTIFICAÇÃO

Na pessoa de AFONSO ……………….., (…)

III– INFORMAÇÃO

A – Documental:

Das cópias da documentação clínica recebida com o ofício supra da entidade requisitante extrai -se ter sido admitido no Serviço de Urgência Oftalmológica do Hospital de Egas Moniz pelas 23H16 de 08/9/00 na sequência de agressão da qual resultou traumatismo ocular e periocular à esquerda, com pequena laceração da conjuntiva bulbar e pequeno buraco na periferia da retina do olho esquerdo. Durante o exame de fundoscopia sobreveio uma provável crise vagai, com perda dos sentidos, paragem respiratória e pequena convulsão, tendo sido enviado ao Serviço de Urgência do Hospital de S. Francisco Xavier, onde foi admitido às 02H44 de 09/9. Pelas 06H40 manifestou quadro hipotensivo, com sudurese; a eletrocardiograma não revelou sinais de isquémia, e TAC-CE entretanto efetuada não apresentava alterações significativas, tendo alta hospitalar pelas 13H40 do mesmo dia.

Referenciado para tratamento laser na Secção de Retina do Hospital de Egas Moniz, este foi ali realizado em consulta a 09/10/00; observado a 17/A/02, apresentava acuidades visuais e tensões oculares praticamente simétricas, ao exame no biomicroscópio os segmentos anteriores não apresentavam alterações, e a fundoscopia revelou no fundo ocular do olho esquerdo um risco (?) ótico de bordos nítidos e cor rosada, com retina aplicada; o olho direito não revelava alterações.

B– Fornecida pelo examinado:

Sobre o motivo do exame

Informa ter 64 anos de idade, ser divorciado e encontrar-se aposentado desde 2000 da profissão de engenheiro eletrotécnico; leciona atualmente na área de Gestão no ensino universitário.

Refere ter sido vítima de agressão com uma catana no decurso de um espetáculo ao qual se encontrava a assistirem Oeiras, pelas 22 horas de 09/9/00.

Sofreu traumatismo periocular e ocular à esquerda; nega perda do conhecimento.

Transportado ao Hospital de S. Francisco Xavier, foi ainda nessa noite transferido para o Hospital Egas Moniz para observação por Oftalmologia, durante a qual refere ter feito um episódio de lipotimia e paragem respiratória, pelo que foi de novo conduzido ao Hospital de S. Francisco Xavier, onde permaneceu internado até à tarde do dia seguinte.

Foi posteriormente seguido em consultas externas de Oftalmologia e de Neurologia do Hospital de Egas Moniz, tendo sido também avaliado por um oftalmologista no Hospital da Ordem Terceira, tendo sido efetuado tratamento “laser” em outubro desse ano, após o que terá comparecido a mais algumas consultas de “controlo”.

Não recorreu, com objetivos terapêuticos, a outros médicos nem serviços de saúde na sequência do motivo do exame.

Antecedentes Pessoais

Nega antecedentes cirúrgicos ou traumáticos de relevo. Usa óculos desde cerca dos 56 anos, por presbiopia.

IV – EXAME DE ESTADO ACTUAL

A – Queixas:

Visualiza permanentemente uma “mancha” escura no centro do campo visual, com diminuição da luminosidade apercebida pelo olho esquerdo, determinando cansaço visual acrescido em atividades de escrita e leitura.

B – Exame Objetivo:

Usa óculos, embora sem relação com a ofensa; não apresenta sinais objetivos, avaliáveis no presente exame, relacionáveis com o motivo deste.

VI – NOTA

Para conclusão do presente e cabal resposta aos quesitos propostos, torna -se necessário, nos termos da lei, seja observado por peritos em Oftalmologia em estabelecimento oficial idóneo, os quais deverão:(…).

Instituto Nacional de Medicina Legal – Delegação de Lisboa, 05 de agosto de 2004. o Perito, Dr. Frederico Pedrosa» - fls 334, vol I.

42) Em 23/11/2004, o Mº Pº arquivou o Inquérito Criminal – Doc 1 PI, fls 102; e fls 342/s, do Proc° 280/00.9.

43) Em 23/12/2004, o A requereu a sua constituição como assistente no referido Inquérito Criminal 280/00.9, bem como a abertura de instrução - fls 360/s, do Proc° 280/00.9.

44) Em 14/01/2005, foi declarada aberta a instrução - fls 387/s, do Proc° 280/00.9.

45) No dia 29/04/2005, no âmbito do Processo nº 280/00.9PFOER foi realizado exame pericial em cujo relatório se refere -doc 6 PI, fls 65 dos autos [original a fls 534, do 280/00.9]:

«RELATÓRIO DO EXAME PERICIAL DA ESPECIALIDADE DE OFTALMOLOGIA EFECTUADO AO SENHOR AFONSO ………………….., EM 2005-04-12

Homem de 64 anos, engenheiro aposentado, que sofreu em 2000 -09-08 um traumatismo no olho esquerdo. Socorrido no hospital de S. Francisco Xavier, foi observado no hospital Egas Moniz de onde regressou ao hospital de S. Francisco Xavier e ficou internado um dia. Apresentava uma pequena laceração da conjuntivite bulbar, um pequeno buraco na periferia da retina às 12 horas, e hemorragia punctiforme às 6 h oras, deste olho Não foi operado. Seguido em consulta de Oftalmologia no hospital Egas Moniz, fez barragem com laser de árgon em 2000-10-9.

