Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:8129/14.1 BCLSB
Secção:CT
Data do Acordão:11/25/2021
Relator:VITAL LOPES
Descritores:DECISÃO ARBITRAL; IMPUGNAÇÃO; OPOSIÇÃO DOS FUNDAMENTOS COM A DECISÃO; OMISSÃO DE PRONÚNCIA.
Sumário:1. Os únicos fundamentos legalmente admissíveis como suporte de reacção da decisão dos Tribunais arbitrais para os T. C. Administrativos, consistem na impugnação de tal decisão, consagrada no artº.27, com os fundamentos que se ancorem nos vícios de forma expressamente tipificados no artº.28, nº.1, alíneas a) a d), do RJAT correspondendo os três primeiros aos vícios das sentenças dos Tribunais tributários, nos termos do plasmado no artº.125, nº.1, do C.P.P.T., com correspondência ao estatuído nas alíneas b), c) e d), do artº.615, nº.1, do C. P. Civil.
2. Como é jurisprudência assente, a oposição entre os fundamentos e a decisão é um vício que radica na desarmonia lógica entre a motivação fáctico-jurídica e a decisão resultante de os fundamentos inculcarem um determinado sentido decisório e ser proferido outro de sentido oposto ou, pelo menos, diverso.
3. A nulidade de oposição entre os fundamentos e a decisão não se confunde com o chamado erro de julgamento (error in judicando), a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, ou com a inidoneidade dos fundamentos para conduzir à decisão.
4. Se o que resulta da alegação do impugnante é que discorda da leitura que o Tribunal Arbitral fez dos factos e do sentido normativo que extraiu de determinado preceito legal, não se verifica a referida nulidade.
5. A nulidade do acórdão por omissão de pronúncia só acontece quando o acórdão deixa de decidir alguma das questões suscitadas pelas partes, salvo se a decisão dessa questão tiver ficado prejudicada pela solução dada a outra.
6. Questões, para efeito do disposto no n.º 2 do art. 608.º do CPC, não são os argumentos e razões, mas sim e apenas as questões de fundo, isto é, as que integram matéria decisória, os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às excepções.
7. Se o percurso decisório que o Tribunal faz para resolver as questões colocadas, desconsidera argumentos ou razões (de facto ou de direito) em que a parte fundou a sua posição na controvérsia, tal não inquina a decisão do vício de omissão de pronúncia sancionado com a nulidade, mas sim e, eventualmente, poderá inquinar a decisão de erro de julgamento, não sindicável em sede de impugnação da decisão arbitral.
8. Constitui uma verdadeira questão, e não um mero argumento, a alegação de que uma determinada disposição legal, interpretada num determinado sentido é inconstitucional.
9. Tendo a Administração Tributária suscitado no seu articulado a questão enunciada em 8., e não tendo o Tribunal Arbitral - que perfilhou na sua decisão a interpretação do normativo no sentido reputado de inconstitucional - apreciado expressamente essa questão, há que concluir que o acórdão arbitral impugnado padece de nulidade por omissão de pronúncia.
Votação:Unanimidade
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA SECÇÃO DO CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL

1 – RELATÓRIO

O Exmo. Senhor Director-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, vem, ao abrigo do disposto no artigo 27.º e 28.º do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante RJAT), aprovado pelo D.L.n.º10/2011, de 20 de Janeiro, impugnar o Acórdão arbitral proferido no processo n.º106/2014–T, pelo Tribunal Arbitral Colectivo constituído junto do Centro de Arbitragem Administrativa (doravante CAAD).

O Impugnante termina as alegações da impugnação formulando as seguintes e doutas Conclusões:
«
a) A presente impugnação tem por objecto o douto acórdão proferido por Tribunal Arbitral em matéria tributária, constituído sob a égide do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), na sequência de pedido de pronúncia arbitral tramitado sob o n° 106/2014-TCAAD.
b) No concreto caso dos autos constituem fundamentos da impugnação os estatuídos nas aludidas alínea b) e c) do n.° 1 do artigo 28° do RJAT, porque, no entendimento da ora Impugnante, o douto acórdão em apreço padece dos vícios de "oposição dos fundamentos com a decisão", também prevista e regulada no artigo 615° do CPC, e de "omissão de pronúncia".
c) A nulidade de oposição dos fundamentos com a decisão constitui um vício da estrutura lógica da sentença, por contradição entre as suas premissas - de facto e de direito - e a conclusão, o que tem sido explicitado pela jurisprudência, designadamente o Acórdão de 11-4-2002 do Supremo Tribunal de Justiça , onde se diz: "a nulidade da oposição entre os fundamentos e a decisão (668°, n°1. al.c) do CPC) está relacionada, por um lado, com a obrigação imposta pelos arts. 158° e 659°, n°s. 2 e 3, do CPC, de o juiz fundamentar os despachos e as sentenças e, por outro, pelo facto de a sentença dever constituir um silogismo lógico-jurídico, em que a decisão deverá ser a consequência ou conclusão lógica da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor)".

