Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:08313/14
Secção:CT-2º JUÍZO
Data do Acordão:02/19/2015
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:UNIÃO DE FACTO
DOMICÍLIO FISCAL
Sumário:I – As pessoas que vivem em união de facto necessitam, para beneficiar do direito a serem tributadas segundo o regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens estabelecido no artigo 14.º do CIRS, de comprovar que essa união de facto perdura há, pelo menos, dois anos, que possuíram durante esse período de tempo o mesmo domicílio fiscal e apresentarem declaração de rendimentos assinada por ambos os sujeitos passivos unidos de facto.
II – Sendo o domicílio fiscal das pessoas singulares, em regra, o local da residência habitual e, consequentemente, esta residência habitual o lugar determinado para o exercício de direitos e cumprimento dos deveres previstos nas normas tributárias (art. 19.º, n.º 1, al. a), Lei Geral Tributária), é essa identidade que deve ser respeitada pelo sujeito passivo e é essa a identidade que deve ser respeitada pela Administração Fiscal, designadamente para apurar se estão ou não preenchidas as condições que a lei exige para que duas pessoas que vivem em união de facto beneficiem do regime consagrado no artigo 14.º n.º 1 do CIRS.
III – Não sendo a comunicação da alteração de domicílio fiscal um elemento constitutivo do direito referido em I-, não pode a omissão dessa formalidade constituir fundamento para o não reconhecimento desse mesmo direito.
IV – Tendo resultado provado que, quando os Impugnantes apresentaram as declarações conjuntas de rendimentos para efeitos de IRS, viviam há mais de vinte anos em condições análogas às dos cônjuges e que ao longo de todos esses anos ambos residiram na mesma casa, devem julgar-se verificados os requisitos plasmados no artigo 14.º n.ºs 1 e 2 do CIRS.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acórdão

1. Relatório

A Fazenda Pública, inconformada com sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada que julgou procedente a presente impugnação judicial que Alberto...................................... e Conceição..................................... deduziram na sequência do indeferimento tácito das reclamações graciosas que apresentaram relativamente aos actos de liquidação do IRS, dos anos de 2004, 2005 e 2006, veio dela recorrer para o Supremo Tribunal Administrativo.

A culminar as alegações de recurso apresentou as seguintes conclusões:

«1. Nos termos do disposto no n°2 do art°14° do CIRS, para que os sujeitos passivos, unidos de facto, possam optar pela tributação conjunta dos seus rendimentos é obrigatório que haja identidade de domicílio fiscal durante um período de dois anos, período esse estabelecido no n°1 do art°1° da Lei n°7/2001, de 11 de Maio;
2. Nos termos do n°3 do art°19° da LGT é ineficaz a mudança de domicílio fiscal enquanto a mesma não for notificada à administração tributária;
3. Está devidamente provado nos presentes autos que nos anos de 2002, 2003 e 2004 os impugnantes não apresentavam o mesmo domicílio fiscal, pelo que nunca aqueles podiam optar pela tributação conjunta dos rendimentos obtidos nos anos de 2004, 2005 e 2006;
4. Está devidamente provado nos presentes autos que a coincidência do domicílio fiscal dos impugnantes apenas se verifica nos períodos de 15 de Março de 2004 a 12 de Outubro de 2005 na Av ...................., n°.......-......., em Setúbal e a partir de 24 de Março de 2006 até à data da apresentação da presente impugnação, na Rua........................., nº....., em Setúbal;
5. Não está provado nos presentes autos, nem por documentos, nem por depoimento de qualquer testemunha, que os impugnantes viveram efectivamente em união de facto na totalidade do período compreendido entre 30 de Junho de 2002 e 22 de Março de 2006;
6. Entendeu contudo a Meritíssima Juíza do Tribunal "a quo" que efectivamente os impugnantes residiram nas referidas moradas, embora não tenha especificado o período em que tal ocorreu;
7. Entendeu, também, a Meritíssima Juíza do Tribunal "a quo" que a falta de comunicação da alteração do domicílio fiscal por parte do impugnante não impede que ele seja considerado domiciliado fiscalmente, primeiro a Av.................., n°...... -....., em Setúbal e depois na Rua ........................., n°........, em Setúbal;
8. Mais entendeu a Meritíssima Juíza do Tribunal "a quo" que se mostra verificado o requisito de "identidade de domicílio fiscal" previsto no n°2 do art°14° do CIRS;
9. Padece, assim, a referida sentença de manifesto erro de julgamento;
10. Decidiu mal a Meritíssima Juíza do Tribunal "a quo" ao anular as liquidações de IRS dos anos de 2004, 2005 e 2006 efectuadas em separado aos impugnantes, violando assim o disposto no n°2, do art°14° do CIRS e no n°3 do art°19° da LGT.
Nestes termos e nos mais de Direito aplicável, requer-se a V.as Ex.as se dignem julgar PROCEDENTE o presente recurso, por totalmente provado e em consequência ser a douta sentença ora recorrida, revogada e substituída por douto Acórdão que julgue improcedente a presente impugnação, tudo com as devidas e legais consequências».

