Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1871/18.0BELSB-S1
Secção:CA
Data do Acordão:09/12/2019
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:INTIMAÇÃO PARA PROTECÇÃO DE DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS; AMPLIAÇÃO DO PEDIDO;
REQUISITOS.
Sumário:
i) Dispõe o art. 63.º, n.º 1, do CPTA que “até ao encerramento da discussão em primeira instância, o objeto do processo pode ser ampliado à impugnação de atos que venham a surgir no âmbito ou na sequência do procedimento em que o ato impugnado se insere, assim como à formulação de novas pretensões que com aquela possam ser cumuladas”.
ii) Nos termos do disposto no art. 4.º, n.º 1, do CPTA, é permitida a cumulação de pedidos sempre que: “a causa de pedir seja a mesma e única ou os pedidos estejam entre si numa relação de prejudicialidade ou de dependência, nomeadamente por se inscreverem no âmbito da mesma relação jurídica material” (al. a)); e “sendo diferente a causa de pedir, a procedência dos pedidos principais dependa essencialmente da apreciação dos mesmos factos ou da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito” (al. b).
III) Não é possível ampliar-se o objecto do processo, inicialmente com pedido de intimação de emissão do cartão de cidadão formulado pelo requerente, ao pedido de declaração de nulidade do acto de emissão de cartão de cidadão relativo a pessoa distinta e respectivo cancelamento do registo, quando tal, a si não respeitando, dependerá da instauração de acção própria, existindo igualmente previsão no art. 94.º do Código do Registo Civil da rectificação do registo a operar mediante decisão proferida em processo de justificação judicial – para o qual são competentes os tribunais judiciais - quando se suscitem dúvidas acerca da identidade das pessoas a quem o registo respeita.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

1. D.......... reclama para a conferência da decisão sumária do relator que, no âmbito da intimação para defesa de direitos, liberdades e garantias por si proposta contra o Ministério dos Negócios Estrangeiros, concedeu provimento ao recurso e revogou o despacho recorrido de 30.01.2019 do TAC de Lisboa que havia deferido “a ampliação do objecto do processo, requerida no articulado de fls.135-157, e, em consequência”, admitiu “o pedido de declaração da nulidade do acto de emissão do cartão do cidadão n.º .........., válido até 13.02.2022, e o pedido de condenação do Instituto dos Registos e do Notariado I.P. no respetivo cancelamento.”

1.1. A reclamação para a conferência constitui o meio adjectivo próprio ao dispor da parte que se sinta prejudicada pela decisão individual e sumária do relator sobre o objecto do recurso, podendo o recorrente/reclamante, nessa reclamação, restringir o objecto do recurso no uso do direito conferido pelo art. 635º, n.º 4, do CPC CPC, mas não pode ampliar o seu objecto, faculdade limitada ao recorrido nos termos do art. 636º, n.º 1 CPC, isto é, limitada à parte vencedora que tendo decaído em alguns dos fundamentos da acção, apesar disso, obteve vencimento no resultado final. A reclamação para a conferência da decisão sumária proferida apenas pelo relator faz retroagir o conhecimento em conferência do mérito da apelação ao momento anterior àquela decisão sumária.

Cumpre, pois, reapreciar as questões suscitadas pelo Recorrente em sede de conclusões, fazendo retroagir o conhecimento do mérito do recurso ao momento anterior à decisão singular de mérito proferida.



1.2. Recapitulando as conclusões apresentadas no recurso interposto para este TCAS pelo RECORRENTE Ministério dos Negócios Estrangeiros:

1ª. Deve ser admitido o recurso do despacho interlocutório de 30 de janeiro de 2019, proferido pelo Meritíssimo Juiz do TAC de Lisboa, nos autos de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, que deferiu “a ampliação do objecto do processo, requerida no articulado de fls.135-157, e, em consequência”, admitiu “o pedido de declaração da nulidade do acto de emissão do cartão do cidadão n.º .........., válido até 13.02.2022, e o pedido de condenação do Instituto dos Registos e do Notariado I.P. no respetivo cancelamento” e que condenou as Entidades Requeridas no pagamento das custas do incidente, por ser ilegal.

