Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:17/23.7 BCLSB
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:01/20/2023
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:JUSTIÇA DESPORTIVA
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
REQUISITOS
FUMUS BONI IURIS
PERICULUM IN MORA
Sumário:I. A subsunção dos factos na previsão normativa disciplinar não pode ser arbitrária e sem critérios pré-definidos, posto que o princípio da legalidade não está ausente do direito disciplinar, devendo verificar-se o preenchimento cumulativo dos pressupostos da infracção disciplinar, tais como a acção lato sensu (abrangendo o comportamento activo e omissivo), a ilicitude, a culpa e a punibilidade da conduta, assim como o status do próprio agente que terá de estar sujeito à responsabilidade disciplinar.

II. Os comportamentos proibidos e sancionados em direito desportivo devem ser objectivamente determináveis a partir da norma sancionadora, mostrando-se ilegal a aplicação de uma sanção disciplinar a um jogador por conduta por este praticada que não integra a previsão contida no tipo normativo do ilícito disciplinar de referência.

III. A Constituição exige que a descrição do tipo de ilícito, mesmo em matéria disciplinar e contraordenacional, contenha em si o núcleo essencial da proibição em moldes adequados a orientar os seus destinatários acerca das condutas censuráveis disciplinarmente.

Votação:DECISÃO SUMARIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Decisão

(artigo 41º, n.º 7, da Lei do TAD)


I. Relatório

D ……………, jogador profissional, e o E ……………….., SAD, com os demais sinais dos autos, intentou no Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), em 18.01.2023, contra a FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL uma acção de impugnação de acto administrativo, com requerimento de providência cautelar de suspensão de eficácia do acto impugnado, pedindo nesta acção cautelar, circunscrita ao primeiro Requerente, o decretamento de providência cautelar de suspensão da decisão proferida pelo Pleno do Conselho de Disciplina da FPF ,em 17 .01.2023, que, no âmbito do processo disciplinar nº35-22/23, condenou o requerente D ………….. na sanção de 1 (um) jogo e sanção de suspensão de multa de EUR 327,00, pela prática de uma infração p. e p. no artigo 160º (Não Acatamento de Deliberações), por referencia aos artigos 37º e 38º, todos do RDLFPF

Juntou a cópia do procedimento administrativo, cópia do comunicado oficial nº160, da LPFP, procuração forense e comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida.

Para fundamentar a sua pretensão, alega o Requerente, em síntese, que a sua condenação assenta no errado entendimento do Conselho de Disciplina de que um jogador suspenso se encontra igualmente impedido de participar nos exercícios de aquecimento que antecedem o jogo da sua equipa.” já que

inexiste qualquer norma regulamentar que estenda os efeitos da sanção de suspensão de jogadores por determinado número de jogos oficiais aos referidos exercícios de aquecimento, como ainda se distingue, no acervo regulamentar aplicável uma outra que expressamente o permite” e em

“…nenhures do RDFPF se define, em concreto, em que consistem o âmbito e a extensão da sanção de suspensão de um jogador — vide artigos 37.° e 38.°-como se cuida de fazer, por exemplo, em relação à suspensão de dirigentes e delegados dos clubes (artigo 39.°) e demais agentes desportivos (artigo 40.°).”

Defende também que “a suspensão de jogadores, o artigo 37.°, n.° 1. do RDLPFP, apenas refere que "A sanção de suspensão aplicada a jogadores será computada em períodos de tempo ou em jogos oficiais’’' e que “…do disposto nos artigos 37.° e 38.° (e, a contrario, 39.° e 40.°) do RDLPFP e 60.°, n.° 2, al. m), do Regulamento de Competições da LPFP ("RCLPFP’) resulta inequívoco que ….um jogador suspenso por jogos oficiais está só e apenas impedido de participar em jogos oficias”

Sendo que a participação nos jogos oficiais “ não inclui o período de aquecimento, pela dupla razão de que (i) o jogo, à luz das Leis do Jogo (Lei 6 e Lei 7) e do RCLPFP (artigo 38.°, n.° 1). não inclui o período de aquecimento, que lhe é prévio; e, de modo determinante, (ii) o RDLPFP não prevê que a suspensão deva abarcar algo mais do que a estrita participação no jogo.

E, por isso a decisão suspendenda é ilegal porque afronta de forma grosseira o “princípio da legalidade, quer na sua formulação genérica, constitucional e penal, expressa no brocardo latino nullum crimen, nulla poena sine lege, também acolhido no artigo 7.° da CEDH, quer na expressamente adoptada pelo próprio RDLPFP, no seu já citado artigo 9.°: As sanções disciplinares têm unicamente os efeitos declarados neste Regulamento.”

E socorre-se de um exercício analógico, proibido pelo mencionado artigo 9° do RDLPFP, pois o Conselho de Disciplina faz valer para o jogador suspenso ''todas as considerações que [o] CD/SP tem desenvolvido sobre o conteúdo funcional do treinador suspenso ".

Alega que ainda a condenação proferida pela Requerida, e inerente aplicação da sanção de suspensão de 1 jogo “constitui uma séria e gravosa compressão da sua liberdade de trabalho, impedindo-o de participar no próximo jogo oficial da Liga Portugal Bwin da sua equipa e eliminando, em absoluto o conteúdo funcional essencial da sua actividade de jogador profissional de futebol: representar a sua equipa em jogos oficias.” traduz numa limitação à liberdade do exercício da profissão consagrada no artigo 47.°, n° 1, da CRP.

Quanto ao periculum em mora, alegam que a condenação proferida pela Requerida, e a inerente aplicação da sanção de suspensão de 1 jogo é especialmente gravosa para o Requerente , visto que é jovem atleta profissional de 24 anos, em fase de afirmação na equipa da requerente Estoril SAD, [onde ] actua como guarda-redes, [uma] posição de acérrima concorrência e escassa ou praticamente nenhuma rotatividade e “ jamais poderá [ser] reintegrada em espécie nem ressarcida por via indemnizatória.”

Por fim vem alegado que o decretamento da providência não causa qualquer prejuízo à requerida.



II. Da intervenção do Presidente do TCA Sul e convolação processual

Por despacho do Exmo. Presidente do TAD, de 19.01.2023, foram os autos remetidos a este TCA Sul (na mesma data, conforme registo 004713985 do SITAF), para apreciação e decisão, na constatação de não ser viável em tempo útil a constituição do colégio arbitral.

Vejamos se estão reunidos os pressupostos que justificam a intervenção do Presidente do TCA Sul.

O artigo 41.º da Lei do TAD, sob a epígrafe “procedimento cautelar”, estatui no seu n.º 7 que “consoante a natureza do litígio, cabe ao presidente do Tribunal Central Administrativo do Sul ou presidente do Tribunal da Relação de Lisboa a decisão sobre o pedido de aplicação das medidas provisórias e cautelares, se o processo ainda não tiver sido distribuído ou se o colégio arbitral ainda tiver constituído”.