Notificados da admissão do recurso jurisdicional, os Recorridos, Alberto................................... e Conceição.................................... não apresentam contra-alegações.

Por decisão do Juiz Conselheiro Relator, de 12-10-2014, o Supremo Tribunal Administrativo julgou-se incompetente em razão da hierarquia para conhecer do presente recurso, declarando competente para esse efeito este Tribunal Central Administrativo, ao qual o processo foi remetido, a pedido da Recorrente.


Após remessa dos autos a este Tribunal Central e aberto» Termo de Vista» à Exma. Procuradora – Geral, foi emitido parecer no sentido de ser julgado improcedente o recurso por na sentença ter sido devidamente valorada a matéria de facto apurada e acertada a decisão de direito.

Colhidos os «Vistos» dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

2. Objecto do recurso
Como é sabido, sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é pelas conclusões com que o recorrente remate a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art.º639°, n°1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem.
Assim, e pese embora na falta de especificação no requerimento de interposição se deva entender que este abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635°, n°2, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n°3 do mesmo art. 635°), razão pela qual todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, devem considerar-se definitivamente decididas e, consequentemente, delas não pode conhecer o Tribunal de recurso.
Acresce que, constituindo o recurso um meio impugnatório de decisões judiciais, neste apenas se pode pretender, salvo a já mencionada situação de questões de conhecimento oficioso, a reapreciação do decidido e não a prolação de decisão sobre matéria não submetida à apreciação do Tribunal a quo.

Assim, atento o exposto e as conclusões das alegações do recurso interposto, temos por seguro que o objecto deste está circunscrito à questão de saber se, face aos factos apurados, andou bem o Tribunal a quo ao julgar que se mostravam apurados os pressupostos legais para que os Impugnantes apresentassem conjuntamente a sua declaração de rendimentos em sede de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares nos anos de 2004, 2005 e 2006 e, consequentemente, ao anular as liquidações impugnadas por vício de violação de lei.

