Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:291/19.3BEALM
Secção:CT
Data do Acordão:11/28/2019
Relator:MÁRIO REBELO
Descritores:IMPUGNAÇÃO DE APREENSÃO DE VEÍCULO;
EFEITO DO RECURSO INTERPOSTO DA SENTENÇA.
Sumário:1. À impugnação da apreensão de veículo automóvel prevista no art.º 143º do CPPT aplicam-se subsidiariamente as regras do CPTA sobre processos cautelares, incluindo as relativas ao recurso da sentença.
2. Nos termos do art. 143º/2-a) do CPTA, têm efeito meramente devolutivo as decisões respeitantes a processos cautelares e respetivos incidentes.
3. Quando a atribuição de efeito meramente devolutivo ao recurso possa causar danos, pode-se determinar a adoção de providências adequadas a evitar ou minorar esses danos e impor a prestação, pelo interessado, de garantia destinada a responder pelos mesmos (n.º 5 do art. 143º do CPTA).
4. A apreensão de veículo com matrícula definitiva em território estrangeiro, ao abrigo do art.º 20º/1 do CISV e art.º 73 do RGIT, depende da demonstração pela AT de que o Impugnante tem a sua residência no território nacional por período igual ou superior a 185 dias em cada ano civil.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

RECORRENTE: Fazenda Pública.
RECORRIDO: Marco ...........
OBJECTO DO RECURSO: Sentença proferida pelo MMº juiz do TAF de Almada que decidiu julgar procedente a impugnação deduzida por Marco .........., contra o acto de apreensão da viatura da marca “Lexus”, modelo “IS” com a matrícula .........., de Espanha, e, bem assim, dos respectivos documentos.

CONCLUSÕES DAS ALEGAÇÕES:
«1. Sendo que o efeito visado com o presente recurso é, precisamente, manter a apreensão do veículo, objeto de infração, para efeitos de prova ou garantia da prestação tributária, coima ou custas, o efeito devolutivo afeta o efeito útil do recurso, uma vez que tem como consequência a libertação do bem apreendido, que é o que se vem questionar no presente recurso.
2. A apreensão efetuada encontra-se formal e materialmente conforme as normas legais aplicáveis ao caso, designadamente os artigos 48.º A do ILÍCITO DE MERA ORDENAÇÃO SOCIAL, aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27 de outubro, e o artigo 73.º do RGIT.
3. Com efeito, a apreensão fundou-se na verificação de uma infração, a qual foi efetuada com referência ao veículo em causa nos presentes autos, foi constituído o fiel depositário, que aceitou a designação, foi especificado o local do depósito e foi notificado o proprietário da apreensão, no momento da realização da mesma.
4. A residência da impugnante em território nacional não deve ser discutida no âmbito do presente processo judicial, devendo este contraditório ser tido em sede de recurso da decisão proferida no âmbito do processo de contraordenação que corre termos na Alfândega de Setúbal, conforme o disposto no artigo 80.º do RGIT, caso ocorra.
5. Destarte, verifica-se uma exceção dilatória de impropriedade do meio processual de que se socorreu o impugnante, o que impedia o Tribunal a quo de conhecer do mérito da causa.
6. A situação profissional do Impugnante determina, desde logo, que o domicílio profissional do mesmo se localiza no território nacional.
7. De acordo com o disposto no número 6 do artigo 30.º do CISV, para efeitos desse normativo legal, considera-se residente a pessoa singular que tem a sua residência normal em território nacional por período igual ou superior a 185 dias, por ano civil, em consequência de vínculos pessoais e profissionais.
8. Concluiu-se, ainda, que os vínculos profissionais do Impugnante também se situam no território nacional, pelo que de acordo com o disposto no número 6 do artigo 30.º do CISV, se considera o mesmo residente no território nacional.
Nestes termos e nos mais de Direito aplicável, requer-se a Vossas Excelências se dignem julgar PROCEDENTE o presente recurso, por totalmente provado e em consequência ser a douta sentença ora recorrida, revogada e substituída por douto Acórdão que julgue a impugnação da apreensão improcedente por provada a legalidade da mesma, tudo com as devidas e legais consequências.»

