Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:11932/15
Secção:CA-2º JUÍZO
Data do Acordão:07/09/2015
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:PODER JURISDICIONAL, SENTENÇA JURIDICAMENTE INEXISTENTE
Sumário:Se a sentença do tribunal administrativo é elaborada por uma pessoa nomeada e em exercício de funções administrativas como assessora do Tribunal Constitucional, há uma ilegalidade muito grave; a sentença é juridicamente inexistente, porque lhe falta o seu principal elemento constitutivo, qual seja o de ser uma decisão elaborada por um cidadão investido e no exercício da função jurisdicional do Estado.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

· LUDMILA ……………………………. intentou no T.A.C. de LISBOA

Acão administrativa comum contra

· ESTADO PORTUGUÊS.

Pediu o seguinte: condenação do Réu no pagamento de € 67.393,98, acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento.

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Por sentença de 18-7-2014, o referido tribunal decidiu condenar o réu no pedido.

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Inconformado, o réu recorre para este Tribunal Central Administrativo Sul, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

1. Decorre da Deliberação do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais de 10.09.2013, do Despacho nº 12155/2013, do Exmº Senhor Conselheiro Presidente do Tribunal Constitucional e da legislação aplicável, que a Exmª Magistrada (dra. M.C.) que elaborou e subscreveu a decisão sub judice, estava à data da sua prolação, a exercer funções, em comissão de serviço, como Assessora do Gabinete do Presidente do Tribunal Constitucional.

2. Tendo suspendido o exercício da função jurisdicional no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra desde 16 de Setembro de 2013, data referida no Despacho de nomeação para a comissão de serviço.

3. O que exclui o exercício da função jurisdicional no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra desde a referida data, estando-lhe vedada a prolação de quaisquer atos de natureza jurisdicional.

4. Razão pela qual, face à sua nomeação para exercício de funções não jurisdicionais, em comissão de serviço, deveriam os presentes autos ter sido imediatamente redistribuídos a outro Juiz, que neles exerceria a função jurisdicional.

5. Segundo Alberto dos Reis, in CPC anotado, V, 114, sentença inexistente é o ato que não reúne o mínimo de requisitos essenciais para que possa ter a eficácia jurídica própria de uma sentença.

6. E, como tem sido entendimento jurisprudencial, "a sentença inexistente é um mero ato material, um ato inidóneo para produzir efeitos jurídicos, um simples estado de facto com a aparência de sentença, mas absolutamente insuscetível de vir a ter a eficácia de sentença."

7. A sentença inexistente, não produz quaisquer efeitos de direito, ou seja, não constitui, modifica ou extingue situações jurídicas - "Nullum est negotium, nihil agitur nihil actum est''.

8. À semelhança do ato nulo, a "sentença" inexistente é insuscetível de qualquer forma de convalidação e a declaração da sua inexistência produz efeitos ex tunc, ou seja, retroage à data da prática do ato. O ato é pois nulo ab initio.

9. Termos em que se conclui que tal "Sentença" é, salvo melhor entendimento, juridicamente inexistente.

10. Como tem sido entendido pela jurisprudência, "a declaração de nulidade da sentença produz efeitos "erga omnes'; é imprescritível, pode ser invocada por qualquer interessado, incluindo aquele que para ela tenha contribuído de qualquer maneira e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal."

11. E, porque a inexistência constitui uma invalidade mais grave que as nulidades principais, deve aplicar-se-lhe, pelo menos, o regime destas, sendo o seu conhecimento oficioso - Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de l8-01-2005, proferido no processo nº 984/03.

12. Pelo que, entendendo-se que a Magistrada que redigiu e subscreveu a decisão impugnada, à data da sua prolação, não estava no exercício de funções de Juiz, e, consequentemente, não tinha o poder de julgar, deverá a referida decisão ser declarada inexistente, anulando-se todo o processado subsequente, o que se requer.

13. Recorre-se da douta sentença de 18/7/2014, que julgou procedente a presente ação administrativa comum e, em consequência, condenou o Réu Estado Português a pagar à Autora Ludmila………………………. a quantia de€ 67.393,98, acrescida de juros, à taxa legal, desde a data de vencimento de cada uma das faturas até ao seu efetivo e integral pagamento.

