Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:13234/16
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:10/20/2016
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:EXCEÇÃO DE CASO JULGADO, DOMÍNIO PÚBLICO
Sumário:I – Para efeitos da exceção de caso julgado, (i) a parte é a mesma em duas ações se tiver a mesma qualidade jurídica em ambas as ações, independentemente de ser ativa ou passiva, (ii) o pedido é o mesmo em duas ações se o efeito jurídico-material pretendido for o mesmo nas duas, e (iii) a causa de pedir é a mesma em duas ações se a factualidade de ambas as ações que sustenta os efeitos jurídico-materiais pretendidos for a mesma.

II – A apreciação de pedido de declaração ou reconhecimento do domínio público compete aos tribunais administrativos.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

GILMAR ………………………….E MULHER, NOÉLIA …………………….., intentaram no Tribunal Administrativo de Círculo de Loulé ação administrativo comum contra MUNICÍPIO DE TAVIRA.

Pediram o seguinte:

- Declaração jurisdicional de que certo Caminho é do domínio público, caminho que um tribunal judicial havia considerado ser propriedade privada de outrem para mandar os ora AA demolirem um muro construído pelos AA sobre tal terreno/caminho.

Após a discussão da causa e por sentença de 9-12-2015, o referido tribunal decidiu absolver o R. da instância, por haver exceção de caso julgado com aqueloutro processo no tribunal judicial.

*

Inconformados com tal decisão, os AA interpuseram o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

«Texto no original»

*

O M.P., através do seu digno representante junto deste tribunal, foi notificado para se pronunciar em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, como previsto no nº 1 do art. 146º.

Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

Para decidir, este tribunal (1) superior tem omnipresente a nossa Constituição como síntese da ideia-valor de Direito vigente, cujo modelo político é de natureza ético-humanista e cujo modelo económico é o da economia social de mercado, amparado no Direito.

Consideramos as três dimensões do Direito como ciência do conhecimento prático (por referência à ação humana e ao dever-ser inspirador das leis), quais sejam, (i) a dimensão factual social (que influencia muito e continuamente o direito legislado através das janelas de um sistema jurídico uno e real), (ii) a dimensão ética e seus princípios práticos (que influenciam continuamente o direito também através das janelas do sistema jurídico) e, a jusante, (iii) a dimensão normativa e seus princípios prático-jurídicos.

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Cabe, ainda introdutoriamente, sublinhar que os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido e respetivos fundamentos, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso, alegação que apenas pode incidir sobre as questões (de facto (2) e ou de direito) que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas.

As QUESTÕES A RESOLVER neste recurso são as identificadas no ponto II.2, onde as apreciaremos.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. FACTOS PROVADOS

Com interesse para a decisão a proferir, está provado o seguinte quadro factual:

«Texto no original»

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Continuemos.

II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO: O DIREITO

Tudo visto, cumpre decidir.

DA EXCEÇÃO DO CASO JULGADO

A)

Está apenas em questão saber se o Tribunal Administrativo de Círculo decidiu bem ou mal a exceção dilatória do caso julgado (um problema de eficácia puramente adjetiva), ou seja, alegação de que a mesma questão foi já deduzida num outro processo e nele julgada por decisão de mérito que não admite recurso ordinário.

Os recorrentes consideram que o Tribunal Administrativo de Círculo errou, porque não existe a tríplice identidade exigida no artigo 581º do Código de Processo Civil: das partes processuais, do pedido e da causa de pedir.

Tal importante instituto jurídico-processual tem a ver com a relação jurídica controvertida e com a segurança jurídica, como já escrevia há muito o ilustre Anselmo de Castro (in DPCD, III, 1982, pág. 384).

Resulta do artigo 581º do Código de Processo Civil o seguinte:

-Repete -se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

-Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

-Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

-Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real.

Cfr. A. ANSELMO DE CASTRO, DPCD, III, págs. 383 ss; A. VARELA et al., Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 307; J. ALBERTO DOS REIS, C.P.C.A., 3º, pág. 91; M. TEIXEIRA DE SOUSA, in B.M.J., 325º, pág. 216.

