Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2659/14.2BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:12/03/2020
Relator:SUSANA BARRETO
Descritores:IRS
BOLSA DE FORMAÇÃO
MÉDICO
Sumário:A bolsa adicional paga aos médicos internos em regime de vaga preferencial, constitui rendimento do trabalho dependente, enquanto remuneração acessória da remuneração principal e estes rendimentos estão sujeitos a retenção na fonte no momento do seu pagamento ou colocação à disposição.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:


I - Relatório

A Autoridade Tributária e Aduaneira, não se conformando com a sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por V..., contra a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, respeitante ao ano de 2011, dela veio recorrer para este Tribunal Central Administrativo Sul.

Nas alegações de recurso apresentadas, formula as seguintes conclusões:

A) In casu, salvaguardado o elevado respeito, na humilde perspetiva fáctico-jurídica da aqui Recorrente, deveria ter sido dada uma maior acuidade ao vertido no Decreto-Lei 45/2009, de 13.02, em concreto o vertido no art. 12.º-A, n.º 8; o art. 2.º do CIRS e o teor da Informação Vinculativa n.º 2184/03 da DSIRS, com despacho concordante do Sr. Subdiretor Geral de 2003-07-08,
B) Assim como deveria ter sido devidamente considerado e melhor valorado pelo respeitoso Tribunal a quo o consignado no acervo documental constante dos autos, maxime ao escopo de fls. 25 a 26-verso, fls. 27 a 28-verso, fls. 40 a 41 e fls. 45, todas do PAT junto aos autos.
C) Acresce ainda que, o respeitoso Areópago a quo, salvo e elevado respeito, não retirou as devidas e corretas ilações jurídicas da factualidade dada como a assente no item B), C), D), E), F), h) e I) do probatório dada como assente.
D) Tudo devidamente condimentado e com arrimo no respeito pelo Princípio da legalidade,
E) Para que, se pudesse aquilatar pela improcedência in totum, da Impugnação judicial aduzida pela Recorrida.
F) Decidindo como decidiu, o respeitoso Areópago a quo lavrou em erro de interpretação e aplicação do direito e dos factos, nos termos supra explanados.
G) Aliás, tudo assim vai referido, conforme melhor é explanado, vertido e fundamentado nos itens 14.º ao 41.º das Alegações de Recurso que supra se aduziram (dando-se aqui por integralmente vertidas por economia processual), e das quais, as presentes Conclusões são parte integrante.
H) Por conseguinte, salvo o devido respeito, que é muito, o Tribunal a quo lavrou em erro de julgamento.
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO, com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido total provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a sentença proferida com as devidas consequências legais.
CONCOMITANTEMENTE, apela-se desde já à vossa sensibilidade e profundo saber, pois, se aplicar o Direito é um rotineiro ato da administração pública, fazer justiça é um ato místico de transcendente significado, o qual, poderá desde já, de uma forma digna ser preconizado por V. Exas, assim se fazendo a mais sã, serena, objetiva e acostumada

O Recorrido contra-alegou, pugnando pela sua improcedência, com base no seguinte quadro conclusivo:

A) As bolsas de formação recebidas pelos médicos internos que ocupem vagas preferenciais não constituem remuneração pela prestação de trabalho, nem tão pouco constituem remuneração acessória daquela, nos termos do artigo n° 3 al. b) do CIRS.

B) Não sendo subsumíveis à previsão do artigo CIRS nem se alegando qualquer outra norma que preveja a sua sujeição a imposto, as bolsas de formação não devem ser sujeitas a IRS, pelo que a sua consideração para apuramento da matéria coletável em sede de IRS é ilegal.

C) As bolsas de formação encontram-se previstas no artigo 12°A do Decreto-Lei n° 203/2004, de 18 de agosto (Define o regime jurídico da formação médica, após a licenciatura em Medicina, com vista à especialização, e estabelece os princípios gerais a que deve obedecer o respetivo processo), aditado pelo Decreto-Lei n° 45/2009.

D) Neste diploma prevê-se a atribuição de uma bolsa de formação aos médicos internos que preencham uma vaga preferencial, bem como a obrigatoriedade daqueles, após o internato, ficarem a realizar trabalho para o estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial, por um período não inferior ao do respetivo programa de formação médica especializada, incluindo repetições. Em caso de incumprimento desta obrigação, o interno terá de devolver a totalidade ou parte do montante da bolsa recebida.

