Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:12109/15
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:06/25/2015
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:JUIZ CAUTELAR, DISPOSITIVO, INQUISITÓRIO, REQUISITOS
Sumário:I – O processo está sujeito ao princípio do dispositivo, bem como ao dever legal processual de, sob pena de défice de instrução, apurar todos e cada um dos factos alegados e relevantes para a boa aplicação do art. 120º do CPTA.

II - Os requisitos para o decretamento de uma providência cautelar são os seguintes: (1º) o periculum in mora (i.e., o fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal); (2º) a “aparência do bom direito” na modalidade casuisticamente relevante de acordo com as alíneas b) ou c) do nº 1 do art. 120º do CPTA; e (3º) o juízo fundado de que, quando devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultam da concessão da providência cautelar se mostram inferiores àqueles que podem resultar da sua recusa.
Votação:Unanimidade
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

· JOSÉ …………………….. intentou

Processo cautelar contra

· POLIS LITORAL RIA FORMOSA – SOCIEDADE PARA A REQUALIFICAÇÃO E VALORIZAÇÃO DA RIA FORMOSA, S.A., com sede na Chalé João Lúcio, Pinheiros de Marim, em Olhão.

Pediu ao T.A.C. de Loulé o seguinte:

-Suspensão da eficácia da deliberação da requerida, de 14 de Novembro de 2014, cujo teor é determinar ao requerente o seguinte:

«a) A demolição da construção em referência, incluindo a remoção de todo o entulho e materiais para local adequado, sendo para o efeito intimado V.Exa. para desocupá-la, totalmente livre e desembaraçada de pessoas e bens, impreterivelmente, até ao próximo dia 05 de Janeiro de 2015;

«b) Considerando a sensibilidade ambiental do local, que seja a pr6pria sociedade Polis Litoral Ria Formosa, S.A. a proceder à demolição, sem quaisquer encargos para o interessado, a menos que, uma vez decorrido a prazo fixado, não seja voluntariamente acatada a decisão, caso em que os custos correrão par conta do interessado, sem prejuízo da aplicação de penas que no caso couberem e da responsabilidade civil pelos danos causados, nos termos do artigo 22 do Decreto-Lei n2 226-A/2007, de 31 de Maio;

«c) Para efeitos da demolição supra referida, a tomada de posse administrativa da edificação em apreço pela Polis Litoral da Ria Formosa, S.A., entre as 101-100 e as 17Hoo do dia 07 do mês de Janeiro de 2015, cuja posse se manterá pelo período necessário a execução da demolição, a concluir ate ao final do mês de Dezembro de 2015, sendo V. Ex desde já chamado a participar na elaboração do respetivo auto de posse administrativa, no local, dia e hora indicados».

*

Por decisão cautelar de 13-2-2015 (algo vaga e confusa), o referido tribunal decidiu julgar procedente o presente processo ou procedimento cautelar, decretando a providência cautelar solicitada.

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Inconformada, a requerida recorre para este Tribunal Central Administrativo Sul, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

A. Com a devida vénia, só era lícito ao Tribunal “a quo” conhecer das causas específicas de invalidade imputadas ao ato suspendendo no requerimento inicial, como decorre dos artigos 50º do CPTA e 581º, nº4 do C.P.C.;

B. E, como tal, do modo como foi configurada a lide pelo Requerente, a causa de pedir nestes autos está limitada às causas de invalidade identificadas nos artigos 36º, 38º e 55º do R.I., as únicas submetidas a juízo pelo Requerente, e não o artigo 37º do POOC.

C. Consequentemente, ao pronunciar-se sobre causas invalidade não invocadas pela parte, a sentença recorrida violou o princípio do dispositivo, tendo exorbitado o âmbito daquilo que lhe era lícito conhecer, sobre causa de invalidade não invocada, nos termos dos arts 608º, nº2 e 615º, nº1, al.ª d) C.P.C.