Refere o Exmo. Presidente do TAD, no despacho por si proferido, que:

(…)

« Texto no original»

No presente caso, vem invocada pelo Exmo. Senhor Presidente do TAD a impossibilidade de constituição do colégio arbitral em tempo útil, atentos os prazos legalmente estabelecidos (v. supra).

Reiterando os fundamentos constantes do despacho transcrito e considerando a necessidade de cumprimento das regras adjectivas previstas na Lei do TAD, de que resultaria a susceptibilidade de fazer perigar a tutela efectiva do direito invocado, não pode senão concluir-se que está preenchido o requisito de que depende a intervenção do Presidente do TCA Sul.



III. Da audição da Requerida

De acordo com o n.º 5 do art. 41.º da Lei do TAD, “[a] parte requerida é ouvida dispondo, para se pronunciar, de um prazo de cinco dias quando a audição não puser em risco sério o fim ou a eficácia da medida cautelar pretendida”.

E o art. 366.º, n.º 1, do CPC estabelece que: “[o] tribunal ouve o requerido, exceto quando a audiência puser em risco sério o fim ou a eficácia da providência.

Como ensina José Lebre de Freitas, a “[u]tilidade, fim ou eficácia apontam no mesmo sentido: a audiência do requerido não deve ter lugar quando, com ela, haja o risco de se frustrar o efeito prático que concretamente se pretende atingir, isto é, quando o conhecimento da pretensão cautelar pelo requerido ou a demora no deferimento da providência resultante da observância da contraditoriedade aumente o perigo da lesão grave e de difícil reparação que a providência visa evitar” (cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. 2, 2001, p. 24).

A dispensa de audição da parte contrária, que integra um poder-dever do juiz, exige, também, a explicitação das razões que sustentam o entendimento de que essa audição colocará “em risco sério o fim ou a eficácia da providência”.

No caso presente, concretizando, a audição da Requerida, por força do prazo injuntivamente fixado no art. 41.º, n.º 5 da Lei do TAD, é de 5 dias (a que acrescerá o prazo de multa processual pela eventual prática tempestiva do acto), sendo que o jogo abrangido pela presente providência, que a ora Requerente identifica, ocorrerá no próximo dia 22 de Janeiro (sábado).

Pelo que, sendo susceptível de pôr em risco a eficácia da medida cautelar pretendida, ao abrigo do disposto no art. 366.º, n.º 1, do CPC, dispensa-se, oficiosamente, a audição da Requerida, procedendo-se de imediato à apreciação do mérito da presente providência cautelar.



IV. Da instância e instrução do processo

As partes são legitimas e o processo é o próprio.

Não existem excepções ou outras questões prévias que devam ser, desde já, conhecidas e que obstem à apreciação do mérito da providência requerida.

Atenta a natureza indeterminável dos interesses em discussão no presente processo, nos termos previstos no art. 34.º, n.ºs 1 e 2, do CPTA, fixa-se ao presente processo o valor de EUR 30.000,01.

Considerando a natureza do processo, entende-se que nenhuma outra prova carece de ser produzida, estando, portanto, o tribunal em condições suficientes para a apreciação do mérito da causa.



V. Fundamentação

V.i. De facto

Com interesse para a decisão da presente providência cautelar, relevam os seguintes factos, documentalmente comprovados:

a) Realizou-se no dia 6 de Novembro de 2022, o jogo oficialmente identificado pelo n.º……… da Liga Portugal Bwin, no Estádio …………., Cascais, disputado em entre o E …. e o B…….SAD, e do relatório dos Delegados da LPFP, consta, designadamente, o seguinte: “1.Durante o período do aquecimento das Equipas, o jogador da Equipa Visitada D ………, que se encontrava a cumprir um jogo de suspensão por acumulação de amarelos, esteve presente no período de aquecimento dos guarda-redes tendo ainda circulado pela zona técnica. O jogador em questão não constava na ficha técnica do jogo.” (doc. 1, a fls.4 e segs SITAF).

b) Àquela data, D ………….., jogador da referida SAD, encontrava-se suspenso do exercício de funções na sequência da decisão da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da FPF, datada de 02.11.2022, que o condenara pela prática da infração p. p. no artigo 164.º, n.º 5 [Cartões Amarelos e Vermelhos], do RDLPFP, com a sanção de suspensão de 1 (um) jogo e, acessoriamente, com a sanção de multa de € 62,00 ( Doc. 1 fls. 47 e segs.- SITAF)

c) Por deliberação da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, de 08.11.2022, foi ordenada a instauração e subsequente remessa à Comissão de Instrutores da LPFP de processo disciplinar contra os ali arguidos D ……….. e o E………..– Futebol, SAD, pelos factos descritos em a). (ibidem)

d) Ao referido processo coube o nº …..-2022/23, e o instrutor designado elaborou Relatório Final em 02.12.2022, propondo o arquivamento dos autos. (doc. 1, a fls.48 e ssg. SITAF).

e) O Relator a quem o processo foi distribuído não sufragou a proposta de arquivamento, tendo proferido despacho em 07.12.2022, a determinar a concretização de diligências junto dos Delegados da Liga ao jogo em causa para apurar se jogador participou ativamente no aquecimento dos guarda redes e se ficou no banco de suplentes a assistir ao jogo ( doc. 1, a fls.61e ssg. SITAF).

f) Após a realização de tais diligências o Instrutor do processo disciplinar elabora novo Relatório Final, em 22.12.2022, mantendo a proposta de arquivamento (doc. 1, respectivamente, a 80 e segs e 91 e segs- SITAF)

g) O Relator do processo divergindo de novo do Instrutor deduz acusação, em 31.12.2022, contra arguidos D…………..e o E …………, SAD, conforme doc. 1, a fls. 121 e segs,- SITAF.

h) Por acórdão de 17.01.2023,. proferido nesse processo foi “julgar procedente a acusação, condenando: - o A …………., pela infração disciplinar p. e p. nos termos do disposto no artigo 160.º [Não acatamento de deliberações], por referência ao disposto nos artigos 37.º e 38.º, todos do RDLPFP, em sanção de suspensão de um jogo e sanção de multa no montante de 327€ (trezentos e vinte e sete euros); e a Arguida E ……….., pela infração disciplinar p. e p. nos termos do disposto no artigo 86.º [Não acatamento de deliberações] do RDLPFP, em sanção de multa no montante de 1.632€ (mil seiscentos e trinta e dois euros).”, por factos ocorridos no jogo nº……. da Liga Portugal Bwin, realizado no dia 6 de Novembro de 2022. doc. 1 fls. 230 e segs.- SITAF)

i) Do acórdão supra, consta como factualidade provada a seguinte:

“No contexto das diligências instrutórias, foi apurada a seguinte factualidade com relevância

para a decisão nos presentes autos


1.º

No dia 06.11.2022 realizou-se, a contar para a 12ª jornada da Liga Portugal Bwin, no Estádio ……….., o jogo oficialmente identificado sob o n.º 11205, disputado entre a E …….. – Futebol, SAD e a S ……….. – Futebol, SAD – cfr. fls. 4 a 25.