d) Ora, como se demonstrará de seguida, os fundamentos da sentença conduziriam logicamente a uma decisão diversa da que foi proferida, uma vez que a parte decisória do Acórdão ora impugnado, determina a procedência do pedido de declaração de ilegalidade das liquidações.
e) No entanto, os fundamentos apresentados na sentença não suportam uma decisão de procedência do pedido. Por um lado, em termos de facto, os fundamentos contradizem-se entre sim e com a decisão. Por outro lado, em termos de direito, os fundamentos invocados não suportam a decisão. Vejamos,
f) No seu pedido de pronúncia arbitral os Requerentes alegaram, em síntese, que a AT teria violado o princípio do inquisitório e que a transformação não foi abusiva por ter correspondido a razões económicas válidas, baseando-se a argumentação dos Requerentes na não verificação dos pressupostos para a aplicação da cláusula geral anti-abuso, vertida no art. 38°, n° 2 da LGT, mormente, falharia a verificação dos elementos meio, intelectual e normativo.
g) A decisão impugnada decidiu pela procedência, não obstante os seus fundamentos imporem conclusão diversa.
h) A AT defendeu estarem verificados todos os pressupostos para a aplicação da cláusula geral anti-abuso, nos termos consagrados no art. 38°, n° 2 da LGT. Nomeadamente, quanto ao elemento meio, considerou a Requerida haver elementos que permitem qualificar o negócio como artificioso e que só são compreensíveis se perspectivados de acordo com uma primordial vontade fiscal de evitar a tributação.
i) Quanto ao elemento intelectual, alegou ainda a Requerida verificar-se in casu a primordial vontade fiscal, dados os indícios objectivos dessa situação, decorrentes dos termos e sequência em que a operação foi estruturada, sendo que tal vontade fiscal tem de ser apurada em função dos elementos objectivos por meio dos quais é externada, sob pena de se exigir à AT uma verdadeira probatio diabólica, o que seria inconstitucional por violação do princípio do acesso ao Direito vertido no artigo 20° da CRP, resultando numa incomportável restrição do direito de defesa da Administração.
j) Ora, tal premissa começa por ser acolhida no acórdão impugnado, para acabar por ser, no mesmo, denegada, numa manifesta contradição entre fundamentos da decisão, motivadora de contradição com a decisão, resultante na incongruência e indevida fundamentação do acórdão, o que decorre da decisão impugnada, a págs. 28, «a prova da motivação terá de ser efectuada com recurso a factos ou elementos que permitam ao intérprete extrair, com razoável segurança e segundo critérios de razoabilidade e normalidade, a conclusão de que o contribuinte atribuiu às formas adoptadas um preponderante fim fiscal», bem como da utilização da expressão «indiciada», no segundo parágrafo da pág. 30 da decisão impugnada.
k) Tal demonstra que o Tribunal Arbitral começa por acolher como boa e suficiente a prova indiciária, isto é, aquela efectuada com base em factos ou elementos que permitam ao intérprete extrair, com razoável segurança e segundo critérios de razoabilidade e normalidade a conclusão de que o contribuinte atribuiu às formas adoptadas um preponderante fim fiscal, para depois, contraditória e incongruentemente vir exigir à Administração uma prova da verificação da motivação subjectiva ou psicológica do sujeito passivo no sentido da evitação fiscal, o que é demonstrado, v.g. pelo último parágrafo da pág. 29 do acórdão arbitrai impugnado, onde se refere «impondo-se à AT a prova de que, efectivamente, a transformação teve como objectivo evitar o pagamento de mais-valias por parte dos Requerentes.»
l) Salvo o devido respeito, a prova exigida à AT só seria possível por confissão.
m) Se tivesse utilizado efectivamente a doutrina que começa por citar, o Tribunal arbitral teria forçosamente dado como cabalmente comprovada a vontade de evitação fiscal, isto é, o normalmente designado elemento intelectual. Pois que a AT alegou existirem elementos externadores desta primordial vontade fiscal e que podem sintetizar-se no seguinte: i) o primeiro indício é o facto de a sociedade ter sido constituída com 8 sócios pessoas colectivas (todas sociedades por quotas) e 7 pessoas singulares e ter, previamente à transformação, ter passado para a titularidade de 14 pessoas singulares; ii) o segundo indício prende-se com o curto espaço de tempo que mediou entre a transformação e a alienação das participações sociais; e, finalmente, iii) o terceiro indício é a falta de racionalidade económica justificativa da transformação, sendo certo que o Tribunal julgou não provada a justificação apontada pelos Requerentes.
n) Ora, todos os referidos indícios apontados pela AT que permitiriam, nas palavras do Tribunal, «extrair, com razoável segurança e segundo critérios de razoabilidade e normalidade, a conclusão de que o contribuinte atribuiu às formas adoptadas um preponderante fim fiscal», todos -repete-se - foram dados por provados.
o) O primeiro indício, resulta dos pontos b) e i) da matéria de facto dada por provada, devendo realçar-se que as cessões foram feitas de modo cruzado, seguindo o seguinte esquema: uma das pessoas singulares titular do capital social de uma das sociedades proprietária de quota da I. T. Lda., cede a sua quota a outra pessoa singular, geralmente cônjuge ou filho do titular ou o próprio, titular do capital de outra sociedade, proprietária de outra quota da I. T. Lda., posteriormente transformada - pelo mesmo valor de aquisição, sem gerar qualquer rendimento na esfera jurídica das sociedades comerciais antes detentoras das quotas - dessa forma operando a transferência das participações - então ainda quotas - para pessoas singulares.
p) Quanto ao segundo indício, o curto espaço de tempo que mediou entre a transformação e a alienação das participações sociais, resulta provado, conforme consta dos pontos r) e s) da matéria de facto dada por provada, pois a transformação ocorreu em 9-7-2009 e a venda das participações ocorreu em 14-7-2009, somente cinco dias depois, sendo as participações desta SGPS, pertencentes aos mesmos sócios, alienadas - no dia seguinte - a um terceiro.
q) Consta do quarto parágrafo da página 29 da decisão a seguinte apreciação desta matéria: «É certo que o reduzido período temporal que mediou entre a transformação da sociedade e a alienação das respectivas participações sociais por parte dos Requerentes legitima a suspeita, por parte da AT, de que a transformação teve por objectivo excluir a alienação efectuada da tributação em sede de mais-valias» (destaques nossos), pelo que, também neste ponto, ressalvado o devido respeito, a decisão impugnada entra em contradição entre os próprios fundamentos.
r) Por um lado, escreve-se «Não se encontra, assim, minimamente indiciado nos autos que a intenção subjacente à transformação da sociedade tenha sido a exclusão da posterior alienação das participações da tributação em sede de mais-valias» - cfr. 2° parágrafo da pág. 30 da decisão impugnada, quando, na página anterior (cfr. trecho acima transcrito), se havia expendido que tal indício, mesmo isoladamente considerado, legitimava a suspeita de a transformação ter tido como objectivo excluir de tributação as mais-valias geradas na posterior alienação das participações sociais.
s) Quanto ao terceiro indício (a falta de racionalidade económica para a transformação), consta da especificação da matéria de facto dada como não provada «Com relevo para a decisão, considera-se como não provado que a operação de transformação da sociedade por quotas em anónima ocorreu por motivos económicos válidos» - cfr. pág. 13 da decisão impugnada daqui resultando que a justificação apontada pelos requerentes para a transformação e que consistia numa pretensa resposta a uma exigência do ulterior comprador das participações, foi considerada não provada.
t) Enquadrando, deve referir-se que os Requerentes haviam celebrado contratos promessa de compra e venda das participações sociais com a I. T. SGPS, da qual eram também accionistas, sendo que esta SGPS, bem como as participações por si detidas, veio a ser objecto de alienação a um terceiro.
u) De regresso à decisão impugnada, na pág. 31 consta: «analisados os argumentos expendidos pelos Requerentes para prova da razão económica justificativa da transformação, o certo é que não se poderá julgar provada tal razão económica.
Isto porque os argumentos avançados pelos Requerentes não são aptos a, de per si ou conjugados com outros, provar a motivação económica da transformação.
De facto os Requerentes limitam-se a alegar que a transformação da sociedade por quotas em sociedade anónima foi motivada por uma exigência por parte do investidor que se propunha adquirir a sociedade "I. T., SGPS, S.A.".
Ora, salvo o devido respeito, e acompanhando neste aspecto a Administração Tributária, pese embora tenha resultado provado esta exigência por parte do investidor - cfr. facto provado l) - a verdade é que não se poderá defender, sem mais, que a transformação da sociedade "I. T., Lda." em sociedade anónima não pudesse vir a ser operada pela sua adquirente "I. T., SGPS, S.A.".
Com efeito, nada nos autos indicia que a exigência por parte do investidor tivesse de ser concretizada previamente à aquisição, por parte da "I. T., SGPS, S.A" da totalidade das quotas representativas do capital social da I. T., Lda.".» (destaques nossos).
v) Temos, pois, que no Acórdão impugnado foram dados como provados e considerados como relevantes para a decisão da causa todos os indícios factuais apontados pela AT no sentido de que a vontade de evitar a tributação das mais-valias foi o motivo principal para a estruturação da operação realizada. Concomitantemente, foi dado como facto não provado a pretensa racionalidade económica da transformação.
w) Ora, tais fundamentos invocados pelos juízes-árbitros não são susceptíveis de conduzir ao resultado expresso na decisão, existindo, efectivamente, um vício no raciocínio do julgador, uma real contradição dos fundamentos com a decisão, o que importa a nulidade da decisão impugnada e a procedência da presente impugnação.
Ademais,