3. Fundamentação de Facto
Em 1ª instância foram considerados como relevantes e provados para a apreciação e decisão da causa os seguintes factos:
A) - Em 28/10/2008 foi emitido o ofício n°10312 dirigido aos ora impugnantes para efeitos de notificação de situação referente às declarações mod.3 de IRS dos anos de 2004 2005 e 2006 no qual consta que "No âmbito da verificação dos pressupostos da situação de "Unidos de Facto", declarada por V.Exa(s) na declaração de IRS do ano de 2007- Lote 40873/08, informa-se o seguinte:
A Lei 7/2001 de 11/05, estabeleceu que as pessoas que vivem em U.F, há mais de dois anos, têm direito, mediante opção, a beneficiar do regime fiscal aplicável aos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens. A aplicação deste regime depende, a coberto do art.14°, n°2 do CIRS, da identidade de domicílio fiscal dos sujeitos passivos durante o período exigido pela Lei para verificação dos pressupostos da U.F. e durante o período de tributação, bem como da assinatura, por ambos, da respectiva declaração de rendimentos. Nestes termos, constatando-se que apenas a partir de 22/03/2006, se verificou a existência de identidade de domicílio de ambos os sujeitos passivos, persiste a necessidade de regularização da situação tributária verificada ao nível do estado civil declarado.
Assim, ficam V. Exas. notificados para no prazo de 10 dias a contar da data da assinatura do aviso de recepção, procederem à apresentação da declaração mod. 3 de IRS dos anos de 2004, 2005 e 2006, mencionando o estado civil de "solteiro, viúvo, divorciado ou separado judicialmente", e os respectivos valores e elementos a declarar.
Na eventualidade das declarações em causa serem apresentadas por via electrónica, deverão, após a submissão e porque as mesmas apresentarão erro de validação, comunicar a este Serviço de Finanças tal ocorrência a fim de serem despoletados os procedimentos conducentes à eliminação das declarações apresentadas como U.F. e contacto posterior com V.Exas. tendo em vista a nova submissão das declarações individuais.
Caso a situação não seja regularizada no prazo designado, procederão estes serviços às correcções oficiosas que se mostrarem devidas, bem como ao levantamento do competente auto de notícia para aplicação das sanções legalmente previstas." (cfr. fls. 41).
B)- Na sequência da notificação acima mencionada foram apresentadas as respectivas declarações de substituição com a indicação dos estado civil de "solteiro/ viúvo/ divorciado/separado judicialmente" tendo dado origem às liquidações n°s .............................., n°............................ e n°............................. referentes ao IRS dos anos de 2004, 2005 e 2006 nos montantes a pagar de € 3.471,52, € 3.331,09 e € 1.424,91 respectivamente (como consta de fls. 39 do processo administrativo em apenso).
C)- Em 28/04/2009 foi apresentada por Alberto................................. e Conceição ............................... reclamação graciosa com referência ao IRS do ano de 2004 (cfr. fls. 15/23).
