Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:6933/13.7BCLSB
Secção:CT
Data do Acordão:10/22/2020
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:IRC
SUPRIMENTOS
ADIANTAMENTO POR CONTA DE LUCROS
ÓNUS DA PROVA
Sumário:I-Se a atuação do Recorrido se encontrou, desde logo, em inteira conformidade com os ditames da contabilidade, tendo os suprimentos sido contabilizados enquanto tal, se os lançamentos se encontram suportados nos talões de depósitos dos bancos, efetuados em cheques ou em numerário, e bem assim nos cheques emitidos pelos sócios, e se a prova testemunhal, como aludiu o Tribunal a quo, foi concludente no sentido da prova da realização dos suprimentos, padece de ilegalidade a atuação da Administração Tributária que requalifica o reembolso dos suprimentos como adiantamento por conta de lucros.

II-Não tendo a Administração Tributária ilidido o ónus probatório que sobre si impendia, e resultando, outrossim, provada a realização de suprimentos por parte do ora Recorrido, conclui-se que não se encontra legitimada a correção realizada pela Administração Tributária que requalificou a verba referente à reposição dos suprimentos efetuados no ano de 1994, como distribuição de lucros, subsumindo-os normativamente no artigo 6.º, nº1, alínea h), do CIRS, incorrendo, por isso, em vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I-RELATÓRIO

O DIGNO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA (DRFP), veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por C….., contra a liquidação adicional de IRS, relativa ao ano de 1994, e respetivos juros compensatórios.


***

A Recorrente veio apresentar as suas alegações, formulando as conclusões que infra se reproduzem:

“A.            A douta sentença recorrida deu como provado a existência de suprimentos dos sócios à sociedade C….., Lda., apesar de considerar os mesmos de montante e proveniência incertos, tal como se passa a transcrever: “Os sócios provaram, no procedimento inspectivo, através da junção de cópias dos cheques, terem sido efectuadas transferências monetárias das suas contas para a sociedade, o que deverá corresponder aos suprimentos. Se tal dinheiro provem de adiantamentos, sinal nos contratos promessa, empréstimos de terceiros, poupanças ou outra fonte é facto que não foi possível apurar. No que respeita ao montante dos suprimentos, também não foi possível quantificar o seu montante”. (sublinhado nosso)

B.              Ora, para se qualificar os referidos valores como reembolso de empréstimo efectuado por sócio, tem imprescindivelmente de se verificar a montante o pressuposto de que aquele reembolso absolutamente depende, ou seja, a existência do empréstimo em que alegadamente esse reembolso se funda.

C.              Na tentativa de fazer prova da existência dos referidos empréstimos, o Rdo apresentou cheques que não perfazem sequer o montante de Esc.8.000.000$00 / € 40.000,00, quando em termos contabilísticos a C….., Lda. chegou a ter inscrito (anos de 1992 e 1993) um valor de suprimentos alegadamente efectuados pelo Rdo de mais de Esc.100.000.000$00 / €500.000,00.

D.              Assim, o montante dos cheques apresentados pelo Rdo não perfaz sequer 10% do valor total que na contabilidade se encontrava inscrito como empréstimos do mesmo.

E.              Contabilidade essa que não evidenciava os documentos de suporte aos montantes inscritos na conta 25.5 (empréstimo de sócios). “Como resulta do probatório, e do RIT e da Acta da Comissão de Revisão, constantes da apensa RG, os documentos de suporte da contabilização da quantia em causa como suprimento não fundamentam tal qualificação" in Parecer 119/2010 do Ministério Público do TCA Sul, fls. 308 dos autos.

F.               Pelo que, nunca poderia ter sido considerado como provado que tivessem sido efectuados suprimentos pelo Rdo, tal como se encontravam contabilizados na C….., Lda.

G.              “ (..) A verdade é que o mesmo não faz prova alguma da verdadeira efectivação de tais suprimentos, e muito menos no elevado valor com que foram contabilizados.” in Parecer do Ministério Público junto do TAF de Leiria, a fls. 229 dos autos.

H.              Acresce que, a Administração Fiscal ao reunir ainda mais elementos probatórios, comprovou o histórico de rendimentos declarados para efeitos de IRS pelo Rdo entre os anos de 1982 a 1993 (inclusive) concluído que tais rendimentos perfaziam Esc.10.710.484$00 / € 53.423,67. Quando, a contabilidade da sociedade registava que desde 1982 o valor dos empréstimos do Rdo à C….., Lda. ascendeu a Esc. 105.129.150$00 /€524.381,99.

I. Assim, resulta inevitavelmente abalado o argumento de que os valores inscritos como suprimentos tenham tido por origem os rendimentos do Rdo. “Ora, cabe ao recorrente o ónus de comprovar a justeza e conformidade da contabilização efectuada, o que manifestamente não fez” in Parecer 119/2010 do Ministério Público do TCA Sul, fls. 308 dos autos.

J.               Foi ainda apurado que os valores dos proveitos da C….., Lda. se encontravam subestimados, pois as vendas eram contabilizadas por valores inferiores aos valores efectivos das transacções, e ainda que existiam adiantamentos que não eram contabilizados.

K.              Por outro lado, verificou-se a existência de contratos promessa de compra e venda, que quando confrontados com as respectivas escrituras notariais, evidenciaram diferenças de valor.

L.               Por todo o exposto e apurado, deveria a douta sentença ter dado como provado que os valores lançados a crédito na conta 25.5 (empréstimos de sócios) não resultam de suprimentos, mas sim da acumulação ao longo dos anos das diferenças verificadas entre os valores reais e os valores declarados nas vendas. Pelo que, o levantamento do valor de Esc.77.000000$00 pelo sócio gerente, reveste a natureza de adiantamentos de lucros colocados à disposição dos sócios no exercício de 1994, como tal, sujeito a tributação nos termos do disposto no art. 6.° al. h) do CIRS.

M.             Considerou também a sentença proferida, que o acto de fixação do rendimento tributável, datado de 16-06-1998 estava inquinado do vício de incompetência relativa.

N.              O referido acto foi praticado pelo Chefe da Divisão de Tributação, em regime de substituição desde 15-10-1997, José Maria Isaac de Carvalho.

