Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:35/17.4BCLSB
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:07/05/2017
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:SENTENÇA ARBITRAL
NULIDADE
FUNDAMENTAÇÃO
Sumário:i) O artigo 615.º n.º 1, al. b), do CPC comina a nulidade da sentença quando a esta falte a especificação dos fundamentos de facto e de direito da decisão.

ii) Esta especificação dos fundamentos da decisão judicial refere-se à sua motivação ou fundamentação no plano factual e jurídico e passa pela expressão e discriminação da matéria de facto considerada pertinente para apoiar a solução de direito, cumprindo, assim, uma dupla função: por um lado, impõe necessariamente ao juiz um momento de controlo crítico da lógica e da bondade da decisão, por forma a persuadir os destinatários e a comunidade jurídica em geral; por outro, permite, pela via do recurso, o reexame da decisão por ele tomada.

iii) O artigo 25.º, n.º 2, do Regulamento de Arbitragem Administrativa exige, pelo menos, que a decisão arbitral contenha uma descrição concisa da base factual, probatória e jurídica que a fundamenta.

iv) Não tendo sido feito o julgamento da factualidade necessária em face do regime legal aplicável para a decisão que nele se tomou, este Tribunal de recurso está impedido de levar a cabo a sua actividade jurisdicional, ou seja, de sindicar essa decisão numa perspectiva de análise do raciocínio que presidiu à mesma, sendo que não se alcança sequer qual a factualidade concretamente dada por assente.

v) A falta total de discriminação dos factos provados (e não provados) é sancionada com a nulidade da sentença proferida, pois impede o tribunal ad quem de apreciar o recurso nos seus restantes aspectos
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

Alice …………………… e Outros (Recorrentes), Demandantes nos presentes autos de arbitragem, notificados da sentença arbitral que julgou improcedentes os pedidos por estes formulados na acção proposta contra a Polícia Judiciária – Ministério da Justiça (Recorrido) e não se conformando com a mesma, dela interpuseram recurso jurisdicional para este Tribunal Central Administrativo Sul.

As alegações de recurso que apresentaram culminam com as seguintes conclusões:

1. A sentença recorrida omitiu a indicação dos factos dados como provados, violando o disposto no artigo 25.°, n.° 2, 26.°, n.°2, do RA, 94.°, n.°s 2 e 3, do CPTA, sendo nula nos termos do artigo 615.°, n.° 2, alínea a) do CPC;

2. Estando provada a matéria vertida nos artigos 6.° e 12.° a 16.° da petição inicial, está integrada a previsão do artigo 99.°, n.ºs 3 e 4 do Decreto-Lei n.° 295-A/90, de 21/09, preceito violado pela sentença recorrida;

Termos em que, deve a sentença arbitrai ser revogada, por ser nula ordenando-se que os autos baixem para a matéria de facto ser julgada ou, se assim se não entender, deve o recurso ser julgado procedente, revogando-se a sentença e substituindo-se por outra que declare a procedência dos pedidos feitos pelos Recorrentes.



O Recorrido apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.


Neste Tribunal Central Administrativo, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, notificado nos termos do art. 146.º, n.º 1, do CPTA, pronunciou-se no sentido da procedência do recurso.


Com dispensa dos vistos legais, importa apreciar e decidir.


I. 1. Questões a apreciar e decidir:

As questões suscitadas pelos Recorrentes, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, traduzem-se em apreciar se a sentença do Tribunal arbitral é nula por falta de fundamentação da matéria de facto e se errou ao julgar a acção improcedente.