E) De acordo com o regime estabelecido no referido artigo 12° A, as vagas preferenciais são destinadas a suprir as necessidades de serviços e estabelecimentos de saúde carenciados de médicos em determinadas especialidades.

F) O médico interno tanto poderá receber formação no serviço ou estabelecimento de saúde onde será colocado em vaga preferencial como em outro serviço ou estabelecimento de saúde, que tenha capacidade formativa.

G) Após a conclusão com sucesso do internato, o médico será colocado no serviço ou estabelecimento com vaga preferencial, onde passará a prestar trabalho durante um período equivalente ao internato.

H) Durante o período de formação, mas não após a conclusão do internato, o serviço ou estabelecimento de saúde com a vaga preferencial suportará o pagamento da bolsa de formação.

I) Assim, na economia do artigo 12°-A, a bolsa de formação pode caracterizar-se do seguinte modo:

i. Corresponde a um incentivo (como o apelida o diploma) para que os médicos internos concorram a vagas em estabelecimentos ou serviços carenciados de determinadas especialidades;

ii. Tal incentivo tem como contraprestação a obrigação de permanência acima referida, e a pressuposta conclusão do internato.
iii. O sinalagma estabelece-se entre a prestação pecuniária (a bolsa de formação) e a permanência num determinado estabelecimento ou serviço de saúde por um certo período de tempo.
iv. A bolsa de formação, como o seu nome indica, é percebida durante o período de formação profissional obrigatória, a que corresponde o internato médico.
v. A bolsa de formação não tem correlação com a prestação de trabalho.
vi. O pagamento da bolsa de formação durante o internato e não após a conclusão deste, compreende-se na lógica de incentivo, motivando e vinculando os médicos internos a um benefício presente, sem que se instale a dúvida sobre a manutenção desse mesmo incentivo no futuro.

J) Deve assim ser prevenida qualquer confusão entre a prestação de trabalho e a bolsa de formação.

K) O interno, ao prestar trabalho, é remunerado pela entidade ou entidades para a qual presta trabalho e nos termos do contrato que tenha para o efeito celebrado.

L) Já a bolsa de formação é paga, durante o internato, pela entidade onde o interno irá ocupar a vaga preferencial após a conclusão com aproveitamento do internato.

M) Em consonância com o Tribunal a quo, é entendimento do Recorrido que a bolsa de formação não é sujeita a imposto, atenta a sua natureza compensatória pela obrigação de permanência, não tendo natureza remuneratória.

N) Esta dicotomia tem extrema importância em sede de IRS, porquanto o IRS incide sobre a retribuição do trabalho e não sobre quantias que se destinem a compensar o trabalhador por encargos ou sacríficos específicos, independentes da prestação do trabalho.

O) Na verdade, a possibilidade de ter de ser devolvida posteriormente interrompe a relação sinalagmática entre a prestação do trabalho e a prestação pecuniária, afastando a bolsa de formação de um puro conceito de remuneração.

P) Trata-se, pois, de uma compensação da restrição do exercício da liberdade de trabalho.

Q) Este traço particular do regime desta prestação pecuniária destaca-a e separa-a do conceito de remuneração, o qual, atento o disposto no artigo 1º da Lei Geral Tributária, se deve reconduzir ao sentido de contraprestação pela prestação de trabalho.

R) Não deve ser, pois, sujeito a imposto a bolsa de formação, nem, em consequência, ser retida qualquer quantia aquando do seu pagamento.

S) A Recorrente desconsidera por completo a especificidade do regime da bolsa de formação, considerando-a, numa interpretação que não corresponde sequer à letra e espirito do artigo 2° CIRS, uma remuneração acessória.

T) A remuneração dita principal e a ora qualificada remuneração acessória são muitas vezes processadas por entidades diversas.

U) Verifica-se assim uma total e inequívoca autonomia.

V) Na verdade, tal bolsa de formação será sempre devida mesmo que o médico interno não prestasse trabalho, já que a mesma se destina a compensar a obrigatoriedade de permanência em vaga preferencial após a conclusão do internato.

W) Também não autoriza a conclusão vazada pela Recorrente nas suas alegações de recurso uma correta interpretação do artigo 2o n° 2 e n° 3 al. b) do CIRS.

X) O artigo 2° do CIRS deve ser interpretado à luz do artigo 11° LGT e dos demais princípios estruturantes do direito fiscal, sendo permitido tributar apenas o que couber numa interpretação condizente com tais regras.