O.             A ausência de publicação, requisito de eficácia, que lhe foi apontada, não gerou qualquer dúvida quanto à autoria do órgão que praticou o acto, com competência para tal, ou sequer diminui as garantias de defesa do contribuinte.

P.              Por outro lado, no pressuposto de ainda assim ser considerado o referido vício, tratando-se de incompetência relativa, traduzida na anulabilidade do acto, “ (...) decorrido certo tempo, o acto administrativo anulável já não pode mais ser anulado pela Administração ou impugnado perante os tribunais: a sua ilegalidade deixa de poder fundamentar uma anulação administrativa ou uma sentença anulatória e, portanto, ele passa a ser visto no ordenamento jurídico como um acto tão consistente quanto um acto legal ficando sujeito ao regime da revogação dos actos administrativos válidos. (...) Efectivamente ao fim de um determinado período de tempo - que é, normalmente, um ano contado da sua prática (..) - o acto já não pode mais ser revogado (anulado) pela Administração ou impugnado perante os tribunais." In Código do Procedimento Administrativo comentado de Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves - J. Pacheco de Amorim, 2.ª Edição, pág. 660.

Q.             Sabendo como resulta dos autos, que o Rdo apenas alegou o referido vício de incompetência em sede de impugnação judicial apresentada a 04-01-2000, somos de concluir que o vício (a existir) deveria ter sido arguido no prazo máximo de 1 ano, não o tendo sido, ficou sanado a 16-06-1999.

R.              Considerou ainda a decisão recorrida que apesar de no CPT não existir regulamentação expressa para o direito de audição, a liquidação impugnada deveria ter sido precedida do direito de audição do Rdo.

S.              Releva mencionar que o CPT apenas previa como garantia dos contribuintes um “direito de audição" (artigo 19.°, alínea c)) que, por força do artigo 23.°, alínea e), se restringia ao processo de contra-ordenação fiscal.

T.              Ora, a admitir-se a aplicabilidade do art. 100.° do CPA, sempre se dirá que se trata de uma formalidade instituída para assegurar as garantias de defesa dos interessados, por forma a garantir a justeza e correcção do acto final do procedimento, verificando-se a possibilidade de ocorrer a sua degradação em formalidade não essencial.

U.              A sua preterição não implica necessariamente a invalidade do acto final, pois pode não resultar numa lesão efectiva e real dos interesses ou valores protegidos pelo preceito.

V.              E foi precisamente o que sucedeu no caso dos autos, em que o Rdo participou em todo o procedimento conducente ao acto de liquidação, desde o início do procedimento inspectivo, na Comissão de Revisão através do vogal nomeado por si e na Reclamação Graciosa, merecendo sempre as razões de facto e de direito por si invocadas a respectiva análise por parte da AT.

W.             O Rdo participou assim na formação da decisão da Administração Fiscal, não tendo transportado para os autos elementos susceptíveis de alterar a qualificação feita pela Administração Fiscal e consequentemente de por em crise as correcções determinadas.

X.              Pelo que, mesmo que o direito de audição fosse concedido e exercido, nunca a AT poderia ter actuado de outra forma.

Y.              Assim, estando esse direito cumprido por qualquer outra forma, ou sendo irremediavelmente o destino mesmo que fosse exercido, parece que tal formalismo, sendo, à partida, um trâmite essencial, se pode degradar em não essencial, não implicando inevitavelmente a nulidade do acto final, por não lesar os interesses protegidos. Neste sentido, Acórdão do STA, de 27-01-2010 (Processo: 0922/09), Acórdão do TCA Sul de 25-10-2005 (Processo: 01305/03).

Z. Ainda a entender-se que deveria ter sido formalizado o direito de audição do Rdo, que como já se disse não alteraria a decisão da AT por sempre ter participado da mesma, esse vício já estaria sanado, por falta de arguição no prazo de um ano, nos termos do regime consagrado no art. 136.° e ss. do CPA para os actos anuláveis, pois o Rdo invocou o alegado vício em sede de impugnação judicial (apresentada em 04-01-2000), pelo que se verifica que o vício (a existir) estaria sanado desde 16-06-1999, ou seja, um ano após a prática do acto.

AA. Considerou ainda o doutro tribunal existir erro na quantificação, apenas com a seguinte fundamentação: “Com efeito, a decisão administrativa assumiu que todos os valores recebidos pelo impugnante eram valores provenientes de distribuição de lucros, decisão posteriormente corrigida em sede de Comissão de Revisão de acordo com a percentagem de omissões de vendas na sociedade, que se estimou ser de 24%. Esta percentagem, e qualificação, não mereceu a concordância do perito do contribuinte, que embora tenha aceite o rendimento global de Esc. 55.596.687$ discordou que tal se devesse a distribuição de lucros na sociedade. A AT persistiu, assim, na argumentação de que os valores entregues a titulo de suprimentos correspondem aos valores dos proveitos omitidos pela sociedade. Mas tal conclusão não está alicerçada em factos demonstráveis (sublinhado nosso)

BB. Com tal fundamentação/conclusão não podemos concordar, maxime porque a actuação e decisão administrativa esteve efectivamente alicerçada em factos que demonstrou, e que lograram abalar por completo a veracidade do declarado pela sociedade e seu sócio-gerente, aqui Rdo.

CC. Por outro lado, também da factualidade dada como provada pelo tribunal a quo, resulta que o Rdo apresentou reclamação nos termos do art. 84.° do CPT, tendo reunido a comissão de revisão constituída pelo presidente e dois vogais, o vogal da Fazenda Pública e o vogal indicado pelo reclamante. Na comissão de revisão ficou acordado entre o vogal da Fazenda Pública e o vogal indicado pelo reclamante que o rendimento global (líquido) passaria para Esc.55.596.687$00. Para se chegar a este valor, o vogal da Fazenda Pública não considerou a totalidade dos levantamentos como adiantamentos por conta dos lucros, considerando-os em apenas 24% (percentagem de omissões nas vendas ao longo dos anos, desde 1988).

DD. Com o que também esteve de acordo o vogal do reclamante, conforme cópia da acta da Reunião de Comissão a fls. 52 do processo de Reclamação Graciosa junta aos autos donde se retira: “Após estas considerações o vogal da Fazenda Nacional e o vogal do sujeito passivo, manifestaram o seu acordo, quanto ao rendimento global de 55.586.687$00”.

