Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:459/19.2BECTB-A
Secção:CA
Data do Acordão:08/24/2020
Relator:LINA COSTA
Descritores:ERRO MATERIAL;
RECTIFICAÇÃO A TODO O TEMPO;
ERRO DE JULGAMENTO;
REVISTA
Sumário:1. A rectificação de erros materiais só pode ter lugar a todo o tempo se nenhuma das partes recorrer;
2. Tendo sido interposto recurso da sentença da 1ª instância, não é admissível o pedido de rectificação de erro material, contido naquela decisão, formulado no requerimento de recurso de revista;
3. O invocado erro na denominação da operação objecto do contrato de financiamento, celebrado entre a Recorrente e o Recorrido, e continuado no acórdão recorrido, não se afigura manifesto, apreensível através do respectivo contexto, por qualquer pessoa e não apenas o juiz relator, perceber que este escreveu coisa diferente daquela que queria escrever;
4. No erro de julgamento o juiz escreveu o que queria escrever, mas errou no entendimento que expressou ou na decisão que proferiu;
5. O erro de julgamento não é susceptível de rectificação, mas de recurso ou revista.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:R….., Lda. veio interpor recurso de revista excepcional para o Supremo Tribunal Administrativo, do acórdão deste Tribunal, de 30.4.2020, que concedeu provimento ao recurso interposto pelo IFAP – Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, IP, revogou a sentença, de 19.12.2019, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco que, em sede cautelar, antecipando o juízo da causa principal, anulou a decisão do Presidente do Conselho Directivo, notificada através do ofício IFAP-….., de 7.8.2019, que determinou a modificação unilateral do contrato de financiamento referente ao pedido de apoio na operação nº ….. e que ordenou a devolução do valor de €30 964,78, recebido pela Recorrida a título de subsídio ao investimento, e julgou a acção improcedente.
No requerimento de recurso mais requereu “a rectificação de erro material, ainda que venha já da 1.ª instância, o que, então, não se relevou por se ter obtido ganho de causa, porque susceptível de reparação a todo o tempo, nos termos do Art.º 614.º/1 e 2 do CPC: em várias passagens do acórdão recorrido - páginas 4, 14 e 22 - menciona-se que o projecto da recorrente envolveria um “Restaurante Tradicional na Quinta …..”, o que não é verdade, a recorrente nunca propôs tal Restaurante, que não poderia constar do projecto, nem consta. O projecto da recorrente foi para criação de um “Turismo de Habitação na Casa …..”. Um restaurante com alojamento numa quinta é diferente de um Turismo de Habitação numa Vila, o que pode relevar na apreciação do caso”.

O Recorrido apresentou contra-alegações, nada dizendo sobre o pretendido pedido de rectificação.

Nos termos do artigo 613º do CPC, ex vi nº 3 do artigo 140º do CPTA, proferida a decisão fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional quanto ao mérito da causa (nº 1), sendo lícito ao juiz rectificar erros materiais, suprir nulidades ou reformar a sentença (nº 2).
O artigo 614º do mesmo Código, com a epígrafe “Retificação de erros materiais”, dispõe que:
1 - Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.
2 - Em caso de recurso, a retificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à retificação.
3 - Se nenhuma das partes recorrer, a retificação pode ter lugar a todo o tempo.
Por força do disposto no artigo 666º, idem, as normas que antecedem são aplicáveis à 2ª instância (nº 1) e a rectificação ou reforma do acórdão é decidida em conferência (nº 2).

Atendendo ao alegado pela Recorrente está em causa a rectificação de um erro material – onde é mencionado “Restaurante Tradicional na Quinta …..” deve constar “Turismo de Habitação na Casa de …..” por ter sido esse o projecto que propôs ao Recorrido - que vem já da sentença da 1ª instância, manteve-se no acórdão recorrido, e que é susceptível de reparação a todo o tempo.
Ora, como resulta do nº 3 do referido artigo 614º a rectificação só pode ter lugar a todo tempo se nenhuma das partes recorrer.
Significando que, como sucedeu na situação em apreciação, tendo sido interposto recurso da sentença onde consta o mencionado erro material, a agora Recorrente tinha de invocar este erro material [assim como fez relativamente ao que imputou ao facto 14º da mesma sentença] nas respectivas contra-alegações (ou requerimento pelo qual as juntou aos autos) sob pena de não mais poder requerer a sua rectificação ou de a mesma não poder ser deferida.