Y) Desde logo importa descartar os n° 1 e 2 do artigo 2º, porquanto tais n° pressupõem uma remuneração auferida pela prestação de trabalho, o que, conforme alegado supra, não sucede com a bolsa de formação, a qual é liquidada sem que tenha como contrapartida a prestação de trabalho.

Z) Tal resulta claro das alíneas do n° 1, sendo o n° 2 complementar do n° 1, esclarecendo que a tributação opera independentemente da forma e natureza do pagamento. Apenas é essencial o sinalagma que se estabelece entre a remuneração e a prestação de trabalho, o que permite distinguir este rendimento das restantes categorias constantes do CIRS.

AA) No n° 3, o CIRS procede a um alargamento do conceito de remuneração de trabalho dependente constante do n° 1, o que desde logo impede a sua invocação conjunta, como resulta da sentença recorrida.

BB) Prevê o a alínea b) do n° 3 que se consideram rendimentos de trabalho dependente as remunerações acessórias, nelas se compreendendo todos os direitos, benefícios ou regalias não incluídos na remuneração principal que sejam auferidos devido à prestação de trabalho ou em conexão com esta e constituam para o respetivo beneficiário uma vantagem económica, elencando de seguida um rol não taxativo de situações.

CC) Surgem desta norma dois requisitos distintos: 1) relação ou conexão com a remuneração principal e 2) natureza de vantagem económica.

DD) Analisando o primeiro requisito e conforme supra expendido, a bolsa de formação não é auferida devido à prestação trabalho, nem tem conexão com esta.

EE) Confrontando os factos constantes dos autos com o disposto na alínea b) do n° 3 e com o disposto no artigo 12° A do Decreto-Lei n° 203/2004, logo se conclui que a bolsa de formação é auferida com total autonomia da remuneração devida pela prestação do trabalho e não pressupõe sequer a existência de qualquer prestação principal.

FF) Tanto é assim que a remuneração principal e a bolsa de formação são na maioria dos casos devidas e liquidadas por entidades diversas e sem que a entidade que processa a bolsa de formação exija ou pressuponha a existência de uma remuneração principal.

GG) Nesta sede, o que se encontra disposto no n° 8 do artigo 12-A é irrelevante, já que se limita a afirmar a autonomia entre a bolsa de formação e a remuneração auferida pelo médico interno pela prestação de trabalho.

HH) Desde que cumpra as obrigações consignadas no n° 10 do mesmo artigo, o médico interno tem direito a auferir a bolsa de formação, sem qualquer dependência da prestação de trabalho.

II) Assim, não se pode considerar preenchido o primeiro requisito da alínea b) do n° 3 do artigo 2o CIRS.

JJ) Não obstante tal apuramento ser desnecessário, em face do não preenchimento do primeiro requisito, também o segundo requisito não se encontra preenchido.

KK) Conforme analisado supra, a bolsa de formação não se destina a conferir ao médico interno uma vantagem económica, que acresça à sua remuneração, mas sim uma compensação pela obrigação de permanência, o que constitui uma limitação à liberdade de trabalho do médico interno.

LL) Nessa perspetiva, a bolsas de formação não se distinguem de outras compensações não sujeitas a imposto, pelo que a sua tributação é ilegal.

MM) Mais se quer chamar a atenção para a jurisprudência já existente sobre a matéria em causa, a qual é referida na sentença recorrida, nomeadamente o Acórdão do TC A Sul, o qual foi igualmente acolhido em outras decisões de Iª Instância e Acórdão do TCA SUL (de 26/01/2017 no Processo 9980/16, de 23/02/2017 no Processo 9963/16, e de 23/03/2017 no Processo 874/13.5BELLE), da qual resulta já uma convicção formada de que os valores recebidos a titulo de bolsa de formação por médicos internos que ocupem vagas preferenciais, não são tributáveis em sede de IRS, por constituir uma compensação do processo de formação profissional desses médicos internos, e não uma remuneração acessória.

NN) Pelo que andou bem o Tribunal recorrido, ao condenar a Recorrente na anulação da liquidação impugnada na parte em que sujeitou a tributação o montante de € 9.000,00, auferido a título de bolsa de formação, bem como na restituição do imposto devidamente pago.

PELO EXPOSTO, não deverá ser dado provimento ao recurso apresentado pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
Assim se fará a costumada Justiça!