14. Não se pode concordar com a douta decisão recorrida, pois entende-se que a mesma se encontra afetada dos vícios de erro de julgamento de facto e de direito, por errada apreciação da prova, designadamente da prova documental, e de errada interpretação e aplicação de direito.

15. A Mmª Juiz a quo fez errada interpretação dos contratos celebrados entre a Autora e a ADSE, no que respeita à sua natureza jurídica.

16. Os referidos acordos têm a natureza de contratos de adesão, nos termos dos quais a ADSE, ao estabelecer as cláusulas tipo dos contratos a celebrar com todos aqueles que se mostrem interessados, estabelece um modelo ou padrão que será utilizado na generalidade dos contratos por ele celebrados.

17. As entidades prestadoras de cuidados de saúde que pretendam celebrar acordos com a ADSE têm de propor a sua adesão, indicando na respetiva proposta quais os locais de atendimento e os dias e as horas em que pretendem exercer em cada um dos locais indicados.

18. Proposta que submetem à aceitação da ADSE e que passa a fazer parte integrante dos contratos como condições particulares dos mesmos, constituindo verdadeiras cláusulas de cumprimento.

19. Sendo a proposta da Autora prévia à celebração dos acordos, a informação interna n15NR/GPR/94 elaborada sobre tal proposta (alínea b) dos factos provados) teria necessariamente que ser subscrita em data anterior à da celebração dos ditos acordos.

20. Da prova documental resultou provado que a Autora tinha conhecimento dos dias e horas em que podia prestar os serviços em cada um dos locais mencionados nos acordos.

21. Pois nos ofícios n.ºs 026566 e 026567, datados de 02.03.94, é feita menção expressa de que os acordos celebrados entre a Autora e a ADSE foram devidamente homologados "no âmbito antes referido"(cf . fls. 3567 e 3573).

22. O que significa que os acordos foram homologados nos exatos termos propostos pela Autora ou seja no âmbito por si anteriormente referido.

23. Impugna-se assim a resposta dada ao quesito l da base instrutória, de modo que face à prova documental junta tal quesito seja considerado totalmente provado.

24. Em consequência, deve considerar-se que o pagamento das 909 fichas referentes a prestação de serviços realizados em dias não contemplados nos acordos, no montante global de € 34.263,60, não é devido pelo Réu - cfr. alínea X) dos factos provados.

25. Tendo ficado demonstrado, no âmbito da auditoria efetuada, o comportamento doloso da Autora nas suas relações com a ADSE, esta usou da prerrogativa legal concedida pelo art.º 45.º, n.º 5 do DL n.º 118/ 83, de 25 / 02, e suspendeu os pagamentos das faturas pendentes, até ao apuramento dos montantes totais faturados indevidamente.

26. Apuramento que seria efetuado pela ADSE através de análise detalhada de toda a documentação suporte apresentada pela Autora, de forma a verificar quais os serviços faturados de acordo com os contratos.

27. Porém, tendo-se apurado a existência de faturação de atos médicos praticados por outros médicos, como decorre do relatório de auditoria realizada, que foi notificado à Autora, sendo certo que estão em causa nos autos acordos em nome individual, competiria à Autora efetuar a prova de ter sido ela a prestadora efetiva dos serviços faturados de acordo com os contratos celebrados, depois do apuramento efetuado pela ADSE, o que nunca fez.

28. Ficando, assim, demonstrada a legitimidade da ADSE em suspender o pagamento das faturas em causa na presente ação, o que exclui a ilicitude do não cumprimento pontual dos contratos.

29. Estando em causa na presente ação a responsabilidade contratual, era à A. que cabia o ónus da prova da efetiva prestação desses serviços, não estando a mesma dependente de qualquer notificação por parte do Réu.

30. Sendo que a Autora não logrou fazer qualquer prova de que foi ela quem prestou efetivamente os serviços faturados de acordo com os contratos, nem em termos documentais, nem através da prova testemunhal apresentada, razão pela qual entendemos que deverá ser dado como provado o quesito 3 da base instrutória.

