Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:09098/12
Secção:CA - 2.º JUÍZO
Data do Acordão:10/04/2012
Relator:RUI PEREIRA
Descritores:DIREITO DE ASILO – PROTECÇÃO SUBSIDIÁRIA
Sumário:I – A autorização de residência por razões humanitárias, prevista no artigo 7º da Lei nº 27/2008, de 30/6, só pode ser concedida se, no país de origem do interessado, existir “grave insegurança devida a conflitos armados ou à sistemática violação dos direitos humanos» que, em concreto, impeça [“pulsão objectiva”] ou impossibilite [“pulsão subjectiva”] o regresso [e permanência] do requerente ao país da sua nacionalidade”.
II – Cabe ao requerente do pedido de asilo ou, subsidiariamente, de autorização de residência por razões humanitárias, o ónus da prova dos factos que alega.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL

I. RELATÓRIO
A... , natural da República Democrática do Congo, intentou no TAC de Lisboa contra o Ministério da Administração Interna uma acção administrativa especial, pedindo a anulação do despacho de 9-3-2012, da autoria do Director Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, que lhe recusou o pedido de asilo e não admitiu o pedido para efeitos de concessão da autorização de residência por razões humanitárias, pedindo ainda a condenação do réu a deferir o pedido de asilo que formulou.
Por sentença datada de 31-5-2012, o TAC de Lisboa julgou a acção improcedente [cfr. fls. 73/94 dos autos].
Inconformado, o autor interpôs recurso jurisdicional para este TCA Sul, tendo na alegação apresentada formulado as seguintes conclusões:
a) O recorrente é membro do UDPS.
b) No dia 5 de Janeiro de 2012 a tropa de Kabila atacou os militantes do UDPS – que se encontravam no Estádio dos Mártires, onde o Presidente do Partido – Tshisekedi, ia prestar juramento como Presidente da República eleito.
c) Sendo um dos apoiantes militantes que se encontrava à espera, ficou com a vida em perigo, tendo sido perseguido a partir de então, tanto mais que perto da sua morada existem duas secções do Partido de Kabila que, nessa altura, atacaram os militantes do UDPS.
d) Depois disso, receando perder a sua vida, decidiu abandonar o país.
e) É consabido que a situação social e político-militar prevalecendo na República Democrática do Congo atingiu um grau elevado de instabilidade, insegurança e descrédito, tendo como antecedentes, o período da violenta guerra civil, com a continuação de tensões políticas e sociais e, recentemente, durante a campanha eleitoral para as eleições presidenciais.
f) Refira-se que a situação prevalecente nesse país configura, de muito tempo a esta parte, a existência de uma sistemática violação dos direitos humanos, sendo os militares os principais agentes de perseguição, circunstância em que se estriba o requerente para fundamentar o seu receio, entendendo que tinha a vida em perigo e por esta razão fugiu do seu país.
g) Assim sendo, importa, desde logo, concluir que os pressupostos para um pedido de protecção internacional estão perfeitamente preenchidos.
h) Refira-se que o princípio do benefício da dúvida merece acolhimento expresso no novo regime jurídico nacional do asilo, designadamente, no nº 4 do artigo 18º da Lei nº 27/2008, de 30 de Junho.
i) Sobre os requisitos da concessão do estatuto de refugiado, enunciados pela norma constante do nº 2 do artigo 3º da Lei nº 27/2008, de 30 de Junho, relativa à concessão do estatuto de refugiado, está este preceito em sintonia com a definição prevista pelo artigo 1-A (2) da Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados e pelo artigo 1 (2) do seu Protocolo de Nova lorque de 1967.
j) "Têm ainda direito à concessão do asilo os estrangeiros e os apátridas que, receando com fundamento ser perseguidos em razão da sua raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou integração em certo grupo social, não possam ou, por esse receio, não queiram voltar ao Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual".
k) Nos termos deste normativo, constituem requisitos para o reconhecimento do estatuto de refugiados:
i. O requerente encontrar-se fora do país da sua nacionalidade;
ii. Apresentar um receio fundado [de perseguição];
iii. Perseguição;
iv. Em razão da raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou integração em certo grupo social;
v. Ausência de protecção do Estado.
l) Entende, por isso, o requerente, que estão preenchidos os pressupostos para a concessão do pedido de asilo.
m) Mas se assim se não entendesse, deveria ter sido equacionada a hipótese de conceder, ao autor, uma autorização de residência por razões humanitárias, conforme dispõe o artigo 7º da Lei nº 27/2008, de 30 de Junho.