EE. Por último, e porque ficou firmada a errada qualificação e quantificação (a nosso ver mal, nos termos supra expostos) concluiu-se pelo pagamento de juros indemnizatórios nos termos do art. 43.° da LGT.

FF. Mas, para existir o direito a juros indemnizatórios, é necessário a verificação dos seguintes requisitos: que haja um erro num acto de liquidação de um tributo; que ele seja imputável aos serviços; que a existência desse erro seja determinada em processo de reclamação graciosa ou de impugnação judicial e que desse erro tenha resultado o pagamento de uma dívida tributária em montante superior ao devido.

GG. Assim, o direito a juros indemnizatórios previsto no art. 43.° da LGT, derivado de anulação judicial de um acto de liquidação, depende de ter ficado demonstrado no processo que esse acto está afectado por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, o que nos presentes autos não se verificou.

HH. Sobre esta questão o Ilustre Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, na anotação 5ª ao artigo 61.° do "Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado" a fls. 472, pronuncia-se em termos impressivos e que, por isso, passamos a citar: «A utilização da expressão “erro" e não “vício” ou “ilegalidade" para aludir aos factos que podem servir de base à atribuição de juros, revela que se teve em mente apenas os vícios do acto anulado a que é adequada essa designação, que são o erro sobre os pressupostos de facto e o erro sobre os pressupostos de direito. Com efeito, há vícios dos actos administrativos e tributários a que não é adequada tal designação, nomeadamente os vícios de forma e a incompetência, pelo que a utilização daquela expressão “erro” tem um âmbito ma is restrito do que a expressão “vício”. (sublinhado nosso)

II. A este propósito, veja-se o Acórdão do STA, de 07-09-2011 (Processo: 0416/11): “I -O direito a juros indemnizatórios previsto no n.° 1 do art. 43.° da LGT, derivado de anulação judicial de um acto de liquidação, depende de ter ficado demonstrado no processo que esse acto está afectado por erro - sobre os pressupostos de facto ou de direito - imputável aos serviços, de que tenha resultado pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

II - A anulação de um acto de liquidação baseada unicamente em vício formal de falta de fundamentação não implica a existência de erro de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, pelo que inexiste, nesse caso, direito a juros indemnizatórios.” Sendo, aliás, esta a posição dominante da Jurisprudência do STA, como se pode ver pela leitura dos seguintes acórdãos: de 20-01-2010, no recurso n.° 942/09, de 04-11-2009, no recurso n.° 665/09, de 09-09-2009, no recurso n.° 369/09, de 27-06-2007, no recurso n.° 80/07, de 21- 01-2009 no recurso n.° 945/08, e de 1-10-2008, no recurso n.° 244/08.

JJ. Pelo exposto, consideramos que a decisão proferida deverá ser revogada e substituída por outra que julgue totalmente improcedente a impugnação judicial apresentada.

Nestes termos e nos restantes, que o douto entendimento do Colectivo entender convocar, defende a Representação da Fazenda Pública o provimento do presente recurso jurisdicional, determinando a revogação da decisão provinda do Tribunal a quo, com o que decairá o pedido anulatório e de juros indemnizatórios formulados na impugnação pleiteada.”


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O Recorrido, devidamente notificado para o efeito, optou por não contra-alegar.


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O Digno Magistrado do Ministério Público (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

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Colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

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II - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:

“1. Em ação de fiscalização levada acabo à sociedade e concluída em 5/3/1997, considerou a AT, entre outros factos, «...ter ficado demonstrado que os proveitos declarados pelo sujeito passivo se encontram subestimados e não sendo possível confirmar (...), somos de opinião que os valores lançados a crédito da conta 25.5 (empréstimo dos sócios), resultam da acumulação ao longo dos anos, das diferenças verificadas entre os valores reais das vendas e os valores declarados das mesmas. Como tal, os levantamentos efectuados pelos sócios no ano de 1994 são considerados uma distribuição de lucros colocados à disposição de cada um deles e sujeitos a tributação de acordo com o art.° 6º al. h) do CIRS...» (fls. 20 do apenso de reclamação graciosa cujo conteúdo se dá por reproduzido)

2. E mais à frente, «Para tributação dos valores correspondentes à distribuição dos lucros colocados à disposição dos sócios, vão ser elaborados os respectivos DC2 e anexos de modo a determinar o IRS a pagar por cada um deles relativamente ao ano de 1994» (fls. 26 doa penso de reclamação graciosa cujo conteúdo se dá por reproduzido)

3. Assim, em 25/03/1998, foi preenchido, pelos Serviços da Fiscalização Tributária - IRS - o documento de correcção DC2 - anexo “A” e “E” relativamente ao ano de 1994 e com referência aos sujeito passivo com o NIF …..e ….., considerando o rendimento da categoria “A'’ no valor de 6 070 000$ e da categoria “E" no valor de 77 000 000$ (fls. 56 e 57 dos autos cujo conteúdo se dá por reproduzido).

4. No quadro 4 do anexo A daquele documento de correcção oficiosa foi mencionado o seguinte a título de fundamentação das correcções:

“Relativamente ao ano de 1994, o sujeito passivo entregou a declaração de rendimentos IRS - Modelo 1, por considerar que apenas havia recebido rendimentos do trabalho dependente “CATEGORIA – A”.

Porém, face ao resultado do exame efectuado a firma “C….. LDA., ", de que o sujeito passivo é sócio gerente, conclui-se que durante os exercícios em causa, também recebeu da empresa. a título de distribuição de lucros, valores sujeitos a tributação pela categoria “E” "RENDIMENTOS DE CAPITAIS", conforme art. 6º alínea h) do Código de IRS. Nesta conformidade, o sujeito passivo, deveria ter apresentado a declaração MODELO 2. Como tal, foi elaborado o documento de correcção DC2 e o presente Anexo A, com os valores declarados do trabalho dependente " (tudo como consta de fls. 56 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

5. No quadro 5 do anexo E do documento de correcção referido supra, foi mencionado o seguinte a título de “Fundamentação Sucinta das Correcções”