O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II – Fundamentação

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, as quais são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, que fixam o objeto do recurso, sendo as de saber se a denominada Bolsa de Formação a que se referia o nº 8 do artigo 12º-A do DL n.º 203/2004, de 18.08, no ano de 2011, constitui ou não rendimento tributável em sede de IRS.


II.1- Dos Factos

O Tribunal recorrido considerou como provada a seguinte factualidade:

A) Em 01.04.2010, o Impugnante celebrou com a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, I.P., um Contrato de Trabalho em Funções Públicas a Termo Resolutivo Incerto, para o exercício de funções como Interno do Internato Médico de Formação Específica de Otorrinolaringologia (cfr. doc. 1 junto com a p.i., que se dá aqui por reproduzido);
B) O Impugnante foi provido como Interno no Hospital de Faro em vaga preferencial (acordo);
C) Desde janeiro de 2011, e por incapacidade do Hospital de Faro para formação na especialidade de Otorrinolaringologia, o Impugnante recebe formação e presta trabalho no Centro Hospitalar Lisboa Ocidental – Hospital Egas Moniz (acordo);
D) Em 2011, o Impugnante auferiu retribuição mensal pelo trabalho prestado, como interno, no âmbito do internato médico, no Centro Hospitalar Lisboa Ocidental – Hospital Egas Moniz, que perfaz o montante bruto anual de € 26.043,01, (cfr. doc. 10 junto com a p.i.);
E) Auferiu ainda, em 2011, o valor mensal de € 750,00, que totalizou o valor anual de € 9.000,00, sem retenção na fonte ou quaisquer outros descontos, pago pelo Hospital de Faro a título de “Bolsa Formação-(Int.Médico)” (cfr. docs. 2 a 9 juntos com a p.i.);
F) Em 27.04.2012, o Impugnante apresentou a declaração Modelo 3 do IRS, referente ao ano de 2011 – declaração nº 33…–, da qual constam rendimentos da categoria A no montante bruto de € 26.043,01, sem ter sido indicado o montante de € 9.000,00 a que se refere a alínea precedente (cfr. doc. 10 junto com a p.i.);
G) Em 14.05.2012, foi emitida liquidação de imposto nº 2012 4…, com valor a reembolsar no montante de € 432,65 (cfr. doc. 15 junto com a p.i.);
H) Foi detetada pela AT, e notificada ao Impugnante, uma incorreção na declaração referida em F), designadamente por não ter sido declarada a totalidade dos rendimentos da categoria A, de acordo com a declaração Modelo 10 do Hospital de Faro (cfr. fls. 45 do PAT);
I) Em 19.05.2014, o Impugnante entregou declaração de substituição Modelo 3 do IRS – declaração nº 33…–, na qual foi acrescido o montante de € 9.000,00, ao Anexo A (cfr. doc. 11 junto com a p.i.);
J) Em 17.06.2014, foi emitida liquidação de imposto nº 2014 4…, por referência a 2011, com valor a pagar no montante de € 3.363,46, incluindo juros compensatórios no valor € 286,11, gerando nota de compensação nº 2014 0…, com montante a pagar de € 3.796,11 e data limite de pagamento a 04.08.2014 (cfr. docs. 12, 13 e 14 juntos com a p.i.);
K) Em 02.08.2014, o Impugnante procedeu ao pagamento do imposto (cfr. fls. 31, 39 e 43 do PAT);
L) A presente impugnação foi enviada por correio registado para o Serviço de Finanças de Lisboa-11, em 03.11.2014 (registo nº 005783262 no SITAF).
*
Nada mais foi provado com interesse para a decisão da causa.
*
Quanto aos factos provados, a convicção do Tribunal fundou-se na posição expressa pelas partes nos respetivos articulados, bem como na prova documental junta aos autos, não impugnada, e no processo administrativo tributário em apenso, conforme especificado em cada uma das alíneas supra.


II.2 Do Direito

Em causa nos presentes autos está, como vimos, se a denominada Bolsa de Formação a que se referia o nº 8 do artigo 12º-A do DL n.º 203/2004, de 18.08, no ano de 2011, constitui ou não rendimento tributável em sede de IRS.

A sentença recorrida julgou procedente a impugnação e anulou a liquidação impugnada na parte em que sujeitou a tributação o montante de € 9 000,00 auferido pelo Contribuinte a título de bolsa de formação e condenou a Fazenda Pública na restituição do imposto pago.