O RECORRIDO CONTRA ALEGOU e CONCLUIU:
«1.º A Recorrente alega quanto ao efeito do recurso sem nada pedir.
2 .º A Recorrente não coloca em crise nem pede a alteração da matéria de facto dada como provada.
3 .º Também não alega factos concretos, tecendo apenas considerações de direito.
4 .º A sua alegação quanto ao efeito recurso não se encontra fundamentada.
5.º Deve manter-se o efeito meramente devolutivo do recurso.
6 .º O ato de apreensão depende e é consequência da prática de ilícito, corporizando ambos um único documento – auto de notícia e apreensão.
7 .º A falta de pressupostos para determinar a ilicitude do ato estende-se ao ato de apreensão.
8 .º Inexistindo fundamento quanto ao ilícito inexiste fundamento quanto à apreensão.
9 .º O meio processual utilizado, impugnação do ato de apreensão do veículo, é o próprio.
10 .º A apreensão padece de vício de violação de lei – não demonstra que a Recorrido tenha tido a sua residência habitual em Portugal por período superior a 185 dias.
11 .º O período temporal fixado na ordem de serviço determina o período temporal da inspeção, não podendo esta ir para além desse mesmo período sob pena de violação de lei.
12 .º Os únicos factos passíveis de considerar são os constantes do auto de notícia e apreensão.
13 .º Os factos que fundamentam a apreensão têm de ter-se por verificados em data anterior à mesma e não carreados para o procedimento inspetivo à posteriori.
14.º No caso dos autos, estamos perante matéria sancionatória.
15 .º Quem acusa é que demonstra a materialização do comportamento que sanciona.
16 .º Cabe à Recorrente demonstrar os pressupostos necessários à responsabilização do Recorrido e não o inverso.
17 .º As qualificações jurídicas não são, nem se transformam em factos.
18.º Incumbia à Recorrente ter alegado, oportunamente, os factos, fazendo prova dos mesmos, quer os entendesse essenciais, quer os entendesse instrumentais, não lhe sendo lícito alega-los, agora, em sede de recurso.
19 .º A apreciação de questão que não foram antes invocadas, nem debatidas nos autos, traduzir-se-ão em nulidade por excesso de pronúncia.
20.º Trata-se de matéria nova e estranha aos presentes autos.
21 .º Na Douta Sentença recorrida nada consta quanto aos filhos do Recorrido, pelo que não poderá ser considerada para efeitos do presente recurso.
22 .º E Ainda, que assim se entendesse, sem prescindir, o Recorrido teve os seus filhos matriculados na Escola de Música e Belas Artes .......... entre Janeiro e Maio de 2018, o que totaliza 149 dias de calendário, não considerando os períodos de interrupção escolar, fins de semana, períodos de doença, faltas.
23 .º No que respeita a 2019, o ano letivo iniciou-se entre o dia 12 e o dia 17 de setembro (conforme calendário escolar), sem precisão, mas escolhendo o pior cenário para o Recorrido, as aulas dos seus filhos ter-se-iam iniciado a 12 de setembro, assim no mês de setembro contaríamos com 18 dias (também poderiam ser 13 dias).
24 .º No mês de outubro contaríamos 30 dias; no mês de novembro contaríamos 31 dias, no mês de dezembro, considerando o período de férias de natal, que se iniciou em 17 de dezembro e terminou a 2 de janeiro, contaríamos 16 dias e em janeiro contaríamos 29 dias, em fevereiro contaríamos 28 dias e em Março, tirando os 3 dias do período de Carnaval contaríamos, atá à data da autuação 17 dias, o que totalizaria 151 dias.
25 .º Não se contabilizando as faltas dadas pelos mesmos, os fins de semana, feriados, etc…, e sendo necessário demonstrar que teriam estado em Portugal e não em Espanha.
26 .º Não esquecendo que o Recorrido residia em Badajoz, a cerca de 192km, 2 horas de distância.
27 .º Também aqui, no ano de 2019, contabilizamos, de forma grosseira, um período inferior a 185 dias.
28 .º Tudo facto, que deveriam ter sido alegados e demonstrados em sede da resposta apresentada pela Recorrente.
29 .º Não menos importante, o Recorrido não é o encarregado de educação dos filhos.
30 .º E caso fosse, seria necessário demonstrar que o mesmo tinha permanecido em território Português nos mesmos períodos de tempo que os seus filhos.
31 .º A junção de documento em fase de recurso obedece a pressupostos excecionais.
32.º Esses pressupostos não se verificam no caso concreto.
33 .º O Recorrido teve residência em Portugal até 28/09/2017, como consta na base de dados da Autoridade Tributária e Aduaneira.
34 .º E, à data da autuação, há cerca de 18 meses que, o Recorrido não tinha residência em território português.
35 .º Resulta também do documento junto pela Recorrente, em sede de resposta, denominado de projeto de conclusões OI.......... que o período temporal objeto da inspeção é de 01-01-2018 a 19-03-2019.
36 .º Não podem ser considerados períodos para além do quadro temporal fixado na ordem de serviço, sob e pena da sua falta de fundamentação e desconformidade com a lei.
37 .º A Douta Decisão Recorrido fez a correta avaliação de facto e de direito tendo decidido bem.
Termos em que, devem Vossas Excelências julgar IMPROCEDENTE o recurso apresentado, mantendo a Douta Sentença Recorrido.»

PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta neste TCA emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

II QUESTÕES A APRECIAR.
O objecto do presente recurso, delimitado pelas conclusões formuladas (artigos 635º/3-4 e 639º/1-3, ambos do Código de Processo Civil, «ex vi» do artº 281º CPPT), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608º/ 2, in fine), consiste em saber se a sentença errou ao julgar procedente a impugnação da apreensão do veículo.

III FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
A sentença fixou os seguintes factos provados e respetiva motivação:
1. No dia 20 de Março de 2019, os serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira levantaram um “auto de notícia”, em que é infractor o ora Impugnante, no qual consta, designadamente, o seguinte:
"Texto integral no original; imagem"
"Texto integral no original; imagem"

"Texto integral no original; imagem"

- cfr. documento n.º 1 da petição inicial, facto não controvertido;

2. Na mesma data, os serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira elaboraram “Auto de Desselagem e Apreensão de Documentos”, o qual tinha o seguinte teor:
"Texto integral no original; imagem"

- cfr. documento n.º 3 da petição inicial, facto não controvertido;

3. Com data de 19 de Março de 2019, foi aberta ordem de serviço, a realizar pela Alfândega de Setúbal, para proceder a “Acção de Natureza Fiscalizadora”, no âmbito de “ISV”, na qual consta como “identificação da entidade controlada” Marco .........., ora Impugnante, nela constando como “morada” a “Rua .........., 2, Corte de Peleas, Badajoz” – cfr. fls. 72 dos autos;
4. Com data de 21 de Março de 2019, funcionário do Serviço de Finanças de Setúbal …, passou certidão onde constava que o domicílio fiscal do Impugnante, face aos elementos disponíveis no sistema informático da Autoridade Tributária e Aduaneira, era “Rua .........., n.º 2, Corte de Peleas, Badajoz, Espanha” – cfr. documento n.º 4 da petição inicial;
5. Nas declarações de rendimentos “Modelo 3” de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), dos anos de 2015, 2016 e 2017, o Impugnante declarou residir em Portugal – facto que se extrai do preenchimento do “quadro” “Residência Fiscal”, onde se encontra assinalado o “campo” “continente” – cfr. cópias das declarações a fls. 52 a 65 dos autos;
6. O Impugnante é proprietário de prédios urbanos situados em Portugal – cfr. fls. 92-v a 96 dos autos;
7. O Impugnante é sócio-gerente de duas empresas com sede em Portugal – cfr. fls. 101a 104 dos autos.

