Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1056/20.5 BELSB
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:10/25/2022
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:CONFLITO
INCOMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO ADMINISTRATIVO SOCIAL
JUÍZO ADMINISTRATIVO COMUM
PROTECÇÃO SOCIAL NO DESEMPREGO
Sumário:I. Nos termos do artigo 36.º, n.º 1, alínea t), do ETAF, compete ao Presidente de cada Tribunal Central Administrativo “conhecer dos conflitos de competência entre tribunais administrativos de círculo, tribunais tributários ou juízos de competência especializada, da área de jurisdição do respectivo tribunal central administrativo”, sendo que no âmbito do contencioso administrativo os conflitos de competência jurisdicional e de atribuições encontram-se regulados nos artigos 135.º a 139.º do CPTA.

II. A norma vertida na alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF, segundo a qual ao juízo administrativo social compete dirimir, para além das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei, os processos relativos a litígios (i) emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação ou (ii) relacionados com formas públicas ou privadas de protecção social, deve ser interpretada no sentido mais restrito de atribuir competência para dirimir apenas os litígios relacionados com formas públicas ou privadas de protecção social associada ao trabalho.

III. Pelo Decreto-Lei n.º 65/2012, de 15 de Março, o governo instituiu, no âmbito do sistema previdencial, um regime jurídico de protecção social na eventualidade de desemprego dos trabalhadores que se encontrem enquadrados no regime dos trabalhadores independentes e que prestam serviços maioritariamente a uma entidade contratante.

IV. Numa acção mediante a qual o autor pretende a anulação do acto que lhe atribuiu o subsidio diário de EUR 23,60 e a sua substituição por outro de montante superior, em que se discute a interpretação do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 220/2006, de 3 de Novembro, aplicável ex vi do artigo 18.º da Lei n.º 65/2012 de 15 de Março e Portaria n.º 27/2020, de 31 de Janeiro, está em causa a protecção social na eventualidade de desemprego, pelo que o Juízo com competência material para dirimir o litígio é o juízo administrativo social do Tribunal Administrativo onde a acção foi proposta.

Votação:DECISÃO SUMÁRIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: DECISÃO

I. Relatório

A Exma. Senhora Juíza do Juízo administrativo comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa veio, ao abrigo do disposto na alínea t) do n.º 1 do artigo 36.º do ETAF requerer oficiosamente, junto deste Tribunal Central Administrativo Sul, a resolução do conflito negativo de competência em razão da matéria, suscitado entre si e a Exma. Senhora Juíza do Juízo administrativo social do mesmo Tribunal, visto que as Magistradas Judiciais dos referidos Juízos se atribuem, mutuamente, competência, negando a própria, para conhecer da acção administrativa que M …………… …………, ali instaurou contra o Instituto da Segurança Social, I.P..

Neste TCA Sul foi cumprido o disposto no artigo 112.º, n.º 1 do CPC, nada tendo sido dito.

Os autos foram com vista à Digna. Procuradora-Geral Adjunta, conforme dispõe o artigo 112.º, n.º 2, do CPC, que emitiu pronúncia na qual sustenta que o tribunal materialmente competente para o conhecimento do mérito da presente acção é o Juízo administrativo social do TAC de Lisboa.



I. 1. QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR:

A questão colocada consiste em saber qual o tribunal materialmente competente para apreciar e decidir a presente acção administrativa: se o Juízo de administrativo comum do TAC de Lisboa ou se o Juízo administrativo social do mesmo Tribunal.


II. Fundamentação

II.1. De facto

Para julgamento do presente conflito, julgam-se relevantes as seguintes ocorrências processuais (documentalmente comprovadas):

1. Em 18.06.2020, …………………… intentou no TAC de Lisboa uma acção administrativa de impugnação de ato e de condenação à prática de ato administrativo contra o INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I.P., onde formula os seguintes pedidos:

(cfr. p.i. e 19 documentos juntos, proc. no SITAF).

2. Por decisão datada de 18.10.2021, a Senhora Juíza do Juízo administrativo social do TAC de Lisboa a quem os autos estavam atribuídos, excepcionou a incompetência em razão da matéria e determinou a remessa dos autos ao Juízo administrativo comum do mesmo Tribunal, por entender ser esse o Juízo competente (cfr. decisão - proc. no SITAF).

3. Nessa sequência, a Senhora Juíza do juízo administrativo comum a quem os autos foram distribuídos, em sentença datada de 31.03.2022., declarou aquele juízo igualmente incompetente, em razão da matéria, cometendo essa competência ao juízo administrativo social do mesmo Tribunal (idem).

4. Em 19.09.2022, a Senhora Juíza do Juízo administrativo comum do TAC de Lisboa, requereu a este Tribunal Superior a resolução do conflito negativo de competência aberto entre si e a Senhora Juíza do Juízo administrativo social daquele Tribunal (idem).