n) A Constituição garante o direito de asilo aos estrangeiros e aos apátridas perseguidos ou gravemente ameaçados de perseguição, em consequência da sua actividade em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana.
o) A sentença recorrida viola os artigos 15º e 24º da Lei Fundamental.
p) De outro lado, estabelece o artigo 16º, nº 2 da Constituição que "os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados com a Declaração Universal dos Direitos do Homem".
q) Ora, à luz do disposto no artigo 14º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, "em caso de perseguição, toda a pessoa tem o direito de buscar asilo e de receber o benefício dele em qualquer país".
r) O despacho ora sob impugnação ofende as citadas disposições da Lei Fundamental e os normativos supra enunciados da Lei nº 27/2008, de 30 de Junho, mormente o artigo 3º, pelo que deve ser anulado.
s) Se assim se não entender, deve considerar-se que, o risco para a vida do autor que decorreria do seu repatriamento, justifica que, em abono do direito à vida, lhe seja concedida autorização de residência por razões humanitárias, nos termos do artigo 7º da Lei nº 27/2008, de 30 de Junho.
t) O recorrente faz prova de ser congolês e nascido na República Democrática do Congo, conforme cópia da certidão de nascimento que junta.
u) Deve ser deferido o pedido de asilo formulado pelo autor; ou, caso assim se não entenda,
v) Deve ser admitido o pedido de concessão da autorização de residência por razões humanitárias, sob pena de violação do artigo 7º da Lei nº 27/2008, de 30 de Junho.” [cfr. fls. 167/172 dos autos].
O Ministério da Administração Interna contra-alegou, tendo concluído que o recurso não merece provimento [cfr. fls. 154/156 dos autos].
O Digno Magistrado do Ministério Público junto deste TCA Sul emitiu douto parecer, no qual defende que o recurso não merece provimento [cfr. fls. 183 dos autos].
Colhidos os vistos legais, vêm os autos à conferência para julgamento.

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria de facto pertinente é a que foi considerada provada na sentença recorrida, a qual se dá aqui por reproduzida, nos termos do nº 6 do artigo 713º do CPCivil.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Face à matéria de facto dada como assente pela sentença recorrida, importa agora apreciar o mérito do recurso interposto.
Relembremos, pois, os factos essenciais que a sentença recorrida considerou como assentes:
a) O autor chegou ao Posto de Fronteira do Aeroporto Internacional de Lisboa, no dia 1 de Março de 2012, no voo AT980, proveniente de Casablanca, tendo apresentado o Passaporte angolano nº N1019890, no qual se encontra aposto o visto Schengen, emitido pela embaixada portuguesa em Luanda – cfr. docs. de fls. 5 a 13 do processo administrativo apenso;
b) Em 1 de Março de 2012, foi elaborada proposta de recusa de entrada em território nacional por o autor "não fazer prova adequada do objectivo e das condições da estada pretendida e pela insuficiência de meios de subsistência, conforme o previsto nos artigos 11º, 13º, 32º, alínea a), da Lei nº 23/2007, de 4/7, conjugado com a alínea c) do nº 1 do artigo 5º do Reg. (CE) 562/06, de 15/3 – cfr. doc. de fls. 17 do processo administrativo apenso;
c) No mesmo dia, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras comunicou ao autor que a entrada em território nacional lhe foi recusada por falta de documentação válida comprovando a finalidade e as condições de estada e insuficiência de meios de subsistência – cfr. doc. de fls. 18/19 do processo administrativo apenso;
d) No dia 2 de Março de 2012, o autor formulou pedido de asilo às autoridades portuguesas, identificando-se como sendo Luzimadio Tonton, nacional da República Democrática do Congo, e referindo que saiu do país de origem porque "a tropa bateu tiros na nossa porta" – cfr. doc. de fls. 29 e segs. do processo administrativo apenso;
e) Em 7 de Março de 2012, o Conselho Português para os Refugiados emitiu o parecer de fls. 46 a 57 do processo administrativo apenso, tendo emitido a seguinte proposta:
[…]
9. Proposta:
Face aos factos atrás expostos, consideramos o pedido de asilo infundado, por não se enquadrar em nenhuma das disposições previstas na Convenção de Genebra e no Protocolo de Nova torque, e por constituir um pedido inadmissível por estarem preenchidas as causas de inadmissibilidade previstas nas alíneas b), c) e do nº 2 do artigo 19º da Lei nº 27/2008, de 30/6.