II- B - DOS FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provou que:
A) O Impugnante tenha residência em território nacional por período superior a 185 dias.
Compulsados os autos, analisados os articulados e atenta a prova documental constante dos mesmos, não existem quaisquer outros factos com relevância para a decisão, atento o objecto do litígio, que devam julgar-se indiciariamente como não provados.

II- C – FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Os factos acima enunciados encontram-se, todos eles, pelos documentos acima discriminados, que não foram impugnados pelas partes nem há indícios que ponham em causa a sua genuinidade, e foram tidos em consideração por haverem sido articulados pelas partes ou por deles serem instrumentais [cfr. artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil].

O facto dado como não provado resulta de ser insuficiente, para formar diferente convicção ao Tribunal, a circunstância de o Impugnante ser proprietário de imóveis e sócio-gerente de duas empresas, em Portugal, para dar como provado que este reside, ou pelo menos residiu, pelo período necessário em Portugal - 185 dias -, para o que ora releva.
Considerando, igualmente, que (i) o Impugnante possui domicílio fiscal em Espanha e que (ii) desde 2017 declara não residir em Portugal (que é atestado pela Autoridade Tributária), (iii) que nos anos de 2015, 2016 e 2017 aqui declarou residir e auferir rendimentos (cfr. pontos 4 e 5 dos factos provados), tal impõe, num juízo de verosimilhança, que se leve aos factos não provados que o Impugnante tenha residência em território nacional por período superior a 185 dias, por ano civil.

IV FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Foi deduzida impugnação judicial contra a apreensão de veículo com matrícula espanhola, com fundamento na não apresentação atempada da Declaração Aduaneira de Veículos, nos termos do n.º 1 do art.º 20º do CISV. O IMPUGNANTE alega que o auto de apreensão não lhe imputa qualquer conduta concreta que suporte a actuação e apreensão efetuadas, nem consta qual a norma concretamente por si infringida. Estas omissões constituem nulidade insuprível e as consequências dessa nulidade são a anulação dos termos subsequentes do processo que delas dependam absolutamente, nomeadamente a apreensão levada a cabo.
Acrescentou que tem nacionalidade espanhola e desde 29 de setembro de 2017 e não tem residência em Portugal, embora venha muitas vezes a Portugal em trabalho. Aliás, na data da autuação encontrava-se em Portugal com o seu veículo pessoal devido ao facto de a sua mulher ter sido autuada com apreensão dos documentos do veículo, tendo ficado em território nacional com duas crianças de 2 e 3 anos.
Termina pedindo a declaração de nulidade da autuação e apreensão.

O Exmo. Representante da Fazenda Pública contestou dizendo em síntese, que a apreensão se deveu à constatação de que o Impugnante detinha um veículo de matrícula estrangeira, em território nacional, não obstante apresentar regularmente a declaração de IRS, modelo 3 em Portugal, sendo sócio gerente de duas empresas com sede em Portugal e proprietário de imóveis situados em território nacional, pelo que em conformidade com o disposto nos artigos 20º/1 do CISV e 73º/1 RGIT foi efetuada a apreensão do veículo.
O IMPUGNANTE foi validamente notificado da apreensão e limita-se a apresentar fundamentos pelos quais não deve ser considerado residente em Portugal. Ou seja, discute questões que não se coadunam com a apreensão efetuada, mas sim com os requisitos da aplicação do art.º 20º do CISV, questões essas que devem ser discutidas na sede própria e não na presente impugnação de apreensão do veículo.

Respondeu o IMPUGNANTE dizendo que os autos de notícia e de apreensão encontram-se corporizados num único documento, com uma única descrição de factos, a que imputam diferentes qualificações jurídicas atribuindo-lhe efeitos em sede de ilícito de mera ordenação social e em sede garantística/prova da apreensão. Os vícios alegados pelo REQUERENTE afetam ambos os procedimentos, pois os fundamentos de um são os fundamentos de outro.