x) no caso em apreço, padece o acórdão impugnado de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do disposto na segunda parte da referida alínea c) no artigo 28°, n°1 do RJAT, porquanto, quanto à verificação dos pressupostos para a aplicação da cláusula geral anti- abuso, não se pronunciou o Tribunal sobre questões colocadas pela Requerida.
y) A primeira diz respeito aos imbrincados elementos meio e intelectual, os quais, nos termos acima referidos, devem ser aferidos em conjunto, pois que, por um lado, o elemento intelectual enforma o elemento meio e, por outro lado, a artificiosidade ou carácter pouco usual do negócio, em que se traduz o elemento meio, deve ser entendido como indício externador da prevalecente vontade fiscal.
z) Ora, a transformação societária foi precedida de cessões de quotas que resultaram em que as participações sociais anteriormente na titularidade de outras sociedades por quotas passaram para a titularidade de pessoas singulares, facto que constitui per se indício forte da preocupação fiscal que norteou todo a operação que culminou com a venda das participações e foi, de resto, integrado na matéria de facto dada por provada - cfr. pontos b) e i).
aa) Pelo que, foi alegada pela AT uma questão que era de primordial importância para o julgamento, sem que tenha sido objecto de pronúncia do Tribunal Arbitral.
bb) Tal questão refere-se às circunstâncias concretas em foram efectuadas as cessões de quotas: de modo cruzado, isto é, seguindo o esquema de uma das pessoas singulares titular do capital social de uma das sociedades proprietária de quota da I. T. Lda., ceder a sua quota a outra pessoa singular, geralmente cônjuge ou filho do titular ou ao próprio titular do capital de outra sociedade, proprietária de outra quota da I. T. Lda., posteriormente transformada - e o mesmo em sentido inverso;
cc) Daqui resultando que as quotas da sociedade a transformar passassem da propriedade de sociedades para a propriedade de pessoas singulares (como era necessário para que fosse aplicável a exclusão de tributação);
dd) Outro facto perfeitamente indiciador do carácter anómalo da operação é que estas cessões foram todas efectuadas sem um cêntimo de vantagem pecuniária, sendo o valor de venda das quotas exactamente igual à soma do valor nominal com o dos suprimentos efectuados, o que está documentalmente provado nos processos administrativos juntos aos autos, pois só com uma premente motivação de poupança fiscal se pode justificar estas cessões de quotas efectuadas entre pessoas colectivas e pessoas singulares sócias de outra sociedade, sem qualquer valorização, quando, em contraponto, na alienação subsequente, à SGPS, a valorização das participações foi da ordem dos 1.000 %!
ee) Desta forma, a mais valia potencial foi propositadamente transferida da esfera jurídica da sociedade comercial para a de uma pessoa singular, sócia de uma outra sociedade comercial, o que garantiria - como efectivamente veio a acontecer - que a mais valia seria gerada no património de pessoas singulares e, portanto, não seria tributada, por força da redacção então vigente do art. 10° e 43° do CIRS.
ff) A aqui impugnante alegou que estes factos são contrários à lógica do lucro que preside à capacidade jurídica das pessoas colectivas constituídas sob a forma de sociedades comerciais e que só se compreendem num contexto de instrumentalização das sociedades, com prejuízo do interesse societário, em ordem à satisfação do interesse (no caso, elisivo) dos sócios individualmente considerados e consta, em consonância, da decisão impugnada que «as sociedades comerciais têm, conforme é sabido, escopo lucrativo, visando a maximização da rendibilidade da sua actividade» - cfr- segundo parágrafo da pág. 18 da decisão.
gg) Tal quadro factual constitui um indício fortíssimo da natureza articiosa, inusitada, se quisermos, destituída da racionalidade económica própria da gestão de um bom pai de família, da operação globalmente considerada, estando a respectiva base de facto documentalmente comprovada nos processos administrativos e tendo sido cabalmente referenciada na resposta apresentada pela AT - cfr. nomeadamente, quanto aos factos, os arts. 22° e 23° e, quanto ao seu relevo para o enquadramento de direito, os arts. 126° a 130° - sem que os juízes-árbitros sobre ela tenham tomado qualquer posição, pois, sobre este circunstancialismo, autonomamente considerado, nada se diz na decisão recorrida, aparte o facto de ter sido consignada na matéria de facto provada a mudança de titularidade das quotas.
hh) Ao contrário, consta do acórdão «No caso dos autos apenas estão em causa dois actos/negócios: a transformação da sociedade por quotas em anónima e a subsequente venda de acções, actos e negócios esses perfeitamente usuais no nosso ordenamento jurídico.» - cfr. 6° parágrafo da página 27 da decisão impugnada, com o que fica demonstrada a omissão de pronúncia quanto a esta questão colocada à apreciação do Tribunal.
Acresce que,