D)- Em 28/04/2009 foi apresentada por Alberto.................................... reclamação graciosa com referência ao IRS dos anos de 2005 e 2006 (cfr. fls. 33/40).
E)- Em 20/02/2010 foi emitido o ofício n° 1893 dirigido a Alberto ................................ para efeitos de notificação do indeferimento da reclamação graciosa relativa ao IRS do ano de 2004 (cfr. fls. 58/59).
F)- Em 20/02/2010 foi emitido o ofício n° 1894 dirigido a Alberto.................................. para feitos de notificação do indeferimento da reclamação graciosa relativa ao IRS dos anos de 2005 e 2006 (cfr. fls. 60/61).
G)- No âmbito das reclamações graciosas, os serviços da administração tributária fizeram constar que "Da base de dados da DGCI consta que o reclamante e a companheira nem sempre tiveram o mesmo domicílio fiscal a saber:
Relativamente ao Reclamante:
De 2006-03-22 em diante, tem domicílio fiscal na RUA ....................., N°....... em Setúbal
• Até essa data, desde 2004-03-11, tinha domicílio fiscal na AV. ...................., Nº......, ....., em Setúbal
• Em 31 de Dezembro de 2001/2002/2003, domicílio fiscal AV............................, N°....., em Setúbal
• Relativamente à sua Companheira:
• De 2005-10-10 em diante, tem domicílio fiscal na RUA................................, N°......, em Setúbal
• De 31-12-2001 até essa data, tinha domicílio fiscal na AV........................., N°.....,......, em Setúbal (...)
No caso em apreço, verifica-se que entre o Reclamante e a sua Companheira apenas ocorre a "identidade de domicílio fiscal" nos seguintes períodos e locais:
- De 2004-03-11 a 2005-10-09, na AV........................, N°.......,......, em Setúbal, (desde o final de 2001, pelo menos, a Companheira tem domicilio fiscal nesta morada)
(em 2004-03-11, o Reclamante actualizou o domicílio fiscal para esta morada)
(em 2005-10-10, a Companheira actualizou o domicílio fiscal para a morada infra)
(em 2006-03-22, o Reclamante actualizou o domicílio fiscal para a morada infra)
• Desde 2006-03-22, na RUA............................, N°......., em Setúbal.
21.Não estamos a dizer que o Reclamante e a sua Companheira não viviam no mesmo domicílio (residência) há mais de dois anos e nos períodos de tributação em causa.
22. Estamos, sim, a dizer, porque se detectou e se verificou, que o Reclamante e a sua Companheira não tinham o mesmo domicílio fiscal (residência comum fiscalmente comunicada) há mais de dois anos e no(s) período(s) a que respeita o IRS em causa (anos de 2005 e 2006)." (cfr. fls. 72 e fls.75 e 76 do processo administrativo em apenso).
H) - Alberto Custódio e Conceição Vieira Gomes moraram juntos na Av. ........................ (Av. ao pé do hospital) e depois mudaram-se para uma vivenda ao pé da estrada para a Figueirinha, onde moram actualmente (cfr. depoimento das testemunhas).