D. Sem prescindir, a recorrente considera incorretamente selecionada e julgada a matéria de facto, por omissão de seleção e decisão sobre os factos essenciais alegados nos artigos 1º, 32º a 34º e 37º da oposição, indispensáveis para a boa decisão da causa, que devem ser dados provados.

E. Os concretos meios probatórios que impunha decisão diversa da recorrida são:

Quanto ao artigo 1º da oposição – confissão extrajudicial (art. 358º, nº2 do C.C.) constante do doc. Nº 8 junto com o R.I., a que se refere o artigo 17º do R.I.

Quanto aos artigos 32º a 34º e 37º - o processo instrutor, que na oposição a recorrente se propôs comprovar e apenas por lapso não remeteu ao Tribunal.

F. Dada a sua essencialidade para a boa decisão da causa na solução da sentença recorrida – que constitui uma verdadeira decisão-surpresa - a omissão por parte do Tribunal “a quo” do convite à recorrente para remeter o processo instrutor configura um claro défice de instrução, por violação do poder-dever de ordenar as diligências de prova necessárias, previsto no artigo 118º, nº3, parte final, corolário do princípio do inquisitório e da descoberta da verdade material.

G. Nos termos dos artigos 651º, nº1 e 652º, nº1, alª d) do CPC, ex vi artigo 140º do CPTA, deve ser a recorrente convidada a juntar o processo instrutor, identificando os concretos meios probatórios, constantes do processo instrutor, para seleção e prova dos artigos 32º a 34º e 37º da oposição, que devem ser dados provados.

H. As únicas faturas constantes dos factos H) e I) do probatório são manifestamente insuficientes, à luz das regras da lógica e da experiência, para alcançar a errónea conclusão da sentença recorrida de considerar indiciariamente preenchido o requisito de primeira e única habitação na aceção do artigo 37º, nº2, al.ª b) do POOC, com a qual a recorrente não se conforma e pugna por decisão em sentido contrário.

I. Para além disso, com a devida vénia, a douta sentença recorrida operou uma errada interpretação e aplicação das regras de direito probatório material e de repartição do ónus da prova do requisito de primeira e única habitação, decorrentes do artigo 37º, nº2, alínea b), do POOC (que exige uma confirmação, liquet) e do artigo 88º, nº1 do CPA, quando, todavia, o que se apurou é a discrepância e as alterações no histórico dos dados do Requerente na Segurança Social e nas Finanças, o que inculca a sua intenção de ocultar a existência de residência na Rua de Berlim, nº83 – 3º direito, Faro, com o objetivo de criar a falsa aparência de ter na ilha a sua única habitação - cf. arts. 32º a 37º da oposição).

J. De acordo com o artigo 37º, nº2, alínea b), do POOC, o ónus da prova do requisito de única residência é mais exigente, pois não basta subsistir a mera dúvida (non liquet), mas a lei exige uma verdadeira confirmação (liquet), pelo que as situações de incerteza se resolvem contra o interessado a quem o facto aproveita (art. 88º, nº1 do CPA), tendo a sentença operado uma verdadeira inversão do ónus da prova.

K. Sem conceder, o artigo 66º da Constituição é uma norma meramente programática, por outro, o direito à habitação não se confunde com o direito a ter uma habitação num imóvel da propriedade do cidadão.

L. Nada se alegou, nem provou, que evidencie a impossibilidade do Requerente obter habitação pelos próprios meios, como qualquer cidadão, nem ocorre qualquer violação daquilo a que a doutrina chama «o direito de não ser arbitrariamente privado da habitação ou de não ser impedido de conseguir uma».

M. Face aos elementos do probatório, e sobretudo quando somados aos factos essenciais alegados nos artigos 1º, 32º a 34º e 37º da oposição, verifica-se que a pretensão do Requerente não tem a menor hipótese de procedência na pretensão a formular por ele na ação principal, pelo que a douta sentença recorrida violou o artigo 120º, nº1, alínea b) do CPTA, ao considerar encontrar-se preenchido o requisito “aparência de bom direito”, quando o que ocorre é “fumus malus”.