2ª. Com efeito, nos autos de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, o Requerente peticionou ao Tribunal que a Entidade Demandada MNE, seja intimada a aceitar o pedido de emissão do cartão do cidadão do Requerente e que este ordene ao Consulado Geral de Portugal em Goa que proceda à entrega com urgência do cartão após receção do mesmo, bem como, intime a Entidade Demandada IRN, I.P., a emitir imediatamente o cartão do cidadão.

3ª. Em sede de articulado superveniente, no qual o Requerente se pronunciou sobre as exceções alegadas pela contraparte, formula um pedido de envio de certidão dos presentes autos ao Ministério Público para que instaure procedimento criminal contra o indivíduo que se identifica como D.........., portador do cartão de cidadão nº .........., válido até 13/02/2022, residente em 16 .........., LE… …NR, Reino Unido e com o chamamento do mesmo aos presentes autos, como contrainteressado.

4ª. Não obstante, as Entidades Requeridas MNE e IRN, IP se terem oposto à ampliação do objeto do processo, nos termos dos requerimentos constantes dos autos, foi proferido o despacho de deferimento da ampliação do objeto do processo, nos termos requeridos e admitido o pedido de declaração da nulidade do ato de emissão do cartão do cidadão n.º .........., válido até 13.02.2022, e o pedido de condenação do Instituto dos Registos e do Notariado I.P. no respetivo cancelamento.

5ª. Ora, nitidamente o teor do despacho incorre em violação do disposto no art.º 63.º do CPTA.

6ª. Senão, atente-se, que o Requerente nos autos de intimação é, alegadamente, titular de um Assento de Nascimento datado de 26 de janeiro de 2015 e que em 28 de setembro de 2018, se apresentou no Consulado Geral de Portugal em Goa, para solicitar, pela primeira vez, a emissão de cartão de cidadão, tendo sido de imediato detetado, pelo sistema informático, NIC já emitido pelo DIC (Campus de Justiça de Lisboa), com o nº .........., de 14 de fevereiro de 2017.

O mesmo Requerente foi informado pelo Posto Consular, através de email enviado a 18-10-2018, para ali comparecer a fim de dar seguimento à instrução de cartão de cidadão e recolha de dados biométricos, na sequência das indicações do Instituto dos Registos e do Notariado, I.P. não se tendo então, apresentado.

Por email de 29.11.2018, o IRN, I.P. comunicou ao Consulado Geral de Portugal em Goa que “O processo nº 0000000..........A, referente a D.........., não pode ter andamento, dado existirem do[i]s indivíduos distintos a invocarem a mesma identidade, tendo sido os factos participados à Polícia Judiciária”.

7ª. Assim sendo, face ao disposto no referido art.º 63º do CPTA, o ato de emissão do cartão de cidadão que o presente despacho declara nulo – cuja imediata suspensão da validade daquele documento até apuramento das respetivas identidades já tinha sido solicitada ao IRN, IP, pelo próprio Consulado Geral de Portugal em Goa, por mail de 04.10.2018 (fls 5 do p.a.) – é bastante anterior e não posterior à propositura da ação de intimação intentada pelo ora Requerente, pelo que não sendo um facto superveniente, não deve ser tratado como um facto superveniente.

8ª. Mas, ainda que se considerasse superveniente porque a parte só teve conhecimento depois da apresentação dos articulados normais da ação, tinha o Requerente o dever de provar esse conhecimento superveniente, o que também, de todo não foi feito.

9ª. Retenha-se que o Requerente, supostamente, é titular de um Assento de Nascimento, datado de 26 de janeiro de 2015 e só em 28 de setembro de 2018, se dirige ao Consulado a pedir a emissão do cartão de cidadão.