2.º

Àquela data, o Arguido D ………….., jogador da referida SAD, encontrava-se suspenso do exercício de funções na sequência da decisão da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da FPF, datada de 02.11.2022, que o condenara pela prática da infração p. p. no artigo 164.º, n.º 5 [Cartões Amarelos e Vermelhos], do RDLPFP, com a sanção de suspensão de 1 (um) jogo e, acessoriamente, com a sanção de multa de € 62,00 - cfr. fls. 47.§1.

3.º

Apesar de se encontrar suspenso, durante o período de aquecimento das equipas relativamente ao jogo supramencionado, o jogador Arguido D ……………, “esteve presente no período de aquecimento dos guarda-redes tendo ainda circulado pela zona técnica”, mais concretamente esteve no campo de jogo e “participou ativamente no treino, defendendo algumas bolas e rematando também algumas bolas; (ii) após o período de aquecimento o guarda-redes saiu do retângulo de jogo em direção ao balneário da Equipa Visitada passando pela zona técnica. Não esteve presente no banco de suplentes a assistir o jogo e não foi visto novamente pela Equipa de Delegados após ter entrado no balneário” – cfr. fls. 16 e 82 a 85.

4.º

Por ser assim, a presença do Arguido D ………….., na zona técnica de recinto desportivo em que se disputou jogo oficial, no dia em que ainda estava a cumprir a sanção de suspensão, bem como a participação activa no aquecimento dos colegas e no seu próprio aquecimento, é violadora das normas regulamentares, na medida em que aquela zona técnica é ainda zona reservada a que só podem ter acesso agentes desportivos credenciados, não se englobando os suspensos.

5.º

Não podendo ignorar a sanção de suspensão aplicada ao seu jogador, a Arguida E ………….. sabia que o mesmo não podia aceder, atravessar ou permanecer a zona técnica, nem participar activamente no aquecimento dos seus colegas durante o período de duração da respetiva suspensão.

6.º

Assim sendo, e não tendo obstado àquela presença indevida e participação activa no aquecimento, não fez cumprir deliberação emanada de órgão social competente da FPF e contrariou os deveres que lhe são impostos pelos regulamentos, tornando-se incursa em responsabilidade disciplinar.

7.º

O Arguido Daniel A ………….. agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que o seu comportamento consubstanciava conduta prevista e punida pelo ordenamento jusdisciplinar desportivo, não se abstendo, porém, de a realizar.

8.º

A Arguida E ……………… agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que o seu comportamento consubstanciava conduta prevista e punida pelo ordenamento jusdisciplinar desportivo, não se abstendo, porém, de a realizar.

9.º

À data dos factos os Arguidos tinham os antecedentes disciplinares constantes dos respetivos registos disciplinares constantes de fls. 38 a 46.

j) E foi a seguinte a motivação da decisão:

A factualidade dada como provada resulta da valoração dos elementos probatórios juntos ao processo, à luz das regras da lógica e da experiência comum. Concretamente:

a) O facto descrito em 1.º de §2. Factos provados resulta da documentação oficial do jogo, de

fls. 4 a 25;

b) O facto descrito em 2.º de §2. Factos provados resulta do sancionamento cfr. fls. 47;

c) O facto descrito em 3.º de §2. Factos provados decorre do vertido nos documentos fls. 16 e 82 a 85.º

d) A demonstração da factualidade de índole subjetiva evidenciada em 4.º, 5.º, 6.º, 7.º e 8.º de §2. Factos provados decorre in re ipsa e, por conseguinte, também da valoração dos elementos probatórios juntos ao processo à luz das regras da experiência comum e da lógica;

e) O facto descrito em 9.º de §2. Factos provados resulta dos cadastros disciplinares dos Arguidos, junto a fls. 38 a 46..

k) Do Comunicado oficial nº160, da Liga Portugal consta o jogo da 17º jornada da Liga Portugal bwin, entre os Requerentes e a Equipa do Marítimo M, - jogo nº …. o qual ocorrerá no próximo domingo, 22 de Janeiro, pelas 15:30h. ( doc.2 fls.312 –SITAF)

Nada mais vindo alegado, de facto, nada mais importa indiciariamente provar.



V.ii. De direito

V.ii. De direito

Nos termos do disposto no art. 41.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto, aprovada pela Lei n.º 74/2013, de 6 de Setembro, “[o] TAD pode decretar providências cautelares adequadas à garantia da efetividade do direito ameaçado, quando se mostre fundado receio de lesão grave e de difícil reparação, ficando o respetivo procedimento cautelar sujeito ao regime previsto no presente artigo. E, de acordo com o n.º 9 desse artigo, “[a]o procedimento cautelar previsto no presente artigo são aplicáveis, com as necessárias adaptações, os preceitos legais relativos ao procedimento cautelar comum, constantes do Código de Processo Civil”.

Dispõe o art. 368.º do CPC:

1- A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão.

2 - A providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar.

3 - A providência decretada pode ser substituída por caução adequada, a pedido do requerido, sempre que a caução oferecida, ouvido o requerente, se mostre suficiente para prevenir a lesão ou repará-la integralmente.

4 - A substituição por caução não prejudica o direito de recorrer do despacho que haja ordenado a providência substituída, nem a faculdade de contra esta deduzir oposição, nos termos do artigo 370.º.

Como já se deixou estabelecido anteriormente, são requisitos essenciais destas providências cautelares (cfr., i.a., a decisão de 5.11.2021, proc. n.º 130/21.5BCLSB):

a) A titularidade de um direito que releva do ordenamento jurídico desportivo ou relacionado com a prática do desporto; e

b) O receio fundado da lesão grave e de difícil reparação desse direito.

Sendo que esta titularidade do direito, deve ser séria; ou seja, no sentido de que ao requerente da providência lhe venha a ser reconhecida razão, ainda que essa análise deva ser feita – como não podia deixar de o ser, face à natureza deste meio processual – sob os ditames próprios de uma summario cognitio. Dito de modo diverso, é pressuposto (cumulativo) do decretamento da providência a probabilidade séria (fumus boni juris), embora colhida a partir de análise sumária (summaria cognitio) e de um juízo de verosimilhança, de o direito invocado e a acautelar já existir ou de vir a emergir de acção constitutiva, já proposta ou a propor.