Em relação com o ocorrido o examinado queixa-se de mancha escura no campo visual esquerdo, diminuição da luminosidade percecionada pelo olho esquerdo, e cansaço visual acrescido.

Observação: tem uma acuidade visual corrigida de 10/10 em cada um dos olhos, movimentos oculares conservados, reflexos pupilares presentes, e pressões intraoculares normais de 15mm Hg ODE.

O exame do fundo ocular por oftalmoscopia indireta mostra solução de continuidade periférica na retina, circunscrita por barragem laser em OE.

Exames complementares: O exame de perimetria estática computorizada por nós efetuado revela quadrantópsia temporal superior OE, sendo OD normal.

O exame de Farnsworth D-15 revela uma visão cromática normal.

Os estudos eletrofisiológicos mostram um ERG fotópico reduzido OE. Um ERG multifocal reduzido OE. PEV diminuídos ODE, mais OE.

Discussão: os traumatismos oculares fechados produzem lesões no polo posterior do globo ocular atingindo o corpo vítreo, a retina, a coroideia, a esclerótica e o nervo ótico. Neste caso está documentada uma lesão da retina periférica com hemorragia, para tratamento da qual foi feito laserterapia.

Queixa-se, no entanto, o examinado de alterações visuais que não decorrem da referida lesão. Estas queixas são objetivas pois estão claramente demonstradas no exame dos campos visuais. Esta consequência de quadrantópsia temporal superior OE está associada em traumatismos como o referido, a lesão do nervo ótico, tanto mais que existe outro sintoma sugestivo que é a perda de luminosidade percecionada.

É possível, e não raro, que a lesão do nervo ótico tenha permanecido oculta por ser laminar ou mesmo retrolaminar, uma vez que existe referência a disco ótico de bordos nítidos, cor rosada.

Conclusões:

1-O examinado apresenta como consequência permanente do traumatismo ocular sofrido, uma quadrantópsia temporal superior OE, associada a diminuição da luminosidade percecionada por este olho.

2-A esta consequência permanente pode atribuir-se um coeficiente de desvalorização de 0,07-7% por ser superior, por conseguinte de menor impacto sobre a visão, e apenas de um olho. Este valor concorda com o artigo 3.5 a) do capítulo V da TNI.

3-0 examinado apresenta solução de continuidade na retina periférica, circunscrita por barragem laser, sem desvalorização. Resposta aos quesitos de fls 206 e 207: [intercalam-se agora os respetivos quesitos]

[1) qual o quantum doloris que se deve fixar às seguintes lesões (?): laceração conjuntiva bulbar no olho, perfuração de retina, traumatismo craniano, ocular e periocular, sendo que se requer possam os Senhores Peritos consultar todas as informações clínicas e demais elementos constantes dos autos que lhes permitam fixar o cit quantum doloris].

1-A avaliar num contexto global, podendo fixar -se num grau 2 em 5.

[2) O examinando apresenta mancha na visão (“rasgadura”), resultante da lesão sofrida?]

2-O examinado apresenta quadrantópsia temporal superior OE.

[3) esta mancha resulta permanente, para o resto da vida do lesado?]

3-Sim.

[4) tem tendência a manter-se estável ou a aumentar em tamanho com o passar dos anos?]

4-Tem tendência a manter-se estável.

[5) em caso de agravamento, tendo em conta a esperança média de vida do examinando, qual a previsão da limitação visual até ao limite dessa esperança de vida?]

5-Prejudicado pela resposta anterior.

[6) qual o grau de desvalorização da visão do lesado em consequência da referida mancha?]

6-Podemos arbitrar 0,07-7%.

[7) Como consequência das lesões e tratamentos sofridos, o examinando carece de dificuldade em utilizar o olho esquerdo em todas as suas atividades, nomeadamente leitura, escrita e visão em geral?]

7-O examinado pode apresentar cansaço visual acrescido.

[8) em caso de resposta afirmativa ao quesito 6, o examinando necessita de repousar a vista e fechar os olhos durante cerca de dez minutos, e aproximadamente de trinta em trinta?]

8-Não.

[9) A presença da citada mancha reduz a acuidade visual do examinando?]

9-Não, conforme objetivamente demonstrado.

[10) ou provoca oclusão do campo visual, sendo tal circunstância clinicamente qualificável como não afetando a referida acuidade visual, mas provocando de todo o modo dificuldades na perceção visual do examinando?]

10-Sim, conforme objetivamente demonstrado.

Lisboa, 29 de abril de 2005. O Assistente Hospitalar Graduado no Serviço de Oftalmologia do HSM. (Dr Vítor ………….)» -doc 6 PI.