A Fazenda Pública insurge-se contra o decidido defendendo, se bem compreendemos e interpretamos as alegações de recurso apresentadas, que a MMª Juíza do Tribunal a quo, errou ao não ter considerado e melhor valorado os documentos constantes do processo administrativo junto com a contestação, nem ter retirado as devidas e corretas ilações jurídicas da factualidade dada como a assente nas alíneas B), C), D), E), F), h) e I) do probatório.

Desde já adiantaremos que não tem razão a Recorrente quando alega que o Tribunal a quo não considerou os documentos constantes do processo administrativo, porquanto os factos atestados pelos documentos referenciados e identificados pelas páginas do processo administrativo mencionadas nas alegações de recurso foram efetivamente levados ao probatório da sentença recorrida. Vejamos:

A folhas (fls.) 25 a 28-verso do processo administrativo (PA) junto com a contestação, consta a declaração de rendimentos modelo 3 apresentada pelo Impugnante em 2012.04.27; a fls. 40 a 41 do PA, a demonstração da liquidação e da compensação efetuadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, respetivamente; e fls. 45 do PA respeita à declaração mensal de remunerações, modelo 10 – rendimentos e retenções – residentes.

Ora, a declaração anual de rendimentos modelo 3 submetida pelo Impugnante em 2012.04.27, além de constar do processo administrativo, foi igualmente junta aos autos pelo próprio Impugnante, como doc. nº 10 junto com a pi, e a que se refere a alínea F) da parte III – Fundamentação de Facto da Sentença, supratranscrita.

A demonstração da liquidação e da compensação efetuadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira foram levados aos factos assentes nas alíneas G) e J) de III- Fundamentação de Facto.

E, da alínea H) do probatório consta: Foi detetada pela AT, e notificada ao Impugnante, uma incorreção na declaração referida em F), designadamente por não ter sido declarada a totalidade dos rendimentos da categoria A, de acordo com a declaração Modelo 10 do Hospital de Faro (cfr. fls. 45 do PAT).

Ainda assim, não vislumbramos na sentença recorrida o alegado erro de julgamento de facto, que tem sido definido em vários acórdãos deste TCA como aquele que ocorre quando o juiz decide mal ou contra os factos apurados. E as alegações de recurso não densificam e antes apontam pela verificação de um erro de julgamento por errada interpretação dos pressupostos de facto e de direito. Vejamos, então, se a sentença recorrida errou ao não ter feito a apropriada valoração da prova produzida.

A sentença recorrida, após apurar os factos, determinou a legislação aplicável ao caso, distinguiu entre rendimentos auferidos com natureza meramente compensatória por contraposição a rendimentos de natureza remuneratória, e concluiu que a liquidação impugnada era ilegal por erro nos pressupostos de direito e julgou a impugnação procedente.

Todavia, a jurisprudência mais recente e consolidada do Supremo Tribunal Administrativo, nomeadamente nos Acórdãos de 2018.01.31, Proc. nº 01331/16, de 2019.05.08, Proc. nº 02553/14.7BELRS, 2019.05.22, Proc. nº 01744/13.2BELRS e Proc. nº 015/15.4BEPDL, de 2019.05.29, Proc. nº 017/15.0BEPDL, de 2019.09.25, Proc. nº 0401/15.0BEAVR e de 2019.11.21, Proc. nº 016/15.2BEPDL, e deste Tribunal Central Administrativo Sul de 2020.05.07, no Proc. nº 521/15.0BELRS (todos disponíveis em www.dgsi.pt), que acompanhamos, vai em sentido contrário ao decidido na sentença recorrida e no de que a quantia atribuída ao Impugnante ora Recorrido, pese embora a designação atribuída pelo legislador, constitui rendimento do trabalho dependente, enquanto remuneração acessória da remuneração principal e consequentemente fora da incidência objetiva da norma de exclusão da tributação do artigo 2º, nº 8 alínea c) do CIRS, com a redação e vigor à data dos factos.

