Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:125/13.2BEBJA
Secção:CT
Data do Acordão:06/09/2021
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:SEGURANÇA SOCIAL
ERRO NA FORMA DO PROCESSO
LEGALIDADE EM CONCRETO
CONTRIBUIÇÕES DECLARADAS PELO ADMINISTRADO
Sumário:
I. Estando em apreciação a legalidade em concreto da dívida exequenda (independentemente de ser meio próprio para a sua apreciação a impugnação judicial e/ou a oposição à execução fiscal), o seu pagamento não comporta a inutilidade superveniente da lide.

II. A legalidade em concreto de dívidas exequendas, relativas a contribuições e quotizações devidas à Segurança Social e radicadas em declarações de remunerações apresentadas e não em mapas de remunerações oficiosamente preenchidos pelo ISS, deve ser discutida em sede de oposição à execução fiscal, ao abrigo do art.º 204.º, n.º 1, al. h), do CPPT.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. RELATÓRIO

A….. e M….. (doravante Recorrentes ou Impugnantes) vieram apresentar recurso da sentença proferida a 20.03.2015, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Beja, na qual foi julgada procedente a exceção de erro na forma do processo, sem possibilidade de convolação, na impugnação por si apresentada, na qualidade de revertidos, sendo devedora originária a sociedade E….., Lda. (doravante E…..), impugnação essa que teve por objeto as dívidas à Segurança Social, relativas a contribuições e quotizações dos períodos compreendidos entre junho de 2008 e abril de 2010.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nesse seguimento, os Recorrentes apresentaram alegações, nas quais concluíram nos seguintes termos:

“A) Vista a matéria alegada pelos Impugnantes e o pedido formulado nos autos, constata-se que os mesmos vieram questionar as cotizações e contribuições da Segurança Social, referentes a um determinado período temporal, alegando existir desconformidade entre este valor e o valor efectivamente em dívida.

B) O que os Impugnantes questionam na acção não é a inexigibilidade da dívida por alegado pagamento da mesma, mas a legalidade dos actos de liquidação das cotizações e contribuições a que se referem as certidões de dívida em causa nos autos.

C) Os actos de liquidação de tributos, incluindo os parafiscais e, bem assim, os actos de retenção na fonte, pagamento por conta e de autoliquidação, são susceptíveis de ser sindicados, designadamente, mediante o processo de impugnação judicial, nos termos previstos no artigo 97.º, n.º 1, alínea a) do CPPT.

D) A factualidade alegada no caso dos autos não integra, manifestamente, qualquer um dos fundamentos contidos no artigo 204.º do CPPT, pelo que não podiam os Impugnantes fazer valer o direito que pretendem ver reconhecido na presente acção por via da oposição à execução.

E) In casu não se verifica erro na forma do processo, sendo a impugnação a forma processual apropriada ao reconhecimento do direito que os Recorrentes pretendem fazer valer por via da presente acção, face ao disposto no artº 22º, nº 4 da Lei Geral Tributária e no artº 102º, nº 1 al. c) do CPPT.

F) Sendo, todavia, douta, a decisão recorrida violou por erradas interpretação e aplicação as disposições legais anteriormente citadas, e as mais ao caso aplicáveis.

Termos em que, com o douto suprimento de V.Exªs., Venerandos Desembargadores, deve ser dado provimento ao recurso, e, em consequência, ser revogada a douta sentença que absolveu o IGFSS, IP da instância, com as legais consequências.

Assim se fará a costumada

JUSTIÇA !!!”.

O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP (doravante Recorrido ou IGFSS) apresentou contra-alegações, pugnando pelo não provimento do recurso.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do então art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

O IGFSS, por requerimento de fls. 216 dos autos em suporte de papel, veio informar os autos que o processo de execução fiscal (PEF) foi extinto por pagamento, pugnando pela inutilidade superveniente da lide. Notificados do requerido, os Recorrentes nada disseram.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT) vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:

Questão prévia:
a) Verifica-se inutilidade superveniente da lide?