31. Pelo que forçoso é de concluir que foi a Autora quem incumpriu os acordos celebrados com a ADSE, e não o Réu Estado Português.

32. Devendo, em consequência, a douta decisão ser revogada e substituída por outra, que julgue improcedente a presente ação.

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Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

Da inexistência da sentença pelo facto de a sua autora já não ser juiza do TAC, mas estar nomeada em comissão de serviço como assessora no Tribunal Constitucional

Com efeito, a sentença (aplicação do Direito aos factos antes dados como provados) foi emitida em 18-7-2014 pela Sra. Juiza Marta ................, nomeada desde 16-9-2013, em comissão de serviço, assessora no Tribunal Constitucional (cf. DR-II, de 24-9-2013, p. 29345).

No entanto, a mesma juiza emitiu, antes de tal nomeação, o saneador-condensação e fez, em 24 e 27-10-2011, o julgamento da matéria de facto.

Ora, esta questão não se confunde com outra já resolvida pelo STA/C.T. (Acórdão de 12-Dez.-2012, Processo nº 01152/11) (com uma opinião igual existente no CSTAF) quanto ao contencioso tributário, onde não existe a resposta à base instrutória.

Estamos numa ação comum, num processo declarativo comum dos regulados no CPC anterior. A fase da sentença é diferente da fase do julgamento da matéria de facto controvertida (base instrutória). Este julgamento dos factos é reduzido a escrito, com as respostas escritas e fundamentadas à base instrutória.

É por isso que não tem aqui aplicação o art. 654º do CPC anterior e muito menos o art. 605º do NCPC. O princípio da plenitude da assistência dos juízes, estabelecido no artº 654.º do CPC, aliás, só tem aplicabilidade para a decisão sobre a matéria de facto.

E, assim sendo, como tem de ser, desde o dia 16-9-2013 (data da cit. nomeação como assessora de outro tribunal e em que o processo deveria ser redistribuído) que a sentença (a aplicação do Direito aos factos antes dados como provados por despacho escrito) deixou de poder ser elaborada pela sra. Juiza que proferira o despacho de respostas à base instrutória nesta ação declarativa comum regulada pelo CPC/1961-2007. Com efeito, nesse momento, (i) já não era juiza efetiva ou em exercício de funções, (ii) o julgamento da matéria de facto estava feito e reduzido a escrito, (iii) consistindo a sentença na aplicação do Direito à factualidade previamente fixada por escrito.

Parece ser este o entendimento do Conselho Superior da Magistratura (cf. sessão plenária extraordinária de 14/07/2009): ao juiz que, segundo as regras da competência e organização judiciária, for concluso o processo ou que o receber na sequência de movimentação judicial ou distribuição interna, tem o dever de proferir sentença no prazo legalmente estatuído para o efeito (art.º 658.º do CPC).

A ilegalidade assim cometida não cabe em nenhuma das previsões do art. 668º/1 do CPC/2007. Nem é uma das nulidades de atos processuais previstas nos arts. 193º ss do mesmo CPC. Mas é uma ilegalidade grave, que atinge o núcleo da sentença, a qual só existe se for feita por alguém no exercício de funções jurisdicionais; trata-se de um elemento essencial ou constitutivo da sentença (ato pelo qual o juiz decide a causa principal ou algum incidente que apresente a estru­tura de uma causa); sem ele não há sentença, como invoca o recorrente Estado, através do MP.

Ora, aqui, a autora da sentença não era, naquele momento da elaboração da mesma, uma pessoa no exercício de quaisquer funções jurisdicionais estaduais. Não há, pois, em bom rigor, nem incompetência jurisdicional (porque a autora do ato processual decisor aqui recorrido não exercia à data quaisquer funções jurisdicionais), nem sentença (pela mesma razão).

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III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os Juizes do Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso e julgar a sentença emitida como juridicamente inexistente e determinar que a sentença desta A.A.Comum seja elaborada pelo juiz legalmente competente do T.A.C. onde corre o processo.

Sem custas.

Lisboa, 9-7-15

(Paulo H. Pereira Gouveia - relator)

(Nuno Coutinho)

(Carlos Araújo)