Seguindo a jurisprudência que dimana do já citado acórdão de 2018.01.31 proferido no Proc. nº 01331/16, referenciado na jurisprudência posterior, bem como nos acórdãos que se seguiram, por concordarmos com os argumentos que têm ido a esta corrente jurisprudencial, amplamente debatida, e no qual se escreveu o seguinte:

“Dispunha a alínea c) do n.º 8 do artigo 2.º do Código do IRS, na redação em vigor à data dos factos (…) que estavam excluídas de tributação «as prestações relacionadas exclusivamente com ações de formação profissional dos trabalhadores, quer estas sejam ministradas pela entidade patronal, quer por organismos de direito público ou entidade reconhecida como tendo competência nos domínios da formação e reabilitação profissionais pelos ministérios competentes».
No caso dos autos, o ora recorrido exerceu funções no [Hospital Egas Moniz] … durante o exercício de 2011, ao abrigo de um contrato de trabalho em funções públicas a termo resolutivo incerto, na qualidade de médico interno em regime de vaga preferencial e o Hospital de Faro emitiu recibos (…) onde consta o pagamento de uma bolsa de formação com uma periodicidade mensal e no valor de € 750.
Ora, nos termos do artigo 2.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de agosto (diploma que estabelece o regime jurídico do internato médico), na redação em vigor à data dos factos, «após a licenciatura em Medicina, inicia-se o internato médico, que corresponde a um processo único de formação médica especializada, teórica e prática, tendo como objetivo habilitar o médico ao exercício tecnicamente diferenciado na respetiva área profissional de especialização».
Ou seja, o internato médico corresponde ao período de exercício da Medicina que se segue, imediatamente, à conclusão da respetiva licenciatura. Neste período de internato, e ao abrigo de um contrato de trabalho a termo resolutivo incerto, os médicos internos exercem a sua profissão e recebem, simultaneamente, formação especializada de cariz teórico e prático (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de agosto).
Por força da aprovação do Decreto-Lei n.º 45/2009, de 13 de fevereiro, foi aditado ao Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de agosto o artigo 12.º-A, com a epígrafe “vagas preferenciais”, através do qual foi criada uma distinção ao nível das vagas do internato médico, a saber: as vagas comuns e as vagas preferenciais. Nos termos do Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 45/2009, de 13 de Fevereiro, a introdução desta distinção foi motivada pela revogação do contrato administrativo de provimento (operada no âmbito das alterações introduzidas ao regime legal da função pública pela Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro e pela Lei n.º 59/2008, de 11 de Setembro), o que obrigou à criação de uma nova forma de vinculação dos médicos internos através da qual pudesse ser assegurado o exercício de funções próprias do serviço público que não revestissem carácter de permanência.
Pela sua importância para a decisão do caso sub judice, transcreve-se o artigo 12.º-A do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de agosto, com a epígrafe «Vagas Preferenciais» (aditado pelo Decreto-Lei n.º 45/2009, de 13 de fevereiro):
1 - No mapa de vagas previsto no n.º 6 do artigo 12.º, podem ser identificadas vagas preferenciais, destinadas a suprir necessidades de médicos de determinadas especialidades, as quais não podem exceder 30 % do total de vagas estabelecidas anualmente.
(…)
3 - As vagas preferenciais são fixadas independentemente da existência de capacidade formativa no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que a elas deu lugar, podendo a formação decorrer em estabelecimento ou serviço diferente daquele, no caso de não existir idoneidade ou capacidade formativa.
4 - Os médicos internos colocados em vagas preferenciais assumem, no respetivo contrato, a obrigação de, após o internato, exercer funções no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial, por um período igual ao do respetivo programa de formação médica especializada, incluindo repetições.
5 - O exercício de funções nos termos do número anterior efetiva-se mediante celebração do contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, o qual é precedido de um processo de recrutamento em que são considerados e ponderados o resultado da prova de avaliação final do internato médico e a classificação obtida em entrevista de seleção a realizar para o efeito.
(…)
8 - O preenchimento de uma vaga preferencial confere direito a uma bolsa de formação, que acresce à remuneração do interno, de valor e condições a fixar por portaria conjunta dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças, da Administração Pública e da saúde, sem prejuízo do recurso a outros regimes de incentivos legalmente previstos.
(…)
10 - O incumprimento da obrigação de permanência prevista no n.º 4, bem como a não conclusão do respetivo internato médico por motivo imputável ao médico interno, salvo não aproveitamento em avaliação final de internato, implica a devolução do montante percebido, a título de bolsa de formação, sendo descontados, proporcionalmente, os montantes correspondentes ao tempo prestado no estabelecimento ou serviço de saúde onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial, a contar da data de conclusão do respetivo internato médico.
(…)
Importa, pois, compreender o “estatuto especial” conferido aos médicos em regime de vaga preferencial nos termos do artigo 12º-A transcrito, por oposição ao estatuto dos médicos internos em regime de vaga normal. Assim:
1. À semelhança dos médicos internos em regime de vaga normal, os médicos internos em regime de vaga preferencial celebram um contrato de trabalho a termo resolutivo incerto, ao abrigo do qual exercem a profissão de Medicina de forma remunerada e recebem formação especializada de cariz teórico e prático (artigos 2.º e 20.º do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de agosto).
2. Contrariamente aos médicos internos em regime de vaga normal, os médicos internos em regime de vaga preferencial:
a. Assumem a obrigação de, após internato, exercer funções no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial por um período igual ao do respetivo programa de formação médica especializada, incluindo repetições (artigo 12.º-A do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de agosto); e
b. Gozam do direito ao recebimento de uma bolsa de formação, que acresce à respetiva remuneração de médico interno (artigo 12.º-A do Decreto-Lei n.º 203/2004, de 18 de agosto).
Em face do exposto, parece evidente que aquilo que distingue uma vaga normal de uma vaga preferencial não é a existência de uma oferta formativa diferenciada ou alargada para os médicos internos que ocupam as vagas preferenciais, antes o facto de os médicos internos em regime de vaga preferencial assumirem a obrigação de, após o internato, exercerem funções no estabelecimento ou serviço onde se verificou a necessidade que deu lugar à vaga preferencial.
Afigura-se-nos, pois, duvidoso que, apesar da designação que o legislador lhe atribui, a bolsa adicional paga aos médicos internos em regime de vaga preferencial deva ser considerada como uma prestação relacionada exclusivamente com ações de formação profissional dos trabalhadores e como tal excluída de tributação em IRS…, pois sendo embora verdade a conexão desta com a formação especializada dos médicos que a recebem, o seu propósito confesso é o de incentivar a fidelização do médico interno no serviço ou hospital onde se verificou uma carência de profissionais e onde este vinha exercendo a profissão de Medicina em regime de internato, compensando-os pela obrigação de permanência naquele serviço após a conclusão do internato médico (...).”