Questão suscitada pelos Recorrentes:
b) Há erro de julgamento, em virtude de ter sido alegada a ilegalidade das liquidações?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“1) Na secção de processo executivo de Beja do IGFSS, IP corre termos o processo de execução fiscal nº ….., e outros a ele apensos, instaurados contra a sociedade comercial “E….., Lda” com o NIF …..;

2) Foram tais execuções instauradas com base em certidões de dívida extraídas contra a referida sociedade e respeitantes a cotizações e contribuições não pagas pela mesma relativas a meses diversos dos anos de 1999, 2005, 2006, 2007 e 2008;

3) Para a mencionada execução fiscal foram citados A….. e M….. enquanto responsáveis subsidiários pela quantia exequenda aí em cobrança, sendo exigido, respectivamente ao primeiro 6.621,13 euros e à segunda 22.767,39 euros;

4) A executada M….. foi citada para a execução em 10/01/2013;

5) O executado A….. foi citado para a execução em 11/01/2013;

6) Pelos executados foi elaborado documento denominado por Acta nº 27, datada de 30/06/2008, respeitante a Assembleia Geral Extraordinária da sociedade executada na qual se encontra descrito que foi aprovado por unanimidade entre os dois a suspensão da actividade da firma, que a gerência deixaria de ser remunerada e que o estabelecimento comercial seria encerrado;

7) O Técnico Oficial de Contas remeteu para o ISS, IP as folhas de remunerações relativas aos períodos em cobrança sem que procedessem ao pagamento do correspondente em cotizações e contribuições;

8) No ano fiscal de 2010 o executado A….. declarou rendimentos auferidos por conta da sociedade executada no montante de 1.900,00 euros;

9) No ano fiscal de 2010 a executada M….. declarou rendimentos auferidos por conta da sociedade executada no montante de 1.900,00 euros;

10) Nos anos de 2003 a 2008 a sociedade executada teve enquanto trabalhador L…..;

11) Datado de 14/06/2010 a sociedade dirigiu requerimento ao Centro Regional da SS de Beja com o seguinte teor: “Venho por este meio solicitar que sejam anuladas as Folhas de Remuneração desde Dezembro de 2008 a Abril de 2010 uma vez que as Declarações de IVA estão a ir a zero, o único movimento que teve deve-se ao pagamento da contabilidade, água, luz e correios. O estabelecimento comercial está completamente encerrado. A N/ contabilidade por lapso tem continuado a enviar as folhas de Remunerações parando apenas em Abril / 2010.”;

12) A sociedade executada era constituída por ambos os executados particulares, sendo que a gerência estava estatutariamente entregue aos mesmos;

13) A sócia e gerente M….. não tomava decisões que afectassem a actividade e o destino da sociedade executada;

14) Era o sócio gerente A….. que praticava todas as resoluções que influenciavam a sociedade;

15) O executado detinha uma outra actividade, relacionada com agricultura;

16) A sociedade executada entrou em dificuldades de sobrevivência motivadas por factores diversos, designadamente pela estagnação da economia;

17) A petição inicial que deu origem aos presentes autos deu entrada directa neste TAF em 10/04/2013”.

II.B. Relativamente aos factos não provados, refere-se na sentença recorrida:

“Por sua vez não resultou assente que:

1) Os impugnantes procederam ao pagamento das cotizações constantes das certidões de dívida identificadas com os nºs ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….. e …..”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“Resultou a convicção do Tribunal da análise dos documentos constantes dos autos, que não foram impugnados, e bem assim dos depoimentos produzidos pelas testemunhas que se mostraram credíveis.

No que tange à matéria não demonstrada a dúvida assenta na circunstância de somente ter sido apresentada documentação abstracta, reconduzida a talões de terminais multibanco com valores que, por si, só não se enquadram nos valores em cobrança nas execuções fiscais, e referentes a pagamentos decorrentes de conta bancária cuja titularidade não é apurada.

Resultando inultrapassada tal dúvida deverá extrair-se a consequência de não julgar demonstrada a matéria em questão”.

II.D. Atento o disposto no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, acorda-se alterar a redação de parte da factualidade mencionada em II.A., em virtude de resultarem dos autos elementos documentais que exigem tal alteração[1].