ii) Verifica-se, ainda, a nulidade da decisão impugnada por omissão de pronúncia quanto a questão suscitada pela AT relativa a inconstitucionalidade.
jj) De facto, alegou a ora Impugnante, Requerida no processo arbitral, que a interpretação defendida pelos requerentes - e que, diga-se, já foi acolhida em decisões arbitrais - sobre a aplicação da cláusula geral anti-abuso a operações de transformação de sociedades por quotas em sociedades anónimas, seguidas da venda das participações sociais, mormente no que respeita ao chamado elemento normativo, viola o quadro constitucional vigente, nomeadamente o princípio da legalidade quanto à atribuição de benefícios fiscais, o princípio da igualdade e o princípio da capacidade contributiva que neste se funda.
kk) Pois, como constava da resposta, estando em causa uma exclusão de tributação, portanto, a questão decidenda coloca-se no âmbito da concessão de um benefício fiscal, pelo que somente no caso de ser prosseguido o interesse público subjacente à concessão do benefício pode considerar-se existir uma actuação intra legem. Assim, só será legítima uma opção legislativa no sentido da não tributação de uma determinada realidade, leia-se, forma ou operação jurídica, quando no caso concreto se prossiga aquela determinada vantagem económica que legitima a perda de receita fiscal correspectiva.
ll) Diversamente, a utilização de uma norma de exclusão de tributação, construindo uma estrutura por forma a poder actuar formalmente de acordo com a lei, mas logrando única ou predominantemente a poupança fiscal, é agir ao arrepio do espírito da norma, isto é, em abuso de direito.
mm) A propósito dos princípios consagrados na CRP e face ao teor do disposto no art. 38°,
n° 2 da LGT, não podemos deixar de estranhar a citação de BERGERÉS feita no acórdão arbitral impugnado de que «[o] abuso de direito não condena a habilidade fiscal, mesmo que esta conduza a construções jurídicas pouco ortodoxas», perspectiva que irremediavelmente compromete o princípio constitucional da capacidade contributiva, como o da igualdade, em que o referido princípio da capacidade contributiva se funda.
nn) Porém, sobre as invocadas questões de constitucionalidade, nada se diz na decisão impugnada, ou seja, o Tribunal não se pronunciou sobre as concretas questões suscitadas pela Administração Tributária, limitando-se a explanar uma visão do problema perfeitamente contrária ao quadro constitucional, sobre o qual nada refere.
oo) Isto é, fruto da supremacia da CRP sobre a legislação ordinária, o intérprete não pode, esquecendo os citados princípios e normas constitucionais e apelando apenas para a letra da lei ordinária, perfilhar o entendimento de que “ainda que a transformação fosse motivada por razões exclusivamente fiscais, foi o legislador que fez a opção de tributar a alienação de quotas e excluir da tributação a alienação de acções" (cfr. p.34 da decisão arbitral aqui impugnada).
pp) Se uma das partes suscita a questão de tal (pretensa) escolha do legislador ordinário contrariar os imperativos consagrados a nível constitucional, o Tribunal Arbitral recorrido não poderia decidir sem estabelecer uma base que suportasse devidamente tal conclusão.
qq) E tal base não existe sem uma análise detalhada a cada uma das questões de constitucionalidade suscitadas, nomeadamente, teria o Tribunal recorrido de fundamentar por que razões, a seu ver, tal interpretação não viola os princípios da legalidade, da igualdade e da capacidade contributiva.
rr) Pois, não apreciar estas questões constitucionais equivale a não apreciar a verificação dos pressupostos fundamentais para a decisão: se o decisor somente se baseia numa (teórica) vontade do legislador ordinário, terá que avaliar se essa interpretação não contraria a Lei Fundamental, conforme alegado por uma das partes.
ss) Ao não fazer tal indagação, falta legitimidade aos fundamentos de Direito convocados para a decisão, ocorrendo omissão de pronúncia: verifica-se nulidade por omissão de pronúncia sempre que o juiz viole o seu dever de conhecer de todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação (cf. alínea d) do n°1 do artigo 615° do (novo) CPC e n° 2 do artigo 608° do mesmo diploma).
tt) Sendo que, para se estar perante uma “questão" é necessário que - como ocorre no caso em apreço - tenha havido a formulação do pedido de decisão relativo a matéria de facto ou de direito sobre uma concreta situação de facto ou jurídica sobre que existem divergências, formulado com base em alegadas razões de facto ou de direito (cfr. Acórdão proferido pela 2ª Secção do STA no Processo n° 01021/12, em 11-09-2013) que tal pedido - como também ocorre no caso em apreço - não tenha sido apreciado.
uu) Pelo que, suscitando-se expressamente nos autos uma questão de constitucionalidade, com relevo para a decisão a tomar, havia o Tribunal arbitral que apreciar a questão, o que não fez, incorrendo em omissão de pronúncia, o que importa a nulidade do Acórdão Arbitral impugnado. Pelo que, também por esta razão, deve a presente impugnação ser julgada procedente, anulando-se a decisão.
vv) Nos termos peticionados supra, os quais se dão por reproduzidos, e face ao entendimento jurisprudencial pacífico, também acima exposto, o valor máximo a considerar para cálculo da taxa de justiça do processo deveria ser de 8 UC, respeitante ao tecto máximo de 275.000 €, sendo fundadamente dispensado o pagamento do respeitante ao excesso.

Nestes termos e com o douto suprimento de V. Exas, deve a presente impugnação ser julgada procedente e declarado nulo o acórdão arbitral impugnado, como é de Direito e Justiça.».

Os impugnados apresentaram contra-alegações, que culminam com as seguintes e doutas conclusões:



Imagem: Original nos autos






O Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal foi notificado nos termos do disposto no artigo 146.º, n.º1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (aplicável “ex vi” artigo 27.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro), tendo concluído no sentido de ser mantida na ordem jurídica a decisão proferida (fls.68 dos autos).

Colhidos os vistos dos Senhores Juízes-Desembargadores Adjuntos (cf. fls.70 do processo), vêm os autos à conferência para decisão.

2 – FUNDAMENTAÇÃO

De facto

A decisão arbitral deixou consignado em sede factual:
«

Imagem: Original nos autos





Imagens: Originais nos autos

».



De direito

Como se deixou consignado no acórdão desta secção proferido em 18/04/2018, no proc.º121/17.0BCLSB,

«O regime da arbitragem voluntária em direito tributário foi introduzido pelo RJAT, sendo que os Tribunais arbitrais têm competência para apreciar um conjunto vasto de pretensões, as quais vêm taxativamente elencadas na enumeração constante do artº.2, nº.1, do citado diploma. Mais se dirá que o Tribunal arbitral tem a obrigação de decidir em conformidade com o direito constituído e não com recurso à equidade (cfr.artº.2, nº.2, do RJAT).

Os princípios processuais inerentes ao processo arbitral vêm referidos e elencados no artº.16, do RJAT, e, genericamente, são os mesmos princípios que se aplicam a um processo de partes, de que é exemplo o processo civil.

No que toca à possibilidade de recorrer de uma decisão proferida por um Tribunal arbitral pode, desde logo, referir-se que esta é muito limitada.

Assim, quando se tiver em vista controlar o mérito da decisão arbitral, isto é, o seu conteúdo decisório, o meio mais adequado para colocar em crise a decisão arbitral será o recurso.