II. Fundamentação

II.1. De facto

A matéria de facto foi fixada na sentença arbitral recorrida, nos seguintes termos:

1. DA MATÉRIA DE FACTO

a. Factos dados como provados

Da apreciação do pedido neste litígio estão assentes os factos alegados na PI na medida em que estão documentados e não sofreram qualquer contestação pelo Demandado, à exceção de:

1. Da perceção de um suplemento de risco a que têm direito todos os funcionários ao serviço do Demandado - n.º 1 do artigo 99.º do Decreto-Lei n.º 295-A/90 de 21 de setembro - e, como tal os Demandantes auferem segundo as regras estabelecidas, no n.º 5 do artigo 99.º do mesmo diploma legal, correspondente a 20% do índice 100 da respetiva tabela indiciária.

2. Da não identificação, clara e objetiva, do conteúdo funcional declarado pelos Demandantes, que não obstante ser o verdadeiro, mas que não traduz, de forma clara e inequívoca, o alcance da perigosidade da função dos Demandantes, não evidenciando que seja superior aos demais trabalhadores ao serviço do Demandado e, que nos mesmos termos legais, percecionam como suplemento de risco, os 20% do índice 100 da respetiva tabela indiciária, decorrente da aplicação do mesmo normativo legal i.e. por aplicação do n.º 5 do artigo 99.º do Decreto- Lei n.º 295-A/90 de 21 de setembro.

3. Do declarado pelos Demandantes sobre o seu respetivo conteúdo funcional, não constar uma informação que indicie e evidencie, de forma clara e objetiva, que correm iguais riscos no exercício das suas funções, aos que pertencem à carreira de investigação criminal ou aos exercem funções nas áreas funcionais de criminalística, de telecomunicações e de segurança, com direito a um suplemento de risco superior /.e., correspondente a 25% do índice 100 da respetiva tabela indiciária, nos termos e para os efeitos da aplicação dos n.ºs 3 e 4 do artigo 99.º do Decreto-Lei n.º 295-A/90 de 21 de setembro.

4. Da indicação por parte dos Demandantes, de datas que correspondem ao início das suas respetivas funções na Unidade de Perícia Financeira e Contabilística, datas a partir das quais reclamam ter direito à perceção do suplemento de risco, nos termos e para os efeitos dos n.s 3 e 4 do artigo 99.º do Decreto-Lei n.º 295- A/90 de 21 de setembro, mas que retroagem em momento anterior à criação dessa Unidade de apoio à investigação criminal /.e., em datas anteriores à entrada em vigor do diploma que a criou, o Decreto-Lei n.º 42/2009, de 12 de fevereiro.

5. O facto de os Demandantes terem pedido a correção da PI inicial, à qual juntaram o processo administrativo, “o que complementará a junção tardia dos documentos”, como foi afirmado pelo Demandante.

b. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados”.



II.2. De direito

Vem suscitada no recurso a nulidade da sentença arbitral, invocando os Recorrentes que a decisão recorrida não esclarece quais os factos alegados na p.i. que estão assentes, em desrespeito do disposto nos art.s 25.º, n.º 2, do Regulamento de Arbitragem (RA) e 94.°, n.° 2, do CPTA.

Na sequência de despacho do relator, o processo baixou ao tribunal arbitral a fim de ser emitida pronúncia sobre a nulidade suscitada, tendo a Mma. Juiz árbitro apresentado “resposta” onde pugna pela inexistência da apontada nulidade, mantendo a decisão arbitral recorrida.

Vejamos então.

Os Recorrentes insurgem-se contra a decisão arbitral, invocando a sua nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que sustentam a decisão, nos termos do disposto na alínea b), do nº 1, do art. 615.º do CPC, na medida em que nesta não se explicitou os fundamentos de facto da matéria dada como provada.

E, podemos adiantar, aos Recorrentes assiste razão.

Com efeito, é por demais manifesto que a sentença em crise não respeitou os normativos contidos nos art.s 607.º e 608.º do CPC, relativos à elaboração das sentenças e seus requisitos.

A exigência de fundamentação das decisões judiciais encontra previsão no art. 154.º do CPC e constitui, aliás, imperativo constitucional.

Com efeito, estatui o art. 205º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, o seguinte: “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.”.