N. Sem conceder, a sentença recorrida não teve em consideração que a “indicação de alternativas de realojamento” a que se refere o artigo 37º, nº2, al. b) do POOC é apenas uma disposição adicional dirigida a solucionar os problemas de execução concreta de certas previsões do POOC, na lógica do funcionamento e execução indireta dos instrumentos de ordenamento do território, mas que não confere qualquer direito subjetivo ao realojamento, em termos de impor qualquer dever de prestação por parte da recorrente, que nunca foi invocado pelo Requerente.

O. A prestação de habitação social não cabe nas atribuições da recorrida; se por hipótese o Requerente considerasse que fazia jus a beneficiar da proteção de medidas de atribuição de habitação social, deveria tê-lo requerido às entidades competentes, o que não fez, nem sequer é essa a causa de pedir nestes autos.

P. Acresce que não se verifica o requisito da adequação e instrumentalidade que são próprios das providências cautelares, posto que até à presente data não foi intentada a ação principal de que a presente providência depende (art. 112º, nº1 do CPTA), pelo que, mostrando-se ultrapassado o prazo de 3 meses a que se refere o artigo 58º, nº2, alínea b) do CPTA, a contar da data de notificação do ato suspendendo por Ofício de 28/11/2014 (cf. doc. nº9 do R.I.), caducou entretanto a providência deferida pela sentença recorrida de 13/02/2015, nos termos do artigo 123º, nº1, alínea a) do CPTA.

Q. Sem conceder, a douta sentença recorrida também operou uma errada ponderação dos interesses em presença, tendo violado o requisito previsto no artigo 120º, nº2 do CPTA, já que os danos que resultariam para o interesse público da hipotética concessão se mostram desproporcionais e muito superiores àqueles que poderiam resultar para o Requerente da sua recusa, podendo este encontrar alojamento em habitação alternativa, como qualquer cidadão, ou requerer a abertura de procedimento para a atribuição de habitação social, o que não fez.

R. Ao não ter julgado de acordo com as antecedentes conclusões, a douta sentença recorrida violou as sobrecitadas disposições legais.

*

O Ministério Público foi notificado para se pronunciar como previsto na lei de processo.

Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

*

Este tribunal tem sempre presente o seguinte: (i) o primado do Estado democrático e social de Direito material, num contexto de uma vida socioeconómica submetida ao bem comum e à suprema dignidade de cada pessoa; (ii) os valores ético-jurídicos do ponto de vista da nossa lei fundamental; (iii) os princípios ou máximas estruturantes do Estado de Direito (ex.: a juridicidade, a segurança jurídica e a igualdade); (iv) as normas que exijam algo de modo definitivo e ou as normas que exijam uma otimização das possibilidades de facto e de direito existentes no caso concreto, através de uma ponderação racional e justificada; e (v) a máxima da unidade e coerência do nosso sistema jurídico, bem como, sempre que possível e necessário, as máximas metódicas da igualdade e da proporcionalidade.

*

Os recursos, que devem ser dirigidos contra a decisão do tribunal a quo e seus fundamentos, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso, alegação que apenas pode incidir sobre as questões que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido (ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas).

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II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. FACTOS PROVADOS segundo o tribunal recorrido

«(Imagem)»

*

Continuemos.

II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Aqui chegados, há melhores condições para se compreender o recurso e para, de modo facilmente sindicável, apreciarmos o seu mérito.

Vejamos, pois.

DO OBJETO DO PROCESSO - SEU RESUMO

Começaremos por resumir o R.I., a Oposição e a Decisão Cautelar.