Com efeito, em conformidade com o que se dispõe no artº.25, nº.1, do RJAT, é possível recorrer directamente para o Tribunal Constitucional da parte da decisão arbitral que ponha termo ao processo e que recuse a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, bem como nos casos em que aplique uma qualquer norma jurídica cuja inconstitucionalidade seja levantada no decurso do processo.

Por outro lado, admite-se ainda a possibilidade de recurso com fundamento em oposição de acórdãos, isto nos termos do que determinam os nºs.2 e 3, do artigo em apreço. Este recurso é endereçado à Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, sempre que a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida estiver em oposição, relativamente à mesma questão fundamental de direito, com acórdão proferido ou pelo Tribunal Central Administrativo ou Supremo Tribunal Administrativo. Neste caso, os trâmites do recurso a observar são os do regime dos recursos para uniformização de jurisprudência, aplicando-se o disposto no artº.152, do C.P.T.A.

Note-se que, em termos práticos, só há uma via de recurso: ou directamente para o Tribunal Constitucional, com fundamento em (in) constitucionalidade, ou directamente para o Supremo Tribunal Administrativo, em caso de oposição de acórdãos.

Pelo contrário, quando se pretenda controlar a decisão arbitral em si, nos seus aspectos de competência, procedimentais e formais, o meio adequado será já a impugnação da decisão arbitral (cfr.artºs.27 e 28, do RJAT).

Nos termos da lei, a regra é que é possível que a decisão do Tribunal arbitral seja anulada pelo Tribunal Central Administrativo competente. Esta impugnação - que em bom rigor se trata de um recurso - deve ser deduzida, sob pena de não admissão por intempestividade, no prazo de quinze dias contados da notificação da decisão arbitral, ou da notificação referida no artº.23.º, do diploma em apreço. Porém, neste último caso, a decisão arbitral terá que ter sido proferida por Tribunal colectivo, cuja constituição tenha sido requerida nos termos do artº.6, nº.2, al. b), do RJAT.

Já no que toca aos fundamentos da impugnação da decisão arbitral, vêm estes elencados no texto do artº.28, nº.1, do RJAT. São eles, taxativamente, os seguintes:
1-Não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
2-Oposição dos fundamentos com a decisão;
3-Pronúncia indevida ou na omissão de pronúncia;
4-Violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, nos termos em que estes são estabelecidos no artº.16, do diploma.

Ou seja, os únicos fundamentos legalmente admissíveis como suporte de reacção da decisão dos Tribunais arbitrais para os T. C. Administrativos, consistem na impugnação de tal decisão, consagrada no artº.27, com os fundamentos que se ancorem nos vícios de forma expressamente tipificados no artº.28, nº.1, e atrás elencados, correspondendo os três primeiros aos vícios das sentenças dos Tribunais tributários, nos termos do plasmado no artº.125, nº.1, do C.P.P.T., com correspondência ao estatuído nas alíneas b), c) e d), do artº.615, nº.1, do C. P. Civil.

E se algumas dúvidas pudessem subsistir sobre o que se vem de afirmar, elas dissipar-se-iam por força dos elementos sistemático, teleológico e histórico, considerando, por um lado, o regime jurídico dos vícios em causa, tal como disciplinado pelo C.P.P.T., e, por outro, a intenção do legislador expressamente manifestada na parte preambular do diploma em causa, quando e ao que aqui releva, refere que “(…) A decisão arbitral poderá ainda ser anulada pelo Tribunal Central Administrativo com fundamento na não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, na oposição dos fundamentos com a decisão, na pronúncia indevida ou na omissão de pronúncia ou na violação dos princípios do contraditório e da igualdade de partes (…)”. Assim manifestando o legislador, de forma inequívoca, uma enumeração taxativa dos fundamentos de impugnação das decisões arbitrais para os T. C. Administrativos (cfr. ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 19/2/2013, proc.5203/11; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 21/5/2013, proc.5922/12; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 10/9/2013, proc.6258/12; Jorge Lopes de Sousa, Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Guia da Arbitragem Tributária, Almedina, 2013, pág.234 e seg.)» (fim de cit.).

Como também tem sido entendimento deste Tribunal, a decisão arbitral poderá ser anulada pelo Tribunal Central Administrativo com fundamento na pronúncia indevida. E no conceito de “pronúncia indevida”, para além do excesso de pronúncia, incluem-se as situações em que o tribunal arbitral funcionou de modo irregular ou em que excedeu a sua competência – vd., entre outros, o Acórdão deste TCA Sul, de 06/09/2016, tirado no proc.º09156/15.

Feitos os considerandos julgados pertinentes, passemos ao caso em apreciação.

Os vícios apontados à decisão arbitral reconduzem-se à oposição dos fundamentos com a decisão e à omissão de pronúncia.

Começando pela apreciação do primeiro, dispõe-se no artigo 615.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do CPC que “[é] nula a sentença quando: (…) os fundamentos estejam em oposição com a decisão”.

Como se vê, o fundamento de nulidade previsto na norma é a contradição entre os fundamentos (de facto ou de direito) e a decisão. Explica José Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil, anotado”, Volume V, Coimbra Editora, 1984, p. 141, que se trata de um vício lógico que ocorre quando a decisão colide com os fundamentos, i.e., a justificação em que se apoia. Parafraseando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/06/2016 tirado no proc.º781/11.6TBMTJ.L1.S1 (disponível em http:// www.dgsi.pt), trata-se de um vício que “radica na desarmonia lógica entre a motivação fáctico-jurídica e a decisão resultante de os fundamentos inculcarem um determinado sentido decisório e ser proferido outro de sentido oposto ou, pelo menos, diverso”.

Sucede, porém, e desde logo, que a contradição entre os fundamentos da decisão não integra nulidade da decisão, podendo eventualmente constituir erro de julgamento, não sindicável em sede de impugnação da decisão arbitral.

Quanto a contradição entre os fundamentos e a decisão, salvo o devido respeito, não a alcançamos.

A questão debatida no processo arbitral radica, ou radicava, nos requisitos de ineficácia dos actos e negócios jurídicos previstos no n.º 2 do art.º 38.º da Lei Geral Tributária, disposição que tem sido designada como “cláusula geral anti-abuso”.

E o que se constata é que o Impugnante não se conforma com a conclusão a que (bem ou mal) chegou o Tribunal Arbitral quanto à inverificação dos requisitos de que depende a sanção da ineficácia dos actos e negócios jurídicos previstos naquela disposição, no caso concreto.