Nesse seguimento, passa a ser a seguinte a redação do facto 2) referido em II.A.:

2) Foram tais execuções instauradas com base em certidões de dívida extraídas contra a referida sociedade e respeitantes a quotizações e contribuições não pagas pela mesma relativas a meses diversos dos anos de 1999 e 2005 a 2010 (cfr. fls. 36 a 43 dos autos em suporte de papel, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Da inutilidade superveniente da lide

A Recorrida pugnou pela inutilidade superveniente da lide, face ao pagamento da dívida exequenda.

Vejamos.

Prevista no art.º 277.º, al. e), do CPC [ex vi art.º 2.º, al. e), do CPPT], a inutilidade ou a impossibilidade superveniente da lide é um dos fundamentos de extinção da instância e sucede quando “… a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida”[2].

No caso do contencioso impugnatório em processo tributário, ocorrerá uma situação de impossibilidade superveniente da lide no caso de, na pendência da impugnação, por exemplo, o ato ser revogado ou anulado. Desaparecendo da ordem jurídica a liquidação, deixa existir o objeto processual, tendo a pretensão do impugnante encontrado satisfação, na medida em que desapareceu da ordem jurídica o ato impugnado.

Pode ainda suceder, no âmbito do contencioso associado à execução fiscal, haver inutilidade superveniente da lide, por força do pagamento da dívida exequenda, na medida em que este comporta a extinção da execução [cfr. art.º 176.º, n.º 1, al. a), do CPPT].

No entanto, nem todas as situações de pagamento da dívida exequenda comportam tal desfecho, como, aliás, resulta do disposto do n.º 3 do mesmo art.º 176.º, nos termos do qual “[o] disposto na alínea a) do n.º 1 não prejudica o controlo jurisdicional da atividade do órgão de execução fiscal, nos termos legais, caso se mantenha a utilidade da apreciação da lide”.

Neste conspecto, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores tem entendido não se verificar uma situação de inutilidade superveniente da lide, designadamente quando estejam em causa situações subsumíveis nas alíneas a), b) e h) do n.º 1 do art.º 204.º do CPPT [cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 16.06.2019 (Processo: 02457/14.3BELRS 0698/18) e ampla jurisprudência no mesmo citada].

Logo, quando está em causa a apreciação da legalidade da liquidação que consubstancia a dívida exequenda (sendo irrelevante, para este efeito, se a mesma é apreciada em impugnação judicial ou em oposição à execução fiscal), o pagamento daquela dívida não comporta a inutilidade superveniente da lide, porquanto a eventual procedência da pretensão impugnatória implica sempre a reconstituição da situação legal, que, caso tenha havido pagamento, passa pela devolução dos valores indevidamente pagos.

Ou seja, a apreciação da legalidade de uma liquidação em nada colide com a circunstância de a dívida ter sido paga.

Assim sendo, não se verifica a inutilidade superveniente da lide.

III.B. Do erro de julgamento

Consideram os Recorrentes que o Tribunal a quo laborou em erro, na medida em foi alegada a ilegalidade em concreto dos atos tributários, motivo pelo qual é meio processual próprio a impugnação judicial.

Vejamos então.

In casu, o Tribunal a quo julgou procedente a exceção dilatória da inidoneidade do meio processual, sem possibilidade de convolação, entendendo que o meio processual adequado era a oposição à execução fiscal.

Cumpre, assim, antes de mais, atentar no teor da petição inicial apresentada.

Assim, da mesma decorre o seguinte:
a) Os impugnantes identificam como atos impugnados “actos de liquidação praticados pelo Instituto da Segurança Social referentes às cotizações e contribuições devidas pela E….. à Segurança Social, e respectivos juros”, fazendo menção às certidões de dívida relativas a valores ulteriores a junho de 2008, no montante total de 7.813,45 Eur.;
b) Indicam como fundamentos:

b.1. A Impugnante M….. nunca foi gerente de facto da devedora originária;

b.2. A devedora originária debateu-se com grandes dificuldades, que culminaram com deliberação de 2008 de suspensão da sua atividade, encerramento de estabelecimento e fim de remuneração dos ora Recorrentes;