Por sua vez, na demonstração do grau de probabilidade ou verosimilhança em relação à existência do direito invocado pelo requerente da providência, concorre não só o acervo probatório constante do processo e que se revele adequado a formar a convicção do julgador quanto ao grau de probabilidade de existência do direito invocado, como a jurisprudência tirada sobre casos análogos e cuja decisão seja proferida por referência ao mesmo quadro normativo. Não poderá afirmar-se a “probabilidade séria da existência direito” invocado, se esse mesmo direito não é reiteradamente reconhecido nas acções principais que sobre ele versam.

É certo que o fumus boni iuris decorre da suficiência da mera justificação dos fundamentos do mesmo. Mas, como se escreveu no ac. de 19.09.2019 do TR de Guimarães, proc. n.º 97/19.0T8VNC.G1: “na aferição de tal requisito, bem como dos demais, deve ter-se sempre presente uma perspectiva de instrumentalidade hipotética, isto é, de que a composição final e definitiva do litígio no processo respectivo possa vir a ser favorável ao requerente”.

No caso concreto, o Requerentes alega, nos termos que melhor constam da p.i., que a sanção punitiva é ilegal. Afirma que a decisão suspendenda viola os princípios da legalidade das normas sancionatórias, previsto no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, em especial na sua vertente de tipicidade e exigência de lei certa, também conexa com o princípio do Estado de Direito ínsito no artigo 2.º do Constituição.

Em relação ao periculum in mora, alega que a suspensão de eficácia do acto em análise é a única via de garantir a efectividade dos seus direitos subjectivos, que se encontram ameaçados por esse acto. Neste ponto sustenta que fica de exercer a sua actividade profissional, sendo especialmente gravosa no seu caso, pois actua como guarda redes que é uma função de acérrima competitividade e escassa ou nula rotatividade. Ou seja, em consequência da sanção de suspensão aplicada, fica proibido de comparecer ao próximo jogo e de exercer as suas funções.

Vejamos então, em primeiro lugar, se ocorre ou não probabilidade séria da existência do direito invocado.

Em primeiro lugar, cumpre sublinhar que estamos no domínio cautelar, por definição de natureza instrumental, com prova sumária e perfunctória. A apreciação que é feita em sede de procedimento de cautelar assenta, assim, num mero juízo de verosimilhança. Ao apreciar a providência, o tribunal “não se baseia sobre a certeza do direito do requerente, mas apenas sobre uma probabilidade séria da existência desse direito (fumus boni iuris; summaria cognitio; não verdadeira prova, mas simples justificação)” (cfr. Manuel A. Domingues de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, 1993, p. 9).

Ora, em face do que vem alegado impõe-se avaliar do concreto comportamento que vem imputado ao requerente e a respetiva subsunção jurídico-disciplinar, nos termos que decorrem da decisão do Conselho de Disciplina aqui posta em crise.

Neste desiderato, cabe aqui recordar que à data em que foi realizado o jogo oficialmente identificado pelo n.º……. da Liga Portugal Bwin, disputado em entre o E ……. e o B………., o requerente D …….. encontrava-se a cumprir um jogo de suspensão encontrava-se suspenso na sequência da decisão da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da FPF, datada de 02.11.2022, que o condenara pela prática da infracção p.p. no artigo 164.º, n.º 5 (Cartões por acumulação de amarelos, do RDLPFP, com a sanção de suspensão de 1 (um) jogo e, acessoriamente, com a sanção de multa de € 62,00 – cfr. a) e b) da factualidade assente.

E que no Relatório de Delegado, elaborado por ocasião do jogo suprarreferido, é mencionado que «Durante o período do aquecimento das Equipas, o jogador da Equipa Visitada D…………..que se encontrava a cumprir um jogo de suspensão por acumulação de amarelos, esteve presente no período de aquecimento dos guarda-redes tendo ainda circulado pela zona técnica. O jogador em questão não constava na ficha técnica do jogo.» - cfr. a) e b) da factualidade assente

Importa ainda notar, antes de mais, que as normas materiais relevantes para a decisão do presente caso encontram-se no Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, mais concretamente nos seus artigos 37º, 38º e na alínea m), do n.º 2 do artigo 60.º do Regulamento das Competições Organizadas pela Liga Portugal (doravante, RCLPFP).

Preceitua o nº1 do artigo 37.º do RDLPFP (Sanção de suspensão de jogadores) no que aqui releva que:

«1. A sanção de suspensão aplicada a jogadores será computada em períodos de tempo ou em jogos oficiais.

Acrescentando artigo 38.º (Cumprimento da suspensão) o seguinte:

“1. A sanção de suspensão aplicada a jogadores, seja por jogos oficiais, seja por períodos de tempo, deverá ser cumprida durante a época desportiva em que a decisão que a aplicar se tornar executória.

2. Se a sanção de suspensão referida no número anterior não for, porém, totalmente cumprida na época em que a decisão que a aplicou se tornou executória, sê-lo-á na época ou em épocas subsequentes, nos seguintes termos:

a) no caso de suspensão por períodos de tempo, para cumprimento da sanção não se torna necessária inscrição do jogador, decorrendo o prazo pelo tempo de suspensão, sendo contado o período de interregno;

b) no caso de suspensão por jogos oficiais, para cumprimento da sanção torna-se necessária a inscrição do jogador, começando-se a contar o número de jogos a partir da data em que o jogador estiver em condições regulamentares de poder alinhar. “ ( negrito nosso)

Já no que concerne aos dirigentes e delegados dos clubes o quadro regulamentar especifica, nomeadamente no artigo 39.º do RDLPFP, em que consiste a sanção de suspensão aplicada a estes agentes desportivo e que se prende, no essencial, com: (a) o impedimento de estar presente na zona técnica dos recintos desportivos em que se disputem jogos oficiais, tal como definida no n.º 1 do artigo 60.º do Regulamento das Competições, desde duas horas antes do início de qualquer jogo oficial e até 60 minutos após o seu termo; (b) a inibição de intervenção pública em matérias relacionadas com as competições desportivas; e (c.) impedidos de exercer funções como dirigentes, delegados ou sob qualquer outra qualidade.