No R. I., o requente alegou o seguinte:

-vive com a sua família na casa nº……. da Av. ………., por si comprada em 2002;

-a casa está em DPM, mas é sua;

-o cit. ato administrativo suspendendo não refere qualquer indemnização, nem esta tem previsão, sendo que a casa vale 65000 euros;

-várias entidades públicas criaram equipamentos públicos que favoreceram o uso daquela casa;

-esta não ofende pessoas ou bens, nem interesses públicos;

-não foi feito qualquer levantamento eficaz da situação de acordo com o DL 92/2008, que constituiu a sociedade “Polis Litoral Ria Formosa - Sociedade para a Requalificação e Valorização da Ria Formosa, S. A.”;

-o ato administrativo viola os arts. 2º/4 (1) (cf. doc. 13) e 3º (2) do cit. DL 92/2008;

-os presidentes das camaras de Loulé, Faro, Olhão e Tavira não estavam mandatados para votar o plano estratégico de que fala a lei e o POOC de 2005;

-esse plano não teve discussão pública, pelo que é nulo.

Na Oposição, alegou-se o seguinte:

-sobre a matéria de facto invocada no R I, apenas aceitou parte dos arts. 17, 20, 34, 38, 40, 42 e 44;

-impugnação de quase todos os factos alegados no RI;

-está em causa o cumprimento em 2014 dos arts. 2º (3) e 4º/4 (4) do DL 226-A/2007 (regime da utilização dos recursos hídricos) (5), bem como ainda o art. 96º/1 do Reg do POOC de 2005 (6);

-o plano estratégico aqui em causa não é um instrumento de gestão territorial para efeitos do DL 389/99.

A decisão cautelar recorrida resume-se assim:

-invocando (pela 1ª vez no processo) o art. 37º do Reg do POOC de Vilamoura-Vila Real de Santo António de 2005 (7), a que chama de “vexata quaestio”, a Sra. juíza concluiu que a casa em questão, a demolir, é a única habitação do requerente, facto que no entanto, como quase todos, foi impugnado na oposição;

-não está preenchida a al. a) do nº 1 do art. 120º CPTA, parecendo-nos que o tribunal a quo concluiu pelo fumus non malus iuris da al. b) deste nº 1;

-estranhamente o tribunal referiu ou ponderou a resolução fundamentada sem haver qualquer incidente ao abrigo do art. 128º CPTA;

-considerou expressamente que a argumentação do requerente é prova eficaz do periculum in mora, relacionado com a perda da cit. habitação;

-em sede da ponderação exigida no nº 2 do art. 120º CPTA, parece que, algo vaga e confusamente, a Sra. juíza considerou como pressuposto de análise apenas a perda da única habitação.

1ª QUESTÃO - EXCESSO DE PRONÚNCIA (art. 37º do Reg. do POOC de 2005)

Segundo a recorrente, a decisão é nula por excesso de pronúncia (cf. art. 615º/1-d) NCPC), porque abordou e se fundou principalmente no art. 37º do Reg. do POOC, nomeadamente o seu nº 2, já transcrito supra; não seria uma questão a resolver pelo tribunal recorrido.

Tal nº 2 estabelece o seguinte:

-as ações de renaturalização serão enquadradas em planos de intervenção e requalificação a realizar pelo ministério responsável pela área do ambiente e do ordenamento do território para cada núcleo a renaturalizar, que deverão contemplar obrigatoriamente (1) a elaboração, no prazo de um ano a contar da aprovação do presente diploma, de um levantamento de todas as ocupações existentes que permita identificar a tipologia das construções, designadamente se consistem em primeiras habitações ou segundas habitações, a atividade dos residentes nas primeiras habitações, designadamente se esta está associada à pesca ou à exploração dos recursos da ria; (2) a indicação das alternativas de realojamento dos residentes que se confirmarem ser a habitação no aglomerado da ilha barreira a sua única residência; (3) A criação de incentivos para o realojamento referido, sendo que o mesmo deverá contemplar preferencialmente a transferência para os núcleos a reestruturar na mesma ilha barreira; (4) a programação da extinção progressiva dos núcleos existentes estabelecendo-se a calendarização da extinção das construções, que deverá iniciar-se pelas construções implantadas na duna primária e em áreas de risco, um prazo máximo para a desocupação das edificações, a sua demolição e transporte a vazadouro dos materiais dai resultantes, e as ações de recuperação e renaturalização total.

Com efeito, a recorrente tem razão.