b.3. A contabilidade da E….. não foi oportunamente informada do ocorrido e continuou a elaborar as folhas de remunerações mensais;

b.4. Em novembro de 2009, a Impugnante pediu a anulação das folhas de remuneração desde julho 2008 a outubro de 2009;

b.5. A empresa de contabilidade continuou a enviar mensalmente as folhas de remuneração à Segurança Social;

b.6. Em 2010, a …..enviou à Segurança Social uma segunda comunicação a solicitar a anulação das folhas de remunerações desde junho de 2008, solicitação que não foi atendida;

b.7. Não se reúnem os pressupostos de facto da liquidação em causa;

b.8. Procedeu-se ao pagamento de parte das quotizações, cujo reembolso deve ser ordenado.

Os Recorrentes não se insurgem quanto à circunstância de o Tribunal a quo ter considerado que a ilegitimidade da Recorrente mulher e a inexigibilidade da dívida não são fundamentos de impugnação judicial. Insurgem-se, sim, porquanto entendem que, tendo posto em causa a legalidade em concreto das liquidações, a impugnação judicial é meio próprio para a sua apreciação.

Como decorre da petição inicial, com efeito, os ora Recorrentes aí invocam fundamentos que respeitam aos pressupostos de facto da liquidação, não tendo o Tribunal a quo, na sua apreciação, considerado tal causa de pedir.

No entanto, até atentando na mesma, a nossa solução não vai divergir da adotada em primeira instância.

Explicitemos então.

A impugnação judicial é, por via de regra, o meio adequado para reagir contra um ato tributário de liquidação, com fundamento em qualquer ilegalidade, tendo por objetivo a anulação total ou parcial dos atos tributários ou a declaração da sua nulidade ou inexistência.

Já a oposição é o meio processual adequado para reagir contra uma execução fiscal, nos termos e com os fundamentos enunciados no art.º 204.º do CPPT.

Atento o teor desta disposição legal:

“1 - A oposição só poderá ter algum dos seguintes fundamentos:

a) Inexistência do imposto, taxa ou contribuição nas leis em vigor à data dos factos a que respeita a obrigação ou, se for o caso, não estar autorizada a sua cobrança à data em que tiver ocorrido a respetiva liquidação;

b) Ilegitimidade da pessoa citada por esta não ser o próprio devedor que figura no título ou seu sucessor ou, sendo o que nele figura, não ter sido, durante o período a que respeita a dívida exequenda, o possuidor dos bens que a originaram, ou por não figurar no título e não ser responsável pelo pagamento da dívida;

c) Falsidade do título executivo, quando possa influir nos termos da execução;

d) Prescrição da dívida exequenda;

e) Falta da notificação da liquidação do tributo no prazo de caducidade;

f) Pagamento ou anulação da dívida exequenda;

g) Duplicação de coleta;

h) Ilegalidade da liquidação da dívida exequenda, sempre que a lei não assegure meio judicial de impugnação ou recurso contra o ato de liquidação;

i) Quaisquer fundamentos não referidos nas alíneas anteriores, a provar apenas por documento, desde que não envolvam apreciação da legalidade da liquidação da dívida exequenda, nem representem interferência em matéria de exclusiva competência da entidade que houver extraído o título…”.

Em regra, a legalidade da liquidação que consubstancia a dívida exequenda não é passível de apreciação em sede de oposição à execução fiscal. Assim, quando estamos perante tributos, normalmente a forma de reação contra ilegalidades das liquidações é através da competente impugnação judicial.

Representam exceção as situações de ilegalidade abstrata, previstas na alínea a) do n.º 1 do art.º 204.º do CPPT, e as situações em que a lei não confira meio judicial de impugnação ou recurso, previstas no art.º 204.º, n.º 1, al. h)[3], do mesmo código.