"Do exame efectuado à firma "C….. LDA.", de que se junta em ANEXO a correspondente informação; conclui-se que o sujeito passivo recebeu no ano de 1994 a título de distribuição dos lucros o valor de 77 000 000$00 (setenta e sete milhões de escudos). Não tendo sido declarado, pelo sujeito passivo, o valor acima indicado procedeu-se à elaboração do presente "ANEXO E", para que seja liquidado o imposto (IRS) em falta. (fls. 57 cujo conteúdo se dá por reproduzido)

6. Em 16/06/1998, foi fixado pelo Subdirector Tributário, José Maria Isaac de Carvalho, ao impugnante, com o Nif ….. (sujeito passivo A) e mulher M….. com o Nif ….. (sujeito passivo B), o conjunto dos rendimentos líquidos relativamente ao ano de 1994, no montante de 82 654$00, com a seguinte fundamentação:

"A fixação do conjunto de rendimentos líquidos é consequência de correcções efectuadas aos rendimentos da categoria "E" do sujeito passivo A conforme consta do documento de Correcção DC2, Anexo A e E, quadros 4 e 5, respectivamente, elaborados pelos Serviços de Inspecção Tributária em 25/3/1998" /fls. 55 e 55 verso cujo conteúdo se dá por reproduzido).

a. A fixação destes rendimentos não foi precedida do direito de audição do impugnante.

7. O Subdirector Tributário, José Maria Isaac de Carvalho, foi nomeado em regime de substituição Chefe de Divisão da Tributação da Direcção de Finanças de Santarém, por despacho de 12/10/1998, publicado no DR. n.º 261 de 9/11/1999 (fls. 224 dos autos cujo conteúdo se dá por reproduzido).

 8. Conforme aviso publicado no DR n.º 89 de 15/04/1996 o DDF de Santarém delegou competência de apuramento, fixação e alteração de rendimentos e actos conexos, nos termos do n.º 5 do art. 66.° do Código do IRS, no Chefe de Divisão de Tributação (fls. 225 dos autos cujo conteúdo se dá por reproduzido).

9. O impugnante e outros sócios realizaram suprimentos a favor da sociedade em montante que não foi possível apurar.

10. Em 19/06/1998 a DF de Santarém remeteu ao impugnante e mulher carta registada com aviso de recepção dando-lhes conta de que relativamente ao ano de 1994 lhe haviam sido corrigidos os valores da categoria E de IRS, de que resultou o rendimento liquido total sujeito a tributação de 82 654 000$00, conforme fixação efectuada em 16/06/1988, cujos fundamentos constam das fotocópias que se anexam e que passam a fazer parte integrante desta notificação. Na mesma carta constam os meios de reação (fls. 166 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

11. O aviso de recepção foi assinado em 22/06/1998 (fls. 167 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

12. O impugnante apresentou reclamação nos termos do Art.° 84 e segs.. do CPT, conforme consta de fls. 41 e segs. do apenso de reclamação cujo conteúdo se dá por reproduzido.

13. Em 16/10/1998, reuniu a Comissão de Revisão, constituída pelo presidente M….., delegada da Fazenda Pública - e pelos vogais J….., delegado da Fazenda Pública, e V….., vogal indicado pelo reclamante, tendo sido lavrada a acta n.º ….. junta a fls. 48 do apenso cujo conteúdo se dá por reproduzido.

14. A comissão deliberou, tendo obtido acordo quanto à redução do rendimento global para 55 596 687$00 (fls. 52 do apenso cujo conteúdo se dá por reproduzido).

15. O vogal do contribuinte lavrou o seu laudo no qual, embora exprimindo o acordo referente ao «quantum», discordou quanto aos fundamentos e ao método. Quanto ao primeiro, «...não se encontra provado serem lucros e logo estes serem levantamentos de lucros...»; e quanto ao segundo, foram violados dois princípios essenciais, «...a especialização dos exercícios...» e o «...principio consagrado no artº 8º n° 3, alínea a) do n°2 do CIRS, de que o momento da sujeição à tributação é o da colocação à disposição...» (fls. 55 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

16. Por despacho assinado por delegação do EDF, foi deferida parcialmente a reclamação, fixando-se em 55.596.687$ o rendimento referente ao ano de 1994 (fls. 172 cujo conteúdo se dá por reproduzido).

17. Despacho que foi notificado por carta registada com aviso de recepção ao impugnante e mulher assinado em 02/11/1998 (fls. 173 dos autos cujo conteúdo se dá por reproduzido).

18. O impugnante tomou conhecimento, por carta que lhe foi remetida pelo Serviço de Administração do Imposto sobre o Rendimento, da liquidação adicional de IRS no ano de 1994, juntas a fls. 58 e segs. resumidas no quadro seguinte:

19. Em 01/03/1999. o impugnante apresentou junto da Repartição de Finanças de Ferreira do Zêzere a petição que deu origem ao processo de reclamação graciosa ali instaurado com o n.º …..

20. A qual, por despacho do Director de Finanças, por delegação proferido em 22/09/1999, foi indeferida na totalidade (fls. 79 do apenso de reclamação graciosa cujo conteúdo se dá por reproduzido).

a. Tendo apenas determinado a correcção de erros técnicos no preenchimento do DC2 (fls. 70 a 77 do procedimento de reclamação graciosa cujo conteúdo se dá por reproduzido)

21. A impugnação foi deduzida em 06/01/2000 (fls. 2 dos autos cujo conteúdo se dá por reproduzido).  ”


***

A sentença recorrida considerou como factualidade não provada a seguinte:

“Com interesse para a decisão da causa, nada mais se provou.”


***

A motivação da matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte:

“PROVA DOCUMENTAL. Os meios de prova documental que serviram para a convicção do tribunal estão referidos no «probatório» com remissão para as fls. do processo onde se encontram.

PROVA TESTEMUNHAL. Quanto a este meio de prova, relevaram os depoimentos das testemunhas oferecidas pelo impugnante que confirmaram a realização de suprimentos, sendo de distinguir, nesta matéria a realização propriamente dita dos suprimentos por um lado, e o montante prestado por outro. A convicção do tribunal formou-se no sentido de que estes foram efectivamente realizados. A AT considera não terem sido efectuados suprimentos por a final, ter constatado que a sociedade omitia vendas e que «...os valores lançados a crédito da conta 25.5 resultam da acumulação ao longo dos anos das diferenças verificadas entre os valores reais das vendas e os valores declarados».