5. As decisões em conflito transitaram em julgado [cfr. consulta do SITAF].



II.2. DE DIREITO

Nos termos do artigo 36.º, n.º 1, alínea t) do ETAF, compete ao Presidente de cada Tribunal Central Administrativo “conhecer dos conflitos de competência entre tribunais administrativos de círculo, tribunais tributários ou juízos de competência especializada, da área de jurisdição do respectivo tribunal central administrativo”, sendo que no âmbito do contencioso administrativo, os conflitos de competência jurisdicional encontram-se regulados nos artigos 135.º a 139.º do CPTA.

Estabelece-se no n.º 1 do artigo 135.º do CPTA que a resolução dos conflitos “entre tribunais da jurisdição administrativa e fiscal ou entre órgãos administrativos” seguem o regime da acção administrativa, com as especialidades resultantes das diversas alíneas deste preceito, aplicando-se subsidiariamente, com as necessárias adaptações, o disposto na lei processual civil (cfr. artigos 109.º e s. do CPC).

Por sua vez, o artigo 136.º do mesmo diploma estatui que “a resolução dos conflitos pode ser requerida por qualquer interessado e pelo Ministério Público no prazo de um ano contado da data em que se torne inimpugnável a última das decisões”. Este preceito corresponde ao artigo 111.º do CPC, que dispõe o seguinte: “1 – Quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir. 2 – A resolução do conflito pode igualmente ser suscitada por qualquer das partes ou pelo Ministério Público, mediante requerimento dirigido ao presidente do tribunal competente para decidir”.

Continuando, sob a epígrafe “[c]onflito de jurisdição e conflito de competência” estatui o artigo 109.º do CPC, aqui aplicável “ex vi” artigo 135º do CPTA, que:

1 – Há conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas actividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão: o conflito diz-se positivo no primeiro caso e negativo no segundo.

2 – Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.

3 – Não há conflito enquanto forem susceptíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência.

O legislador do ETAF plasmou no artigo 44.º-A, aditado pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, e para os casos em que tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, os critérios de eleição para determinar a sua habilitação funcional. De acordo com o citado artigo 44.º-A do ETAF, sob a epígrafe “Competência dos juízos administrativos especializados”, passou a dispor-se o seguinte:

1- Quando tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, nos termos do disposto no artigo 9.º, compete:

a) Ao juízo administrativo comum conhecer de todos os processos do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que incidam sobre matéria administrativa e cuja competência não esteja atribuída a outros juízos de competência especializada, bem como exercer as demais competências atribuídas aos tribunais administrativos de círculo;

b) Ao juízo administrativo social, conhecer de todos os processos relativos a litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de proteção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;

c) Ao juízo de contratos públicos, conhecer de todos os processos relativos à validade de atos pré-contratuais e interpretação, à validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes, e à sua formação, incluindo a efetivação de responsabilidade civil pré-contratual e contratual, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;

d) Ao juízo de urbanismo, ambiente e ordenamento do território, conhecer de todos os processos relativos a litígios em matéria de urbanismo, ambiente e ordenamento do território sujeitos à competência dos tribunais administrativos, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei.

2- Quando se cumulem pedidos entre os quais haja uma relação de dependência ou subsidiariedade, deve a ação ser proposta no juízo competente para a apreciação do pedido principal.

Daqui resulta que o juízo administrativo comum funciona como juízo de competência material residual, i.é, caso as matérias em dissídio não estejam incluídas no âmbito dos juízos especializados, a competência para as apreciar cabe ao juízo administrativo comum. A competência material especializada prevalece, assim, sob a competência material comum, precisamente porque esta é residual.

E na delimitação de competências entre o juízo comum e os diferentes juízos especializados dos tribunais administrativos (e estes entre si), afigura-se-nos evidente que o legislador atendeu ao objecto material das causas, relevando as especificidades que decorrem do direito substantivo que regula as correspondentes relações jurídicas, associando, no que aqui importa, as áreas de competência do juízo administrativo social ao conhecimento dos litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de protecção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial.

A competência, como medida de jurisdição atribuída a cada tribunal para conhecer de determinada questão a ele submetida, e enquanto pressuposto processual, determina-se pelos termos em que a acção é proposta, isto é, pelos pedidos e causas de pedir.

É entendimento generalizado da Jurisprudência dos Tribunais Superiores e da Doutrina que a competência do tribunal “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)” (…). A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor compreendidos aí os respectivos fundamentos, não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão” - MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 91 e, por todos, o acórdão do Tribunal de Conflitos de 4.07.2006, proc. n.º 11/2006. Em suma, a competência afere-se pela substância do pedido formulado e pela relação jurídica subjacente ou factos concretizadores da causa de pedir.

Dispõe o artigo 13.º do CPTA que “[o] âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria”.

Feito este enquadramento inicial, vejamos o caso concreto, devidamente recortado pela factualidade que deixámos fixada.