Centrando-nos no art.º 204.º, n.º 1, al. a), do CPPT, como referido, o mesmo abarca as situações de ilegalidade em abstrato ou absoluta da liquidação, onde, no fundo, o que está em causa não é a mera legalidade de uma liquidação em concreto, mas sim a própria legalidade do tributo, ou seja, a ilegalidade decorre da própria lei cuja aplicação foi feita ou da inexistência sequer de norma[4]. “Cabem neste conceito de ilegalidade abstracta todos os casos de actos que aplicam normas que violam regras de hierarquia superior, designadamente, além das normas constitucionais, as de direito comunitário ou internacional vigente em Portugal ou mesmo normas legislativas de direito ordinário quando é feita aplicação de normas regulamentares. // Inserem-se ainda neste conceito de ilegalidade abstracta os casos em que a norma que foi aplicada no acto de liquidação não podia sê-lo por qualquer outra razão, como é o caso de existir lei especial que estabeleça a ineficácia de quaisquer normas” [5].

Como referido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 20.03.2019 (Processo: 0558/15.0BEMDL 0176/18):

“… [A] ilegalidade abstrata ou absoluta da liquidação (…) distingue[-se] da «ilegalidade em concreto» por na primeira estar em causa a ilegalidade do tributo e não a mera ilegalidade do ato tributário ou da liquidação; isto é, na ilegalidade abstrata a ilegalidade não reside diretamente no ato que faz aplicação da lei ao caso concreto, mas na própria lei cuja aplicação é feita, não sendo, por isso, a existência de vício dependente da situação real a que a lei foi aplicada nem do circunstancialismo em que o ato foi praticado”.

Nestes casos, a legalidade da liquidação pode, pois, ser apreciada quer em sede de oposição à execução fiscal, quer em sede de impugnação judicial (isto se a lei previr esta última forma de reação, o que nem sempre ocorre, como veremos de seguida).

No que respeita à alínea h), a mesma visa tutelar a parte naqueles casos em que inexiste, em abstrato, qualquer meio na lei de impugnação do ato que está na origem da dívida exequenda. Nestes casos, é, então, a oposição à execução fiscal (e não a impugnação judicial) o meio próprio para a apreciação da legalidade em concreto da liquidação.

Cumpre, por outro lado, explanar o procedimento inerente às dívidas à Segurança Social.

Nesta matéria, há que distinguir duas situações:
a) Aquelas em que a dívida resulta do apurado pelos sujeitos passivos nas declarações de remunerações;
b) Aquelas em que as dívidas resultam da atividade inspetiva da Segurança Social (onde, designadamente, haja declarações de remunerações oficiosas) e, como tal, de liquidações emitidas por esta.

Neste segundo caso, o meio processual adequado de reação é a impugnação judicial, dado estarmos perante um verdadeiro ato administrativo de liquidação [cfr., v.g., o Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de 26.02.2014 (Processo: 01481/13)].

Já na primeira situação, não existe propriamente um ato de liquidação.

Esclareçamos.

Uma vez que, in casu, estamos perante contribuições e quotizações relativas a meses dos anos compreendidos entre 2008 e 2010, ainda não era aplicável o regime do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de setembro, que entrou em vigor a 01.01.2011 (cfr. art.º 6.º da mencionada lei).

Assim, cumpre atentar no regime que o antecedeu.

Nos termos do art.º 3.º do DL n.º 327/93, de 25 de setembro (diploma que, à época, estabelecia o enquadramento dos membros dos órgãos estatutários das pessoas coletivas no regime geral de segurança social dos trabalhadores por conta de outrem), os membros de órgãos estatutários de, entre outras, sociedades por quotas, onde se incluíam os gerentes [cfr. art.º 5.º, al. a)], eram abrangidos pelo regime geral de segurança social dos trabalhadores por conta de outrem.

Por seu turno, o DL n.º 199/99, de 8 de junho (que reviu as taxas contributivas do regime geral de segurança social dos trabalhadores por conta de outrem), previa que o pagamento das contribuições deveria ser feito até ao 15.º dia do mês seguinte àquele a que o tributo respeitava (cfr. art.º 10.º, n.º 2).

Atento o Decreto Regulamentar n.º 26/99, de 27 de outubro, que regulamentou o mencionado DL n.º 199/99, de 8 de junho, é obrigatória a entrega de declarações de remunerações (definidas como “declaração dos montantes a considerar como bases de incidência apresentadas pela entidade empregadora para efeito da determinação das contribuições devidas em função dos trabalhadores ao seu serviço”).