10ª. Releva ainda ponderar, no que respeita à modificação objetiva da instância, que a ampliação do objeto do processo à impugnação de novos atos administrativos está sujeita a prazos de impugnação, nos termos do art.º 58.º do CPTA, sendo exigível que não se encontre precludido o respetivo direito de ação e, no caso concreto, constata-se que esse prazo já estava largamente ultrapassado, encontrando-se caducado o direito de ação

11ª. E o Tribunal declarou, no despacho sob recurso, a nulidade do ato de emissão do cartão do cidadão n.º .........., válido até 13.02.2022, não obstante os factos terem sido participados à Polícia Judiciária em novembro de 2018 pelo IRN, IP, estar em curso um processo criminal de averiguações e sem que haja nos presentes autos qualquer prova que permita discernir qual dos dois cidadãos é o verdadeiro titular da identificação que se arroga.

12ª. Pois, prova nenhuma existe nos autos que permita concluir que o Requerente é o verdadeiro titular da identificação que diz possuir.

13ª. Porém, não é a presente ação o meio processual próprio para alcançar tal desiderato porque o processo da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias é um meio processual excecional, urgente e possui natureza subsidiária em relação aos restantes meios processuais, e não se destina a tutelar situações de dúvida quanto ao direito invocado ou reclamado.

14ª. Constituindo a questão da verificação da identidade do Recorrente um pressuposto essencial do exercício do direito à emissão do cartão de cidadão, apenas é possível conceber a atuação necessária ao esclarecimento da identidade do mesmo (ou seja, a matéria da nacionalidade e da identificação civil), na esfera de competência da Administração Pública, em razão dos fins próprios que prossegue ou das instâncias criminais se se apurar a existência de crime.

15ª. Porquanto, importa previamente descobrir e recolher as provas necessárias a apurar a verdadeira identidade do Recorrente, inclusivamente, para averiguar a existência de crime e determinar os seus agentes e a sua responsabilidade penal, se for o caso.

16ª. Pois é do conhecimento público que a identidade das pessoas é, frequentemente furtada e usurpada em resultado de manobras fraudulentas, falseando a realidade das suas vidas e falsificando documentos, certidões, passaportes, que servem de suporte aos processos de atribuição de nacionalidade e de identificação aos cidadãos oriundos desta zona geográfica, de onde é natural o Requerente.

17ª. E a averiguação desses ilícitos, cujas consequências assumem especial e acentuada gravidade porque atingem a ordem e segurança pública, afetando irremediavelmente a sociedade no seu todo, é da competência das instâncias criminais e não dos tribunais administrativos, porque a estes cabe apenas a resolução dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.

18ª. Aliás, o próprio Requerente conclui “que o falsário deve ser chamado à justiça criminal” (sublinhado nosso).

E, assim sendo, encontrando-se a questão já pendente nas instâncias criminais, ao Tribunal restava aplicar o disposto no art.º 15º do CPTA e “sobrestar na decisão até que o tribunal competente se pronuncie” uma vez que o objeto da ação depende da decisão deste, ou, declarar-se materialmente incompetente, o que constitui uma exceção dilatória, portanto, de conhecimento oficioso, que conduz à absolvição da instância, nos termos do art.º 14º e art.º 89.º, n.ºs 1, 2 e 4, alínea a), do CPTA.

19ª. Sem prejuízo do mencionado anteriormente, o despacho sob recurso violou também o art.º 3º do CPTA e extravasou os poderes de cognição do juiz nos presentes autos.

20ª. O princípio da divisão ou da separação de poderes constitui uma proibição funcional do juiz interferir seja na essência do sistema de administração executiva, não podendo ofender a autonomia do poder administrativo, seja dos poderes próprios de apreciação ou decisão conferidos pela lei a outros órgãos judiciais.