Desta norma constitucional decorre que a Constituição só excepciona do dever de fundamentação as decisões de mero expediente – neste sentido, José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 1999, pág. 281 [“Hoje, o preceito constitucional impõe o entendimento de que só o despacho de mero expediente (…) não carece, por sua natureza, de ser fundamentado (já assim entendia ANSELMO DE CASTRO, DPC, cit., ps. 46-47) (…)”].

De acordo com o prescrito no art. 152º n.º 4, do CPC de 2013, são despachos de mero expediente aqueles que se destinam a “prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes; (…)”.

É, aliás, neste contexto, que o art. 615º nº 1, al. b), do CPC de 2013, estipula que é nula a sentença quando falte a especificação dos fundamentos de facto e de direito da decisão, preceitos que são aplicáveis a quaisquer outras decisões judiciais por força do estatuído no nº 3 do art. 613º, desse diploma legal.

Esta especificação dos fundamentos da decisão judicial refere-se à sua motivação ou fundamentação no plano factual e jurídico e passa pela expressão e discriminação da matéria de facto considerada pertinente para apoiar a solução de direito, cumprindo, assim, uma dupla função: por um lado, impõe necessariamente ao juiz um momento de controlo crítico da lógica e da bondade da decisão, por forma a persuadir os destinatários e a comunidade jurídica em geral; por outro, permite, pela via do recurso, o reexame da decisão por ele tomada. A eficácia da decisão judicial e, em última análise, a legitimação do próprio poder jurisdicional dependem, pois, da forma como se mostra cumprido o princípio da motivação das decisões judiciais.

O que não é dispensado na decisão arbitral, de acordo com o previsto no art. 25.º, nº 2, do Regulamento de Arbitragem Administrativa, onde se exige, pelo menos, que a decisão arbitral contenha uma descrição concisa da base factual, probatória e jurídica que a fundamenta.

Ora, a falta – que tem de ser absoluta, ou seja, total – de julgamento dos factos necessários à decisão constitui nulidade de conhecimento oficioso.

Com efeito, e como esclarece Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e do Processo Tributário Anotado e Comentado, vol. II, 6ª Edição, 2011, pág. 359, anotação 7 b) ao art. 125º (norma análoga ao art. 615º, do CPC de 2013):

Na verdade, no que concerne à matéria de facto provada, prevê-se n.° 4 do art. 712.° do CPC [que corresponde ao art. 662º n.º 2, al. c), do CPC de 2013], para os recursos para tribunais de 2.ª instância, como é o caso dos tribunais centrais administrativos, que, em recursos de decisões dos tribunais (…) de 1ª instância, eles poderão anular oficiosamente a decisão proferida pela 1.ª instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta. // Como é óbvio, se esta possibilidade existe quando se está perante uma mera deficiência, obscuridade ou contradição, por maioria de razão existirá esta possibilidade de anulação oficiosa quando exista uma total falta de discriminação dos factos provados.” – também neste sentido, entre outros, Acs. do STA de 23.6.1988, proc. n.º 24 700, 12.11.2008, proc. n.º 546/08, 12.1.2011, proc. n.º 638/10, 16.11.2011, proc. n.º 453/11, e 16.1.2013, proc. n.º 343/12, e Acs. deste TCA de 22.9.2005, proc. n.º 1049/05, e 23.10.2008, proc. n.º 5018/00.

Cumpre ainda salientar que o art. 662.º, do CPC de 2013, permite ao Tribunal Central Administrativo alterar a matéria de facto fixada pela 1ª instância, desde que observados certos requisitos, mas não permite a total substituição na fixação dessa matéria de facto em caso de, em absoluto, nenhuma tenha sido aí fixada. As nulidades que afectem a apreciação da matéria de facto obstam à apreciação justa do recurso na sua totalidade.