Ora atente-se nestas passagens das doutas conclusões da impugnação:
«
l) Salvo o devido respeito, a prova exigida à AT só seria possível por confissão.
m) Se tivesse utilizado efectivamente a doutrina que começa por citar, o Tribunal arbitral teria forçosamente dado como cabalmente comprovada a vontade de evitação fiscal, isto é, o normalmente designado elemento intelectual (…).
n) Ora, todos os referidos indícios apontados pela AT que permitiriam, nas palavras do Tribunal, «extrair, com razoável segurança e segundo critérios de razoabilidade e normalidade, a conclusão de que o contribuinte atribuiu às formas adoptadas um preponderante fim fiscal», todos -repete-se - foram dados por provados
(…).
r) Por um lado, escreve-se «Não se encontra, assim, minimamente indiciado nos autos que a intenção subjacente à transformação da sociedade tenha sido a exclusão da posterior alienação das participações da tributação em sede de mais-valias» - cfr. 2° parágrafo da pág. 30 da decisão impugnada, quando, na página anterior (cfr. trecho acima transcrito), se havia expendido que tal indício, mesmo isoladamente considerado, legitimava a suspeita de a transformação ter tido como objectivo excluir de tributação as mais-valias geradas na posterior alienação das participações sociais.
s) Quanto ao terceiro indício (a falta de racionalidade económica para a transformação), consta da especificação da matéria de facto dada como não provada «Com relevo para a decisão, considera-se como não provado que a operação de transformação da sociedade por quotas em anónima ocorreu por motivos económicos válidos» - cfr. pág. 13 da decisão impugnada daqui resultando que a justificação apontada pelos requerentes para a transformação e que consistia numa pretensa resposta a uma exigência do ulterior comprador das participações, foi considerada não provada.
(…)
u) De regresso à decisão impugnada, na pág. 31 consta: «analisados os argumentos expendidos pelos Requerentes para prova da razão económica justificativa da transformação, o certo é que não se poderá julgar provada tal razão económica.
Isto porque os argumentos avançados pelos Requerentes não são aptos a, de per si ou conjugados com outros, provar a motivação económica da transformação.
(…)
Com efeito, nada nos autos indicia que a exigência por parte do investidor tivesse de ser concretizada previamente à aquisição, por parte da "I. T., SGPS, S.A" da totalidade das quotas representativas do capital social da I. T., Lda.".»
v) Temos, pois, que no Acórdão impugnado foram dados como provados e considerados como relevantes para a decisão da causa todos os indícios factuais apontados pela AT no sentido de que a vontade de evitar a tributação das mais-valias foi o motivo principal para a estruturação da operação realizada. Concomitantemente, foi dado como facto não provado a pretensa racionalidade económica da transformação.
w) Ora, tais fundamentos invocados pelos juízes-árbitros não são susceptíveis de conduzir ao resultado expresso na decisão, existindo, efectivamente, um vício no raciocínio do julgador, uma real contradição dos fundamentos com a decisão, o que importa a nulidade da decisão impugnada e a procedência da presente impugnação.
».

Estas passagens das doutas conclusões da impugnação, ilustram inequivocamente que a Impugnante se não conforma com a leitura que a decisão arbitral fez dos factos, nem com os juízos que extraiu desses mesmos factos, nem com a interpretação feita das normas aplicáveis, o que tudo se reconduz a eventuais erros de julgamento, de facto e de direito, mas não a vícios de nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão.

Olhando mais de perto, atentemos agora nestas passagens do Acórdão arbitral, expressadas em sede de aplicação do direito, as quais ilustram claramente a coerência intrínseca dos fundamentos com a decisão proferida (cf. fls.125 e ss. dos autos, Ac. Arbitral, págs. 27 e ss.).
«
Em face do exposto, importa determinar a verificação ou não, nos presentes autos, dos elementos que permitem a aplicação do elemento sancionatório da cláusula geral anti-abuso, isto é, a ineficácia tributária dos actos e negócios jurídicos praticados pelos Requerentes.
(…)
Quanto ao elemento meio, relevam para a apreciação da sua verificação ou não, os meios utilizados e a forma essencial ou principalmente artificiosa ou fraudulenta com que o são.

Significa isto que, na situação em apreço, apenas se poderia considerar verificado o elemento meio se os actos ou negócios jurídicos praticados pelos Requerentes revestissem uma forma anómala, inusual, artificiosa ou fraudulenta.
(…)
No caso dos autos apenas estão em causa dois actos/negócios: a transformação da sociedade por quotas em anónima e a subsequente venda das acções, actos e negócios esses perfeitamente usuais no nosso ordenamento jurídico.

No que concerne ao elemento resultado, dúvidas não restam de que os actos e negócios jurídicos praticados pelos Requerentes conduziram à obtenção de uma vantagem fiscal.
(…)
No entanto, não se poderá considerar, sem mais considerações, abusiva a opção do contribuinte pela via menos onerosa.
(…)
Aliás, a interpretação deste artigo no sentido de a Administração Tributária pretender obrigar o contribuinte a escolher a via mais tributada tem sido uma das muitas críticas avançadas a esta cláusula geral anti-abuso, considerando vários autores que, não celebrando o contribuinte o negócio fiscalmente mais oneroso, “toda a sua actividade económica correrá o risco de ser invalidada”.

Já no que diz respeito ao elemento intelectual (…), a sua verificação depende da prova de que a escolha do meio tenha sido essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos.
(…)
É, pois, à Administração Tributária que incumbe a prova do facto constitutivo do seu direito, incumbindo-lhe, assim, o ónus da prova de que a transformação operada teve como fim principal ou essencial a eliminação do imposto.
(…)
Não se encontra, assim, minimamente indiciado nos autos que a intenção subjacente à transformação da sociedade tenha sido a exclusão da posterior alienação das participações da tributação em sede de mais-valias, sendo certo que, como elemento constitutivo do direito da aplicação da cláusula geral anti-abuso, incumbia à Administração Tributária tal prova, o que não logrou fazer.

O facto de a Administração Tributária não ter logrado fazer essa prova não significa que se tenha provado o oposto (…).

E, analisados os argumentos expendidos pelos Requerentes para prova da razão económica justificativa da transformação, o certo é que não se poderá julgar provada tal razão económica.
(…)
Incumbia, assim, aos Requerentes carrear para os autos os factos necessários à prova de que a exigência por parte do investidor teria de ser cumprida previamente à alienação do capital social da “I. T., Lda.” por parte dos Requerente.
Não o tendo feito, não poderá este tribunal dar como provadas as razões económicas da transformação.

Como quer que seja, o certo é que incumbia à Administração Tributária a prova do elemento intelectual, isto é, a prova de que a escolha do meio foi “essencial ou principalmente dirigida à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos”, prova essa que não logrou efectuar, pelo que não se pode considerar verificado o elemento intelectual.