21ª. À face dessa limitação dos poderes de cognição dos tribunais administrativos, o controlo judicial terá de circunscrever-se à verificação da ofensa ou não dos princípios jurídicos que condicionam a atuação administrativa, não podendo o tribunal substituir-se à Administração na ponderação das valorações que se integram nesse juízo próprio da função administrativa legalmente cometido aos órgãos do IRN, I.P..

22ª. De igual forma, na lógica do que antecede, não pode a Entidade Requerida MNE conformar-se com a decisão constante do despacho, de condenação no pagamento das custas do incidente, ou seja, não só porque é ilegal a admissão do incidente como estão a ser imputadas responsabilidades às Entidades Requeridas que não foram devidamente apuradas.

23ª. Reitera-se que o que está em causa é uma usurpação de identidade e como se pode comprovar nos autos (fls 5 do p.a.), o Consulado Geral de Portugal em Goa, enviou de imediato um email ao IRN, I.P., em 04.10.2018, comunicando a situação e pedindo a imediata suspensão da validade do cartão de cidadão emitido em fevereiro de 2017, até apuramento das respetivas identidades dos cidadãos envolvidos e o IRN, IP participou os factos às autoridades policiais competentes, em novembro de 2018.

24ª. Não foi, certamente, a Entidade Requerida MNE ou a Administração Pública que deu causa à ação, destacando-se que as sérias e graves dúvidas sobre a identidade do Requerente, decorrem de documentos forjados e falsos, que podem até estender-se à titularidade do assento de nascimento, registado na Conservatória dos Registos Centrais, pois o Consulado, tem-se confrontado com um elevado número de falsificações de certidões, passaportes e outros documentos que servem de suporte aos processos de atribuição de nacionalidade e de identificação aos cidadãos oriundos desta zona geográfica, de onde é natural o Requerente.

25ª. Ademais, não pode deixar de se estranhar o facto de o Requerente, supostamente, possuir um Assento de Nascimento datado de 26 de janeiro de 2015 e apenas se apresentar a pedir a emissão do cartão de cidadão em 28 de setembro de 2018, ou seja, quase 4 anos depois e, mais se estranha, que o mesmo venha invocar a seu favor que “basta ter presente que, quem teve a arte e engenho de i) localizar um assento de nascimento “vago”, i.e. sem dados biométricos associados”, como se a falta desses dados biométricos resultasse da culpa das Entidades Administrativas, quando, a final, se constata que a responsabilidade é do próprio Requerente e não da Entidade Requerida MNE.

26ª. Com efeito, as incoerências evidenciadas na argumentação do Requerente – que, mais uma vez, com muita ligeireza defende que “tal prova nem sequer é particularmente complexa, pois bastará confrontar o documento de identificação do A. com o que consta do processo de atribuição de nacionalidade para constatar que o A. é o legítimo titular do assento de nascimento nº …./2015”, e que a seguir acusa a Entidade Requerida de ter sido responsável, por falta da diligência devida, na emissão do cartão de cidadão ao por si alegado usurpador – se tivessem sido devidamente ponderadas à luz do direito, não conduziriam à prolação do despacho sob recurso.

27ª. Bem se sabendo que a atividade criminosa em que se traduz a usurpação de identidade, é bem mais complexa, nas suas teias e caráter organizado – que o Requerente, aliás, demonstra conhecer -, na falsificação de todo o tipo de documentos que servem de suporte aos processos de atribuição de nacionalidade e de identificação aos cidadãos oriundos desta zona geográfica.

28ª. Pelo que, foi o próprio Consulado Geral de Portugal em Goa, por email de 04.10.2018 (fls 5 do p.a.) a solicitar ao IRN, IP a imediata suspensão da validade daquele cartão de cidadão, até apuramento das respetivas identidades, e foi a própria Entidade Requerida IRN, IP, entidade competente para emitir o Cartão do Cidadão, que em novembro de 2018, participou os factos às autoridades policiais visando o esclarecimento da verdade, no exercício dos poderes que lhe são próprios, designadamente, para averiguar a existência de crime, determinar os seus agentes e a sua responsabilidade e descobrir e recolher as provas necessárias ao exercício da ação penal, se for o caso.