Por outro lado, o DL n.º 42/2001, de 9 de fevereiro (Regime Especial de Execução de Dívidas ao Sistema de Solidariedade e Segurança Social), previa, desde logo, no seu art.º 2.º (redação à época), que são “dívidas à segurança social todas as dívidas contraídas perante as instituições do sistema de solidariedade e segurança social pelas pessoas singulares e coletivas e outras entidades a estas legalmente equiparadas, designadamente as relativas a contribuições sociais, taxas, incluindo os adicionais, juros, reembolsos, reposições e restituições de prestações, subsídios e financiamentos de qualquer natureza, coimas e outras sanções pecuniárias relativas a contraordenações, custas e outros encargos legais”.

Considerando o regime então vigente, o que sucede em situações como a dos autos, nas quais as declarações de remunerações apresentadas não são acompanhadas do pagamento das contribuições respetivas, é que o Instituto da Segurança Social, IP, emite a respetiva certidão de dívida, remetendo-a para o IGFSS [cfr. art.º 3.º, n.º 2, al. d), do DL n.º 214/2007, de 29 de maio, e art.ºs 22.º e 23.º do DL n.º 215/2007, de 29 de maio].

Portanto, nestes casos, não existe aqui qualquer ato de liquidação propriamente dito prévio à emissão da certidão de dívida.

Coloca-se, pois, a questão de se saber qual o meio de reação do administrado nestas situações.

A este respeito, diz-nos Jorge Lopes de Sousa[6]:

“Casos em que a lei não assegura meios de impugnação dos actos de liquidação são aqueles em que se permite a extracção de certidões de dívida perante a mera constatação de omissão de um pagamento, sem que haja um acto administrativo ou tributário prévio, definidor da obrigação.

É o que se passa com as contribuições para a segurança social, salvo nos casos excepcionais (…).

Deverá entender-se, porém, (…) que, em casos deste tipo, o acto de liquidação consistirá no acto de extracção da certidão confirmativa da existência da dívida, já que há aqui um acto jurídico de aplicação de uma norma tributária material, praticado por uma autoridade administrativa, com força executiva.

Será esse acto de extracção, assim, o «acto de liquidação» a que se refere esta alínea h), que terá de existir sempre para se estar no campo de aplicação desta norma. No entanto, não se trata de formalmente de um acto de liquidação, isto é, não se trata de um acto de administrativo formal de fixação de uma prestação tributária, pelo que não está, designadamente, dependente de qualquer procedimento tributário próprio para liquidação de tributos, nem é imposta por lei a notificação de qualquer acto antes da citação em processo de execução fiscal. (…)

Nestes casos, não pode ser utilizado o processo de impugnação judicial ou a reclamação graciosa, pois os prazos para o seu exercício começam a correr na sequência de um prazo de pagamento voluntário, subsequente ao acto de liquidação (art. 102.º do CPPT), não podendo correr um prazo de impugnação judicial ou reclamação graciosa antes do acto de liquidação a impugnar, que é o objecto da impugnação, ser praticado.

Mesmo que se entenda que o acto de liquidação tem natureza declarativa e não constitutiva, que a obrigação tributária já existe antes do acto e que a lei, no caso das contribuições referidas, atribui ao contribuinte o dever de calcular o imposto devido, a situação não se altera para este efeito, pois o que está em causa na impugnação é saber se a declaração dessa obrigação preexistente foi ou não correctamente efectuada e esta correcção ou incorrecção só pode ser apreciada, obviamente, depois de ser feita tal declaração.

Assim, a certidão para fins executivos que contém o acto de liquidação apenas é extraída caso o contribuinte não efectue o pagamento das contribuições no prazo legal, e, por isso, o acto a impugnar será sempre, forçosamente, posterior ao termo do prazo de pagamento voluntário da dívida, não prevendo a lei qualquer meio para a sua impugnação contenciosa”.

Neste sentido também se tem vindo a pronunciar o Supremo Tribunal Administrativo.