Nem o art. 37º cit. foi invocado no r.i., nem a matéria abordada no r.i. contende com o teor meramente programático e organizativo de tal artigo.

Em bom rigor, tal art. 37º do R/POOC, considerado como a “vexata quaestio” pela Mmª juíza a quo, não coloca qualquer questão concreta a resolver para esta lide em concreto.

Pelo que a decisão cautelar é nula, por violação do art. 608º/2 do NCPC.

2ª QUESTÃO – JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO

Em sede de matéria de facto, é pouco rigoroso que se continue, há anos, a descrever a factualidade e a fazer julgamentos dos factos desta maneira. Com efeito, ocorreu alguma falta de rigor e completude na seleção dos factos relevantes, sendo ainda de sublinhar que os arts. 2º e 3º da Oposição impugnaram quase todos os factos invocados no R.I.

Não é compreensível que se escreva, numa decisão judicial, que a argumentação de uma parte é prova eficaz de certo facto ou de certa causa de pedir.

Sobre estas matérias cf.: António Geraldes, Temas da Reforma…, II, 4ª ed., nº 4.7 (Decisão da matéria de facto); Temas da Reforma…, III, 4ª ed., pp. 38 ss, 112 ss e 225-245; Francisco M. L. Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, I, pp. 159 ss; Paulo Ramos de Faria/Ana Luisa Loureiro, Primeiras Notas…, I, 2ª ed., (art. 607º) pp. 581-594; J. Lebre de Freitas, A Ação Declarativa…, 3ª ed., pp. 307 ss e 315 ss; Ac. STJ de 13-11-2014, Proc. nº 444/12.5TVLSB.L1.S1.

Vejamos.

Segundo a recorrente, o tribunal a quo omitiu os factos contidos nos arts. 1º (8), 32º a 34º (9) e 37º (10) da Oposição, transcritos aqui em nota de rodapé.

São, notoriamente, factos relevantes ante o DL 92/2008, invocado em ambos os articulados (ao contrário do cit. art. 37º), factos que a Mmª juíza a quo ignorou (apesar de também relevantes para a cit. questão oficiosamente levantada ali).

Quanto ao art. 1º, isso significa ter de dar como provado o teor do art. 17º do R.I.

Quanto aos outros, é matéria de facto controvertida. Estes deviam, portanto, como factos invocados na oposição, ter sido sujeitos a prova, incluindo a requerida prova testemunhal (art. 118º/3 CPTA).

Houve, portanto, défice de instrução da causa relativamente ao teor factual dos arts. 32 a 34 e 37 da Oposição, não em resultado de deficiência/obscuridade/contradição da decisão sobre certos pontos de facto, mas em resultado de um erro de julgamento quanto à sua relevância, correspondente ao previsto na parte final da al. c) do nº 1 do art. 662º NCPC.

3ª QUESTÃO - ERRO DE DIREITO

Neste ponto do recurso, a recorrente alega que os citados factos H e I são insuficientes para aplicar o cit. art. 37º/2 do R/POOC.

Estamos aqui no pressuposto errado seguido pela decisão cautelar. Seja como for, a verdade é que, natural e logicamente (à luz da experiência também), faturas com despesas de água e eletricidade não provam indiciariamente aquilo que a decisão supôs ser essencial ante o invocado no R.I. e ante o cit. art. 37º: que o Requerente teria a sua habitação única naquela casa, matéria aliás ostensivamente controvertida, sem prejuízo de ser claro que o cit. art. 37º não atribui qualquer direito ao requerente e que a lei não impede o despejo e a demolição mesmo nessa hipótese. E ainda sem prejuízo do previsto no DL nº 468/71 na redação do DL nº 89/87 (arts. 22º ss e 30º) e, depois, nas Leis nº 54/2005 e nº 58/2005.

Também aqui a decisão recorrida errou, à luz da experiência e do bom senso.