E do acórdão STA de 2019.08.05, Proc.º 02553/14.7BELRS transcrevemos:

“(…) o regime jurídico da formação médica não integra um conceito normativo de bolsa de formação, designadamente definindo-a como uma comparticipação compensatória nas despesas inerentes à formação do médico interno no decurso do internato e nos termos daquele regime jurídico a bolsa de formação é considerada um incentivo pecuniário que acresce à remuneração do interno.
Acrescenta, ainda, que o auferimento da quantia a título de bolsa de formação em função da prestação de trabalho ou em conexão com a prestação de trabalho resulta claramente da circunstância de o incumprimento da obrigação de permanência do médico interno no estabelecimento onde se verificou a necessidade de provimento de vaga preferencial, por um período igual ao do respetivo programa de formação médica especializada, implicar a devolução do montante percebido a título de bolsa de formação, na proporção do período do incumprimento, pelo que a quantia atribuída mensalmente ao sujeito passivo a título de bolsa de formação, assumindo a natureza de incentivo pecuniário associado ao exercício da atividade profissional do médico interno provido em vaga preferencial, constitui rendimento do trabalho dependente, enquanto remuneração acessória da remuneração principal, consequentemente fora da incidência objetiva da norma de exclusão da tributação (art. 2º n.ºs 3 al. b) e 8 al. c) CIRS em vigor à data dos factos).» (fim de cit.).

De toda a argumentação exposta resulta evidente que a ação não poderá proceder merecendo, assim, provimento o presente recurso o que determina a revogação da sentença recorrida.


Sumário/Conclusões:

A bolsa adicional paga aos médicos internos em regime de vaga preferencial, constitui rendimento do trabalho dependente, enquanto remuneração acessória da remuneração principal e estes rendimentos estão sujeitos a retenção na fonte no momento do seu pagamento ou colocação à disposição.


III - Decisão

Termos em que, face ao exposto, acordam em conferência os juízes da 2ª Subsecção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar improcedente a impugnação.

Custas pelo Recorrente, que decaiu.

[Nos termos e para os efeitos do artigo 15º-A do DL nº10-A/2020, de 13 de março, o Relator atesta que os Juízes Adjuntos - Excelentíssimos Senhores Juízes Desembargadores Vital Lopes e Luísa Soares - têm voto de conformidade.]

Lisboa, 3 de dezembro de 2020

Susana Barreto