Porém, também se diz no relatório terem sido apresentados cheques cujos emitentes eram os sócios da empresa, não se tendo conseguido os outros cheques provavelmente por não terem a devida autorização por parte dos emitentes (fls. 14 do apenso de reclamação graciosa). Quer dizer, os sócios provaram, no procedimento inspectivo, através da junção de cópias dos cheques, terem sido efectuadas transferências monetárias das suas contas para a sociedade, o que deverá corresponder aos suprimentos. Se tal dinheiro provem de adiantamentos, sinal nos contratos promessa, empréstimos de terceiros, poupanças ou outra fonte é facto que não foi possível apurar.

No que respeita ao montante dos suprimentos, também não foi possível quantificar o seu montante. Desde logo porque as testemunhas do impugnante embora afirmassem terem sido efectuados suprimentos, não se lembravam em que montantes os mesmos foram realizados.

 Assim, conclui-se terem sido prestados suprimentos, mas em valor que não foi possível apurar.

A testemunha da AT não interveio no procedimento inspectivo mas apenas na Comissão de Revisão.”


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III-FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

In casu, a Recorrente, não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida contra a liquidação adicional de IRS, relativa ao ano de 1994, e respetivos juros compensatórios.

Em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Assim, ponderando o teor das conclusões de recurso cumpre aferir se a decisão recorrida padece de erro de julgamento por:
Ø Ter decidido que a Administração Tributária não demonstra, como era seu ónus, que os valores entregues a título de suprimentos correspondem aos valores dos proveitos omitidos pela sociedade, logo não pode concluir que nos encontramos perante rendimentos de capitais;
Ø Ajuizar no sentido da incompetência do autor do ato de fixação do rendimento global;
Ø Entender verificada uma preterição de uma formalidade essencial consubstanciada na falta de audição do contribuinte.

Procedendo o erro de julgamento supra evidenciado, importa conhecer das questões julgadas prejudicadas.

Apreciando.

A Recorrente começa por evidenciar que a decisão recorrida deu como provado a existência de suprimentos dos sócios à sociedade C….., Lda., apesar de considerar os mesmos de montante e proveniência incertos.

Relevando que a qualificação do montante em causa como reembolso de empréstimo efetuado por sócio, estava dependente da prova do pressuposto a montante, ou seja, a existência de empréstimos por parte do sócio à sociedade, o que não logrou fazê-lo, porquanto a sociedade apenas apresentou cheques que não perfazem sequer o montante de € 40.000,00, ou seja, que perfazem apenas o valor percentual de 10%.

Ademais, em termos contabilísticos, nos anos de 1992 e 1993 a sociedade chegou a ter inscrito um valor de suprimentos alegadamente efetuados pelo Recorrido em mais de € 500.000,00.

Mais sublinha que a contabilidade nem tão-pouco evidenciava os documentos de suporte aos montantes inscritos na conta 25.5 (empréstimo de sócios).

Razão pela qual, entende que nunca poderia ter sido considerado como provado que tivessem sido efetuados suprimentos pelo Recorrido, tal como se encontravam contabilizados na C….., Lda.

Salienta, ainda neste particular, que foi, outrossim, apurado que os valores dos proveitos da C….., Lda. se encontravam subestimados, pois as vendas eram contabilizadas por valores inferiores aos valores efetivos das transações, e ainda que existiam adiantamentos que não eram contabilizados.

E bem assim que se verificou a existência de contratos promessa de compra e venda, que quando confrontados com as respetivas escrituras notarias, evidenciaram diferenças de valor.

Mais evidenciando, que a sentença deveria ter dado como provado que os valores lançados a crédito na conta 25.5 (empréstimos de sócios) não resultam de suprimentos, mas sim da acumulação ao longo dos anos das diferenças verificadas entre os valores reais e os valores declarados nas vendas.

Vejamos, então, se a sentença recorrida padece de erro de julgamento de facto por ter erradamente valorado a prova constante nos autos.

Para o efeito, importa começar por aferir se a Recorrente cumpriu os requisitos consignados no artigo 640.º do CPC.

Preceitua o aludido normativo que:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”

Com efeito, no que diz respeito à disciplina da impugnação da decisão de 1ª. Instância relativa à matéria de facto, a lei processual civil impõe ao Recorrente um ónus rigoroso, cujo incumprimento implica a imediata rejeição do recurso, quanto ao fundamento em causa. Ele tem de especificar, obrigatoriamente, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considera incorretamente julgados, mas também os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizadas, que, em sua opinião, impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da adotada pela decisão recorrida[1].

No concernente à observância dos requisitos constantes do citado normativo relativamente à prova testemunhal , após posições divergentes na Jurisprudência, mormente, na Jurisdição Comum o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de que “[e]nquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.” [2]

Note-se que, a indicação exata das passagens de gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo, naturalmente, do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, conforme decorre do artigo 662.º do CPC[3], aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e), do CPPT.

Dir-se-á, portanto, que o que verdadeiramente importa ao exercício do ónus de impugnação em sede de matéria de facto é que as alegações, na sua globalidade, e as conclusões, contenham todos os requisitos que constam do artigo 640.º do CPC[4].

Ab initio, importa relevar que não obstante o Recorrido tenha, na sequência da notificação para os efeitos do artigo 665.º, nº2, do CPC, apresentado requerimento no qual procede à impugnação da matéria de facto, a mesma carece de qualquer análise, porquanto a aludida impugnação, quanto às questões objeto de julgamento, carecia de ter sido convocada em sede própria, concretamente, em sede de contra-alegações e enquanto ampliação do objeto do recurso[5].

Atentemos, ora, no erro de julgamento de facto invocado pela Recorrente. In casu, conforme se extrai com clareza do teor das alegações recursivas e suas conclusões, a Recorrente não cumpriu o ónus de impugnação a que estava adstrita.

Importa, desde logo, evidenciar que a mesma não invoca diretamente qualquer alínea da factualidade, não convocando, outrossim, os concretos meios de prova que permitiam expurgar qualquer factualidade do probatório ou mesmo aditar.

É certo que faz alusão à existência de uns cheques, porém não só não os individualiza, como não densifica e concretiza o respetivo suporte documental. Note-se que, nem tão-pouco concretiza, efetivamente, o seu valor, apenas aludindo que os mesmos não perfazem sequer o montante de € 40.000,00.

