Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:275/20.9BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:09/10/2020
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:ASILO;
RETOMA A CARGO;
INSTRUÇÃO DO PEDIDO
Sumário:i. O Regulamento (UE) n.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho, como já sucedia com o Regulamento (CE) n.º 343/2003, que estabelece os critérios e os mecanismos de determinação da responsabilidade da análise dos pedidos de protecção internacional apresentados nos Estados Membros, prossegue dois objectivos essenciais: por um lado, visa garantir um acesso efectivo aos procedimentos de determinação do estatuto de refugiado, sem comprometer a celeridade no tratamento dos pedidos de asilo e assegurando a certeza e segurança jurídicas ao nível da EU; e, por outro lado, visa impedir a utilização abusiva dos procedimentos de asilo, sob a forma de pedidos múltiplos apresentados pelo mesmo requerente em diversos Estados Membros, com o objectivo de neles prolongar a sua estadia, realidade comummente designada como asylum shopping.
ii. Também de acordo com a Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, quando o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso de uma decisão de transferência ou de uma decisão que declara um novo pedido de protecção internacional inadmissível dispõe de elementos apresentados pelo requerente, ou que constituam factos notórios, para demonstrar a existência do risco de um trato desumano ou degradante no outro Estado-Membro, esse órgão jurisdicional deve apreciar a existência de deficiências, sistémicas ou generalizadas, ou que afectem certos grupos de pessoas. Ainda assim, de acordo com a mesma Jurisprudência, tais deficiências só são contrárias à proibição de tratamento desumano ou degradante se tiverem um nível particularmente elevado de gravidade, que depende do conjunto dos dados da causa.
iii. Tendo outro Estado (no caso o Estado Belga), tomado a decisão de aceitação da tomada a cargo do requerente para apreciação e decisão, e não tendo o requerente de asilo invocado quaisquer factos concretos que possam conduzir a decisão diferente, nem sendo estes pública e notoriamente conhecidos, impõe-se ao Estado português a tomada de decisão de transferência do requerente para a Bélgica.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

J…… (Recorrente), cidadão cubano, interpôs recurso jurisdicional da sentença de 28.04.2020 do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa que julgou improcedente a acção administrativa especial urgente por si proposta contra o Ministério da Administração Interna, Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (Recorrido) e manteve o despacho da Directora Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, de 27.01.2020, que considerou inadmissível o pedido de protecção internacional formulado, determinando a sua transferência para a Bélgica, por ser este o país responsável pela tomada a cargo.

O requerimento de recurso contém as seguintes conclusões:

1.º Não obstante o disposto nos art.s 19.º-A, n.º1, alínea a) da Lei n.º 27/2008, de 30.06 e 25.º, n.º 2 do Regulamento de Dublin, não é verdade que, como emerge da douta sentença recorrida, não ser aplicável o atrás indicado normativo legal, devendo por isso o SEF averiguar acerca do procedimento de asilo e das condições de acolhimento em Bélgica, aferindo sobre as condições de acolhimento nesse Pais, antes de determinar a transferência do Recorrido.

2.º De facto, uma vez apresentado um pedido de protecção, o respectivo Estado-Membro terá primeiramente que aferir, nos termos determinados no art.º 3.º, n.º 1 e no Capítulo III do Reg. n.º 604/2013, de 26-06, qual é o Estado responsável pela apreciação de tal pedido. Sendo identificado como responsável pela apreciação do pedido um outro Estado-Membro, há, então, Asilo-oficiosa-8-Regulamento-Alegações.docx- verso em branco - 7/7 que avaliar da eventual impossibilidade em proceder à transferência, nos termos do art.º 3.º, n.º 2, 2.º parágrafo, do Reg. n.º 604/2013, de 26-06.

3.º Deveria, pois, o SEF ter instruído oficiosamente o procedimento especial que lhe incumbia decidir, nele fazendo constar informação fidedigna e atualizada sobre o procedimento de asilo e condições de acolhimento do requerente de proteção internacional na Bélgica, por forma a verificar se, no caso concreto, existiam motivos que determinassem a impossibilidade da transferência do Recorrido, nos termos do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento de Dublin, recorrendo, para o efeito, a fontes credíveis, obtidas, designadamente, junto do Gabinete Europeu de Apoio em matéria de Asilo do ACNUR e de pertinentes organizações de direitos humanos.