3.2. Mais ficou consignado, a título de «Motivação da decisão de facto» que «A convicção do tribunal formou-se com base no teor dos documentos juntos ao processo bem como dos depoimentos das testemunhas (melhor identificadas na acta de inquirição de testemunhas de fls. 110/111), acima expressamente referidos em cada um dos pontos do probatório.
Na verdade e pese embora as testemunhas não conseguissem indicar concretamente as moradas dos impugnantes, contudo o seu depoimento foi credível e com conhecimento dos factos, os quais conjugados com a prova documental existente nos autos permite concluir que efectivamente os impugnantes residiram na Av.................., n°........ em Setúbal e depois mudaram para uma vivenda na Rua....................., n°..... em Setúbal».

3.3. E, em sede de «Factos não provados» que «Não existem factos relevantes para a decisão que importe destacar como não provados».


4. Fundamentação de Direito

Conforme resulta dos pontos I e II supra, a presente Impugnação nasce do inconformismo dos Recorridos quanto às correcções operadas pela Administração Fiscal e subsequentes liquidações emitidas relativamente às suas declarações de rendimentos dos anos de 2004, 2005 e 2006.
Tas correcções e liquidações assentaram, no essencial, e para o que ora releva, na circunstância de a Administração Fiscal ter entendido que os Recorridos, no referido período de tempo (2004-2006) não casados, precisavam, para beneficiarem do regime de apresentação conjunta de rendimentos na situação de “união de facto”, de ter demonstrado uma vivência em comum, que expressamente não questiona, mas também que durante esse período de tempo tinham o mesmo domicílio fiscal.
Considerando que dos elementos documentais que dispunha, mormente do cadastro fiscal de cada um dos Impugnantes, resultava que durante dois anos não tinham tido o mesmo domicílio fiscal, concluiu que aqueles não podiam ter exercido o direito de apresentação conjunta de rendimentos e, consequentemente, procedeu às correcções que entendeu devidas e que nos autos se não mostram, nessa parte, discutidas.
Para os Recorridos, como se constata dos articulados que por si foram apresentados (petição inicial e alegações sucessivas, em tudo conformes com o que anteriormente, em sede de reclamação graciosa já haviam expendido) esta tese não tinha sustentação legal por a interpretação aí acolhida quanto aos pressupostos do regime em apreço ser ilegal e inconstitucional.
O Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, após instrução dos autos, incluindo produção de prova testemunhal, partindo do pressuposto de que a Administração Fiscal não questionava essa união de facto há mais de dois anos, veio a concluir, face aos factos que julgou apurados, em especial os ínsitos nas alíneas G) e H), que se mostravam preenchidos os demais requisitos legais, isto é, fixação de domicílio fiscal no mesmo local e assinatura por ambos da declaração conjunta como forma de manifestação de opção pelo regime tributário previsto no artigo 14.º do CIRS e a julgar procedente a Impugnação.
É contra este entendimento que se insurge em recurso a Fazenda Pública com duas ordens de razão. A primeira é a de que não basta que duas pessoas vivam juntas no mesmo domicílio há mais de dois anos, sendo exigível, ainda, que esse domicílio civil corresponda ao domicílio fiscal declarado pelo mesmo período de tempo. A segunda, que dos factos apurados não resulta provado, nem os documentos ou testemunhas permitem dar como apurado, que os Impugnantes viveram efectivamente em união de facto na totalidade do período compreendido entre 30 de Junho de 2002 e 22 de Março de 2006, conclusão de facto que a Meritíssima Juiz, mal, extrai das alíneas G) e H) do probatório.
Vejamos, pois, o que se nos oferece dizer, começando, naturalmente, pela questão do erro de julgamento de facto que à sentença vem imputado.
E, nesse sentido, adiantamos, desde já, que não pode de ser reconhecida razão à Recorrente, sendo mesmo duplamente censurável a postura que, nesta parte, assume em recurso.
Censurável porque, como aquela bem sabe, o fundamento das correcções e liquidações fiscais nunca foi uma inexistência de união de facto há mais de dois anos, mas exclusivamente o facto de durante esse período de tempo não haver coincidência de domicílios fiscais.
O que vimos dizendo mostra-se absolutamente seguro face à leitura de todas as peças processuais constantes dos autos e subscritas pela Administração Fiscal, em especial do exposto na alínea G) do probatório, na qual consta - reproduzindo-se a «Informação» prestada pelos Serviços de Finanças e que fundamentou a decisão de indeferimento do pedido de anulação das liquidações, consta, após a identificação dos pressupostos legais plasmados no artigo 14.º do CIRS e uma profunda análise dos mesmos por referência aos factos por si fixados como relevantes -, o seguinte: «21. Não estamos a dizer que o Reclamante e a sua Companheira não viviam no mesmo domicílio (residência) há mais de dois anos e nos períodos de tributação em causa. 22. Estamos, sim, a dizer, porque se detectou e se verificou, que o reclamante e a sua Companheira não tinham o mesmo domicílio fiscal (residência comum fiscalmente declarada) há mais de dois anos e no período (s) a que respeita o IRS em causa (anos de 2005 e 2006).».