4ª QUESTÃO - ART. 66º da CRP

A referência contida na decisão ao direito fundamental social descrito no art. 66º da CRP (direito à habitação e não direito a uma concreta habitação) surge a propósito da aqui irrelevante resolução fundamentada. É, por isso, irrelevante contra a decisão cautelar e o seu real objeto, também relacionado com aquilo que se previu no decisivo DL nº 468/71 na redação do DL nº 89/87 (arts. 22º ss e 30º) e depois nas importantes Leis nº 54/2005 e nº 58/2005.

5ª QUESTÃO - DA CADUCIDADE DA PROVIDENCIA CAUTELAR DECRETADA

Quanto a este ponto (art. 123º/1-a) CPTA), a recorrente não tem razão, porque o tribunal constata no SITAF que a ação principal foi interposta atempadamente.

6ª QUESTÃO - DO ERRO NA PONDERAÇÃO PREVISTA NO Nº 2 DO ART. 120º DO CPTA

Como se sabe, os requisitos para o decretamento de uma providência cautelar, excessivamente explanados na decisão recorrida (e depois algo confundidos quanto a dois deles), são os seguintes:

(1º) o periculum in mora (fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal),

(2º) o fumus boni iuris na modalidade casuisticamente relevante de acordo com o CPTA (aqui é não ser manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular no processo principal ou a existência de circunstâncias que obstem ao seu conhecimento de mérito) e

(3º) que, quando devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da concessão da providência cautelar se mostrem inferiores àqueles que podem resultar da sua recusa.

A decisão entendeu o seguinte:

«Salienta-se na ponderação dos interesses em presença que a recusa da presente providência poderia acarretar uma situação irreversível para o Requerente, caso venha a proceder a sua pretensão na ação principal, o que deve ser sopesado. É que, na circunstância de a Entidade Requerida proceder à demolição da construção do Requerente, não se vislumbra, pelo menos, por enquanto, que fosse reposta a sua morada noutro local nem a normalidade da sua atividade, caso viesse a proceder a sua pretensão na ação principal, sendo que o período de tempo em que estaria a aguardar o desfecho dos autos principais se constituiria numa situação de prejuízo, desde logo, em termos habitacionais e económicos. Aqui chegados, de modo breve cabe, pois, acentuar que do ponto de vista da ponderação de interesses, se evidencia não se mostrar, in casu, adequada a prolação da deliberação de 2014.11.14, visto que, perfunctoriamente, não existe fundamento sólido, que a sustente, como ficou demonstrado aquando da análise do previsto na alínea a) do nº 1 do artº 120º do CPTA. Tal, aliado à minoração do interesse público perante a égide devida ao direito do Requerente (de manter a sua habitação na Avenida Poente, casa nº 115, na Praia de Faro) ou de terceiros concretamente afetados pelo decretamento da presente providência, leva-nos à conclusão favorável ao deferimento da providência».

Pelo atrás referido, consideramos que o juízo de proporcionalidade feito está incorreto, devido à enorme falta de factualidade relevante, ainda a necessitar de ser provada.

Não ficou provado, assim, que esta casa a demolir é a única habitação do requerente (cf. arts. 13º ss do R.I.), para efeitos do juízo ponderativo do nº 2 do art. 120º CPTA (questão distinta do fumus e das proibições constantes do DL 468/71, do DL 89/87, da Lei 54/2005 e da Lei 58/2005, bem como da indemnização referida no R.I.).

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III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juizes do Tribunal Central Administrativo Sul, de harmonia com o disposto nos artigos 202º e 205º da Constituição, em conceder provimento ao recurso, declarar nula a decisão recorrida e determinar, ao abrigo do art. 662º/3-c) NCPC, que o tribunal recorrido proceda a instrução quanto aos factos contidos nos arts. 32 a 34 e 37 da oposição e 13º ss do R.I., sem prejuízo de outra factualidade eventualmente considerada pertinente.

Sem custas.