4.º Nada disso foi feito no procedimento em apreço, onde se decidiu sem antes averiguar acerca das indicadas condições no procedimento de asilo e no acolhimento no Estado-Membro responsável, in casu, Bélgica.

5.º Em face do que, deverá revogar-se a douta sentença recorrida e determinar-se que o SEF emita nova decisão, depois de instruir devidamente o procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional.

O Recorrido não apresentou contra-alegações.



Neste Tribunal Central Administrativo, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, notificado nos termos do disposto nos artigos 146.º e 147.º do CPTA, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.


Com dispensa de vistos, atenta a sua natureza urgente, vem o processo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.


I. 1. Questões a apreciar e decidir:

As questões suscitadas pelo Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, traduzem-se em apreciar:

- Se o Tribunal a quo errou ao ter concluído pela manutenção do despacho impugnado, o qual determinou também a notificação do requerente de protecção internacional para efeitos da sua transferência para a Bélgica, por ser este o Estado Membro responsável pela análise do pedido nos termos do Regulamento (EU) 604/2013 do PE e do Conselho, de 26 de Junho.





II. Fundamentação

II.1. De facto

É a seguinte a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, a qual se reproduz ipsis verbis:

1 – O A. cidadão cubano, em 03.12.19., o A. solicitou asilo (cfr. procº. instrutor, e admissão por acordo).

2 - Em 18.12.19., o A. no GAR foi objecto de entrevista , que deu lugar às declarações, cujo teor aqui se dá por reproduzido, e das quais extrai-se o seguinte (cfr. procº. instrutor, e admissão por acordo):


(Texto integral no origina imagem)

3 – Em 27.01.20., o GAR – Gabinete de Asilo e Refugiados emitiu a informação nº.174 /GAR/20, com referência ao processo de asilo sob o nº.133.20PT, cujo teor aqui se dá por reproduzido, e do qual extrai-se o seguinte (cfr. procº. instrutor, e admissão por acordo):

“(…)


(Texto integral no origina imagem)

4 - A informação identificada em ¯3, supra, mereceu decisão mediante despacho proferido pela Directora Nacional, do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, em 27.01.20., nos termos e fundamentos constantes da informação nº. 174/GAR/20, despacho cujo teor aqui se dá por reproduzido e do qual extrai-se o seguinte (cfr. procº. instrutor, e admissão por acordo):

(Texto integral no origina imagem)

6 – O A. foi notificado da decisão supra ( cfr. procº. instrutor e admissãopor acordo).

A convicção do Tribunal fundou-se na prova documental, supra identificada, integrada no processo instrutor apenso aos autos, e na admissão por acordo das partes.

Nada mais se logrou provar com relevância para a apreciação e decisão do mérito da causa, designadamente não logrou o A. provar que irá para a Belgica pelos seus próprios meios, já que nem sequer alegou tal facto.



II.2. De direito

O ora Recorrente pretende a anulação da decisão que indeferiu, por inadmissível, o pedido de asilo formulado e que determinou a sua transferência para a Bélgica, entendendo existir uma deficiente instrução do procedimento. No entendimento que advoga haverá sempre que avaliar da eventual impossibilidade em proceder à transferência, nos termos do art.º 3.º, n.º 2, § 2.º, do Regulamento n.º 604/2013, de 26 de Junho, ponderando todas as informações conhecidas sobre o país considerado responsável pela análise do pedido de protecção internacional, de maneira a aferir se existem, no caso, motivos que justifiquem a decisão de não transferência, nomeadamente, a existência de um risco real, directo ou indirecto, de o requerente ser sujeito a tratamento desumano ou degradante.