Insiste-se, esta foi, sempre, a posição assumida pela Fazenda Pública ao longo destes autos e do processado que imediatamente o antecedeu (reclamação graciosa), sendo igualmente essa a posição de princípio que, agora em recurso, continua a defender.
É, pois, salvo o devido respeito, perfeitamente perceptível que esta expressa impugnação das ilações de facto extraídas pelo Tribunal mais não são do que um “segundo recurso” para sustentar a sua pretensão revogatória.
Censurável, ainda, porque este “segundo recurso”, ainda que facilitado pela forma singela e vaga com que os factos se deram como apurados na alínea H), o que não podemos deixar de reconhecer, não tem qualquer fundamento.
Efectivamente, para sustentar esta sua pretensão, diz a Recorrente que não existe nos autos prova documental ou sequer testemunhal que suporte a afirmação proferida na sentença de que os Impugnantes viveram efectivamente em união de facto na totalidade do período compreendido entre 30 de Junho de 2002 e 22 de Março de 2006.
Diga-se, peremptoriamente, que essa alegação não é verdadeira.
Na realidade, para além de essa afirmação na sentença ter subjacente o pressuposto, como vimos líquido, de que a Recorrente não pôs em causa essa factualidade (vivência em comum em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos aquando da apresentação da declaração de rendimentos conjunta ao abrigo do preceituado no artigo 14.º do CIRS) e das ilações que ainda podem ser extraídas do todo do probatório, em especial do conjugadamente assente nas alienas G) e H), a audição do depoimento das testemunhas, que foi objecto de gravação, conduz-nos precisamente a conclusão contrária.
Assim, Vítor.........., primeira testemunha a depor, funcionário público aposentado da Direcção de Finanças, declarou conhecer os Impugnantes desde finais da década de 80 e que foi muitos anos vizinho daqueles na Praceta ........................................ Mais declarou que: quando foram morar para o andar ao lado onde o depoente residia, os Impugnantes já viviam “como casal” e convivia com ambos frequentemente; por vezes os auxiliava na elaboração das declarações fiscais e que o Impugnante até jogava na equipa de futsal do serviço de finanças onde o depoente trabalhava.
Mais partilhou com o Tribunal, através das suas declarações, que ajudou na mudança para o prédio em “frente ao hospital”, que “acha que era a Avenida...................... mas não poda afirmá-lo com toda a certeza”, salientando que é por todos conhecida como a “Avenida do Hospital” e que se recorda que foram morar para o 2.º ou 3.º andar porque bem se lembra de “andar a subir com a mobília”. Por último, declarou que passado um tempo (não podendo precisar datas) foram viver para uma moradia próxima na “estrada que dá para a Figueirinha”.
A segunda testemunha, Maria...................., declarou conhecer os Recorridos desde que “eles moravam no andar junto ao hospital”, em 1991, data em que passou a trabalhar com a depoente no ramo do turismo. Sempre os conheceu a viver juntos “como casal e com o filho “Fábio” até este ter casado e que os Impugnantes, mais recentemente, passaram a residir numa moradia junto da Avenida......................., “ a caminho estrada da Figueirinha”.
Em suma, resulta inequivocamente demonstrado pela prova testemunhal produzida, que desde finais da década de 80 até Fevereiro de 2012 (data de inquirição das testemunhas) os Recorridos viveram em comunhão de vida em condições análogas à dos cônjuges, pelo que é manifestamente infundado, diga-se novamente, a afirmação de que não existe prova testemunhal bastante a sustentar a afirmação produzida na sentença.
Porém, como não basta ter sido feita prova do facto, sendo imperioso que dos factos provados, isto é, do probatório, constem esses factos quando relevantes para a decisão de mérito do litígio, como é o caso, impõe-se proceder, em conformidade com a prova produzida e supra identificada, ao seu aditamento/correcção, o que desde já se faz, nos termos seguintes:
- A redacção imprimida à alínea H) é alterada passando dela a constar o seguinte:
«H. Alberto.......................... e Conceição............................... viveram, desde a década de 80 até, pelo menos, 2012, na mesma casa, local onde recebiam os seus amigos (cfr. depoimento de ambas as testemunhas supra descriminado)».
- Adita-se ainda a seguinte factualidade:
«I. Desde a data referida em H) que os Impugnantes partilham uma relação afectiva da qual nasceu, a 26-5-194 um filho, Fábio...................................... (depoimento da testemunha Maria................. e documento de fls. 20 dos autos de Reclamação Graciosa apensos).».