Como se escreveu no Acórdão deste Tribunal Central Administrativo Sul de 9-10-2014, Processo nº 11472/14, em sede de exceção de caso julgado (cfr. artigos 580º e 581º do NCPC),

(i) a parte é a mesma em duas ações se tiver a mesma qualidade jurídica em ambas as ações, independentemente de ser ativa ou passiva (aqui, esta ação declarativa e a ação declarativa do proc. Nº 403/05.4TBTVR do Tribunal Judicial de Tavira, cuja sentença transitada é de 5-6-2011);

(ii) o pedido é o mesmo em duas ações se o efeito jurídico-material pretendido for o mesmo nas duas; e

(iii) a causa de pedir é a mesma em duas ações se a factualidade de ambas as ações que sustenta os efeitos jurídico-materiais pretendidos for a mesma.

B)

Ora, na ação tramitada e decidida no tribunal judicial, os aqui AA foram RR e perderam a causa.

E é evidente que não há identidade de partes nas duas ações: os AA naqueloutra ação não são sequer parte neste nosso processo; os RR daquela ação são aqui AA, mas aqui R é (apenas; bem ou mal) o município apenas, que não foi parte na outra ação.

C)

Um dos pedidos naquela ação judicial (deferidos) consistiu no reconhecimento de que certo prédio/terreno, o mesmo aqui em causa, pertencia à propriedade privada dos AA naquela ação; aqui, o pedido dos AA particulares (pedido, estranho, contra o próprio beneficiário do pedido, o município) é o do reconhecimento jurisdicional do domínio público municipal sobre aquele terreno.

Este pedido, nesta ação, com estes AA, foi aqui aceite pelo Tribunal Administrativo de Círculo.

Como se vê, o efeito jurídico-material pretendido nas duas ações são diferentes.

Portanto, não há identidade de pedidos.

Aliás, as Jurisdições competentes para julgar cada um daqueles diferentes pedidos são diferentes: o pedido aqui feito cabe à competência jurisdicional dos tribunais administrativos e não dos tribunais judiciais.

D)

Finalmente, quanto à causa de pedir, embora o Tribunal Administrativo de Círculo tenha sido lesto a decidir, não se deu ao trabalho de apurar ou descrever na matéria de facto a causa de pedir da sentença judicial.

Seja como for, não há dúvidas de que a ação já finda no tribunal judicial foi uma ação real, para reconhecimento e defesa da propriedade privada, reconhecida no Código Civil; a respetiva causa de pedir só pode ser uma das previstas no artigo 1316º do Código Civil (contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei.), sem prejuízo do nº 2 do artigo 202º do Código Civil e do importante artigo 84º da Constituição da República Portuguesa.

O domínio público (municipal) pode ter na sua origem os tempos imemoriais e as leis encimadas pela Constituição da República Portuguesa. Bem diferente.

Como se vê, também a causa de pedir é, tem de ser, diferente em ambas as ações.

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III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os Juízes Desembargadores da 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida, julgando-se improcedente a exceção de caso julgado.

Sem custas.

Lisboa, 20-10-2016


(Paulo Pereira Gouveia - relator)

(Nuno Coutinho)

(Carlos Araújo)



(1)Como não é demais lembrar, tribunal é o órgão de que é titular um juiz ou um colégio de juizes que, a requerimento de outrem e através de um procedimento equitativo, imparcial e independente, decide, com força obrigatória para os interessados, os factos integradores dos respetivos direitos e obrigações, aplicando-lhes o direito pertinente (Ac. do Tribunal Constitucional nº 33/96; e Ac. nº 472/95).
(2)Sobre a matéria de facto, cfr., inter alia, o Acórdão do STJ de 13-11-2014, Processo nº 444/12.5 (rel. Lopes do Rego); F. F. de ALMEIDA, DPC, II, 2015, págs. 346 ss; LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa…, 3ª ed., págs. 188-206.