No que concerne ao erro material constante do acórdão recorrido é de referir que resulta do disposto no nº 1 do mesmo artigo 614º que para a rectificação ocorrer o erro material tem de ser manifesto, tem de respeitar à expressão da vontade do julgador - quando se possa concluir que escreveu coisa diversa do que queria escrever ou quando se verifique uma divergência formal entre o que se pretendeu dizer/escrever e o que se disse/escreveu, o que se torna logo evidente no próprio texto da decisão (v. os acórdãos do STA, de 5.11.2014, no proc. 0359/12 e de 3.12.2015, no proc. 0413/14, in www.dgsi.pt).
«Conforme ensinou o Prof. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 130: «O princípio da intangibilidade da decisão judicial, formulado no art. 666.º, pressupõe que a sentença ou despacho reproduz fielmente a vontade do juiz; se houve erro material na expressão dessa vontade, se, por qualquer circunstância, a vontade declarada na sentença ou despacho não corresponde à vontade real do juiz, a regra da intangibilidade não funciona.
Não faz sentido que subsista vontade diversa da que o juiz teve em mente incorporar na sentença ou despacho.
Deve, pois, ser lícito ao juiz ajustar, mediante rectificação, a vontade declarada à vontade real.»
No mesmo sentido o Conselheiro Fernando Amâncio Ferreira, in Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 8ª ed., pág. 47, expende o seguinte:
«Os erros de escrita ou de cálculo, devidos a lapsus calami ou a outra causa, identificam-se com os referidos no art. 249.º do CC a respeito do negócio jurídico. Tanto estes erros como as inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto pressupõem que a vontade declarada na sentença não corresponde à vontade real do juiz. Daí não valer aqui o princípio da intangibilidade da decisão judicial que tem como fundamento a vontade do juiz.
Sempre que a vontade declarada seja desconforme à vontade real, pode o juiz proceder ao seu ajustamento, mediante rectificação».
E, a pág. 48 da mesma obra citando o Prof. Alberto dos Reis:
«O erro material dá-se quando o juiz escreveu coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da sentença ou despacho não coincide com o que o juiz tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real. O juiz queria escrever ‘absolvo’ e por lapso, inconsideração, distracção, escreveu precisamente o contrário: condeno.
O erro de julgamento é espécie completamente diferente. O juiz disse o que queria dizer; mas decidiu mal, decidiu contra lei expressa ou contra os factos apurados. Está errado o julgamento. Ainda que o juiz, logo a seguir, se convença de que errou, não pode socorrer-se do art. 667º para emendar o erro.» (extraído da fundamentação do referido acórdão de 3.12.2015).

No acórdão de 30.4.2020, foram reproduzidos os factos que a sentença recorrida considerou provados, tendo, a fls. 4, o primeiro desses factos o seguinte teor: “1. A Autora submeteu à Autoridade de Gestão (AG) do Programa de Desenvolvimento Rural do Continente (PRODER) um pedido de apoio no âmbito do Programa PRODER Programa de Desenvolvimento Rural do Continente, no Eixo “Qualidade de vida nas zonas rurais e diversificação da economia rural”, subprograma “Dinamização das Zonas Rurais”, Medida “Diversificação da economia e criação de emprego”, Ação “Desenvolvimento de atividades turísticas e de lazer”, com a designação de Criação de restaurante tradicional na Quinta ….., a que coube a operação n.º ….. – cfr. doc. 2 junto com a petição inicial e facto admitido por acordo.” [sublinhado nosso].
A fls. 14 consta «Recorrente e Recorrida celebraram, em 14.1.2013, um contrato de financiamento referente ao pedido de apoio, peticionado por esta, para Criação de um restaurante tradicional na Quinta ….., no âmbito da acção Desenvolvimento de Actividades Turísticas e de Lazer do PRODER (Programa de Desenvolvimento Rural do Continente, no Eixo “Qualidade de vida nas zonas rurais e diversificação da economia rural”, subprograma “Dinamização das Zonas Rurais”, Medida “Diversificação da economia e criação de emprego”)» [sublinhado nosso].
E a fls. 22 «O pagamento do incentivo financeiro contratado foi efectuado (em 31.12.2014) porque o aqui Recorrente considerou (tal como, certamente, a Recorrida na sua criação) os dois postos de trabalho para prestação de serviço de limpeza adequados e necessários à operação em execução – a criação de um restaurante tradicional na Quinta ….., espaço de turismo de habitação onde a Recorrida se dedica à actividade de hospedagem.» [sublinhado nosso].
Donde, resulta evidente que não se trata de um mero lapso ou erro material manifesto, apreensível através do contexto do acórdão, por se encontrar de forma a que qualquer pessoa e não apenas o juiz relator, perceba que este escreveu coisa diferente daquela que queria escrever e que não possa ser entendido como um erro de julgamento.
No erro de julgamento o juiz escreveu o que queria escrever, mas errou no entendimento que expressou ou na decisão que proferiu.
A tratar-se de erro de julgamento deveria ter sido alegado/concluído pela Recorrente no recurso interposto e não, a título prévio, no respectivo requerimento.

Face ao que não admitimos a peticionada rectificação.

Do recurso de revista excepcional:

De acordo com o disposto nos nºs 1 e 6 do artigo 150º do CPTA, com a epígrafe “recurso de revista”, a recorribilidade do acórdão de 30.4.2020 depende de estar em causa a apreciação de questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou necessidade de melhor aplicação do direito, competindo ao STA aferir se estão preenchidos os referidos pressupostos.
A intervenção deste Tribunal restringe-se à pronúncia sobre a legitimidade do recorrente e a tempestividade do recurso, bem como à fixação do respectivo regime de subida e efeito.
Assim a Recorrente tem legitimidade e está em tempo (cfr. nº 1 do artigo 141º, a parte final do nº 1 do artigo 144º e o nº 1 do artigo 147º, todos do CPTA).
O recurso é processado como o de revista em matéria cível, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cfr. nºs 1 a 3 do artigo 140º, nº 1 do artigo 147º e alínea b) do nº 2 do artigo 143º, todos do CPTA.

Foram apresentadas contra-alegações de recurso.

Subam os autos ao Colendo STA.

Notifique.

Lisboa, 24 de Agosto de 2020.

(Lina Costa – relatora)

(Pedro Marchão Marques)

(Patrícia Manuel Pires)