Mas ainda que a Administração Tributária tivesse logrado provar que a transformação da sociedade e posterior alienação das participações não teve subjacente qualquer motivo de cariz económico, mas apenas e só a intenção de elisão fiscal, sempre estaria esta operação isenta do pagamento de imposto sobre mais-valias.

Isto porque, e entrando no elemento normativo, “é necessário encontrar, no ordenamento jurídico-tributário e como condição sine qua non de aplicação da cláusula geral anti-abuso, os sinais inequívocos de uma intenção de tributar (…)”.
(…)
Na hipótese dos autos parece ser clara a não existência desta “intenção de tributar”, o que decorre desde logo da coexistência, no ordenamento jurídico-tributário, da tributação em sede de IRS das mais-valias decorrentes da alienação de quotas com a exclusão de tributação das mais-valias decorrentes da alienação de acções.
(…)
Isto porque, ainda que a transformação fosse motivada por razões exclusivamente fiscais, foi o legislador que fez a opção de tributar a alienação de quotas e excluir da tributação a alienação de acções.
(…)
De tudo quanto se expôs, resulta que os actos e negócios jurídicos em causa nos presentes autos se inserem no âmbito do planeamento fiscal legítimo, não se verificando, por isso, os pressupostos da aplicação da cláusula geral anti-abuso prevista no artigo 38.º n.º 2 da Lei Geral Tributária.
(…)».

Como se vê, o Acórdão arbitral impugnado mostra-se enquadrado e os seus fundamentos conduzem logicamente à decisão assumida em sede de dispositivo, sendo que os elementos da decisão arbitral que o Impugnante destaca não constituem suporte para a invocada nulidade da sentença, antes expressando o inconformismo do Impugnante quer com a leitura que o Tribunal Arbitral fez dos factos, quer com o sentido normativo extraído daquele art.º 38.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária, o que, repete-se, poderá integrar erro de julgamento, mas não nulidade da sentença como pretende a Impugnante.

Improcede a arguida nulidade da decisão arbitral por oposição dos fundamentos com a decisão.

Prosseguindo, invoca ainda o Impugnante que ocorre na decisão vício de omissão de pronúncia, porquanto, o Tribunal Arbitral não se pronunciou quanto a questões por si colocadas relativamente à verificação dos pressupostos para a aplicação da cláusula geral anti-abuso e, ainda, por não ter conhecido das questões de constitucionalidade invocadas na resposta ao pedido de pronúncia arbitral.

Nos termos do preceituado no citado artº.615, nº.1, al. d), do C.P.Civil, é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não poderia tomar conhecimento. Decorre de tal norma que o vício que afecta a decisão advém de uma omissão (1º. segmento da norma) ou de um excesso de pronúncia (2º. segmento da norma). Na verdade, é sabido que essa causa de nulidade se traduz no incumprimento, por parte do julgador, do poder/dever prescrito no artº.608, nº.2, do mesmo diploma, o qual consiste, por um lado, no resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e, por outro, de só conhecer de questões que tenham sido suscitadas pelas partes (salvo aquelas de que a lei lhe permite conhecer oficiosamente). Ora, como se infere do que já deixámos expresso, a omissão de pronúncia pressupõe que o julgador deixa de apreciar alguma questão que lhe foi colocada pelas partes. Por outras palavras, haverá omissão de pronúncia, sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido. Pelo que deve considerar-se nula, por vício de “petitionem brevis”, a sentença em que o Juiz invoca, como razão de decidir, um título, ou uma causa ou facto jurídico, essencialmente diverso daquele que a parte colocou na base (causa de pedir) das suas conclusões (pedido). No entanto, uma coisa é a causa de pedir, outra, os motivos, as razões de que a parte se serve para sustentar a mesma causa de pedir. E nem sempre é fácil fazer a destrinça entre uma coisa e outra. Com base neste raciocínio lógico, a doutrina e a jurisprudência distinguem por um lado, “questões” e, por outro, “razões” ou “argumentos” para concluir que só a falta de apreciação das primeiras (ou seja, das “questões”) integra a nulidade prevista no citado normativo, mas já não a mera falta de discussão das “razões” ou “argumentos” invocados para concluir sobre as questões (cfr.Prof. Alberto dos Reis, C.P.Civil anotado, V, Coimbra Editora, 1984, pág.53 a 56 e 142 e seg.; Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 1985, pág.690; Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, 2ª. edição, Almedina, 2009, pág.37).

No processo judicial tributário o vício de omissão de pronúncia, como causa de nulidade da sentença, está previsto no artº.125, nº.1, do C. P. P. Tributário, no penúltimo segmento da norma (cfr. Jorge Lopes de Sousa, C.P.P.Tributário anotado e comentado, I volume, Áreas Editora, 5ª. edição, 2006, pág.911 e seg.; ac.S.T.A-2ª.Secção, 24/2/2011, rec.50/11; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 1/3/2011, proc.2442/08; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 14/11/2013, proc.7029/13).

No regime de arbitragem voluntária em direito tributário, a nulidade da decisão arbitral derivada do vício de omissão de pronúncia está consagrada no artº.28, nº.1, al. c), do R.J.A.T. (cfr.ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 26/06/2014, proc.7084/13; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 31/03/2016, proc.8981/15).

Ora, basta atentar no teor das conclusões alegatórias para logo ficar evidenciado que o Impugnante não coloca em causa a falta de apreciação de “questões” na acepção em que a jurisprudência vem entendendo a referência feita no art.º 608.º do CPC (anterior 660.º), antes fundando o apontado vício de omissão de pronúncia em falta de apreciação de argumentos ou razões, que, a seu ver, foram susceptíveis de inquinar a decisão de erro de julgamento.

Olhando mais de perto, refere o Impugnante:
«
y) A primeira [questão omitida] diz respeito aos imbrincados elementos meio e intelectual, os quais, nos termos acima referidos, devem ser aferidos em conjunto, pois que, por um lado, o elemento intelectual enforma o elemento meio e, por outro lado, a artificiosidade ou carácter pouco usual do negócio, em que se traduz o elemento meio, deve ser entendido como indício externador da prevalecente vontade fiscal.
z) Ora, a transformação societária foi precedida de cessões de quotas que resultaram em que as participações sociais anteriormente na titularidade de outras sociedades por quotas passaram para a titularidade de pessoas singulares, facto que constitui per se indício forte da preocupação fiscal que norteou todo a operação que culminou com a venda das participações e foi, de resto, integrado na matéria de facto dada por provada - cfr. pontos b) e i).
aa) Pelo que, foi alegada pela AT uma questão que era de primordial importância para o julgamento, sem que tenha sido objecto de pronúncia do Tribunal Arbitral.
(…)
dd) Outro facto perfeitamente indiciador do carácter anómalo da operação é que estas cessões foram todas efectuadas sem um cêntimo de vantagem pecuniária, (…)
ee) Desta forma, a mais valia potencial foi propositadamente transferida da esfera jurídica da sociedade comercial para a de uma pessoa singular, (…).
ff) A aqui impugnante alegou que estes factos são contrários à lógica do lucro que preside à capacidade jurídica das pessoas colectivas constituídas sob a forma de sociedades comerciais e que só se compreendem num contexto de instrumentalização das sociedades, com prejuízo do interesse societário, em ordem à satisfação do interesse (no caso, elisivo) dos sócios individualmente considerados (…).
gg) Tal quadro factual constitui um indício fortíssimo da natureza articiosa, inusitada…
(…)».