Chama-se a este propósito à colação o seu Acórdão, de 18.11.2020 (Processo: 012/16.2BEAVR), e ampla jurisprudência no mesmo mencionada, onde se refere:

“[A]s únicas situações que se acolhem à fatti species da referida alínea [al. h) do n.º 1 do art.º 204.º do CPPT] são aquelas em que a dívida exequenda não tenha origem em acto tributário ou acto administrativo prévio (Situações muito raras, de que o único exemplo recente que conhecemos é aquele em que é instaurada execução com certidão de dívida à Segurança Social com fundamento na constatação da falta de entrega de determinadas quantias por falta de entrega dos meios de pagamento, no prazo legal subsequente ao envio das folhas relativas às remunerações de pessoal, situação em que a lei permite a extracção de certidão de dívida perante a constatação da omissão de um pagamento sem que haja um acto administrativo ou tributário prévio, definidor da obrigação. Nessa situação, porque a lei não assegura meio de impugnação da dívida exequenda, que não tem origem em acto tributário ou acto administrativo prévio, admite-se a discussão da legalidade em sede de oposição à execução fiscal, sob pena de violação do princípio, constitucionalmente consagrado, do acesso ao direito”.

Assim, face a este contexto, em situações em que as certidões de dívida radicam na falta de pagamento de contribuições e quotizações na sequência da apresentação de declarações de remunerações, não estamos perante uma liquidação oficiosa emitida pela administração, mas, sim, perante a situação que ora se descreveu, pelo que a legalidade em concreto só pode ser suscitada em sede de oposição à execução fiscal.

Ora, in casu, os Recorrentes, na qualidade de revertidos, têm direito a usar de todos os meios contenciosos que estariam ao alcance da devedora originária, pelo que lhes assistiria pôr em causa a legalidade em concreto da dívida exequenda (cfr. art.º 22.º, n.º 5, da Lei Geral Tributária).

No entanto, nos termos já referidos, esta alegação deveria ter sido feita na competente oposição à execução fiscal.

Com efeito, não obstante os Recorrentes, na sua petição inicial, qualificarem as liquidações como liquidações oficiosas efetuadas pela Segurança Social, o que eles próprios alegam foi que foram apresentadas pelos seus serviços de contabilidade (na sua perspetiva, indevidamente) folhas de remunerações relativamente aos períodos em causa [cfr. facto 7)], pelo que não estamos perante certidões de dívida radicadas em liquidações oficiosas, mas sim radicadas nas mencionadas folhas de remunerações.

Ora, atenta a data em que os Recorrentes foram citados [cfr. factos 4) e 5)] e a data em que foi apresentada a petição que deu origem aos presentes autos [cfr. facto 17)], petição essa cujos fundamentos eram todos próprios de oposição à execução fiscal, verifica-se que o prazo de 30 dias previsto no art.º 203.º, n.º 1, do CPPT, foi ultrapassado.

Como tal, estamos perante situação de erro na forma do processo, não sendo possível a convolação, por força da circunstância de não estar preenchido o pressuposto da tempestividade do meio idóneo [art.º 193.º, do CPC, ex vi art.º 2.º, al. e), do CPPT, e art.ºs 97.º, n.º 3, da LGT, e 98.º, n.º 4, do CPPT, a contrario].

Assim sendo, mantém-se a decisão recorrida, com a presente fundamentação.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:
a) Negar provimento ao recurso;
b) Custas pelos Recorrentes;
c) Registe e notifique.


Lisboa, 09 de junho de 2021


[A relatora consigna e atesta que, nos termos do disposto no art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 01 de maio, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Senhores Desembargadores António Patkoczy e Mário Rebelo]

Tânia Meireles da Cunha

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[1] Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 286.
[2] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2014, p. 546.
[3] Cfr., v.g., Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 17.12.2014 (Processo: 01001/13).
[4] Cfr. Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário – Anotado e Comentado, Vol. III, 6.ª Ed., Áreas Editora, Lisboa, 2011, p. 443.
[5] Cfr. Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário – Anotado e Comentado, Vol. III, cit., p. 446.
[6] Cfr. Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário – Anotado e Comentado, Vol. III, cit., pp. 496 e 497.