Lisboa, 25-6-2015


(Paulo H. Pereira Gouveia - relator)

(Nuno Coutinho)

(Carlos Araújo)

(1) Art. 2º
3 — A Sociedade tem por objeto a gestão, coordenação e execução do investimento a realizar no âmbito do Polis Litoral Ria Formosa — Operação Integrada de Requalificação e Valorização da Ria Formosa, na área e nos termos definidos no respetivo plano estratégico, compreendendo igualmente o desenvolvimento das ações estruturantes previstas naquele documento em matéria de valorização e requalificação ambiental e urbana, dinamização de atividades turísticas, culturais, de lazer e outras intervenções que contribuam para o desenvolvimento económico e social da sua área de intervenção.
4 - O plano estratégico é elaborado tendo por base o quadro estratégico da operação elaborado pelo grupo de trabalho nomeado pelo Ministro do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional, e é aprovado pela assembleia geral da Sociedade e pelo município de Vila Real de Santo António.
(2) Artigo 3.º Poderes
1 — A Polis Litoral - Ria Formosa, S. A., fica autorizada a utilizar os bens do domínio público do Estado abrangidos pelo Polis Litoral Ria Formosa – Operação Integrada de Requalificação e Valorização da Ria Formosa, com vista à realização das operações previstas no plano estratégico e à prossecução dos seus fins.
2 — À Sociedade são conferidos os poderes e as prerrogativas de que goza o Estado quanto à proteção, desocupação, demolição e defesa administrativa da posse dos terrenos a que se refere o número anterior, das instalações que lhe estejam afetas e direitos conexos a uns e outras, bem como das obras por si executadas ou contratadas, necessários para as operações previstas no plano estratégico.
3 — À Sociedade são ainda conferidos os poderes de que goza o Estado para, nos termos do Código das Expropriações, agir como entidade expropriante dos bens imóveis, e direitos a eles inerentes, necessários à prossecução do seu objeto social.
(3) Art. 2º
1 - Se for abusivamente ocupada qualquer parcela do domínio público hídrico, ou nela se executarem indevidamente quaisquer obras, a autoridade competente intimará o infrator a desocupá-la ou a demolir as obras feitas, fixando para o efeito um prazo.
2 - Sem prejuízo da aplicação das penas que no caso couberem e da efetivação da responsabilidade civil do infrator pelos danos causados, uma vez decorrido o prazo fixado pela autoridade competente, esta assegurará a reposição da parcela na situação anterior à ocupação abusiva, podendo para o efeito recorrer à força pública e ordenar a demolição das obras por conta do infrator.
3 - Quando as despesas realizadas pela autoridade competente nos termos do número anterior não forem pagas voluntariamente no prazo de 20 dias a contar da notificação para o efeito, estas são cobradas judicialmente em processo de execução fiscal, servindo de título executivo a certidão comprovativa das despesas efetuadas emitida pela autoridade competente para ordenar a demolição.
4 - Se o interessado invocar a titularidade de um direito sobre a parcela ocupada, este deve provar a condição afirmada e requerer a respetiva delimitação, podendo a autoridade competente autorizar provisoriamente a continuidade da utilização privativa.
(4) Art. 4º
4 - Sem prejuízo da aplicação das outras sanções que no caso couberem, a inobservância do disposto no presente artigo é punida com a sanção estipulada no título ou dará lugar, se forem realizadas obras sem projeto aprovado ou com desrespeito deste, à sua demolição compulsiva, total ou parcial, por conta do infrator.
(5) Refira-se ainda o decisivo DL nº 468/71 na redação do DL nº 89/87 (regime jurídico dos terrenos no domínio público hídrico): arts. 22º ss e 30º.
De tal lei foram depois revogados os capítulos I e II do diploma pela Lei nº 54/2005 e os caps. III e IV do diploma, nos termos do nº 2 do art. 98º, na data da entrada em vigor dos atos legislativos previstos nos nºs. 1 e 2 do art. 102º, pela Lei nº 58/2005
(6) Art. 96º
1 - Constitui contraordenação punível com coima a realização de obras e a utilização de edificaç6es ou do solo em violação do disposto neste plano especial do ordenamento do território.
(7) Artigo 37.o - Espaços edificados a renaturalizar