E na alínea m), do n.º 2 do artigo 60.º do RCLPFP (Acesso e permanência no recinto do jogo e balneários) estipula-se que podem entrar e permanecer na zona técnica, desde que devidamente identificados ou credenciados, dois jogadores além dos que constem das fichas técnicas das equipas, para exercícios de aquecimento

Em face do quadro legal acabado de transcrever e da factualidade indiciada nos autos a decisão suspendenda, discorreu o seguinte no seu discurso fundamentador:

“ (…) um jogador suspenso está impedido de participar no(s) jogo(s) disputado(s) por altura do cumprimento da sanção de suspensão, sendo que o conteúdo daquilo que é a participação em jogo não se esgota na disputa, enquanto jogador efetivo ou suplente, desse jogo, mas, também e necessariamente, nos atos preparatórios e imediatamente antecedentes ao jogo, que decorrem já no retângulo de jogo, como é o caso dos exercícios de aquecimento. Deste modo, ao ocorrer a participação nesse aquecimento de jogador que se encontra suspenso, viola-se, pelo jogador e pelo Clube, o conteúdo da deliberação de suspensão pois a sua finalidade não fica completa com a mera não disputa, enquanto efetivo ou suplente, do jogador suspenso durante o jogo. É igualmente finalidade de tal suspensão que o mesmo não possa participar dos actos de um jogador não suspenso, incluindo o aquecimento minutos antes do jogo se iniciar. Se a função do jogador é jogar e se o aquecimento faz, inelutavelmente, parte do jogo, então o jogador suspenso não pode participar no aquecimento para se mobilizar para o jogo ou para apoiar o aquecimento de outros colegas. Para isso estão aptos todos os jogadores efetivos e não efetivos. Discordamos, pois, em absoluto, do argumento dos Arguidos, dispendido no seu memorial de defesa e nas alegações da audiência disciplinar, de que o jogador suspenso poderia estar a fazer no aquecimento, com base no entendimento do estatuído no artigo 60.º (Acesso e permanência no recinto do jogo e balneários), n.º 2, al. m) que determina a possibilidade de dois jogadores além dos que constem das fichas técnicas das equipas, para exercícios de aquecimento.

13. Como bem sublinha o Exmo Sr. Acusador, não há qualquer violação do princípio da legalidade/tipicidade na medida em que das normas resulta muito claro que o jogador suspenso não pode alinhar ou participar em jogo o que inclui igualmente o aquecimento e o acesso à zona técnica pois não se compreende como poderia não jogar, mas aquecer, se tal já é um acto destinado a alinhar e preparar-se para participar a todo o momento. Acresce que o acesso de até 2 jogadores não inscritos restringe-se a jogadores não suspensos, obviamente, o que não é o caso dos autos. Ademais, e se ainda assim não se entendesse, também os Arguidos não provaram que o jogador suspenso estaria incluído nesse número de dois jogadores não inscritos, pois poderiam estar mais jogadores nessas circunstâncias.

14. Mutatis mutandis, valem todas as considerações que este CD/SP tem desenvolvido sobre o conteúdo funcional do treinador suspenso considerando que o mesmo não pode permanecer na zona técnica durante o período do jogo (aliás, desde duas horas antes do início do jogo e até 60 minutos após o seu termo), tal como se despendeu no recente Acórdão de 25.10.2022, relativo ao Processo Disciplinar n.º 105/20221-22 (João Gouveia de Caires), aprovado por maioria.

15. Assim, a conduta do Arguido D…………….., consubstanciada nos factos supra descritos no artigo 3.º preenche os elementos objetivos e subjetivos do ilícito disciplinar p. e p. pelo artigo 160.º do RDLPFP [Não acatamento de deliberações], por referência ao disposto nos artigos 37.º e 38.º do citado RDLPFP, punível com sanção de suspensão a fixar entre o mínimo de um e o máximo de três jogos e, acessoriamente, com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 3 UC e o máximo de 25 UC, uma vez que, acedeu e atravessou a zona técnica e participou activamente no aquecimento dos colegas e no seu próprio quando estava proibido por sanção de suspensão. (…)”

Importa, portanto, aferir, ainda que sob os ditames próprios de uma summario cognitio da respetiva conformidade do discurso fundamentador da decisão punitiva com o princípio da legalidade das normas sancionatórias, previsto no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição.

Não existem hoje dúvidas acerca da aplicabilidade desse princípio, além de directamente ao ramo do direito penal, também aos demais ramos do direito sancionatório, sabendo-se, aliás, que «[o] direito disciplinar e as respetivas sanções conformam porventura o domínio que, de um ponto de vista teorético, mais se aproxima do direito penal e das penas criminais» ( cfr.Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, cit., p. 196-197.)

Quer a jurisprudência, quer a Doutrina, vem afirmando que , «[e]mbora o artigo 29.º se refira somente à lei criminal, deve considerar-se que parte destes princípios (nomeadamente, o da proibição da aplicação retroactiva desfavorável) se aplicam também aos outros dois ramos do chamado direito público sancionatório: o direito de mera ordenação social e o direito disciplinar».

Sob a extensão dos princípios da legalidade e da tipicidade escreveu-se no acórdão do Tribunal Constitucional nº76/2016, publicitado em 06.04.20176, in DR.II, o seguinte:

“O princípio da legalidade criminal, consagrado nos n.os 1, 3 e 4 do artigo 29.º da CRP, tem por função garantir que os cidadãos não fiquem sujeitos ao arbítrio e aos excessos do poder punitivo do Estado. Traduzindo-se o seu conteúdo essencial em não poder haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia, estrita e certa, a liberdade pessoal dos cidadãos fica assim garantida perante intervenções estaduais que não se contenham dentro de um círculo de atuação estritamente delimitado. A garantia pessoal de não punição fora do domínio da legalidade, que a CRP inclui no catálogo dos direitos, liberdades e garantias, não se basta com a existência de lei prévia que defina os pressupostos da responsabilidade criminal, exige ainda que a lei especifique suficientemente os factos que constituem o tipo legal de crime e o tipo de pena que lhe cabe. Neste sentido, o princípio da legalidade, na qualidade de parâmetro constitucional, impõe que a norma penal seja precisa e determinada. Como refere Figueiredo Dias, «importa que a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que dependa em concreto uma punição seja levada até a um ponto em que se tornem objetivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objetivamente motivável e dirigível a condutas dos cidadãos» (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, pág. 174).

A exigência de determinabilidade do conteúdo das normas penais, uma dimensão do denominado princípio da tipicidade, é avessa a que o legislador formule normas penais recorrendo a cláusulas gerais na definição dos crimes, a conceitos que obstem à determinação objetiva das condutas proibidas ou que remeta a sua concretização para fontes normativas inferiores, as chamadas normas penais em branco. A exclusão de fórmulas vagas na descrição dos tipos legais, de normas excessivamente indeterminadas e de normas em branco, leva em conta os valores da segurança e confiança jurídicas postulados pelo princípio da legalidade criminal. Com efeito, a exigência de clareza e densidade suficiente das normas restritivas, como é o caso das normas penais, é um fator de garantia da confiança e da segurança jurídica, «uma vez que o cidadão só pode conformar autonomamente os próprios planos de vida se souber com o que pode contar, qual a margem de ação que lhe está garantida, o que pode legitimamente esperar das eventuais intervenções do Estado na sua esfera pessoal» (Jorge Reis Novais, As restrições aos Direitos Fundamentais, não expressamente autorizadas pela Constituição, Coimbra Editora, 2.ª ed. pág. 770).