Recorde-se que na presente acção administrativa o Autor pede, em síntese útil, a anulação do acto administrativo, comunicado a coberto do ofício com data de 28.11.2019, que lhe atribuiu o subsidio diário de EUR 23,60 e a condenação da Entidade Demandada à prática de um novo acto que determine, com efeitos reportados a 1.11.2019, que o montante diário do subsídio ascenda ao valor diário de EUR 36,31, montante que deverá ser actualizado a partir de 1.01.2020, para a quantia de EUR 36,57/dia. E isto porque entende que o valor atribuído a título de subsídio fez errada interpretação do disposto nos artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 220/2006, de 3 de Novembro, aplicável ex vi art. 18.º da Lei n.º 65/2012 de 15 de Março e Portaria n.º 27/2020, de 31 de Janeiro.

Vejamos então.

De acordo com o artigo 50.º, n.º 1, da Lei de Bases da Segurança Social, aprovada pela Lei nº 4/2007, “o sistema previdencial visa garantir, assente no princípio de solidariedade de base profissional, prestações pecuniárias substitutivas de rendimentos de trabalho perdido em consequência da verificação das eventualidades legalmente definidas”. E no artigo 51.º, nº 1, do mesmo diploma estipula-se que são “abrangidos obrigatoriamente pelo sistema previdencial, na qualidade de beneficiários, os trabalhadores por conta de outrem ou legalmente equiparados e os trabalhadores independentes”. Estatuindo-se ainda na al. c) do n.º 1 do artigo 52.º da Lei de Bases de Segurança Social, que a protecção social integra a eventualidade de “desemprego”.

Através do Decreto-Lei n.º 65/2012, de 15 de Março, o Governo instituiu, no âmbito do sistema previdencial, um regime jurídico de protecção social na eventualidade de desemprego dos trabalhadores que se encontrem enquadrados no regime dos trabalhadores independentes e que prestam serviços maioritariamente a uma entidade contratante.

Lê-se no preâmbulo daquele diploma que o seu “objetivo é estender a estes trabalhadores independentes a proteção no desemprego, cumprindo também o compromisso assumido pelo Governo português no memorando de entendimento sobre os condicionalismos da política económica (MoU).” Sendo que o “conceito de dependência económica adotado é o que se encontra subjacente ao conceito de entidade contratante previsto no artigo 140.º do Código dos Regimes Contributivos, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de setembro”.

Definindo como beneficiários desta prestação social (âmbito pessoal) “os trabalhadores independentes que, no mesmo ano civil, obtenham da mesma empresa, seja ela uma pessoa coletiva ou uma pessoa singular com atividade empresarial, independentemente da sua natureza e das finalidades que prossigam, 80 % ou mais do valor total anual dos rendimentos obtidos na atividade independente”. E que este regime de protecção social “devia ter como subsidiário o regime de proteção social no desemprego dos trabalhadores por conta de outrem previsto no Decreto-Lei n.º 220/2006, de 3 de novembro, regulando no presente decreto-lei as matérias que, atentas as especificidades próprias da atividade profissional independente, necessitam de regras especiais face àquele regime”.

Neste âmbito a protecção social na eventualidade de desemprego efectiva-se mediante a atribuição de “subsídio por cessação de atividade» e de «subsídio parcial por cessação de atividade” (cfr. art. 4.º n.º 1), em que o primeiro visa compensar “(…) a perda de rendimentos dos trabalhadores independentes em consequência da cessação involuntária da atividade independente resultante da cessação de contrato de prestação de serviços com entidade contratante” e o segundo sendo atribuído “(…) nas situações em que o trabalhador independente, após cessar o contrato de prestação de serviços com a entidade contratante, mantenha uma atividade profissional correspondente aos restantes 20 % ou menos do valor total anual dos seus rendimentos de trabalho” (cfr. artigo 4.º, n.ºs 2 e 3).

Ora, na situação dos autos o objecto de dissídio - como sobredito - é o valor diário da prestação diária que será devida ao Autor, por se encontrar numa situação de desemprego em que se verificou a cessação do contrato de prestação de serviços que prestava para a empresa Starface-Serviços de Gestão, S.A.. O que deve ser dirimido à luz do regime constante do Decreto-Lei n.º 65/2012 de 15 de Março que consagra o regime jurídico de protecção social na eventualidade de desemprego dos trabalhadores que se encontrem enquadrados no regime dos trabalhadores independentes.

E tanto basta para concluir, atento o que vimos de dizer a par do teor da norma contida na alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF e do objecto do litígio, que a competência material para apreciar a natureza da relação em conflito não cabe ao juízo administrativo comum do TAC de Lisboa, mas sim ao juízo administrativo social do mesmo Tribunal, por força da conjugação do disposto nos artigos 9.º, n.ºs 4 e 5 e 44.º-A, n.º 1, alínea a) do ETAF (na versão que lhe foi dada pela Lei nº 114/2019, de 12 de Setembro), artigo 2.º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro, e alínea b) do artigo 1.º da Portaria n.º 121/2020, de 22 de Maio.



III. Decisão

Pelo exposto, decide-se o presente conflito pela atribuição de competência para a tramitação e decisão do processo ao Juízo administrativo social do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.

Sem custas.
Notifique.

20 de Outubro de 2022

O Juiz Presidente do TCA Sul

Pedro Marchão Marques