No TAC de Lisboa a acção foi julgada improcedente com a seguinte fundamentação, na sua parte aqui relevante:

“(…)

Mostra-se provado nos autos de que foi emitido visto ao A. pelo Consulado da Belgica em Havana, o que importa a verificação da previsão do referido artº.12º/1/Regulamento de Dublin, e consequente procedimento especial de retoma, o que foi levado a efeito pelo ora R., e aquele pedido foi aceite pela Belgica, o que permite concluir que o procedimento mostra-se conforme aos preceitos legais supre referidos e aqui aplicáveis. O A. invoca a violação do artº. 38º, da Lei do Asilo, norma que atribui a competência ao SEF da execução da transferência, o que assim ocorreu nos autos, e por isso, improcede a violação do preceito legal em causa. Argui também a violação do artº.26º/2/Regulamento de Dublin, que estabelece o seguinte: “2. A decisão a que se refere o n.o 1 deve conter informações sobre as vias de recurso disponíveis, nomeadamente sobre o direito de requerer o efeito suspensivo, se necessário, e sobre os prazos aplicáveis para as utilizar, indicações precisas sobre os prazos para a execução da transferência, incluindo se necessário informações relativas ao local e à data em que a pessoa em causa se deve apresentar no caso de se dirigir para o Estado-Membro responsável pelos seus próprios meios.” a norma aplica-se se a pessoa, em causa, a transferir, se deslocar pelos seus próprios meios, facto aqui não alegado, e por isso não provado, o que afasta a aplicação daquele preceito legal. O supra expendido tem por efeito afastar a verificação dos vícios alegados pelo A.. Por último, e quanto à alegada violação do artº.7º/Lei ado Asilo, é de referir que a recusa – e acto impugnado - por se fundamentar no carácter inadmissível do pedido de protecção internacional, prejudica o pedido de protecção subsidiária..

Vejamos então, estabelecendo o quadro normativo de referência.

Resulta expressamente da norma contida no art. 37.º da Lei nº 27/08:


Artigo 37.º
Pedido de protecção internacional apresentado em Portugal

1 - Quando se considere que a responsabilidade pela análise do pedido de protecção internacional pertence a outro Estado membro, de acordo com o previsto no Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho, o SEF solicita às respetivas autoridades a sua tomada ou retoma a cargo.

2 - Aceite a responsabilidade pelo Estado requerido, o director nacional do SEF profere, no prazo de cinco dias, decisão nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 19.º-A e do artigo 20.º, que é notificada ao requerente, numa língua que compreenda ou seja razoável presumir que compreenda, e é comunicada ao representante do ACNUR e ao CPR enquanto organização não governamental que actue em seu nome, mediante pedido apresentado, acompanhado do consentimento do requerente.

3 - A notificação prevista no número anterior é acompanhada da entrega ao requerente de um salvo-conduto, a emitir pelo SEF segundo modelo a aprovar por portaria do membro do Governo responsável pela área da administração interna.

(…)

De igual modo o Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho, que estabelece os critérios e mecanismos para a determinação do Estado-Membro responsável pela análise dos pedidos de protecção internacional apresentados num dos Estados-Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida («Estado-Membro responsável») dispõe:

Artigo 3.º
Acesso ao procedimento de análise de um pedido de proteção internacional

1. Os Estados-Membros analisam todos os pedidos de proteção internacional apresentados por nacionais de países terceiros ou por apátridas no território de qualquer Estado-Membro, inclusive na fronteira ou nas zonas de trânsito. Os pedidos são analisados por um único Estado-Membro, que será aquele que os critérios enunciados no Capítulo III designarem como responsável.

2. Caso o Estado-Membro responsável não possa ser designado com base nos critérios enunciados no presente regulamento, é responsável pela análise do pedido de proteção internacional o primeiro Estado-Membro em que o pedido tenha sido apresentado.

Caso seja impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável.

Caso não possa efetuar-se uma transferência ao abrigo do presente número para um Estado-Membro designado com base nos critérios estabelecidos no Capítulo III ou para o primeiro Estado-Membro onde foi apresentado o pedido, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável passa a ser o Estado-Membro responsável.

3. Os Estados-Membros mantêm a faculdade de enviar um requerente para um país terceiro seguro, sem prejuízo das regras e garantias previstas na Diretiva 2013/32/UE.