Deve reconhecer-se, porém, que a exigência de lex certa, como corolário do princípio da legalidade criminal, não veda em absoluto a formulação dos pressupostos jurídico-constitutivos da incriminação através de elementos normativos, conceitos indeterminados, cláusulas gerais e fórmulas gerais de valor. Seria inviável, até pela natureza da própria linguagem jurídica, uma determinação absoluta do tipo legal de ilícito. Como refere Castanheira Neves, uma predeterminação integral que possibilitasse um conhecimento universalmente unívoco e uma aplicação lógico-necessária «é hoje impensável, porque é também ela contrariada pelas intenções normativas atuais do direito criminal e porque é em qualquer caso metodicamente irrealizável». Uma total determinação do facto punível é inviável ou impossível, uma vez que a indeterminação normativa operada por aqueles elementos e conceitos «é expressão irredutível já da dimensão pragmática da linguagem jurídica, já da intenção normativa das prescrições jurídicas, já da índole problemático-concreta do decisório juízo jurisdicional» ("O Princípio da Legalidade criminal. O seu problema jurídico e o seu critério dogmático", in, Digesta, Vol. I, Coimbra Editora, pág. 371 e 377).

Em princípio, a modelação do tipo legal de crime com recurso a conceitos indeterminados não afronta os princípios da legalidade e da tipicidade. Como reconhece o Tribunal Constitucional, após se interrogar sobre o grau admissível de indeterminação ou flexibilidade normativa em matéria de ilícitos penais, «uma relativa indeterminação dos tipos legais pode mostrar-se justificada, sem que isso signifique violação dos princípios da legalidade e da tipicidade» (Acórdão n.º 93/01).

Mas se é impossível uma total determinação dos elementos compósitos da ação punível, há de exigir-se um grau de determinação suficiente que não ponha em causa os fundamentos do princípio da legalidade. É que o princípio nullum crimen só pode cumprir a sua função de garantia se a regulamentação típica, ainda que indeterminada e aberta, for materialmente adequada e suficiente para dar a conhecer quais as ações ou omissões que o cidadão deve evitar. Como se escreve no Acórdão n.º 168/99, «averiguar da existência de uma violação do princípio da tipicidade, enquanto expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da conformidade da norma penal aplicada com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Se a norma incriminadora se revela incapaz de definir com suficiente clareza o que é ou não objeto de punição, torna-se constitucionalmente ilegítima».

7 - Nos demais domínios sancionatórios, como no direito de mera ordenação social e no direito disciplinar, a exigência de tipicidade não se faz sentir com a intensidade que tem no direito criminal. Com maior frequência os enunciados legislativos exprimem-se aí através de cláusulas gerais, conceitos indeterminados e enumerações exemplificativas. É a diferente natureza dos ilícitos que justifica nesses direitos um certo "amolecimento" do princípio da legalidade: enquanto o tipo legal de crime descreve uma conduta que expressa imediatamente um certo desvalor jurídico-criminal, um certo juízo de ilicitude, o tipo contraordenacional (ou o tipo disciplinar) descreve uma conduta que, independentemente da decisão legislativa de a proibir, não é substrato idóneo do juízo de desvalor próprio da ilicitude. Daí que nestes tipos de ilícito, o importante para a salvaguarda da lex certa não seja a conduta em si mesmo considerada, mas a regra legal que a proíbe ou que imponha o dever que seja objeto de violação ou ofensa. Por isso, a especificação dos factos sancionáveis e a individualização dos seus elementos típicos pode não ter o mesmo grau de determinação e precisão que aquele que é constitucionalmente exigido às normas penais. O direito penal, pela sua lógica da última ratio, naturalmente que é muito mais exigente e rigoroso na indicação dos factos ilícitos e das sanções do que o direito de mera ordenação social.

A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem vindo a sublinhar que a exigência de determinabilidade do tipo que predomina no direito criminal não tem que ter a mesma rigidez e a mesma densidade no domínio contraordenacional. Diz-se no Acórdão n.º 41/2004 que a «Constituição não requer para o ilícito de mera ordenação social o mesmo grau de exigência que requer para os crimes. Nem o artigo 29.º da Constituição se aplica imediatamente ao ilícito de mera ordenação social nem o artigo 165.º confere a este ilícito o mesmo grau de controlo parlamentar que atribui aos crimes»; e nos Acórdãos n.os 397/2012 e 466/12 conclui-se que «não se pode afirmar que as exigências de tipicidade valham no direito de mera ordenação social com o mesmo rigor que no direito criminal».

Todavia, a maior abertura dos tipos contraordenacionais causada pela utilização de cláusulas gerais e conceitos indeterminados não significa uma total ausência de determinação normativa. A norma ou conjunto das normas tipificadoras não podem deixar de descrever com suficiente clareza os elementos objetivos e subjetivos do núcleo essencial do ilícito, sob pena de violação dos princípios da legalidade e da tipicidade e sobretudo da sua teleologia garantística. Daí que só seja admissível uma "relativa indeterminação tipológica" que não saia da "órbitra daquilo que razoavelmente pode exigir-se em rigor descritivo ou limitativo, de modo a não esvaziar de conteúdo a garantia consubstanciada naqueles princípios" (Acórdão n.º 338/03). Exige-se pois um "mínimo de determinabilidade" das condutas ilícitas, de molde a que as decisões sancionatórias associadas sejam previsíveis e objetivas e não arbitrárias para os seus destinatários, que haja segurança na sua identificação e, consequentemente, quanto à sanção aplicável. A exigência de um mínimo de determinabilidade que permita identificar os comportamentos descritos em tipos contraordenacionais (e também em alguns tipos disciplinares) tem sido constante na jurisprudência constitucional, desde a Comissão Constitucional (parecer n.º 32/80, publicado in Pareceres da Comissão Constitucional, 14.º vol. pág. 51 e segs.) até à jurisprudência mais recente (Acórdãos n.os 282/86, 666/94, 169/99, 93/01, 358/05, 635/2011, 85/2012, 397/12 e 466/12)”