De todo o modo, sempre se dirá que, conforme resulta do probatório e bem assim da motivação da matéria de facto, o Tribunal a quo entendeu que a prova dos suprimentos (constante no ponto 9) se coadunava, outrossim, com a prova testemunhal.

Com efeito, se atentarmos no teor da motivação da matéria de facto, verifica-se que é sublinhado, de forma expressa, que “os depoimentos das testemunhas oferecidas pelo impugnante que confirmaram a realização de suprimentos, sendo de distinguir, nesta matéria a realização propriamente dita dos suprimentos por um lado, e o montante prestado por outro. A convicção do tribunal formou-se no sentido de que estes foram efectivamente realizados.”

E a verdade é que quanto à aludida prova testemunhal, a Recorrente nada diz, nada refuta, ou coloca em causa, mormente, em termos de credibilidade. No caso sub judice, conforme, nitidamente, se extrai do teor das alegações de recurso, a Recorrente não convoca, tão-pouco, a prova testemunhal, não aludindo, sequer genericamente, a qualquer dos depoimentos das testemunhas, sendo certo que, a impugnação da matéria de facto neste particular e, como visto, carecia da indicação das passagens concretas do depoimento das testemunhas, ou da transcrição de excertos que poderiam inferir pela necessidade de aditamento por via de substituição ou de complementação.

Ademais, o Tribunal a quo valorou, com pormenor, de forma fundamentada e devidamente circunstanciada as razões que lhe permitiram fixar a factualidade constante nos autos, permitindo percecionar quais as razões que fundaram o seu iter cognoscitivo, relevando as razões de ciências e os aspetos basilares do depoimento que alicerçaram a decisão da matéria de facto.

Sem embargo, mesmo que se equacionasse que a Recorrente teria pretendido o expurgo do ponto 9 da factualidade provada, sempre o mesmo não poderia lograr provimento, porquanto, como visto, o mesmo foi sustentado, outrossim, em prova testemunhal a qual, como devidamente densificado anteriormente, não foi colocada em causa.

In fine, importa relevar que não obstante a Recorrente evidenciar que a sentença deveria ter dado como provado que os valores lançados a crédito na conta 25.5 (empréstimos de sócios) não resultam de suprimentos, mas sim da acumulação ao longo dos anos das diferenças verificadas entre os valores reais e os valores declarados nas vendas- e ainda que tal alegação seja vaga, genérica e sem a devida substanciação espácio-temporal e sem a competente convocação dos respetivos meios probatórios- a verdade é que, ainda assim, tal alegação em nada consubstanciava um facto mas, tão-só, um juízo conclusivo, os quais, como é consabido, não podem integrar o acervo probatório.

Com efeito, a seleção da matéria de facto só pode integrar acontecimentos ou factos concretos, que não conceitos, proposições normativas ou juízos jurídico-conclusivos, sendo que as asserções que revistam tal natureza devem ser excluídas do acervo factual relevante ou indeferido o seu aditamento.

 “[q]uestão de facto é (..) tudo o que se reporta ao apuramento de ocorrências da vida real e de quaisquer mudanças ocorridas no mundo exterior, bem como à averiguação do estado, qualidade ou situação real das pessoas ou das coisas” e que “(..) além dos factos reais e dos factos externos, a doutrina também considera matéria de facto os factos internos, isto é, aqueles que respeitam à vida psíquica e sensorial do indivíduo, e os factos hipotéticos, ou seja, os que se referem a ocorrências virtuais”.[6]

“As afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o thema decidendum, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objeto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão. Daí que sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, tal ponto da matéria de facto deve ser eliminado.”[7].

E por assim ser, em face de todo o exposto, não se vislumbra qualquer erro de julgamento de facto.

Aqui chegados, estabilizada a matéria de facto, importa apurar se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento de direito.

Como já evidenciado anteriormente, a Recorrente entende que o valor do reembolso dos suprimentos, reveste a natureza de adiantamentos de lucros colocados à disposição dos sócios no exercício de 1994, como tal, sujeito a tributação nos termos do disposto no artigo 6.° al. h) do CIRS.

E isto porque, o Recorrido não logrou provar a realização dos competentes suprimentos, sendo certo que foi, outrossim, apurado que os valores dos proveitos da sociedade “C….., Lda”. se encontravam subestimados, pois as vendas eram contabilizadas por valores inferiores aos valores efetivos das transações, e ainda que existiam adiantamentos que não eram contabilizados.

Atentemos, ora, na fundamentação em que se estribou a decisão recorrida para concluir pela procedência:

Sustenta a decisão recorrida que “ a decisão administrativa assumiu que todos os valores recebidos pelo impugnante eram valores provenientes da distribuição de lucros, decisão posteriormente corrigida sem sede de Comissão de Revisão de acordo com a percentagem de omissões de vendas na sociedade, que se estimou ser de 24%.”

Aduzindo, depois, que pese embora a Administração Tributária alegue que “[o]s valores entregues a título de suprimentos correspondem aos valores dos proveitos omitidos pela sociedade.”, a verdade é que não demonstrou tal realidade, relevando, de forma expressa que, a aludida conclusão por parte da Entidade Fiscalizadora não se encontra “alicerçada em factos demonstráveis”.

Apreciando.

No caso vertente, a correção foi realizada ao abrigo do artigo 6.º, nº 1, alínea h), do CIRS (vigente à data da prática dos factos tributários), o qual considerava como rendimentos de capitais: “h) Os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respectivos associados ou titulares, incluindo adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o artigo 19.º”.

Atentando no respetivo Relatório Inspetivo constata-se que a fundamentação da correção assentou no seguinte: “a conta 25.5 (Empréstimos de sócios) (…) teve um aumento progressivo até ao final de 1993, em 1994 o seu valor é significativamente reduzido, devido ao levantamento dos empréstimos por parte dos sócios; refira-se que no dia 28 de Dezembro de 1994 cada um dos sócios recebe da empresa o valor de 70.000$00, operação apoiada pelos documentos internos 1118, 1119 e 1120.”

Sublinhando-se, depois, que “os lançamentos a crédito das respectivas contas têm como apoio documental os talões de depósitos nos bancos, efectuados em cheques ou em numerário, a título de exemplificativo juntam-se em Anexo 1, 2 fotocópias desses talões.”