4.2. Avançando na apreciação do recurso, vejamos qual a resposta que nos merece a crucial questão neste colocada: vivendo duas pessoas em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos, deve a declaração de rendimentos de IRS conjuntamente apresentada ao abrigo do preceituado no artigo 14.º do CIRS ser aceite se durante esse período de tempo não partilharam também o mesmo domicílio fiscal?
Julgamos que sim.
Para o demonstrar, importa começar por transcrever os preceitos pertinentes e nos quais assenta de direito aquela nossa afirmação.
No artigo 14.º do CIRS, sob a epígrafe "Uniões de Facto" estabeleceu o legislador o seguinte:
"1- As pessoas que, vivendo em união de facto, preencham os pressupostos constantes da lei respectiva, podem optar pelo regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens.
2 - A aplicação do regime a que se refere o número anterior depende da identidade de domicílio fiscal dos sujeitos passivos durante o período exigido pela lei para verificação dos pressupostos da união de facto e durante o período de tributação, bem como da assinatura, por ambos, da respectiva declaração de rendimentos.
3 - No caso de exercício da opção prevista no n°1, é aplicável o disposto no n°2 do artigo 13°, sendo ambos os unidos de facto responsáveis pelo cumprimento das obrigações tributárias."
Por sua vez, a “lei respectiva” para que nos remete o legislador tributário, Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, define, desde logo, “união de factocomo a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges (cfr. artigo 1.º, n.°2 da citada Lei, na redacção a este dada pela Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, ainda que já anteriormente à introdução legal desta definição fosse esta a que doutrinal e jurisprudencialmente era aceite de forma pacifica) e impõe, para reconhecimento dos direitos aí estabelecidos, que esta perdure, no mínimo, há dois anos.
Por último, nos termos da alínea d) do artigo 3° do mesmo diploma, as pessoas que vivem em união de facto nas condições previstas nessa Lei, têm direito à aplicação do regime do imposto de rendimento das pessoas singulares nas mesmas condições dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens.
Traduz esta recíproca influência ou abrangência mútuas a unidade do ordenamento jurídico: resultando da nossa Lei Fundamental, mais concretamente dos artigos 67.º n.º 2 al. f) e 104.º, que o rendimento sobre as pessoas singulares deverá ter em conta a realidade familiar.
Ora, essa “realidade familiar”, nos termos amplos em que vem acolhida no artigo 36.º da mesma Constituição, e face ao princípio da igualdade, não poderá deixar de ser entendida como abrangendo a realidade familiar que a “união de facto” também é, pelo menos nas situações em que esta preenche os requisitos de que legalmente está dependente o reconhecimento dessa realidade (plasmados na citada lei n.º 11/2001).
Todavia, como deixámos já patente através da transcrição do artigo 14.º do CIRS, o legislador estabeleceu que, para as pessoas que vivem em união de facto beneficiem do regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens, para além de comprovarem essa união pelo menos há dois anos necessitam ainda de preencher cumulativamente dois outros requisitos: (i) identidade de domicílio fiscal dos sujeitos passivos durante dois anos e (ii) assinatura da declaração de rendimentos por ambos os sujeitos passivos unidos de facto.
Só o preenchimento de todas aquelas condições previstas no n.º 2 do artigo 14.º faz nascer o direito ao benefício concedido no n.º 1 do mesmo artigo e diploma e 3.º al. d) da Lei n.º 7/2001.
Ora, é precisamente quanto a uma dessas condições, isto ao, ao preenchimento da condição de identidade de domicílio fiscal que as partes no nosso processo se não entendem e, agora, a Recorrente dissente da interpretação acolhida pelo Tribunal a quo.
Importa, pois, densificar o conceito de domicílio fiscal (pressuposto de aplicação do regime), o que determina necessariamente que tenhamos, desde logo, em atenção a definição que a este foi dada pelo legislador tributário: domicílio fiscal das pessoas singulares é, em regra, o local da residência habitual (art. 19.º, n.º 1, al. a), Lei Geral Tributária).
Ou seja, ainda que o conceito de domicílio fiscal e a sua fixação não sejam idênticos ao conceito e exigências de determinação de residência habitual tal como o mesmo se mostra determinado no artigo 82.º do Código Civil, e aquele primeiro não possa deixar de ser entendido como um domicílio especial, “o lugar determinado para o exercício de direitos e cumprimento dos deveres previstos nas normas tributárias” (1) e, consequentemente, independentemente do estipulado na Lei civil, o certo é que foi o legislador a estabelecer como regra essa identidade entre um e outro, dentro de uma lógica natural (é natural que o local próprio de exercício de direitos e cumprimento de deveres fiscais seja o local onde habitualmente o sujeito passivo reside) e, mais uma vez, de coerência e unidade do sistema jurídico [se o domicílio (“voluntário geral”) é no lugar de residência habitual (ou em qualquer um dos lugares que alternadamente resida ou até onde resida ocasionalmente – artigo 82.º n.º 1 e 2 do Código Civil) compreende-se que tenha sido este o que primeiramente também foi atendido, por uma questão de coerência e uniformidade do sistema jurídico, pelo legislador tributário para efeitos de regra de domicilio fiscal].