29ª. Destarte, a Entidade Requerida MNE não recusa ou deixa de recusar qualquer direito ao Cartão do Cidadão, sendo certo que defenderá sempre, no exercício das suas competência e no limite da lei, os legítimos interesses do Estado Português e dos seus nacionais, concretamente, quando deteta incongruências na recolha dos dados necessários, que seriamente conduzam a suspeitas de usurpação de identidade, particularmente numa área geográfica vulnerável, como é do conhecimento geral.

30ª. Em face do exposto, sendo o despacho em crise autonomamente recorrível e porque o mesmo, salvo o devido respeito, é ilegal, pugna-se pela sua revogação.

1.3. O Recorrido e ora Reclamante contra-alegou, suscitando a inadmissibilidade do recurso e, subsidiariamente a sua improcedência.




2. O recurso foi admitido com subida imediata e em separado por despacho de 16.05.2019, com invocação dos art.s 140.º e 142.º, nº 5, in fine, do CPTA e art.s 644, nº 2, al. d), 645.º, nº 2, e 647.º, nº 1, do CPC.



3. O Ministério Público pronunciou-se pela admissão do recurso e pela sua procedência.



4. Neste Tribunal Central Administrativo, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, pronunciou-sentido sentido da improcedência do recurso.


5. Com dispensa de vistos, conhecendo do recurso, vem o processo agora à conferência para apreciação da reclamação deduzida, a qual se circunscreve, de acordo com o requerimento de 18.07.2019, à matéria da admissibilidade da ampliação da instância.

6. A matéria de facto pertinente é a constante da sentença recorrida, a qual se dá aqui por reproduzida, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 663º, nº 6, do Código de Processo Civil.


7. A questão objecto do presente recurso, nos termos em que foi colocada pelo Recorrente no presente recurso jurisdicional, tal como identificado na decisão sumária reclamada, consiste em saber se a decisão recorrida incorre em violação do disposto no art.º 63.º do CPTA.



8. Apreciando, temos que o ora Reclamante vem reclamar da decisão sumária do relator de 9.07.2019 que concedeu provimento ao recurso interposto pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, revogou a decisão recorrida, e determinou ao tribunal a quo que proferisse despacho em que não fosse admitida a ampliação do pedido.

A decisão em causa do relator, na sua parte relevante, é do seguinte teor:

(…)

Em face da definição do objecto do recurso acabada de efectuar, considerando o despacho recorrido, impõe-se conhecer do mesmo. E pode já adiantar-se que o recurso merece provimento, devendo revogar-se a decisão recorrida.

Considerando que a pronúncia do Ministério Público junto deste TCAS responde integralmente às questões que nos vêm colocadas, limitar-nos-emos a transcrever a mesma, fazendo nossos os seus fundamentos. Assim:

1 – O presente recurso foi interposto pelo requerido MNE de um despacho interlocutório que admitiu a ampliação do pedido formulado pelo Autor num articulado em que o mesmo também se pronunciou sobre as excepções deduzidas pelos requeridos.

Está em causa saber se tal despacho interlocutório só pode ser impugnado no recurso que venha a ser interposto da decisão final ou se pode ser objecto de recurso autónomo.