Para efeitos da mencionada nulidade não interessa saber se os elementos constantes do processo, que o juiz tinha quando decidiu, justificam a decisão, mas antes verificar que esta não contém qualquer fundamentação.

Retomando o caso vertente verifica-se que a sentença arbitral recorrida, fixa a factualidade que entendeu assente pela negativa – em jeito do que não raras vezes se faz em sede de contestação do pedido -, mas nenhum facto – enquanto tal – vem autonomamente dado como provado ou não provado. Em suma, não se alcança qual a concreta factualidade provada e porquê (motivação da decisão sobre a matéria de facto).

Aliás, já em situação similar se decidiu neste tribunal em 14.02.2017, no proc. nº 15/17.0BELSB, onde se escreveu:

A decisão recorrida não contém, pois, fundamentação de facto minimamente expressa e clara.

Não sabemos sobre que factos concretos o TAD se debruçou para os qualificar juridicamente, fazendo o respetivo enquadramento jurídico, nos termos imperativos e consabidos do silogismo judiciário.

Pelo que também não sabemos exatamente qual o juízo de direito que foi feito, já que este só adquire sentido racional quando reportado a factos concretos, que desconhecemos.

É, portanto, uma decisão deficiente e obscura quanto à sua fundamentação”.

Em suma, fazendo nossas as impressivas palavras usadas no acórdão do TCAN de 11.01.2013, proc. n.º 339/11.0BEMDL:“a decisão da matéria de facto, em concreto dos factos provados, traduz-se num absoluto niilismo, numa redução a nada”.

Pelo que, tudo visto, como naquela sentença não foi feito o julgamento da factualidade necessária em face do regime legal aplicável para a decisão que se alcançou, este Tribunal de recurso está impedido de levar a cabo a sua actividade jurisdicional, ou seja, de sindicar essa decisão numa perspectiva de análise do raciocínio que presidiu à mesma. Conclui-se, assim, que a sentença arbitral recorrida deverá ser anulada porque omitiu os factos que considera provados e não provados, ordenando-se a devolução dos autos, a fim de ser proferida nova decisão em que se proceda ordenadamente ao julgamento da matéria de facto e de direito.

Atento o decidido, fica naturalmente prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.



III. Conclusões

Sumariando:

i) O art. 615.º n.º 1, al. b), do CPC estipula que é nula a sentença quando falte a especificação dos fundamentos de facto e de direito da decisão.

ii) Esta especificação dos fundamentos da decisão judicial refere-se à sua motivação ou fundamentação no plano factual e jurídico e passa pela expressão e discriminação da matéria de facto considerada pertinente para apoiar a solução de direito, cumprindo, assim, uma dupla função: por um lado, impõe necessariamente ao juiz um momento de controlo crítico da lógica e da bondade da decisão, por forma a persuadir os destinatários e a comunidade jurídica em geral; por outro, permite, pela via do recurso, o reexame da decisão por ele tomada.

iii) O art. 25.º, n.º 2, do Regulamento de Arbitragem Administrativa exige, pelo menos, que a decisão arbitral contenha uma descrição concisa da base factual, probatória e jurídica que a fundamenta.

iv) Não tendo sido feito o julgamento da factualidade necessária em face do regime legal aplicável para a decisão que nele se tomou, este Tribunal de recurso está impedido de levar a cabo a sua actividade jurisdicional, ou seja, de sindicar essa decisão numa perspectiva de análise do raciocínio que presidiu à mesma, sendo que não se alcança sequer qual a factualidade concretamente dada por assente.

v) A falta total de discriminação dos factos provados (e não provados) é sancionado com a nulidade da sentença proferida, pois impede o tribunal ad quem de apreciar o recurso nos seus restantes aspectos.



IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso e anular a decisão arbitral recorrida.

São devidas custas pelo Recorrido, que contra-alegou.

Lisboa, 5 de Julho de 2017



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Pedro Marchão Marques


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Maria Helena Canelas


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Cristina Santos