Em suma: o domicílio fiscal é, em regra, e por imposição legal, o local de residência habitual do sujeito passivo.
E, se assim é, é essa a identidade que deve ser respeitada pelo sujeito passivo e é essa a identidade que deve ser respeitada pela Administração Fiscal, designadamente para apurar se estão ou não preenchidas as condições que a lei exige para que duas pessoas que vivem em união de facto beneficiem do regime consagrado no artigo 14.º n.º 1 do CIRS.
Donde, provando os sujeitos passivos que residem no mesmo local, com carácter de habitualidade, há mais de dois anos, em condições análogas às dos cônjuges, não vemos como pode a Administração Fiscal - que até concede que essa comunhão existe – defender que a condição em apreço não está preenchida “porque não houve comunicação de alteração de domicilio fiscal” ou, se preferirmos, porque dos registos da DGCI não resulta que durante dois ou mais anos tivessem indicado o mesmo domicílio fiscal aqueles dois sujeitos passivos!
E não se diga que a interpretação que a Administração Fiscal tem sistematicamente defendido é a única que se mostra conforme as exigências impostas pelo citado artigo 14.º e com o preceituado no artigo 19.º n.ºs 3 e 4 da LGT, porquanto a mesma enferma de um erro primário, qual seja, o confundir obrigatoriedade de comunicação de domicílio fiscal (ou da sua alteração) e ineficácia de eventual alteração não comunicada com a existência ou possibilidade de reconhecimento do direito que poderá, sim, ficar dependente da prova que seja feita quanto à referida identidade de domicílio. Ou seja, é a eficácia da declaração conjunta que fica dependente da prova da identidade do domicílio fiscal (residência habitual) durante dois anos e não o direito a apresentar essa declaração que fica inviabilizado pela não comunicação de uma alteração de domicílio fiscal. Relevante é que o domicílio fiscal - dos declarantes em união de facto há pelo menos dois anos – seja efectivamente o mesmo e não que o tenham declarado como tal, ainda que a produção dos efeitos jurídicos pretendidos possa ficar paralisada no tempo até essa prova (e consequente afastamento de presunção de essa residência comum/domicilio comum se não verificar) se realizar.
Em suma: a comunicação da alteração de domicilio fiscal não é um elemento constitutivo do direito que os Impugnantes se arrogam e, como tal, não é na omissão dessa formalidade que o não reconhecimento do direito e a emissão de liquidações adicionais pode assentar.
Conclusão esta, de resto, que em nada se distancia da que sustentou a Recomendação do Provedor de Justiça n.º 1/A/2013 [proferida no processo n.ºR-1266/10 (A2)] e na qual lapidarmente se afirmou que «(…) a concretização do princípio da legalidade pela administração tributária determina uma interpretação principialista das normas, ou seja, uma interpretação das normas, em especial das normas de incidência, segundo os princípios básicos da Constituição Fiscal, o que implica, quanto à situação de que se vem a tratar, a harmonização das disposições legais contidas nos artigos 14.º, n.º 2, do Código do IRS, 19.º, da LGT, 43.º, do CPPT e 117.º, n.º 4, do RGIT, o que terá necessariamente que passar pela aceitação de prova da coabitação dos unidos de facto durante mais de dois anos, por outros meios, que não apenas pela identidade de domicílio fiscal. Embora o domicílio fiscal comum possa prefigurar meio de prova qualificada, esta, no entanto, não poderá ser a exclusiva, pelos motivos já apontados.
Assim, os contribuintes que, vivendo em união de facto, tal como definida pela lei respetiva e que não tenham atempadamente procedido à alteração do seu domicílio fiscal, não poderão deixar de beneficiar do regime de tributação conjunta por que tenham optado, sem prejuízo da responsabilidade contraordenacional que ao caso couber, nos termos do n.º 4 do artigo 117.º, do RGIT», com a qual, na íntegra, concordámos, como se vê da fundamentação exposta.
Tendo, no caso concreto, sido feita prova de que os Impugnantes viviam já em condições análogas às dos cônjuges há mais de 20 anos quando apresentaram as declarações conjuntas para efeitos de IRS, residindo sempre ao longo de todos esses anos na mesma casa, não pode deixar de julgar-se como verificados os requisitos plasmados no artigo 14.º n.ºs 1 e 2 do CIRS e, consequentemente, eivadas de vício de violação de lei as liquidações impugnadas cuja anulação, com os fundamentos expostos, confirmamos.


5- DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que integram a Secção de Contencioso do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e, com os fundamentos expostos, confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Registe e notifique
Lisboa, 19-2-2015


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(Anabela Russo)


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(Lurdes Toscano)


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(Ana Pinhol)


(1) Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 7-4-2011, processo n.º 4550/11.