Depois de equacionar que a matéria em causa nos autos é tão só decidir sobre a legalidade da apreensão do veículo e dos respetivos documentos, o MMº juiz julgou a ação procedente baseando-se em dois argumentos: (i) o dever de pagamento do ISV depende de a pessoa singular ter a sua residência normal em território nacional por 185 dias por ano civil. (ii) Mas a AT não provou tal requisito, não podendo considerar-se ter residência permanente em Portugal para efeitos do CISV.

O Exmo. Representante da Fazenda Pública discorda. Começa por defender que o efeito atribuído ao recurso deverá ser suspensivo, e não devolutivo, sob pena de se frustrar o fim pretendido pela lei. Isto porque o levantamento da medida de apreensão de bens implicará a falta de objecto do presente recurso, pelo que se infere que a atribuição de efeito meramente devolutivo afetará o efeito útil do mesmo.

Depois, contesta a impropriedade do meio processual. A sentença não imputa à apreensão qualquer ilegalidade concreta, mas a ação de impugnação prevista no artº. 143º do CPPT visa o controlo jurisdicional da apreensão efetuada pela AT e o levantamento da mesma impunha que fosse alegada a sua invalidade. Aliás os fundamentos de que o MMº juiz se socorre para fundamentar a douta sentença vão nesse sentido, sendo que a matéria de facto alegada e a sua qualificação jurídica apenas visam demonstrar a inexistência de infração e não a ilegalidade da apreensão.
Por isso, defende não ser o presente processo o competente para discutir tal apreensão.
Finalmente, considera ter havido errónea perceção dos factos, pois a situação profissional do Impugnante determina desde logo que o seu domicílio profissional se localiza em território nacional.

Enunciadas as questões objeto de recurso, entremos na sua análise começando logo pelo efeito fixado ao recurso- meramente devolutivo.

A impugnação da apreensão está prevista no art.º 143º do CPPT. Este processo, apesar de ser designado como processo de impugnação e constituir um meio processual principal, vem incluído no capítulo do CPPT referente aos processos cautelares, o que gera dúvidas sobre as normas que deverão ser aplicadas subsidiariamente.(1)

Trata-se, diz o referido autor, de um meio processual inserido entre os processos de ação cautelar, o que inculca que se lhe pretendeu atribuir natureza de processo cautelar.

Mas por outro lado, trata-se de um meio impugnatório principal, não dependente de qualquer ação proposta ou a propor, e a designação de impugnação aponta no sentido de se tratar de um tipo especial de processo de impugnação judicial.

“Ponderados os sinais contraditórios fornecidos por estes dados, parece que a confusa ou hesitante intenção legislativa subjacente ao enquadramento deste meio processual entre os processos cautelares terá o significado de exprimir que, apesar de se tratar de um meio processual principal, merecedor da designação de processo de “impugnação”, ser-lhe-á aplicável o regime processual dos processos cautelares, no que não estiver especialmente regulado.
Por isso, parece de concluir que serão de aplicação subsidiária as normas do CPTA sobre processos cautelares, que, aliás, é diploma de aplicação subsidiária generalizada [art.º 2º alínea c) do CPPT]”(2)

Considerando aplicáveis as normas do CPTA, devemos também aplicar as mesmas normas sobre recurso. E assim sendo, nos termos do art. 143º/2-a) do CPTA, têm efeito meramente devolutivo as decisões respeitantes a processos cautelares e respetivos incidentes, como bem fixou o MMº juiz a "a quo".

Contudo, a lei prevê uma clausula de salvaguarda: quando a atribuição de efeito meramente devolutivo ao recurso possa ser causadora de danos, o tribunal pode determinar a adoção de providências adequadas a evitar ou minorar esses danos e impor a prestação, pelo interessado, de garantia destinada a responder pelos mesmos (n.º 5 do art. 143º do CPTA).

Mas a AT não requereu a adopção de qualquer medida, nem sequer referiu qual o montante do dano patrimonial, suscetível de ser causado nem requereu a prestação de qualquer garantia.

Portanto, considerando tudo o exposto, é de manter o efeito meramente devolutivo fixado ao recurso, sem prestação de garantia, por não ter sido requerida.