Ainda neste particular, é expressamente relevado que “a fim de avaliar a justeza destes lançamentos foi pedido ao sócio gerente C….. que nos facultasse as fotocópias dos cheques depositados. No sentido de satisfazer a nossa petição o Sr. C….. contactou os bancos onde os depósitos foram realizados, mas o resultado não foi conclusivo, uma vez que apenas foram fornecidos pelos bancos os cheques cujos emitentes eram efetivamente os sócios da empresa, provavelmente por não terem a devida autorização por parte dos emitentes dos outros cheques.”

Concluindo, depois, que “tendo ficado demonstrado que os proveitos declarados pelo sujeito passivo se encontram subestimados e não sendo possível confirmar, a veracidade dos empréstimos dos sócios… ”, “os valores lançados a crédito da conta 25.5 (empréstimos dos sócios), resultam da acumulação ao longo dos anos, das diferenças verificadas entre os valores reais das vendas e os valores declarados das mesmas.”

E por assim ser, “os levantamentos efectuados pelos sócios no ano de 1994 são considerados como distribuição de lucros colocados à disposição de cada um deles e sujeitos a tributação de acordo com o artigo 6.º, al. h) do CIRS”.

Ora, atentando na aludida fundamentação e tendo presente o probatório dos presentes autos, não ajuizamos que a decisão recorrida mereça qualquer censura, porquanto o juízo de entendimento da Administração Tributária não estava, efetivamente, sustentado em factos demonstráveis.

Senão vejamos.

Da aludida fundamentação ressalta, desde logo, que nunca foi colocada em causa a entrada dos fluxos financeiros, o que a Administração Tributária efetua é, tão-só, uma requalificação das quantias creditadas na conta 25.5 como suprimentos, entendendo que as mesmas representam o resultado da acumulação ao longo dos anos, das diferenças verificadas entre os valores reais das vendas e os valores declarados das mesmas.

Porém, para a aludida requalificação importava que a Administração Tributária provasse os factos índice, ou seja, que as quantias creditadas na aludida conta não revestiam a natureza de suprimentos, o que não logrou fazê-lo-como sustenta o Tribunal a quo- através de factos demonstráveis.

De relevar, desde logo, que inexiste qualquer irregularidade ou desconformidade em termos contabilísticos.

Com efeito, os suprimentos são créditos do sócio sobre a sociedade e não revestem a natureza de prestações suplementares do capital, nem se destinam à integração da quota. Porquanto, tais empréstimos concedidos pelos sócios à sociedade devem ser contabilizados na conta 25 – Accionistas (sócios), uma vez que esta conta engloba as operações relativas às relações com os titulares de capital e com as empresas participadas. Em termos de lançamentos, deve ser creditada a conta 25512 e debitada a conta 12/11, e aquando o reembolso (total ou parcial) do empréstimo creditada a conta 12/11 e debitada a conta 25512.

Pelo que, a atuação da Recorrente se encontrou, desde logo, em inteira conformidade com os ditames da contabilidade.

Por outro lado, não logra provimento a afirmação da Recorrente constante na alínea E) das conclusões, no sentido de que a contabilidade não evidenciava os documentos de suporte. Aliás, dos trechos do Relatório Inspetivo supra expendidos, dimana, desde logo, evidente que os lançamentos estavam suportados nos talões de depósitos dos bancos, efetuados em cheques ou em numerário.

É certo que, no Relatório Inspetivo é feita expressa alusão de que na sequência de pedidos efetuados pelo sócio gerente para obter cópia dos cheques o resultado não foi conclusivo, mas a verdade é que tal inferência, per se, não é suficiente para se legitimar a conclusão de que não nos encontramos perante empréstimos dos sócios mas sim perante distribuição de lucros.

Ademais, se os resultados não eram conclusivos por, alegadamente, inexistir “autorização por parte dos emitentes dos outros cheques”, então podia/devia a Administração Tributária encetar outras diligências junto das Instituições Bancárias ou recorrer a qualquer expediente legal que obviasse a aludida questão.

De relevar, outrossim, que no Relatório Inspetivo é feita alusão a depósitos em numerários e sobre essa realidade nada é contraditado.

Ademais, in casu, a prova testemunhal, como aludiu o Tribunal a quo, -não impugnada- foi concludente no sentido da prova da realização dos suprimentos, conforme dimana inequívoco da competente motivação da matéria de facto.

De relevar, outrossim, que as alegações constantes nas conclusões J) e K) não podem lograr o efeito pretendido pela Recorrente e isto porquanto, e tal como sentenciado na primeira instância, os sócios provaram, no procedimento inspetivo, através da junção de documentos internos, da junção de talões de depósito em numerário e cheques, e respetiva entrega de cópias dos cheques emitidos pelos próprios sócios, terem sido efetuadas transferências monetárias das suas contas para a sociedade, donde, os contabilizados suprimentos. Relativamente, à circunstância de tais entradas poderem, eventualmente, provir de adiantamentos, sinais respeitantes à outorga de contratos promessa, empréstimos de terceiros, poupanças ou outra fonte, a verdade é que tais factos não foram apurados e demonstrados.

Note-se que uma coisa é concluir-se que a sociedade omitiu proveitos, outra bem diferente é desqualificar os suprimentos contabilizados enquanto tal e com o respetivo fluxo financeiro de entrada e saída, e assumir que a reposição desses suprimentos mais não são do que lucros.

De resto, importa ter presente que, em sede de IRS, a determinação do rendimento coletável, tem por base a declaração Modelo 3, a qual deve ser entregue pelo sujeito passivo, vigorando, portanto, o princípio da verdade declarativa.

O princípio da verdade declarativa coloca na esfera de atuação dos contribuintes a iniciativa no procedimento de apuramento, fixação e pagamento dos impostos, logo a Administração Fiscal está vinculada a liquidar os tributos com base na declaração do contribuinte, sem prejuízo do direito que lhe é concedido de proceder, a posteriori, ao controlo dos factos declarados.

Assim, só passa a competir ao contribuinte a prova de que declarou todos as situações a que estava legalmente vinculado, e que os gastos/despesas são dedutíveis, quando, efetivamente, a Administração Tributária tenha carreado elementos de facto que sejam suscetíveis de abalar a dita presunção da escrita.