Na doutrina, no mesmo sentido, poderá consultar-se, por todos, PAULO VEIGA E MOURA e CÁTIA ARRIMAR , que abordam a questão da seguinte forma: «Em sede disciplinar, não obstante funcionar igualmente o princípio da legalidade, “não é possível afirmar que as exigências de tipicidade valham com o mesmo rigor que em sede criminal (v., neste sentido, o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 229/2012), pelo que vem-se entendendo que a infracção é atípica, resultando da ‘…violação ou ofensa de deveres reportados à função ou ao interesse do serviço’”. […]
A indeterminação legal da infracção decorre, por isso, da natureza da repressão disciplinar, a qual, para ser eficaz, necessita da flexibilidade indispensável para se adaptar às diversas possíveis formas de manifestação do comportamento desviante (v., neste sentido, Roger bonnard, Précis de Droit Administratif, 1935, pág. 395).
Contudo, esta “tipicidade atípica” só será constitucionalmente aceitável se a descrição dos deveres for efectuada com suficiente precisão e mediante preceitos normativos que permitam antecipadamente aferir, com elevado grau de certeza, quais os concretos comportamentos que constituem infracção disciplinar e quais as sanções aplicáveis (v., neste sentido, Juan Manuel Trayter, Manual Disciplinario de los Funcionarios Públicos, Marcial Pons, 1992, pág. 153).
A essência do comportamento antijurídico e proibido há-de resultar perceptível da norma disciplinar incriminadora, o que não invalida que a mesma se apresente como uma norma em branco […] ou que remeta para a Administração ou para a jurisprudência o preenchimento de algum dos seus elementos essenciais […].
Porém, em ambos os casos o núcleo fundamental da proibição ou da ilicitude há-de-resultar da descrição do dever ou da norma incriminadora, de tal forma que a integração dada pela norma para que se remete terá que assumir uma natureza meramente quantitativa e não qualitativa. Já nos parece que a atipicidade será constitucionalmente ilícita, representando uma violação do princípio da legalidade da Administração, quando a norma incriminadora não permita antecipar com alguma probabilidade de certeza a amplitude e os limites do dever funcional”.

Ora, na situação em que nos deparamos, não existe norma disciplinar que sancionasse o comportamento do Requerente – melhor descrito na factualidade supra- , ou mais rigorosamente dito, não são as normas vertidas no Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, mais concretamente nos seus artigos 37º, 38º e na alínea m), do n.º 2 do artigo 60.º do Regulamento das Competições Organizadas pela Liga Portugal (doravante, RCLPFP), que podem sancionar com as exigências que se têm por constitucionalmente impostas para as normas sancionatórias disciplinares.

Isto é, a conduta assumida pelo jogador em questão não vem descrita na norma sancionatória, a qual, no seu tatbaestand, não tipifica essa conduta como integradora do ilícito disciplinar de referência. Em suma, o comporta descrito na factualidade que deixámos assente, não integra o elemento objectivo do tipo na norma sancionatória.

E mesmo considerando que em sede disciplinar o princípio da tipicidade é atenuado (face ao direito penal), certo é que não obtemos resultado diferente por via de um exercício de interpretação extensiva.

Com efeito, partindo da letra da lei – o quadro normativo supra identificado – temos que a conduta que se consubstanciou num treino no campo de jogo de um jogador suspenso com colegas da equipa, antes de o jogo começar, sem a inscrição desse jogador na ficha do jogo e sem este permanecer na área técnica, não pode ser equiparado a este ter “jogado”. E se o legislador quisesse que a norma sancionatória abrangesse intervenção do jogador sancionado nos moldes ocorridos – treino – então tê-lo-ia dito expressamente, como o faz, designadamente, por referência à proibição de permanência na área técnica. Sendo que o treino não integra em termos regulamentares o conceito normativo de jogo.

E a esta luz, a interpretação seguida pelo acórdão punitivo –alínea h) da materialidade assente – mostra-se desconforme à Constituição, já que os comportamentos proibidos e sancionados carecem de ser objetivamente determináveis a partir da norma sancionadora, por forma a que a mesma se permita orientar suficientemente os destinatários quanto às condutas que são proibidas.

Donde, num juízo de prognose de summaria cognitio - que é o que aqui se impõe -, pode concluir-se pela verificação de uma titularidade séria do direito invocado pelo Requerente. Ou seja, a providência requerida passa o crivo do requisito do fumus boni juris.

Isto estabelecido, vejamos agora se vem demonstrado o periculum in mora.

Relembre-se que são requisitos essenciais destas providências cautelares:

a) A titularidade de um direito que releva do ordenamento jurídico desportivo ou relacionado com a prática do desporto; e

b) O receio fundado da lesão grave e de difícil reparação desse direito.

A propósito do periculum in mora, veja-se o que se concluiu no ac. de 11.02.2021 do T. R. de Lisboa, no proc. n.º534/16.5T8SXL-A.L1-2:

“(…) não é toda uma qualquer ou mera consequência que previsivelmente ocorra antes de uma decisão definitiva, que se configura com capacidade de justificar o recurso e decretamento de uma medida provisória com reflexos imediatos na esfera jurídica da requerida contraparte;

III - efectivamente, de acordo com a legal enunciação, só lesões graves e dificilmente reparáveis têm a virtualidade e viabilidade de permitir ao tribunal, mediante iniciativa do interessado, a tomada de uma decisão que o coloque a coberto e salvaguarda da previsível lesão;

IV – destra forma, a decisão cautelar do tribunal, de forma a evitar a lesão, está condicionada à projecção da lesão como grave, bem como ao facto, em cumulação, de ser dificilmente reparável do direito afirmado;

(…)

VII - revelando-se, inclusive, necessário o preenchimento concludente ou impressivo de tal requisito de periculum in mora, devendo a gravidade e a difícil reparação da lesão ou dano, configurar-se com um plus, acrescento ou excesso de risco, relativamente àquele que normalmente existe e é inerente à pendência de qualquer acção ;

(…).”

O periculum in mora, como afirmado no ac. 14.06.2018 do STA, proc. 435/18, “constitui verdadeiro leitmotiv da tutela cautelar, pois é o fundado receio de que a demora, na obtenção de decisão no processo principal, cause uma situação de facto consumado ou prejuízos de difícil ou impossível reparação aos interesses perseguidos nesse processo que justifica este tipo de tutela urgente”.

No caso, o que se detecta é que o periculum in mora alegado funda-se, como se disse já, no que deriva da aplicação de 1 jogo à porta fechada, concretamente nos efeitos dessa sanção a nível patrimonial e a nível desportivo. Neste ponto evidencia a Requerente que a execução imediata da sanção “causará danos irreparáveis e compromete seriamente o seu principal objetivo desportivo, o qual se traduz no acesso às competições profissionais, assim como financeiro, uma vez que os encontro decisivos são naturalmente mais concorridos e também nos quais os patrocinadores mais esperam ver as contrapartidas que acordadas serem cumpridas”.

O fundado receio ou periculum in mora, cuja verificação é necessária para a procedência do procedimento cautelar comum, tem de resultar da alegação de factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo. Como ensina Abrantes Geraldes: “só devem ter-se em conta para a aferição da existência do requisito do “periculum in mora” as lesões graves e dificilmente reparáveis, em que se exigem maiores cuidados, devendo o juiz “convencer-se da seriedade da situação invocada pelo requerente e da carência de uma forma de tutela que permita pô-lo a salvo de lesões graves e dificilmente reparáveis.// A gravidade da lesão previsível deve ser aferida tendo em conta a repercussão que determinará na esfera jurídica do interessado” (in Temas Da Reforma Do Processo Civil, vol. III, 1998, pp. 83 a 88).