Prosseguindo.
A respeito do erro na forma de processo a AT defende, como defendera na contestação, que há erro na forma de processo e que o objecto da impugnação não deve versar sobre os factos subjacentes à infração praticada, devendo essa questão ser analisada em sede própria de processos de contra ordenação e não ao abrigo do art.º 143º do CPPT, onde é discutido o caráter da apreensão, pelo que todas as questões subjacentes à aplicação do artigo 20º n.º 1 CISV não deverão ser tidos em conta, dado que o que se discute na presente impugnação é a legalidade da apreensão constante do art. 143º do CPPT.

Sobre a questão, o MMº juiz esclareceu, bem, a nosso ver, na sentença “que o que está em causa nos presentes autos é tão-somente a legalidade do acto de apreensão do veículo da marca “Lexus”, modelo “IS”, de matrícula .......... de Espanha e, bem assim, dos respectivos documentos.
Neste caso, a eventual procedência da acção apenas determinará a restituição dos bens apreendidos (independentemente do processo de qualquer aplicação de coima, em sede contra-ordenacional ou de qualquer possível recurso nessa sede).

Não obstante o decidido, o RECORRENTE reitera a impropriedade do meio processual que impediria o tribunal "a quo" de conhecer do mérito da causa. Mais propriamente, defende que a residência do Impugnante não deve ser discutida no âmbito do presente processo judicial, devendo este contraditório ser tido no âmbito do recurso da decisão proferida no processo de contraordenação que corre termos na Alfândega de Setúbal.

A nosso ver, o Exmo. Representante da Fazenda Pública não tem razão.

Mas antes, debrucemo-nos sobre os documentos juntos em recurso pelo ERFP alegadamente demonstrativos da residência do Impugnante em Portugal, que não podem ser admitidos, como veremos de seguida.

Nos termos do artigo 108º/3 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e do artigo 423º/1 do CPC, a regra é a de os documentos serem apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.

No contencioso tributário a junção pode ser feita até ao encerramento da discussão da causa em 1ª instância, que ocorrerá com o termo do prazo para alegações, ou se a elas não houver lugar, até à sentença, sujeito ao pagamento de multa, caso a parte não prove que os não pôde oferecer com o articulado. cfr. artº 423º/2 do CPC.

Decorrido tal prazo, só serão admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária, em virtude de ocorrência posterior. (cfr. art. 423.º/3 do CPC.)

Após o encerramento da discussão só são admitidos, no recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até aquele momento (art.º 425º CPC)

Ou, como dispõe o nº 1 do artigo 651.º do CPC, ”as partes só podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º do CPC ou no caso da junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido em 1.ª instância.

Resulta assim claro que em sede de recurso a junção de documentos assume carácter excecional, só devendo ser consentida nos casos especialmente previstos na lei (artº 651º/1, CPC).

A sentença recorrida foi proferida em 2/9/2019, mas todos os documentos têm datas anteriores.

Por conseguinte, o Exmo. Representante da Fazenda Pública não estava impedido de os apresentar, pelo menos até à data da sentença em primeira instância, podendo com eles influenciar a decisão recorrida.

Tão pouco alega a sua superveniência. Nem cremos que a pudesse invocar porque não se trata de superveniência objectiva nem subjectiva, pretendendo somente que este TCA proceda a novo julgamento da matéria de facto.

Assim sendo, o pedido de junção dos documentos, em sede de recurso, não cumpre os requisitos previstos nos art.º 651.º do CPC, pelo que não se admite.

E assim, consideramos estabilizada a matéria de facto fixada em primeira instância, o que nos permite avançar para a questão de saber se a sentença errou ao julgar procedente a impugnação da apreensão do veículo, e se a discussão sobre a residência do Impugnante pode ser realizada nesta sede.
Ou não, como defende o ERFP.

No entanto, registe-se que embora alegue que a residência do Impugnante em território nacional não deve ser discutida neste processo, acaba por defender e concluir (Conclusões 6ª e segs.) que o domicílio profissional do mesmo se localiza no território nacional.