O ónus da prova da factualidade alegada pelas partes tem a natureza de ónus objetivo, e nessa medida, a repartição do ónus probatório concretiza-se da seguinte forma:

Compete à Administração Tributária a prova da existência dos pressupostos legais (vinculativos) da sua atuação, isto é, tem de provar que se verificam os factos que integram o fundamento previsto na lei para que seja legítimo o ato de liquidação.

Ao invés, compete ao Administrado, apresentar prova bastante da ilegitimidade do ato, quando se mostrem verificados os pressupostos vinculativos.

Assim, face a todo o exposto, não se vislumbra que o Tribunal a quo tenha incorrido em qualquer erro de julgamento de facto e de direito.

Mais importa relevar, in fine, que carece de qualquer relevância o expendido na conclusão H), porquanto a circunstância do Recorrido, durante os anos de 1982 a 1993, ter declarado rendimentos em valores muito baixos, concretamente, rendimentos no montante global de €53.423,67, em nada permite inferir que os suprimentos não assumiam essa natureza.

Noutra formulação, dir-se-á que tal aferição, desacompanhada de qualquer elemento adicional, em nada permite legitimar a correção realizada pela Administração Tributária. Sublinhe-se, neste particular, que não nos encontramos perante correções advenientes de, eventuais, manifestações de fortuna às quais, poderia, sendo caso disso e devidamente demonstrado, relevar a discrepância entre as aludidas realidades e legitimar qualquer outro tipo de correção, mas não a, ora, sindicada nos presentes autos.

Face ao exposto, não tendo a Administração Tributária ilidido o ónus probatório que sobre si impendia, e resultando, outrossim, provada a realização de suprimentos por parte do ora Recorrido, conclui-se que não se encontra legitimada a correção realizada pela Administração Tributária que requalificou a verba referente à reposição dos suprimentos efetuados no ano de 1994, como distribuição de lucros, subsumindo-os normativamente no artigo 6.º, nº1, alínea h), do CIRS, incorrendo, por isso, em vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito[8].

A verificação do aludido vício de violação de lei, determina a anulação do ato tributário com as devidas consequências legais, no caso, o pagamento de juros indemnizatórios (artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT) tal como ordenado pelo Tribunal a quo, resultando, outrossim, prejudicada a apreciação das demais questões.

Com efeito, como doutrinado no recentíssimo Aresto do STA, proferido no processo nº 02009/18.9 BALSB, datado de 30 de setembro de 2020: “O direito a juros indemnizatórios previsto no n.º 1 do artigo 43.º da Lei Geral Tributária pressupõe que no processo se determine que na liquidação “houve erro imputável aos serviços”, entendido este como o “erro sobre os pressupostos de facto ou de direito imputável à Administração Fiscal”.

Face a todo exposto a decisão recorrida não padece dos erros de julgamento que lhe são assacados, não merecendo qualquer censura, devendo, por isso, ser confirmada.


***


IV. DECISÃO

Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SEGUNDA SUBSECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste Tribunal Central Administrativo Sul em:

NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO.

Sem custas. Vencida a DRFP seria a mesma responsável pelas custas do recurso. No entanto, há que ter em conta que, nos processos instaurados até 01.01.2004 (como é o caso), a FP se encontrava isenta do pagamento de custas, atento o disposto no art.º 3.º, n.º 1, al. a), do Regulamento das Custas dos Processos Tributários, aprovado pelo DL n.º 29/98, de 11 de fevereiro (cfr. os art.ºs 14.º, n.º 1, e 15.º, n.º 2, ambos do DL n.º 324/2003, de 27 de dezembro, bem como o art.º 18.º do DL n.º 324/2003, de 29 de dezembro).

Registe. Notifique.


Lisboa, 22 de outubro de 2020


[A Relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo artigo 3.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Desembargadores Susana Barreto e Vital Lopes]

Patrícia Manuel Pires

_________________________
[1] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5ª edição, pp 165 e 166; José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, C.P.Civil anotado, Volume 3º., Tomo I, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 2008, pág.61 e 62; Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª. edição, Almedina, 2009, pág.181; Vide, designadamente, Acórdão do TCA Sul, proferido no processo nº 6505/13, de 2 de julho de 2013.
[2] Ac. STJ de 01.10.2015, P. 824/11.3TTLRS.L1.S1; Ac. STJ de 14.01.2016, P. n.º 326/14.6TTCBR.C1.S1; Ac. STJ de 11.02.2016, P. n.º 157/12.8TUGMR.G1.S1; Ac. STJ, datado de 19/2/2015, P. nº 299/05; Ac. STJ de 22.09.2015, P. 29/12.6TBFAF.G1.S1, 6ª Secção; Ac. STJ, datado de 29/09/2015, P. nº 233/09; Acórdão de 31.5.2016, 1572/12; Acórdão de 11.4.2016, 449/410; Acórdão do STJ de 27.1.2015,  1060/07.
[3] Vide, designadamente, Acórdão do STJ datado de 19/02/2015, proferido no processo nº 299/05.06TBMGD.P2.S1.
[4] Conforme doutrina o Ac. STJ. de 03/03/2016, no processo nº 861/13.3TTVIS.C1.S.
[5] Vide António Santos Abrantes Geraldes-Recursos no Novo Código de Processo Civil:5ªEdição, Almedina, p.124.
[6] Henrique Araújo: “A matéria de facto no processo civil”, publicado no site do Tribunal da Relação do Porto, acessível em www.trp.pt
[7] Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 11 de julho de 2018, proferido no processo nº 1193/16.1T8PRT.P1
[8] Em nada releva a circunstância do Tribunal a quo ter qualificado tal vício como erro de quantificação, porquanto, o princípio do conhecimento oficioso do direito permite ao juiz inteira liberdade na qualificação jurídica dos factos, desde que não altere a causa de pedir, podendo ir buscar regras diferentes daquelas que as partes invocaram, atribuir às regras invocadas pelas partes sentido diferente do que estas lhe deram e fazer derivar das regras de que as partes se serviram efeitos e consequências diversas das que estas tiraram cf. A. Reis, CPC Anotado, vol. 5°, pg. 453; vide Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, processo nº 565/08-2, de 03 de julho de 2008.