Tendo em conta o exposto no ponto 8 da presente informação, consideramos igualmente que o caso não é susceptível de enquadramento no regime de protecção subsidiária previsto no artigo 7º da mesma Lei.
Assim, submete-se à consideração do Exmº Director-Nacional do SEF a não admissão do pedido de asilo, nos termos do disposto nas alíneas b), c), d) ii) do nº 2 do mesmo artigo 19º da Lei de Asilo” – cfr. doc. de fls. 58-63 do processo administrativo apenso;
f) Por despacho de 9 de Março de 2012, o Director Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, acolhendo a Informação nº 125/GAR/12, de 9 de Março de 2012, referida na alínea anterior, decidiu, ao abrigo do disposto nos artigos 19º, nº 2, alíneas b), c), d), 24º, nº 4, e 34º da Lei nº 27/2008, de 30 de Junho, recusar o pedido de asilo formulado pelo autor e não admitir o pedido para efeitos de concessão da autorização de residência por razões humanitárias, prevista no artigo 7º do mesmo diploma legal – cfr. doc. de fls. 64 do processo administrativo apenso.
Sendo esta a factualidade relevante, cabe agora apreciar o mérito do recurso.
Face à factualidade acima apurada, a sentença recorrida concluiu nos seguintes termos:
[…]
No entanto, referiu, também, que nunca foi perseguido ou maltratado pelos membros do PPRD, resultando das suas declarações que, nos últimos anos, saiu e entrou na República Democrática do Congo sem qualquer impedimento por parte das respectivas autoridades [cfr. alínea F) dos Factos Assentes], tendo prestado declarações contraditórias também quanto ao modo como obteve o passaporte angolano que apresentou à chegada ao Aeroporto de Lisboa, o qual, segundo o Serviço de Estrangeiros, não apresenta qualquer indício de falsidade. Quando foi ouvido quanto aos fundamentos do pedido de asilo, no dia 5 de Março de 2012, o autor declarou que conseguiu o passaporte por intermédio de um cidadão angolano de nome John, tendo declarado perante o Conselho Português para os Refugiados, no dia 6 de Março de 2012, que recebeu o passaporte de um cidadão angolano de nome Júlio [cfr. alíneas F) e G) dos Factos Assentes].
Acresce que, não comprovou a invocada identidade e nacionalidade, nem alegou quaisquer factos capazes de justificar a ausência de documentos congoleses, nomeadamente uma situação que o tivesse obrigado a fugir sem os seus documentos pessoais [cfr. alíneas F) e G) dos Factos Assentes], sendo que também não apresentou razões válidas para não pedir protecção em Angola, país onde alegadamente permaneceu durante um ano, ou em Marrocos, por onde transitou. Esta conduta não se coaduna com a necessidade de protecção internacional, o que, de resto, como vimos, também não invocou quando chegou ao Aeroporto de Lisboa, tendo formulado pedido de protecção às autoridades portuguesas apenas quando lhe foi recusada a entrada em território nacional.
Os factos alegados pelo requerente de asilo e de autorização de residência por razões humanitárias, não têm necessariamente de ser comprovados. No entanto, devem apresentar um grau de verosimilhança que leve a admitir a sua credibilidade. O benefício da dúvida, invocado pelo autor, deve ser concedido quando exista manifesta dificuldade de prova dos factos invocados e documentos apresentados pelo requerente de asilo/autorização de residência por razões humanitárias, designadamente para prova da respectiva identidade e nacionalidade, desde que as declarações prestadas pareçam credíveis, o que não sucede no caso sub iudice.
Não tendo ficado demonstrada a identidade e nacionalidade do autor, fica prejudicada a análise da questão de saber se a situação actual da República Democrática do Congo se reconduz ou não a uma situação de insegurança nos termos e para os efeitos previstos no artigo 7º da Lei nº 27/2008, de 30 de Junho, que faz depender a concessão de autorização de residência por razões humanitárias da existência no país da nacionalidade ou da residência habitual do interessado de uma situação de insegurança, devido à sistemática violação dos direitos humanos que aí se verifique ou risco de o requerente sofrer ofensa grave.
Face ao exposto, deve a acção improceder, mantendo-se o Despacho do Director Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras impugnado, que indeferiu o pedido de asilo formulado pelo autor e decidiu não admitir o pedido para efeitos de concessão da autorização de residência por razões humanitárias.”.
Quanto a nós, a sentença recorrida decidiu bem.