Ora, de acordo com o auto de notícia e de apreensão, a viatura encontrava-se em violação da legislação fiscal automóvel devido a “não apresentação atempada de Declaração Aduaneira de Veículos, nos termos do n.º 1 do art.º 20º do CISV”

Para o que ao caso dos autos interessa, o ISV incide sobre Automóveis ligeiros de passageiros, considerando-se como tais os automóveis com peso bruto até 3500 kg e com lotação não superior a nove lugares, incluindo o do condutor, que se destinem ao transporte de pessoas (artigo 2º/1-a) CISV);

E quanto à incidência subjetiva, são sujeitos passivos do imposto os operadores registados, os operadores reconhecidos e os particulares, tal como definidos pelo presente código, que procedam à introdução no consumo dos veículos tributáveis, considerando-se como tais as pessoas em nome de quem seja emitida a declaração aduaneira de veículos.

São ainda sujeitos passivos do imposto as pessoas que, de modo irregular, introduzam no consumo os veículos tributáveis (art.º 3º do CISV).


Por seu turno, o artigo 20.º do CISV com epígrafe “Introdução no consumo por particulares” dispõe assim:

1 - Os particulares e os sujeitos passivos que não se encontrem constituídos como operadores registados ou operadores reconhecidos estão obrigados à apresentação da DAV nos prazos seguintes:

a) No prazo máximo de 20 dias úteis, após a entrada do veículo tributável em território nacional ou após a ocorrência dos factos geradores previstos na alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º;

b) No prazo máximo de 10 dias úteis após o termo dos regimes de admissão ou importação temporária quando, findos estes regimes, o particular opte pela introdução no consumo.


2 - A DAV deve ser acompanhada do certificado de matrícula estrangeiro ou de documento equivalente, de factura comercial ou de declaração de venda no caso de aquisição a particular, do certificado de conformidade, do documento de transporte e respectivo recibo de pagamento sempre que o veículo não ingresse no território nacional pelos seus próprios meios, bem como do documento comprovativo da medição efectiva do nível de emissão de dióxido de carbono por centro técnico legalmente autorizado sempre que tal elemento não conste do respectivo certificado de conformidade.


(...)


E o artigo 30ª do mesmo diploma, inserido na secção I do capítulo V, relativa a admissão e importação temporária, dispõe que

1 - O regime de admissão temporária faculta a permanência de veículos tributáveis matriculados noutro Estado membro da União Europeia no território nacional com suspensão de imposto pelo prazo máximo de seis meses, seguidos ou interpolados, em cada período de 12 meses, verificadas as seguintes condições cumulativas:


a) Serem os veículos portadores de matrícula definitiva de outro Estado membro e estarem matriculados em nome de pessoa sem residência normal em Portugal;


b) Serem os veículos introduzidos em território nacional pelos proprietários ou legítimos detentores para seu uso privado.


2 - Os veículos objecto de admissão temporária apenas podem ser conduzidos em território nacional pelos seus proprietários, cônjuges ou unidos de facto, ascendentes e descendentes em primeiro grau ou pelos seus legítimos detentores, na condição de estas pessoas não terem residência normal em Portugal.

(...)
5 - Os residentes em território nacional só podem utilizar, ao abrigo do regime de admissão temporária, veículos com matrícula estrangeira nas situações previstas no presente capítulo quando para o efeito seja concedida autorização prévia da alfândega.

6 - Para efeitos do presente Código considera-se residente a pessoa singular que tem a sua residência normal em território nacional por período igual ou superior a 185 dias, por ano civil, em consequência de vínculos pessoais e profissionais ou, no caso de uma pessoa sem vínculos profissionais, em consequência de vínculos pessoais indicativos de relações estreitas entre ela própria e o local onde vive, assim como a pessoa colectiva que possui sede ou estabelecimento estável no território nacional.