E como a jurisprudência tem entendido, a “previsível gravidade da lesão deve ser aferida tendo em conta a repercussão que determinará na esfera do interessado, abrangendo tanto os prejuízos materiais, como os prejuízos imateriais ou morais, por natureza irreparáveis ou de difícil reparação” (cfr., i.a., o ac. do T.R.Coimbra, proc. n.º 306/15.4T8FND.C1). É que, como bem sintetiza Antunes Varela, as providências cautelares “visam precisamente impedir que, durante a pendência de qualquer acção declarativa ou executiva, a situação de facto se altere de modo que a sentença nela proferida, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou parte dela. Pretende-se deste modo combater o periculum in mora (o prejuízo da demora inevitável do processo), a fim de que a sentença não se torne numa decisão puramente platónica” (cfr. A. Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2.ª ed. revista e actualizada, 1985, p. 23).

E sabido é que os danos ou prejuízos imateriais ou morais são por natureza irreparáveis ou de difícil reparação (cfr. o ac. de 8.04.2021 do T.R. de Guimarães, proc. n.º 1053/21.3T8GMR.G1; idem, o ac. de 11.02.2021 do T.R. de Lisboa, proc. n.º534/16.5T8SXL-A.L1-2). Sendo que a privação ou limitação do exercício daqueles direitos constituem, por regra, em si mesmo, um dano de difícil reparação.

Também no que concerne à gravidade, “apenas merecem a tutela provisória consentida pelo procedimento cautelar comum as lesões graves e de difícil reparação, ficando arredadas do círculo de interesses acautelados pelo procedimento cautelar comum, ainda que se mostrem de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida” (idem, o ac. do T.R. de Lisboa citado).

De igual modo, afirmou o STJ, no acórdão de 7.12.2017, proc. n.º 697/16.0T8VVD.G1, que “[n]o essencial, pretendem-se prevenir os prejuízos que decorrem da natural demora do processo - o periculum in mora. // Decidiu o S.T.J., no Ac. de 18/03/2010, que a providência deve ser decretada, “sempre que se esteja ante uma lesão grave, atenta a importância patrimonial ou extrapatrimonial do direito ou do bem que aquele incide (objecto mediato) e que está em risco de ser sacrificado, e não seja razoável exigir que tal risco seja suportado pelo titular do direito ameaçado, na medida em que a reparação de tal dano seja avultada ou mesmo impossível (ut Procº. 1004/07.8TYLSB.L1.S1, Cons.º Álvaro Rodrigues in www.dgsi.pt).

Ora, de acordo com o probatório em conjugação com as regras da experiência, é incontornável que a aplicação da sanção comporta uma lesão grave e dificilmente reparável.

De acordo com o probatório em conjugação com as regras da experiência, o cenário de aplicação da sanção disciplinar de suspensão ao Requerente, é especialmente gravosa atendendo à idade - é muito jovem -, à posição em que actua – guarda-redees , ou seja uma posição de escassa rotatividade e muita concorrência, e à fase de afirmação na Equipa do E ……………. Os danos invocados constituem, em si, um prejuízo grave e de difícil reparação.

Para utilizar uma terminologia própria do contencioso administrativo, uma situação de facto consumado. Dito de outro modo, caso o Requerente venha a obter ganho de causa na acção principal, sempre os efeitos danosos se teriam produzido e consumado integralmente (o requisito do periculum in mora encontrar-se-á preenchido sempre que exista fundado receio de que quando venha a ser proferida uma decisão no processo principal a mesma já não venha a tempo de dar resposta adequada ou cabal à situação jurídica e pretensão objeto de litígio – v. ac. do STA de 17.12.2019, proc. n.º 620/18.7BEBJA). E em causa não está a sanção de multa aplicada ao Requerente, o que não constitui objecto da lide cautelar.

Deste modo, tudo ponderado, na situação concreta em análise e no que respeita à sanção de suspensão de funções, temos, igualmente, por verificado o requisito do periculum in mora.

Verificados estes requisitos, cumpre ainda ao tribunal verificar se o decretamento da providência é susceptível de causar à Requerida um prejuízo que excede consideravelmente o dano que se pretende evitar (art. art. 368.º, n.º 2, do CPC). Isto é, importa verificar da proporcionalidade do decretamento da providência, perante os valores contrapostos. O decretamento de uma qualquer providência cautelar implica necessariamente a formulação de um juízo de proporcionalidade acerca dos respectivos efeitos, “o que reclama na actuação do julgador, no momento da decisão, a conjugação e a interferência dos factores de ponderação, de bom senso e equilíbrio na busca da justa medida que permita estabelecer a melhor composição dos interesses conflituantes” (cfr., i.a., o ac. de 23.11.2004 do T.R.de Coimbra, proc. n.º 3064/04; idem o ac. de 4.07.2019 do STJ, proc. n.º 32/19.5YFLSB).

Ora, certo é que não vislumbramos que o decretamento da providência cause qualquer prejuízo relevante à Requerida, para além do (mero) retardamento da acção punitiva; o que é consequência “natural”, aliás, do provimento da medida cautelar (cfr. a nossa decisão de 7.02.2022, proc. n.º 34/22.4BCLSB).

Com efeito, não se concebe que a não execução imediata da sanção seja susceptível de afectar, e muito menos de modo grave, a esfera jurídica da Requerida e dos valores que a mesma defende no processo. Para além de que só uma considerável desproporção relativamente às consequências para o requerido será capaz de justificar a recusa da providência (cfr., sobre esta matéria, Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, 4.ª ed., 2010, pp. 245-251); o que sempre não seria o caso, dado que, a ser confirmada na acção principal a sanção aplicada, nada obstará à efectiva aplicação desta.

Pelo que, tudo visto, entende-se nada obstar ao decretamento da providência requerida, o que se determinará no local próprio (infra).



VI. Decisão

Nestes termos e pelo exposto decide-se:

- Julgar procedente a providência cautelar requerida e suspender a execução da sanção de suspensão de um jogo aplicada ao Requerente, D ……………….., no âmbito do processo disciplinar nº……./2022-23.

Custas da responsabilidade dos Requerentes, que do processo tiraram proveito (art. 539.º, n.º 1, do CPC), a atender, a final, na acção principal (art. 539.º, n.º 2, do CPC).

Notifique pelo meio mais expedito; também o TAD.

Lisboa, 20 de Janeiro de 2023

Pedro Marchão Marques

Juiz presidente