46) No dia 12/07/2005, no âmbito do Processo nº 280/00.9PFOER foi realizado e junto o seguinte relatório médico de Oftalmologista -doc 7 PI, fls 67 dos autos [original a fls 601, do 280/00.9PFOER]:

«(…) Clínica da Graça (…) Torres Vedras (…) Relatório Médico

A pedido do próprio passo informação clínica referente ao Sr Eng Afonso………………….., relacionada com o traumatismo facial e ocular esquerdo que sofreu em 08/09/2000, durante um espetáculo a que assistia:

Apresenta olhos brancos e calmos, c/ movimentos intrínsecos e extrínsecos sem alterações. VOD cc=1.0 e VOEcc=1.0

Ao biomicroscópio não se observam alterações patológicas.

Tensões oculares normais

A fundoscopia efetuada com lente de Goldmann, em cicloplegia, no OE, mostra solução de continuidade da retina periférica, protegida por barragem laser.

Em relação a exames complementares de diagnóstico (perimetria estática computorizada, teste de Farnsworth D 15 e estudos eletrofisiológicos), tenho a informar que subscrevo inteiramente a discussão e as conclusões apresentadas pelo Exmo. Colega Dr Victor Silva, no seu relatório de 12/04/2005.

No entanto, em resposta aos quesitos das folhas 206 e 207, sem discordar no geral das conclusões do meu Colega, considero que em relação ao nº 7, em que é referido "o examinado pode apresentar cansaço visual acrescido", se deverá ter em atenção o seguinte:

Este cansaço deriva da diminuição da perceção da luminosidade experimentada pelo olho esquerdo, que é muito intensa, como demonstram os estudos eletrofisiológicos efetuados.

Numa pessoa que lê muito, que usa muito o computador, que conduz bastante, este "cansaço" pode ter efeitos devastadores sobre o seu bem-estar físico e psíquico, como é o caso do queixoso, que embora aposentado continua a lecionar numa Faculdade de Engenharia.

Nestas circunstâncias o arbítrio de uma incapacidade de 7% é manifestamente insuficiente.

Não proponho em concreto um valor a esta incapacidade porque, infelizmente, esta situação, como muitas outras, não está prevista na Tabela Nacional de Incapacidades. (…).

(…) José ………………………., Oftalmologista».

47) Em 10/11/2005, foi recusada a instrução e dado sem efeito o debate instrutório agendado - fls 624/s, do Proc° 280/00.9.

48) Em 17/11/2005, foi apresentada reclamação da decisão, vindo a ser mantida a decisão de recusa da Instrução, em 19/06/2006, por despacho transitado em julgado em 03/09/2006 - fls 648/s, 667, do Proc° 280/00.9.

49) A Drª Maria …………………, funcionária e técnica do Réu, licenciada em dança, visitou, com o coreógrafo José ……………., os jardins do Palácio Marquês de Pombal, a fim de levar a cabo o espetáculo, e dispor as cadeiras, para o seu visionamento.

50) Em setembro de 2000, a Drª Isabel ……… era a responsável pela divisão de cultura da CMO.

51) A Drª Isabel Garcia, tal como a Drª Maria …………., teve conhecimento do teor do espetáculo através do descritivo do mesmo, que consta dos autos 208/00.9,

52) Em setembro de 2000, o Dr José ……………… era o diretor do departamento da cultura da CMO.

53) Em 19/10/2009, o Hospital Egas Moniz juntou os documentos clínicos de fls 441 a fls 444, consubstanciados na cópia da ficha de consulta externa da especialidade de Neurologia e relatórios médicos das especialidades de Oftalmologia, manuscrito, de 30/09/2009 do Dr António …………, e, de Medicina Física e Reabilitação, de 06/10/2009, da Drª Liliete …….., referentes ao Autor.

54) Em 12/02/2010, o Hospital Egas Moniz juntou o documento clínico de fls 472, de 09/02/2010, consubstanciado na cópia dactilografada da ficha de consulta externa da especialidade de Neurologia, pelo Dr Luís Guerra, referente ao Autor.

55) Em 10/11/2014, o Hospital Egas Moniz juntou o relatório de fls 561, de 24/10/2014 do Serviço de Oftalmologia, que resume o processo clínico do Autor, seguido na consulta de Oftalmologia do Hospital de Egas Moniz entre 11/09/2000 e 19/12/2012.

56) No dia 21/11/2014, em esclarecimento e complemento do exame pericial de fls 534 e 535, de 29/04/2005, acima referido, do Processo crime nº 280/00.9PFOER, o Perito Dr Victor …………….., do Serviço de Oftalmologia do Centro Hospitalar Lisboa Norte, esclareceu e respondeu como se segue [intercalam-se agora os respetivos quesitos]:

«(A) Esclarecimentos, tendo em conta o que foi referido no mesmo relatório:

[1) Quais as alterações visuais de que se queixa/ou o A e que não decorriam da lesão detetada?]

(A)1-O autor queixou-se de mancha escura no campo visual esquerdo, diminuição da luminosidade percecionada pelo olho esquerdo, e cansaço visual acrescido. Estas queixas não decorrem da lesão observada na retina do olho esquerdo, mas sim de lesão detetada nos exames complementares de Eletrofisiologia e PEC.