Por sua vez os critérios de determinação do Estado-Membro responsável encontram-se previstos no capítulo III daquele Regulamento (UE) n.º 604/2013, que estabelece a hierarquia dos critérios no artigo 7.º, onde se prevê:

1. Os critérios de determinação do Estado-Membro responsável aplicam-se pela ordem em que são enunciados no presente capítulo.

A determinação do Estado-Membro responsável em aplicação dos critérios enunciados no presente capítulo é efetuada com base na situação existente no momento em que o requerente tiver apresentado pela primeira vez o seu pedido de proteção internacional junto de um Estado-Membro.

2. Para a aplicação dos critérios referidos nos artigos 8.º 10.º, e 16.º, os Estados-Membros devem ter em consideração todos os elementos de prova disponíveis que digam respeito à presença, no território de um Estado-Membro, de membros da família, de familiares ou de outros parentes do requerente, na condição de tais elementos de prova serem apresentados antes de outro Estado-Membro ter aceitado o pedido de tomada ou retomada a cargo da pessoa em causa, nos termos dos artigos 22.º e 25.º, respetivamente, e de os anteriores pedidos de protecção internacional do requerente não terem sido ainda objecto de uma primeira decisão quanto ao mérito.

E prevê ainda o artigo 12.º daquele Regulamento (UE) n.º 604/2013, o seguinte:

1. Se o requerente for titular de um título de residência válido, o Estado- Membro que o tiver emitido é responsável pela análise do pedido de proteção internacional.

2. Se o requerente for titular de um visto válido, o Estado-Membro que o tiver emitido é responsável pela análise do pedido de proteção internacional, salvo se o visto tiver sido emitido em nome de outro Estado-Membro ao abrigo de um acordo de representação conforme previsto no artigo 8.º do Regulamento (CE) n.º 810/2009 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de julho de 2009, que estabelece o Código Comunitário de Vistos (1). Nesse caso, é o Estado-Membro representado o responsável pela análise do pedido de proteção internacional.

3. Se o requerente for titular de vários títulos de residência ou de vários vistos válidos, emitidos por diferentes Estados-Membros, o Estado-Membro responsável pela análise do pedido de proteção internacional é, pela seguinte ordem:

a) O Estado-Membro que tiver emitido o título de residência que confira o direito de residência mais longo ou, caso os títulos tenham períodos de validade idênticos, o Estado-Membro que tiver emitido o título de residência cuja validade cesse mais tarde;

b) O Estado-Membro que tiver emitido o visto cuja validade cesse mais tarde, quando os vistos forem da mesma natureza;

c) Em caso de vistos de natureza diferente, o Estado-Membro que tiver emitido o visto com um período de validade mais longo ou, caso os períodos de validade sejam idênticos, o Estado-Membro que tiver emitido o visto cuja validade cesse mais tarde.

4. Se o requerente apenas for titular de um ou mais títulos de residência caducados há menos de dois anos, ou de um ou mais vistos caducados há menos de seis meses, que lhe tenham efetivamente permitido a entrada no território de um Estado- Membro, são aplicáveis os n.ºs 1, 2 e 3 enquanto o requerente não abandonar o território dos Estados-Membros.

Se o requerente for titular de um ou mais títulos de residência caducados há mais de dois anos, ou de um ou mais vistos caducados há mais de seis meses, que lhe tenham efetivamente permitido a entrada no território de um Estado-Membro, e se não tiver abandonado o território dos Estados-Membros, é responsável o Estado-Membro em que o pedido de proteção internacional for apresentado.

5. A circunstância de o título de residência ou o visto ter sido emitido com base numa identidade fictícia ou usurpada ou mediante a apresentação de documentos falsos, falsificados ou não válidos, não obsta à atribuição da responsabilidade ao Estado-Membro que o tiver emitido. Todavia, o Estado-Membro que tiver emitido o título de residência ou o visto não é responsável, se puder provar que a fraude ocorreu posteriormente a essa emissão.

Por sua vez, o art. 17.º do Regulamento de Dublin consagra que:


Cláusulas discricionárias

1. Em derrogação do artigo 3.o, n.o 1, cada Estado-Membro pode decidir analisar um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos no presente regulamento.