7 - A residência normal de uma pessoa cujos vínculos profissionais se situem num lugar diferente do lugar onde possui os seus vínculos pessoais, e que, por esse facto, viva alternadamente em lugares distintos situados em dois ou mais Estados membros, considera-se como estando situada no lugar dos seus vínculos pessoais, desde que aí se desloque regularmente.


8 - Os particulares comprovam o lugar da sua residência normal pela apresentação do bilhete de identidade ou por qualquer outro documento validamente emitido por autoridade competente, podendo as autoridades de fiscalização, em caso de dúvidas, exigir outros elementos de informação ou provas suplementares.


(...).


Como salientou o MMº juiz na articulação destas disposições legais,
“...a necessidade, ou não, do cumprimento da obrigação declarativa e de pagamento do ISV, caso a isso haja lugar, depende de a pessoa singular ter a sua residência normal em território nacional pelo período estabelecido na lei: 185 dias, por ano civil.
Dito de outro modo, dos normativos citados, resulta que os veículos automóveis beneficiam do regime de suspensão temporária do imposto desde que: (i) sejam veículos portadores de matrícula definitiva de outro Estado membro; e (ii) se encontrem matriculados em nome de pessoa sem residência normal em Portugal, acrescendo que, para que o proprietário do veículo seja considerado como tendo residência em Portugal é necessário que tenha a sua residência normal em território nacional por período igual ou superior a 185 dias, por ano civil.
Dos autos não resulta provado que o Impugnante preencha tal requisito (cfr. o artigo 74.º da Lei Geral Tributária), impedindo que possa ser considerado como tendo residência normal em Portugal, para efeitos do Código de ISV – cfr. facto não provado com a alínea A).
Destarte, o mesmo poderia beneficiar do regime de suspensão temporária de imposto quanto ao veículo em causa, pelo que a apreensão efectuada se mostra violadora da lei, devendo ser anulada, o que se determinará.”

A decisão não nos merece qualquer censura.

Resulta da lei que o veículo apreendido era portador de matrícula estrangeira definitiva em nome do Impugnante que não tem residência em Portugal, como resulta dos factos provados, não logrando a AT provar que o Impugnante tivesse a sua residência em Portugal pelo período de 185 dias.

Por conseguinte, o veículo beneficia do regime de suspensão, por não estarem verificados os requisitos susceptíveis de demonstrar a sua introdução no consumo.

A alegação de que a residência do Impugnante não deve ser discutida no âmbito do presente processo judicial, devendo este contraditório ser tido em sede de recurso da decisão proferida no âmbito do processo de contraordenação que corre termos na Alfândega de Setúbal não pode proceder.

Nos ternos do art. 143º/1 do CPPT, é admitida a impugnação judicial dos actos de apreensão de bens praticados pela administração tributária, no prazo de 15 dias a contar do levantamento do auto.

Ora, tendo em conta os fundamentos da apreensão, a discussão essencial é, neste caso, saber se estão verificados os requisitos da admissão temporária o que passa por saber se está provado que o Impugnante tenha a sua residência no território nacional por período igual ou superior a 185 dias em cada ano civil.

A prova deste facto é que dá à AT o direito de exigir o cumprimento do art. 20º do CISV pagamento do ISV e consequente apreensão do veículo, em caso de incumprimento nos termos do art.º 73º - em especial o seu n.º 8- do RGIT.

Se a AT não o demonstra, falecem os pressupostos nos quais se baseou para a providência decretada e ela terá de ser levantada. Sem prejuízo do prosseguimento do processo de contraordenação, se houver (outros) fundamentos para isso.

Por conseguinte a sentença andou bem, o recurso não pode ser provido.

V DECISÃO.

Termos em que acordam, em conferência, os juízes da secção de contencioso Tributário deste TCA em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida

Custas pela AT.

Lisboa, 28 de novembro de 2019.



(Mário Rebelo)


(Patrícia Manuel Pires)


(José Vital Brito Lopes)



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(1) Jorge Lopes de Sousa in "Código de Procedimento e de Processo Tributário", vol. II, pp. 477.
(2) Jorge Lopes de Sousa op. cit. pp. 485.