[2) qual a causa dessas mesmas alterações não relacionadas com a lesão?]

Em conformidade ao resultado dos exames realizados é de presumir que tenha ocorrido uma lesão traumática do nervo ótico esquerdo.

[3) Considerando que os exames contemporâneos à lesão indicam que um “disco ótico de bordos nítidos, cor rosada”, a quadrantópsia temporal superior OE do A, pode ser provocada por outro facto ou lesão que não a sofrida no dia 8.09.2000? em momento anterior ou posterior? Em caso afirmativo, que tipo de facto ou lesão poderá ter causado a quadrantópsia?]

3-É aceitável que a lesão sofrida tenha acontecido atrás do segmento observável do disco ótico. Não é impossível que tenha ocorrido por facto distinto do acidente em questão, indeterminável em exame pericial. Processos neuropáticos que podem ocasionar quadrantópsia: traumatismos, inflamações, infeções, degenerescências, e ocorrências vasculares, nomeadamente.

[4. Quais as lesões e tratamentos que podem provocar cansaço visual acrescido ao A?]

4-O cansaço acrescido seria provocado pelo aumento do limiar de sensibilidade da retina. Explicando de outro modo: se o nosso recetor de telefonia for menos sensível, a qualidade do som que recebemos é pior, menos agradável, e mais difícil de entender.»

«(B)em complemento do referido exame pericial de fls 534 e 535:

[1. Considerando a data da verificação da lesão e da consequente urgência oftalmológica – 08.09.2000 – e atendendo ao facto de em 09.10.2000 o A ter efetuado tratamento de barragem com laser de árgon, o decurso do período de um mês sem tratamento agravou a condição clínica do A?]

(B)1-Os elementos de que dispomos não permitem presumir que, neste caso, tenha existido agravamento.

[2. Essa espera de um mês será responsável pela verificação de consequências a longo prazo mais agravadas?]

2-Segundo os elementos recolhidos, as consequências permanentes não decorrem da lesão referida na retina, pelo que a resposta é negativa.

[3. Nomeadamente a detetada quadrantópsia?]

Não. A lesão da retina não corresponde à perda de campo visual. Sendo a lesão superior, a perda de campo teria que ser inferior, se fosse sua consequência, o que não é o caso, pois o defeito de campo é superior.

[4.O A tinha problemas de saúde anteriores ao episódio de urgência de 08.09.2000, ao nível cardiovascular, diabético, tensão arterial ou outro, que fossem causa adequada à eventual crise vagal detetada nas urgências do Hospital S. Francisco Xavier?]

Não há elementos que permitam responder a esta questão.» - doc fls 569 e 570.

57) Em 15/12/2014, o Autor juntou os documentos médico oftalmológicos, do Serviço de Oftalmologia do H Egas Moniz, de fls 579vº a 581 [ex vi fls 593]

58) O A ficou e ainda hoje se encontra perturbado com o facto de ter sofrido a lesão no olho.

59) O A ficou desgostoso com o facto de sofrer permanentemente de mancha no campo visual (quadrantópsia), desgosto que ainda hoje perdura.

60) O Autor sofreu dores decorrentes da lesão, e nomeadamente em alguns tratamentos.

61) O Autor sofreu angústias associadas ao facto de ter sofrido a lesão na vista, com inerente sofrimento psicológico.

62) Em 07/07/2006, a presente ação deu entrada em Juízo - fls 2 e 3.

Mais se provou, do decurso da audiência de julgamento, com interesse para a descoberta da verdade e para boa decisão da causa que:

63) --O referido espetáculo ocorreu ao ar livre, num espaço muito amplo dos referidos jardins do Palácio Marquês de Pombal, um espaço utilizado em vários outros espetáculos.

64) --O referido espetáculo teve início cerca das 21:30H, prolongando-se até cerca das 23H.

65) --O Autor assistiu ao referido espetáculo, acompanhado de uma senhora, a Drª Manuela Ribeiro, já falecida [não indicada na queixa Criminal acima referida e não ouvida].

66) --Os Bombeiros de Oeiras situam-se naquela zona da vila, muito próxima dos jardins e do Palácio em questão, e estavam alertados de prevenção para alguma eventualidade.

67) --O espetáculo encontrava-se policiado por três polícias, colocados em locais distintos, do referido jardim.

68) --A Ré NCI-Ld.ª já foi extinta –vd despacho em ata.

69) --Foi a Drª Maria ……………….., licenciada em dança, técnica superior do Réu, quem programou o espetáculo, o qual lhe foi proposto pela N………..-Ld.ª.

70) --A Drª Maria ………………… organizou toda a área do espetáculo, dispôs as cadeiras para o público, frente à Cascata do Jardim, tendo o próprio jardim um corredor em “gravinha” para nele se caminhar.

71) --A Drª Isabel ………………… transportou o Autor e a suprarreferida senhora, no automóvel pessoal, até ao Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa.