O Estado-Membro que tenha decidido analisar um pedido de proteção internacional nos termos do presente número torna-se o Estado-Membro responsável e assume as obrigações inerentes a essa responsabilidade. Se for caso disso, informa, por intermédio da rede de comunicação eletrónica «DubliNet», criada pelo artigo 18.o do Regulamento (CE) n.o 1560/2003, o Estado-Membro anteriormente responsável, aquele que conduz o processo de determinação do Estado-Membro responsável ou aquele que foi requerido para efeitos de tomada ou retomada a cargo.

O Estado-Membro responsável por força do presente número deve indicar também imediatamente esse facto no Eurodac em conformidade com o Regulamento (UE) n.o 603/2013 acrescentando a data em que foi tomada a decisão de analisar o pedido.

2. O Estado-Membro em que é apresentado um pedido de proteção internacional e que está encarregado do processo de determinação do Estado-Membro responsável, ou o Estado-Membro responsável, podem solicitar a qualquer momento, antes de ser tomada uma decisão quanto ao mérito, que outro Estado-Membro tome a seu cargo um requerente a fim de reunir outros parentes, por razões humanitárias, baseadas nomeadamente em motivos familiares ou culturais, mesmo nos casos em que esse outro Estado-Membro não seja responsável por força dos critérios definidos nos artigos 8.o a 11.o e 16.o. As pessoas interessadas devem dar o seu consentimento por escrito.

O pedido para efeitos de tomada a cargo deve comportar todos os elementos de que o Estado-Membro requerente dispõe, a fim de permitir ao Estado-Membro requerido apreciar a situação.

O Estado-Membro requerido procede às verificações necessárias para examinar as razões humanitárias apresentadas e responde ao Estado-Membro requerente no prazo de dois meses a contar da data da receção do pedido por intermédio da rede de comunicação eletrónica «DubliNet», criada pelo artigo 18.o do Regulamento (CE) n.o 1560/2003. As respostas de recusa do pedido devem indicar os motivos em que a recusa se baseia.

Se o Estado-Membro requerido aceitar o pedido, a responsabilidade pela análise do pedido é transferida para ele.

Perante este quadro legal e tendo presente a factualidade consignada na sentença recorrida – a qual não vem impugnada -, resulta necessariamente a improcedência do recurso. Na verdade, e face ao que vem provado, o disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 19.º-A e os nºs 1 e 2 do artigo 37.º da Lei nº 27/08, não permite sustentar outro entendimento que não o expendido no acto impugnado.

É incontornável que as autoridades belgas são competentes para a retoma a cargo do ora Recorrente nos termos do art. 18.º, nº 1, al. d) do Regulamento (EU) 604/2013 do Parlamento e do Conselho, pelo que o “novo” pedido por aquele formulado não tem sequer que ser analisado de acordo com o regime supra identificado, devendo as autoridades portuguesas informar a Bélgica da transferência do requerente de asilo. Sendo que o art. 17.º do Regulamento comporta uma faculdade conferida aos Estados Membros de aceitarem a competência para a análise do pedido de protecção internacional, em derrogação do regime geral, quando existam situações excepcionais que o imponham – e só nesses situações verdadeiramente excepcionais , designadamente quando estejam em causa situações de força maior do foro clínico ou por razões humanitárias e por imperativo de não sujeitar o requerente da protecção internacional a tratamento desumano ou degradante (cfr. neste sentido o recente acórdão deste TCAS de 10.12.2019, proc. nº 1383/19.4BELS, por nós relatado). Ou seja, o processo de transferência deve ser interrompido para averiguar se esta pode significar a sujeição do requerente a tratamento cruel, degradante ou desumano num Estado-membro. O que no caso concreto se não verifica, nem tal circunstancialismo foi sequer alegado.

E não há dúvida que nos termos das disposições conjugadas dos artigos 3º nº 1 e 12º nº 2 daquele do Regulamento (UE) 604/2013, os pedidos de protecção internacional devem ser analisados e decididos por um único Estado-Membro (que será aquele que os critérios enunciados no Capítulo III designarem como responsável) competindo a análise do pedido de protecção internacional, caso o requerente seja titular de um visto válido, ao Estado-Membro que o tiver emitido.