Como se vê, o Impugnante confunde “questões”, que se prendem com as pretensões que os litigantes submeteram à apreciação do Tribunal Arbitral e as respectivas causas de pedir, com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que o Impugnante fundou a sua posição na controvérsia sobre a verificação ou não, no caso, dos requisitos de aplicação da cláusula geral anti-abuso.

O invocado vício de omissão de pronúncia, na parte assente na alegação de que o Tribunal Arbitral não se pronunciou sobre questões colocadas pelo Impugnante relativamente à verificação dos pressupostos de aplicação da cláusula geral anti-abuso, improcede.

Sucede, porém, que o Impugnante também invoca omissão de pronúncia relativamente a questões de constitucionalidade colocadas no seu articulado de resposta.

E, de facto, compulsado aquele articulado, pode ler-se nomeadamente e, entre o mais, o seguinte:
«
343.
Sendo certo que, de acordo com o disposto no artigo 103.°, n.º 1 da CRP, o sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza.
344.
E que o princípio da igualdade fiscal plasmado na Lei Fundamental artigos 13° e 104° da CRP proíbe a existência de privilégios na tributação, antes impõe que todos que tenham capacidade contributiva estejam obrigados ao pagamento de impostos, devendo a repartição da oneração fiscal pelos contribuintes basear-se num critério geral e homogéneo: a capacidade contributiva.
345.
Isso, tendo como fito a repartição igualitária tanto dos sacrifícios exigidos para a sustentação do Estado, como da riqueza gerada pelos agentes económicos.
346.
Assim, todos os que aufiram rendimentos passiveis de tributação (no caso, mais-valias) deverão ser tributados na exacta medida e proporção correspondentes aos critérios legais estipulados na lei.
347.
Só com estes pressupostos de igualdade e justiça em mente pode ser entendido e interpretado o quadro legal convocado à decisão do caso sub judíce
348.
Em bom rigor, interpretar-se o problema da forma defendida pelos requerentes é fazer tábua rasa dos princípios basilares enformadores do sistema jurídico e, concretamente das referidas normas e princípios constitucionais.
349.
A interpretação normativa do n.º 2 do artigo 38° da LGT no sentido de que a ineficácia no âmbito tributário dos actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos à «obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios (…) implica a necessária existência de uma absoluta intenção, do legislador, de tributar determinado facto tributário, tal não se verificando na situação de exclusão de tributação, então prevista no artigo 10°, n.º2 alínea a) do Código do IRS e a que se acede via (então ) artigo 46°, alínea b) do mesmo Código (in casu através de transformação de sociedade em momento imediatamente anterior à venda e tendo a mesma em vista), é uma interpretação normativa violadora dos princípios constitucionais da igualdade, da capacidade contributiva, da legalidade e da indisponibilidade do crédito.».
Ora, este Tribunal Central Administrativo Sul já em anteriores ocasiões se pronunciou no sentido de que constitui uma verdadeira questão, e não um mero argumento, a alegação de que uma determinada disposição legal, interpretada num determinado sentido é inconstitucional – vd. Acs. de 10/31/19 exarado no proc.º 95/17.8BCLSB; de 05/07/2020, exarado no proc.º 141/19.0BCLSB, posição que subscrevemos, por ser aquela que se apresenta mais garantística, como flui da fundamentação dos arestos citados.

O que vale por dizer, que não tendo o Tribunal Arbitral emitido pronúncia sobre a questão de inconstitucionalidade de uma norma se interpretada no sentido preconizado pelos ora Impugnados (artigo 38/2 da LGT), tendo o Tribunal Arbitral fundado (também) a sua decisão na aplicação dessa concreta norma com aquela interpretação, não tendo essa questão sido objecto da mínima apreciação nem proferida decisão (bem ou mal, é irrelevante) julgando-a prejudicada, há que concluir que a decisão violou o dever de pronúncia e, consequentemente, pela nulidade do Acórdão arbitral, nos termos do artigo 125.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável ex vi artigo 30.º do RJAT
E, em conformidade, haverá que julgar, com este fundamento, procedente a Impugnação da decisão arbitral, ao que se provirá na parte dispositiva do acórdão.

*

Da dispensa do remanescente da taxa de justiça.

O valor atribuído ao processo é de 472.401,62 Euros.

Como é sabido, a dispensa do pagamento de taxa de justiça, prevista no artigo 6.º, n.º 7 do RCP - nas causas de valor superior a (euro) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento – pode ser determinada a pedido das partes ou oficiosamente decidida pelo Tribunal.

Considerando o que ficou exposto, entende-se que no caso concreto essa dispensa deve ser determinada, uma vez que as questões apreciadas pelo Tribunal não se revestiram de especial complexidade que justifique a imposição do remanescente da taxa de justiça, havendo ainda que ponderar reforçadamente a lisura da conduta processual das partes.

Em suma, sem prejuízo da natureza excepcional que a dispensa do remanescente da taxa de justiça possui, justificar-se-á a sua concessão sempre que a causa não apresente especial complexidade e a conduta processual das partes seja isenta de reparo.

Donde, não apresentando a questão apreciada nos autos especial complexidade e não sendo censurável a intervenção processual das partes, entende-se que o valor do remanescente da taxa de justiça é desproporcionado em face do serviço prestado, considerando-se adequado dispensar as partes do pagamento do remanescente da taxa de justiça, ou seja, no excedente sobre o valor tributário de 275.000 Euros.

5 - DECISÃO

Face ao exposto, acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Subsecção da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em julgar procedente a presente Impugnação e anular, por vício de omissão de pronúncia, o Acórdão proferido no processo arbitral n.º 106/2014-T, ordenando a remessa dos autos ao CAAD para apreciação da omitida questão de inconstitucionalidade.

Condena-se em custas os Impugnados, com dispensa total do pagamento do remanescente da taxa de justiça.
Registe e Notifique.

Lisboa, 25 de Novembro de 2021



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Vital Lopes




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Luísa Soares




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Tânia Meireles da Cunha