Com efeito, face aos elementos probatórios em que assentou a decisão sobre a matéria de facto, os mesmos não permitem decisão diversa daquela que foi tomada, quer quanto ao pedido de asilo, quer quanto aos pressupostos para a concessão da autorização de residência por razões humanitárias, sendo certo que constitui jurisprudência uniforme do STA e deste TCA que “a autorização de residência por razões humanitárias, prevista no artigo 8º da Lei nº 15/98, de 26/3 [hoje, artigo 7º da Lei nº 27/2008, de 30/6, sob a epígrafe “protecção subsidiária”], só pode ser concedida se, no país de origem do interessado, existir «grave insegurança devida a conflitos armados ou à sistemática violação dos direitos humanos» que, em concreto, impeça [“pulsão objectiva”] ou impossibilite [“pulsão subjectiva”] o regresso [e permanência] do requerente ao país da sua nacionalidade”, sendo que “recai sobre o requerente de autorização de residência o ónus da prova dos factos em que baseia a sua pretensão” [cfr., neste sentido, os acórdãos do STA, de 29-10-2003, proferido no âmbito do recurso nº 0151/03, e deste TCA Sul, de 24-5-2007, proferido no âmbito do processo nº 02543/07, e de 24-2-2011, proferido no âmbito do processo nº 07157/11].
No caso presente, a prova a considerar, no que respeita ao caso individual do recorrente, assentou essencialmente nas suas próprias declarações e nos demais elementos que foram sendo coligidos pela autoridade administrativa, que não foram suficientes para confirmar as declarações que aquele havia prestado aquando da formulação do pedido de asilo e, nomeadamente, por não serem susceptíveis de criar a convicção de que o recorrente era uma pessoa verdadeiramente necessitada de protecção internacional.
Deste modo, perante a factualidade apurada em sede administrativa, concluiu estar-se perante um pedido de asilo infundado, que não satisfaz nenhum dos critérios definidos pela Convenção de Genebra e Protocolo de Nova Iorque com vista ao reconhecimento do Estatuto de Refugiado.
Não ocorreu, pois, o apontado erro de julgamento por falta de apreciação dos elementos factuais carreados pelo recorrente para os autos, já que todos os elementos pertinentes foram tidos em conta na informação que suportou o acto impugnado, como reconheceu a sentença recorrida.
Relativamente ao princípio do benefício da dúvida, refere o manual do ACNUR, a propósito dos procedimentos e critérios a aplicar para determinar o estatuto de refugiado, o seguinte:
Depois do requerente ter feito um esforço genuíno para substanciar o seu depoimento pode existir ainda falta de elementos de prova para fundamentar algumas das suas declarações. Como explicado antes [parágrafo 196], dificilmente é possível a um refugiado "provar" todos os factos relativos ao seu caso e, na realidade, se isso fosse um requisito, a maioria dos refugiados não seria reconhecida.
É, assim, frequentemente, necessário conceder ao requerente o benefício da dúvida.
O benefício da dúvida deverá, contudo, apenas ser concedido quando todos os elementos de prova disponíveis tenham sido obtidos e confirmados e quando o examinador esteja satisfeito no respeitante à credibilidade geral do requerente. As declarações do requerente deverão ser coerentes e plausíveis e não deverão ser contraditórias face à generalidade dos factos conhecidos” [cfr. manual de procedimentos e critérios a aplicar para determinar o estatuto de refugiado de acordo com a convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 relativos ao estatuto dos refugiados, Alto Comissariado das Nações unidas Para os Refugiados, Genebra, Janeiro de 1992].
Ainda que no caso presente se pudesse admitir uma satisfação mitigada do referido ónus probatório, dadas as circunstâncias, a verdade é que o mínimo exigível era um relato coerente, credível e suficientemente justificador do sentimento de impossibilidade de regressar ao país, que, na verdade, se conclui não existir, pelo que não se mostram violados os preceitos legais invocados.
Donde e em conclusão, a sentença recorrida não violou as normas invocadas pelo recorrente nas conclusões da sua alegação, que assim improcedem.

IV. DECISÃO
Nestes termos e pelo exposto, acordam em conferência os juízes da secção de contencioso administrativo do TCA Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.
Sem custas – artigo 84º da Lei nº 27/2008, de 30/6.
Lisboa, 4 de Outubro de 2012


[Rui Belfo Pereira – Relator]


[Paulo Gouveia]


[Carlos Araújo]