72) --A Ré N……….-Ld.ª tinha o Registo nº 019499, na Direção Geral de Espetáculos – doc fls 247, 248, e 250, do citado Processo de Inquérito nº 208/00.9PFOER.

73) --A Inspeção-Geral das Atividades Culturais confirmou que a referida firma NCI-Ld.ª promoveu um espetáculo nos Jardins do Palácio do Marquês de Pombal em Oeiras, no dia 08/09/2000, e que a mesma Inspeção-Geral tinha como sua delegada no Município de Oeiras: Paula ………………………, Chefe de Divisão Administrativa da CMO, que tinha assumido as funções de delegada da IGAC em 15/02/2000 – doc fls 250, 251 e 252, do citado Processo de Inquérito nº 208/00.9PFOER.

74) -Dou por integralmente reproduzidos todos os documentos acima mencionados.

*

Continuemos.

II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO: O DIREITO

Tudo visto, cumpre decidir.

Com efeito, aqui chegados, há condições para se compreender esta apelação e para, num dos momentos da verdade do Estado de Direito (o do controlo jurisdicional do agir da administração pública - isto sobretudo nas vertentes do controlo efetivo do ato administrativo, ainda que sob a forma legal - cfr. o artigo 268º/4 da Constituição da República Portuguesa e, inter alia, o Acórdão do STA de 10-12-1996, Processo nº 032590 -, do controlo do regulamento administrativo - cfr., inter alia, o Acórdão do STA de 1-10-2014, Processo nº 01548/13 - e do controlo do contrato público; diferente daquele conceito material de norma legal e de ato administrativo, é o conceito funcional e pragmático de lei, exclusivamente para efeitos do exercício da função fiscalizadora do Tribunal Constitucional - Acórdãos nº 26/85, nº 80/86, nº 1/97, nº 24/98, nº 214/2011 e nº 441/2012, bem como os nº 34/86, nº 405/87 e nº 63/91), ter presentes, inter alia, os seguintes princípios jurídicos fundamentais decorrentes do superprincípio geral da justiça:

(i) juridicidade e legalidade administrativas, ao serviço do bem comum;

(ii) igualdade de tratamento material axiológico de todas as pessoas humanas;

(iii) certeza e segurança jurídicas (que obrigam à obediência rigorosa ao imposto ao juiz pelos artigos 9º e 10º do Código Civil e pelos artigos 111º e 112º da Constituição da República Portuguesa); e

(iv) tutela jurisdicional efetiva.

Em consequência, este tribunal superior utiliza um método jurídico adequado à garantia efetiva, previsível e transparente dos direitos dos “administrados”, através de um processo decisório teleologicamente orientado apenas (i) à concretização dos valores da Constituição e (ii) ao controlo racional (isto é, com vontade de agir e compreender de acordo com a representação partilhada de certas normas ou máximas, no âmbito de uma mesma comunidade de juristas unidos pelas mesmas leis ou normas - adotando aqui linguagem kantiana) de coerência dos nexos da sistematicidade jurídica que precedam a resolução do caso.

Questão a resolver: erros de julgamento da factualidade controvertida

A)

A responsabilidade civil extracontratual do Estado e de outros entes públicos por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos ou agentes assenta nos pressupostos da idêntica responsabilidade prevista no C.C., que são

1º- Existência de dano no património jurídico de uma pessoa, a lesada (=prejuízo que o lesado sofre nos seus interesses materiais ou morais, que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar);

2º- Existência de uma ação ou omissão humana, de pessoa diferente da lesada;

3º- Ilicitude (objetiva) dessa ação ou omissão humana (2);

4º- Nexo de causalidade adequada entre a ação ou omissão ilícita e o dano (3)

E

5º- Imputação da ação ou omissão ilícita ao lesante a título de dolo (vontade no sentido do facto) ou de negligência (violação de deveres de cuidado contra o facto), sem exclusão do juízo de censura indiciado (=ilicitude subjetiva e culpa).

O Tribunal Administrativo de Círculo considerou não haver aqui ilicitude (imputação objetiva: violação da juridicidade, isto é, de um direito subjetivo ou de uma outra norma destinada a proteger bens e interesses das pessoas em geral), nem culpa (imputação subjetiva: censura ético-jurídica quanto ao dolo ou à negligência que conduziu ao facto danoso, que o autor considerou ser um crime de ofensa à integridade física), como pressupostos necessários da responsabilidade civil extracontratual dos ora RR (cfr. artigos 483º/1 e 563º do Código Civil e artigos 2º/1 e 6º do Decreto-Lei nº 48051 de 1967), RR que não são a pessoa a quem o autor apontou, na petição inicial, a autoria material do alegado facto danoso.

Na verdade, o Tribunal Administrativo de Círculo quis dizer que nem se provou qual o facto que provocou os danos apurados.

E o Mmº juiz a quo sublinhou ainda que, mesmo que se provasse a tese do autor (de que o facto danoso foi praticado por um bailarino, na parte final do cit. espetáculo organizado pelo município réu e executado pela empresa ré), nunca seria de imputar tal facto e suas consequências às ilicitude e culpa dos RR, porque estes não teriam nenhum dever geral de cuidado ou de vigilância quanto à conduta dos bailarinos.