Importa salientar, não perdendo de vista o caso concreto, que não se encontra minimamente demonstrado, desde logo, importa dizê-lo, pelo incumprimento do respectivo ónus alegatório, que se verificassem circunstâncias que justificassem, nos termos do disposto no artigo 3º nº 2 daquele Regulamento (UE) 604/2013, que fosse outro o Estado-Membro, e designadamente o Estado Português, o responsável por tal análise e decisão (cfr., em casos idênticos, também, os acórdãos deste TCAS de 19.05.2016, proc. nº 13154/16, e de 14.06.2018, proc. nº 229/18.5BELSB, por nós relatados). Com efeito, na p.i. o ora Recorrente nada avança de concreto quanto a circunstâncias/motivos que impedissem a sua transferência para a Bélgica; o que se repete no recurso interposto.

Por outro lado, não se noticia que existam na Bélgica falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento por este Estado e que impliquem o risco de tratamento desumano e degradante, nem que o requerente de protecção internacional seja colocado numa situação intolerável quanto ao seu tratamento na acepção do artigo 4º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Tal facto nem foi alegado, nem constitui facto público e notório.

Como se concluiu nos Acórdãos no processo C-163/17 Jawo e nos processos apensos C-297/17, C-318/17 Ibrahim, C-319/17 Sharqawi e o. e C-438/17 Magamadov:

Um requerente de asilo pode ser transferido para o Estado-Membro normalmente responsável pelo tratamento do seu pedido ou que já lhe tenha concedido protecção subsidiária a menos que as condições de vida previsíveis dos beneficiários de proteção internacional o pudessem expor a uma situação de privação material extrema, contrária à proibição de tratos desumanos ou degradantes”.

No quadro do sistema europeu comum de asilo que repousa no princípio da confiança mútua entre os Estados-Membros, deve presumir-se que o tratamento dado por um Estado-Membro aos requerentes de protecção internacional e às pessoas a quem foi concedida protecção subsidiária está em conformidade com as exigências da Carta, da Convenção de Genebra, bem como da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. E essa máxima cairá nos casos em que este sistema se depare, na prática, com grandes dificuldades de funcionamento num determinado Estado-Membro, de modo que existe um sério risco de os requerentes de protecção internacional serem tratados, nesse Estado, de modo incompatível com os seus direitos fundamentais e, nomeadamente, com a proibição absoluta de tratamento desumano ou degradantes (v. o Acórdão do Tribunal de Justiça de 21 de Dezembro de 2011, N. S. e o. - C-411/10 e C-493/10).

De acordo com a Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia citada, resulta que quando o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso de uma decisão de transferência ou de uma decisão que declara um novo pedido de protecção internacional inadmissível dispõe de elementos apresentados pelo requerente para demonstrar a existência do risco de um trato desumano ou degradante no outro Estado-Membro, esse órgão jurisdicional deve apreciar a existência de deficiências, sistémicas ou generalizadas, ou que afectem certos grupos de pessoas. Adianta ainda o Tribunal que tais deficiências só são contrárias à proibição de tratamento desumano ou degradante se tiverem um nível particularmente elevado de gravidade, que depende do conjunto dos dados da causa.

Ora, no caso concreto, não só não foram apresentados elementos pelo requerente de protecção internacional para demonstrar a existência do risco de um trato desumano ou degradante no outro Estado-Membro, nem imposições de saúde que impusessem a sua permanência em Portugal (não foram sequer alegadas), como não se noticia, como se disse já, que existam na Bélgica falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento por este Estado.

A posição que subscrevemos é, também, a acolhida no recente acórdão do STA de 16.01.2020, proc. n.º 2240/18.7BELSB, em que estava em questão a retoma a cargo pelo Estado Italiano. Neste acórdão concluiu-se:

I - Apenas em casos devidamente justificados, ou seja, naqueles casos em existam motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes e que tais falhas implicam o risco de tratamento desumano ou degradante, nomeadamente por envolver tortura, é que se impõe ao Estado em causa diligenciar pela obtenção de informação actualizada acerca da existência de risco de o requerente ser sujeito a esse tipo de tratamentos;

II - A imigração ilegal, que ocorre por muitos e variados motivos, visando todos eles a melhoria das condições de vida do imigrante, não se pode confundir simplesmente com a situação do refugiado. Este, que em sentido amplo não deixa de ser imigrante, busca refúgio em país estrangeiro por recear, com razão, ser perseguido no seu país de origem em consequência de actividade exercida em favor da democracia, da liberdade social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana, ou em virtude da sua raça, nacionalidade, convicções políticas ou pertença a determinado grupo social”.