1 — Estes espaços, assinalados na planta de síntese, são objeto de elaboração de ações de renaturalização a definir em função das exigências de equilíbrio natural e de acordo com o estado atual de degradação e ou risco.
2 — As ações de renaturalização serão enquadradas em planos de intervenção e requalificação a realizar pelo ministério responsável pela área do ambiente e do ordenamento do território para cada núcleo a renaturalizar, que deverão contemplar obrigatoriamente o seguinte:
a) A elaboração, no prazo de um ano a contar da aprovação do presente diploma, de um levantamento de todas as ocupações existentes que permita identificar:
i)A tipologia das construções, designadamente se consiste em primeiras habitações ou segundas habitações;
ii)A atividade dos residentes nas primeiras habitações, designadamente se esta está associada à pesca ou à exploração dos recursos da ria;
b) A indicação das alternativas de realojamento dos residentes que se confirmarem ser a habitação no aglomerado da ilha barreira a sua única residência;
c) A criação de incentivos para o realojamento referido na alínea anterior, sendo que o mesmo deverá contemplar preferencialmente a transferência para os núcleos a reestruturar na mesma ilha barreira;
d) A programação da extinção progressiva dos núcleos existentes estabelecendo-se:
i) A calendarização da extinção das construções, que deverá iniciar-se pelas construções implantadas na duna primária e em áreas de risco;
ii) Um prazo máximo para a desocupação das edificações, a sua demolição e transporte a vazadouro dos materiais dai resultantes;
e) As ações de recuperação e renaturalização total.
3 — Por despacho do membro do Governo responsável pela área do ordenamento do território e do ambiente será nomeada uma comissão específica cuja composição deve traduzir a natureza dos interesses a salvaguardar com vista ao cumprimento das medidas definidas no número anterior.
4 — A comissão incluirá um representante de cada uma das seguintes entidades:
a)Instituto da Conservação da Natureza/Parque Natural da Ria Formosa, que presidirá;
b)Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve;
c) Câmara municipal da área de intervenção respetiva (Loul6, Faro ou Olhão);
d) Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos;
e) Capitania do porto da área de intervenção (Faro ou Olhão);
f) Representante da respetiva associação de moradores.
5 — As áreas objeto de ações de renaturalização passarão a estar sujeitas ao regime aplicável às categorias de espaço natural envolventes.
6 — Nestes espaços, para além do disposto no número anterior, são interditas todas as obras de edificação.
(8) Aceita-se como verdadeira a confissão extrajudicial (art. 358º, nº2 do C.C.) constante do doc. Nº 8 junto com o R.I., a que se refere o artigo 17º do R.I.: «Por carta de 20/10/2014, a fls..., o Requerente declarou à entidade requerida que exerce a função/categoria de Ajudante de Motorista no barco com a denominação de “Nossa Senhora dos Remédios” com porto de abrigo em Quarteira” (v. também docs. 4 e 5 com o R.I.)».
(9) 32º
Foi efetuado um levantamento pela entidade requerida, nos termos do Decreto-Lei n.º 92/2008, contudo não se confirmou que a habitação no aglomerado da ilha barreira era a primeira e única residência do Requerente.
33º
Durante as diligências realizadas no âmbito do levantamento das construções existentes nos espaços edificados a renaturalizar no núcleo e construção aqui em apreço, apurou-se a existência de documentação em nome do Requerente mencionando morada diversa daquela invocada pelo Requerente como primeira habitação na ilha barreira.
34º
Com efeito, constatou-se que o Requerente dispõe de residência na fração autónoma sita na Rua ………., nº……. – 3º direito, ………, conforme o histórico da sua documentação na Segurança Social e Finanças.- Cf. processo instrutor.
(10) Constatou-se, ainda, que os filhos do Requerente frequentam estabelecimento de ensino em Faro (Escola Básica do ….. e Escola …….. 2, 3 Santo António (cf. também ponto 31 do docs. 8 com o R.I.), incompatível com a residência permanente declarada no núcleo, avultando, ainda, o reconhecimento de que os menores residem com os avós.