Disse ainda (talvez identificando, incorretamente, responsabilidade criminal com responsabilidade civil) que

«a responsabilidade pelo ilícito é sempre do agente criminal, nunca se transmitindo a terceiro, por força do princípio da culpa pessoal e concreta e do princípio da intransmissibilidade da respetiva sanção; o Autor não aponta qualquer facto criminoso concreto à CMO, ou seja à organização do espetáculo, mas sim ao alegado bailarino; não há um dever objetivo, ou seja, legalmente estabelecido, de vigilância [zelo e cuidado] por qualquer pessoa terceira relativamente a um bailarino, um artista, um profissional; não se trata de qualquer atividade ou espetáculo de risco, seja para os bailarinos seja para o público, pois e trata de um bailado coreografado, num jardim amplo e relvado de um palácio setecentista [é do domínio público], na vila de Oeiras; não se provaram factos ilícitos concretos, nem se alegaram, cometidos por quaisquer dos RR, seja por ação, seja por omissão, consubstanciadores da responsabilidade civil dos mesmos; mas uma coisa é segura, e nem o próprio A discute: é que não foi nenhuma das pessoas pertencentes aos RR que, por qualquer movimento de dança ou outro delas mesmas, provocou tais lesões no olho do Autor; o dever de cuidado, zelo e de diligência existiria, por banda do R, relativamente às condições se segurança e de manutenção da ordem pública, no local, mas não é isso o que está em causa».

B)

O recorrente considera que, por erro de julgamento dos factos controvertidos, faltou o Tribunal Administrativo de Círculo dar como provado o seguinte:

1- Qual o sítio de assistência onde, concretamente, o Autor se encontrava a assistir ao espetáculo em causa; nem se o Autor esteve [sempre] sentado ou não, bem como a […] senhora que acompanhava, nem em que disposição de cadeiras;

2- Quem provocou a lesão sofrida na vista pelo Autor;

3- Que objeto concreto provocou a lesão sofrida na vista pelo Autor;

4- Que a lesão sofrida na vista pelo Autor tenha sido causada por um bailarino africano;

5- Que qualquer dos RR. tenha atuado com violação de um dever de vigilância;

6- Que qualquer dos RR, na organização, produção ou realização do espetáculo em causa, tenha atuado com violação de um dever objetivo de zelo, cuidado e diligência.

Quanto ao ponto 1, a verdade é que é factualidade concreta que não consta dos articulados, nem é complementar ou concretizadora de facto essencial provado. Pelo que não releva, não havendo assim erro de julgamento de facto.

Quanto aos pontos 5 e 6, não se trata de matéria de facto, pelo que não releva em sede de julgamento da matéria de facto controvertida.

C)

Já quanto aos pontos 2 a 4, têm a ver com o seguinte:

- Com exceção das declarações de parte do autor (novo meio de prova autónomo instituído no Código de Processo Civil/2013: artigo 466º (4)), nenhum outro meio de prova permite dar como provados tais factos.

Tais pontos de facto são os essenciais para fundar o direito indemnizatório invocado pelo autor.

Vejamos, pois, este novo meio de prova, que o tribunal aprecia livremente (artigo 466º/3 do Código de Processo Civil), isto é, apreciando livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.

As partes (ou o tribunal, na nossa opinião – cfr. artigos 411º, 466º/2 e 452º/1 do Código de Processo Civil) podem requerer, até ao início das alegações orais em 1ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto.

Com efeito, a decisão de facto só será justa se o juiz proceder, de modo racionalmente controlável, a uma reconstrução dos factos com observância do critério da plenitude do material probatório.

Por isso, o objeto das declarações de parte alarga-se até onde se possa divisar, com utilidade ou eficácia no processo, uma presunção judicial no sentido de que determinado facto caiu no âmbito da perceção pessoal da parte.

Alguma jurisprudência nacional tem entendido (por ex., Ac. do TRG de 29/5/2014, proc. n.º 2797/12.6TBBCL-A.G1; Ac. do TRP, de 15/9/2014, proc. n.º 216/11.4TUBRG.P1), certamente sob influência da experiência comum e da experiencia judiciária - moldadas pela condição humana de quem é parte num processo marcado pela igualdade de armas - que o juiz não pode ficar convencido apenas com um depoimento desse mesmo depoente, interessado na procedência da ação, deponha ele como “testemunha” ou preste declarações como parte, se não houver um mínimo de corroboração de outras provas. As declarações testemunhais da parte, como meio probatório, não podem olvidar que são declarações interessadas, parciais e não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na ação. Seria insensato que, sem mais, nomeadamente, sem o auxílio de outros meios probatórios, sejam eles documentais ou testemunhais, o Tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados (artigo 5º/1 do Código de Processo Civil) e por ela, tão só, admitidos.

É que o interesse da “parte-testemunha” na sorte do litígio é uma realidade substancialmente distinta da realidade de uma testemunha interessada. As declarações da parte são, por definição, favoráveis à parte que as presta, além de que a experiência sugere que a fiabilidade das declarações em benefício próprio é reduzida: “ninguém é bom juiz em causa própria”.