Ou seja, a premissa de base que parte o Recorrente, de que a decisão de transferência do requerente de protecção internacional para o primeiro Estado responsável tem como pressuposto a análise prévia, oficiosa e injuntiva, de que nesse Estado não existem falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado, não tem acolhimento na lei.

Doutrina que é reiterada de modo mais enfático no recentíssimo acórdão do STA de 2.07.2020, proc. nº 1786/19.4BELSB, onde se concluiu: “O SEF não está obrigado a fazer quaisquer averiguações sobre eventuais falhas sistémicas do sistema de acolhimento quando inexistem quaisquer indícios de que o interessado tenha sido ou venha a ser vítima das mesmas, nomeadamente com a gravidade extrema que é pressuposto da aplicação da cláusula de salvaguarda constante do artº 3º nº 2 do Regulamento Dublin III”.

Como afirmado pelo Ministério Público nesta instância: “Tendo outro Estado (no caso o Estado Belga), tomado a decisão de aceitação da tomada a cargo do requerente para apreciação e decisão, e não tendo o requerente invocado fatos concretos que possam conduzir a decisão diferente, impõe-se ao Estado português a tomada de decisão de transferência do requerente para a Bélgica”.

No caso concreto dos autos, face ao que vem evidenciado, nada mais se impunha ao SEF.

Pelo que, em síntese, a decisão administrativa impugnada é a adequada à situação do ora Recorrente enquanto requerente de protecção internacional, sendo válida.

Terá, assim, que negar-se provimento ao recurso, e confirmar-se a sentença recorrida.

O presente processo é gratuito (artigo 84.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 26/2014, de 5 de Maio).



III. Conclusões

Sumariando:

i. O Regulamento (UE) n.º 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho, como já sucedia com o Regulamento (CE) n.º 343/2003, que estabelece os critérios e os mecanismos de determinação da responsabilidade da análise dos pedidos de protecção internacional apresentados nos Estados Membros, prossegue dois objectivos essenciais: por um lado, visa garantir um acesso efectivo aos procedimentos de determinação do estatuto de refugiado, sem comprometer a celeridade no tratamento dos pedidos de asilo e assegurando a certeza e segurança jurídicas ao nível da EU; e, por outro lado, visa impedir a utilização abusiva dos procedimentos de asilo, sob a forma de pedidos múltiplos apresentados pelo mesmo requerente em diversos Estados Membros, com o objectivo de neles prolongar a sua estadia, realidade comummente designada como asylum shopping.

ii. Também de acordo com a Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, quando o órgão jurisdicional chamado a conhecer de um recurso de uma decisão de transferência ou de uma decisão que declara um novo pedido de protecção internacional inadmissível dispõe de elementos apresentados pelo requerente, ou que constituam factos notórios, para demonstrar a existência do risco de um trato desumano ou degradante no outro Estado-Membro, esse órgão jurisdicional deve apreciar a existência de deficiências, sistémicas ou generalizadas, ou que afectem certos grupos de pessoas. Ainda assim, de acordo com a mesma Jurisprudência, tais deficiências só são contrárias à proibição de tratamento desumano ou degradante se tiverem um nível particularmente elevado de gravidade, que depende do conjunto dos dados da causa.

iii. Tendo outro Estado (no caso o Estado Belga), tomado a decisão de aceitação da tomada a cargo do requerente para apreciação e decisão, e não tendo o requerente de asilo invocado quaisquer factos concretos que possam conduzir a decisão diferente, nem sendo estes pública e notoriamente conhecidos, impõe-se ao Estado português a tomada de decisão de transferência do requerente para a Bélgica.



IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.

Sem custas.

Lisboa, 10 de Setembro de 2020


Pedro Marchão Marques

Alda Nunes

Lina Costa