A sua valia enquanto meio de prova a associar a outros meios de prova, muito sublinhada por alguns juristas, é, afinal, pouca, pois que essa suposta mais valia é, no final das contas, a confirmação da natureza acessória ou fraca das declarações de parte.

Prova dessa acessoriedade é, aliás, o momento tardio até ao qual este meio de prova pode ser requerido.

A credibilidade das declarações da parte que redigiu ou ajudou a redigir o articulado (onde estão, pelo menos, os “seus” factos essenciais) tem de ser aferida em concreto e não em observância de máximas abstratas pré-constituídas. Mas também assim se deve atuar ao aplicarmos o artigo 9º do Código Civil ao artigo 466º do Código de Processo Civil.

Por exemplo: pode alguém, com razoabilidade e racionalidade, dar por provado um facto com base numa excelente e muito credível declaração de parte contra um depoimento testemunhal bom e muito credível?

É claro que não.

Dir-se-á que estamos a confundir momentos processuais distintos, o antes e o depois da produção deste meio de prova de factos.

Não. Passa-se outra coisa, algo que pode ser confundido com isso, mas que é distinto e que a lei e o legislador (artigo 9º do Código Civil) não podem ignorar:

- Estão, afinal, em causa o direito subjetivo da parte e os factos essenciais narrados no seu articulado pelo agora declarante ou “testemunha-parte”.

Por isso, o sistema jurídico (do qual faz parte o modo como os juizes devem valorar os meios de prova), sistema não alheio à condição humana e à realidade comum, assume que as declarações “testemunhais” de uma parte interessada são, em princípio, por imperativos de bom senso e racionalidade, um meio de prova que é, por natureza, mais frágil do que os outros para efeitos de demonstração dos factos que permitam fundar o direito invocado na ação.

Contra este entendimento nada contrapõe a vagueza da exposição de motivos do Projeto do “novo Código de Processo Civil” de 2013.

Também contra o nosso entendimento não depõe a (não) contribuição deste meio de prova:

- para a celeridade processual (o requerimento deste meio de prova não tem de ser acompanhado pela indicação discriminada dos factos que se visam demonstrar; vd., no entanto o Acórdão do TRG de 12-11-2015, Processo nº 7178/11.6TBBRG-A.G1) e

- para levarmos a sério, tanto a proibição de atos processuais inúteis, como o princípio da igualdade de armas no interesse da parte (licitamente) ausente da audiência final onde a outra parte resolveu requerer o seu próprio “testemunho pessoal”.

Note-se, ainda, que o tribunal pode sempre considerar necessária a prestação pela parte do “depoimento de parte”, de informações ou de esclarecimentos sobre factos que interessam à decisão, tendo presente o princípio do inquisitório (artigo 411º do Código de Processo Civil) e o dever de cooperação das partes com o tribunal (artigos 7º e 417º do Código de Processo Civil).

E perguntamos: em que diferem (i) os esclarecimentos onde a parte tenta demonstrar a realidade de factos que a favorecem e (ii) as declarações de parte do artigo 466.º?

Como podem ser valorados diferentemente?

Enfim, é o “concreto” próprio da condição humana, experimentada por todos (como realidade humana notória e não como preconceito contra as partes em ações) que impõe que, à partida (em abstrato, diriam alguns), se tome este novo meio de prova como um meio de prova por natureza frágil ou de peso muito leve quanto aos factos essenciais de uma ação.

Mas, por motivos lógicos e para respeitar a consagração legal deste meio de prova como uma entidade autónoma, já não será assim:

(i) quanto a factualidade essencial que, segundo os articulados, apenas teve lugar entre as partes, sem a presença de terceiros intervenientes;

(ii) quanto aos factos complementares de factos essenciais (isto por causa do estranho momento em que o Código de Processo Civil admite o seu requerimento); e

(iii) quanto aos factos concretizadores de factos essenciais (isto por causa do estranho momento em que o Código de Processo Civil admite o seu requerimento).

Só no primeiro caso (factualidade essencial que apenas teve lugar entre as partes, sem a presença de terceiros intervenientes) é que vale invocar o direito à prova (artigo 20º/1 da Constituição da República Portuguesa); nos outros dois casos, não, porque as partes não estão impedidas de indicar meios de prova “normais”, sem a fragilidade intrínseca ou “natural” deste meio de prova.

Passemos agora ao caso em apreço.

D)

De acordo com a petição inicial e o demais apurado, só o autor lesado testemunhou o facto danoso (elemento essencial da causa de pedir). Mais ninguém.

Ou seja: o autor da petição inicial disse oralmente, perante o juiz, aquilo que alegara na sua petição inicial, nomeadamente quem praticou o facto danoso e com o quê foi praticado o facto danoso; mais nenhum meio probatório o confirmou (ou negou).

Para o recorrente, o facto processual de nenhum outro meio de prova contrariar a versão do autor/declarante, quanto àqueles elementos essenciais da causa de pedir, significa que tais factos (essenciais) devem ser dados como provados.

Mas não tem razão. Seria absurdo ou insensato e apartado da realidade normal da vida, da prudente convicção do juiz acerca de cada facto.

É que, tendo o alegado facto danoso ocorrido em lugar público onde estavam muitas pessoas, nunca bastará, para a prova desse facto danoso, o testemunho do autor da ação de responsabilidade civil extracontratual. Tal testemunho do lesado é apenas a repetição daquilo que ele inscreveu no seu articulado. O testemunho do autor da ação, neste tipo de caso e como acima explicado, só poderá ser valorado ou considerado positivamente pelo juiz se for acompanhado por outros meios de prova que eliminem a fragilidade natural ou intrínseca das “declarações de parte” como único testemunho.

Quer dizer, só o autor lesado afirmou aquele elemento essencial da causa de pedir, o qual se teria verificado, segundo o autor, ante outras pessoas, que, no entanto, não o apreenderam através dos seus sentidos.

Por isso, o Tribunal Administrativo de Círculo ajuizou bem, não dando como provada tal factualidade essencial: o facto danoso.

E, em consequência, o Tribunal Administrativo de Círculo nem teria de se pronunciar sobre a ilicitude e a culpa, ao contrário do que fez.

Pelo que se conclui que a sentença recorrida não violou nenhuma das normas legais invocadas no recurso, tendo antes aplicado corretamente, no seu julgamento de facto, os artigos 466º e 607º/5/1ª parte do Código de Processo Civil («O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto»).

E)

E assim fica prejudicada a necessidade de conhecimento dos pressupostos da ilicitude e da culpa, as demais questões deste recurso.

*

III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os juizes deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso, embora com fundamentação diferente da fundamentação da sentença recorrida.

Custas a cargo do autor.

Lisboa, 15-12-2016


(Paulo Pereira Gouveia - relator)

(Nuno Coutinho)

(Carlos Araújo)

(1)Na sentença não se provou, mal, o seguinte, segundo o recorrente:
- Qual o sítio de assistência onde, concretamente, o Autor se encontrava a assistir ao espetáculo em causa; nem se o Autor esteve [sempre] sentado ou não, bem como a […] senhora que acompanhava, nem em que disposição de cadeiras.
- Quem provocou a lesão sofrida na vista pelo Autor.
- Que objeto concreto provocou a lesão sofrida na vista pelo Autor.
- Que a lesão sofrida na vista pelo Autor tenha sido causada por um bailarino africano.
- Que qualquer dos RR. tenha atuado com violação de um dever de vigilância.
- Que qualquer dos RR, na organização, produção ou realização do espetáculo em causa, tenha atuado com violação de um dever objetivo de zelo, cuidado e diligência.
(2)Implica uma conduta com violação de um direito alheio específico ou de uma norma protetora, exclusivamente ou conjuntamente com o interesse comum, de interesse alheio; neste segundo caso, é necessário que o comportamento preciso omitido seja o imposto pela norma em causa, cujo fim seja dirigido à tutela de interesses do lesado e que a lesão ocorra no âmbito do círculo de interesses tutelados pela norma (A. VARELA, Das Obrig., I, 10ª ed., p. 539 ss; ALM. COSTA, D. das Ob., 12ª ed., p. 563).
A ilicitude da ação ou omissão administrativa reside, desde logo, naquilo que for suscetível de configurar, por critérios de razoabilidade e tendo em vista os ditames da ética, o perigo do aproveitamento ou do favorecimento da verificação do dano (cfr. Ac. do STA-Pleno de 1/10/2003 in Proc° nº 48035).
(3)Ligação positiva entre a lesão e o dano, através da previsibilidade deste em face daquele, a ponto de poder afirmar-se que o lesado não teria sofrido tal dano se não fosse a ação ou omissão; i.e., a condição deixará de ser causa do dano, sempre que, segundo a sua natureza geral, era de todo indiferente para a produção do dano e só se tornou condição dele, em virtude de outras circunstâncias extraordinárias, sendo, portanto, inadequada para este dano.
Para haver dano indemnizável, é necessário que o recorrente demonstre que o ato ilegal o atingia num direito ou posição juridicamente tutelada de natureza substantiva, ou seja, demonstre que, se porventura a Administração tivesse optado pela "conduta alternativa legal", o seu interesse final ou substantivo invocado na petição teria sido satisfeito. É necessário que a Administração tenha violado uma norma que proteja o direito ou interesse que o particular pretende ver satisfeito. Interessa, pois, o conteúdo das normas violadas.
A violação de normas ou de princípios procedimentais não dá origem a responsabilidade civil se os preceitos procedimentais violados não tiverem qualquer referência à posição jurídica material do interessado, isto é, se o bem jurídico lesado, em que se traduz o dano, não estiver compreendido no âmbito de proteção das normas violadas.
(4)Artigo 466.º Declarações de parte
1 — As partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1.ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto.
2 — Às declarações das partes aplica -se o disposto no artigo 417.º e ainda, com as necessárias adaptações, o estabelecido na secção anterior.
3 — O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.