2 – Defende o A/Recorrido a inadmissibilidade de recurso autónomo nos seguintes termos :

“ As alegações de recurso apresentadas pelo recorrente MNE não têm em conta a necessidade de distinguir a rejeição/aceitação formal de um qualquer articulado e a decisão material sobre a pretensão nele formulada. Aquilo que o recorrente MNE pretende ver apreciado em sede de recurso não é a aceitação formal do articulado – que, diga-se não podia sequer ser rejeitado porque, contrariamente ao alegado pelo recorrente MNE, não constitui articulado superveniente, mas mera réplica às exceções deduzidas e sobre as quais o requerente sempre teria que se pronunciar nos termos do art. 3º, n.º 3 e 4, aplicável ex vi art. 1.º do CPTA – mas antes o deferimento da ampliação do objeto do processo nos termos do art. 64º do CPTA e 264º e 265º do CPC.”

3 - Salvo melhor opinião, o recurso mostra-se admissível nos termos conjugados dos artºs 63º nº 5 e 142º nº 5 do CPTA e artº 644º nº 2 al. d) do CPC.

Com efeito, o A. “ cumulou” num só articulado duas intervenções processuais que deveria ter feito separadamente – a pronúncia sobre as excepções e o requerimento de ampliação do pedido que, nos termos do disposto no artº 63º nº 5 do CPTA deve ser “requerida pelo autor em articulado próprio”.

Ora, não tendo o A. formulado a ampliação do pedido em articulado próprio, como se exige no artº 63º nº 5 do CPTA, não podia o articulado apresentado pelo A. ter sido admitido, quanto à parte em que se destinava a requerer a ampliação do pedido.

Assim, salvo melhor opinião, o despacho recorrido procedeu à aceitação formal de um “articulado” de ampliação que não revestia as condições legais expressamente exigidas, por não haver sido formulado em articulado próprio.

Trata-se, pois, a nosso ver, de uma situação que se mostra abrangida pelo disposto no artº 644º nº 2 al. d), uma vez que o despacho recorrido procedeu à admissão formal de um articulado - apesar do mesmo estar integrado em diferente peça processual e não ter sido apresentado pela forma independente legalmente exigida.

Em consequência, cremos que a apelação deve ser admitida e apreciada.

4 - No tocante ao mérito do recurso afigura-se-nos que igualmente assiste razão ao recorrente.

Na verdade, dispõe o artº 63º nº 1 do CPTA que “até ao encerramento da discussão em primeira instância, o objeto do processo pode ser ampliado à impugnação de atos que venham a surgir no âmbito ou na sequência do procedimento em que o ato impugnado se insere, assim como à formulação de novas pretensões que com aquela possam ser cumuladas.”

Estamos claramente perante a situação prevista na parte final da norma, havendo pois que averiguar se a nova pretensão reúne os requisitos legais da cumulação de pedidos.

O despacho recorrido apreciou a questão tendo por base o seguinte entendimento:

«Assim, contendo-se os pedidos ora formulados no interior do limite qualitativo da admissibilidade da ampliação do pedido – e não se encontrando ainda os presentes autos na fase limite de discussão em primeira instância -, é de admitir a requerida ampliação do objecto do processo, com o aditamento do pedido de declaração de nulidade do acto de emissão do cartão de cidadão n.º .........., válido até 13.02.2022, e de condenação do Instituto dos Registos e do Notariado I.P. no respectivo cancelamento, sendo certo que a recolha dos dados biométricos do Requerente e a emissão do cartão de cidadão pretendido, já se encontram abrangidos pelos pedidos primitivos».

Salvo melhor opinião, cremos, contudo, que não se mostram reunidos os requisitos legais da cumulação de pedidos, nos termos do disposto no artº 4º nº 1 do CPTA, no qual se prevê que:

“1 - É permitida a cumulação de pedidos sempre que:

a) A causa de pedir seja a mesma e única ou os pedidos estejam entre si numa relação de prejudicialidade ou de dependência, nomeadamente por se inscreverem no âmbito da mesma relação jurídica material;

b) Sendo diferente a causa de pedir, a procedência dos pedidos principais dependa essencialmente da apreciação dos mesmos factos ou da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito.”

Salvo melhor entendimento, a causa de pedir não é a mesma e os pedidos não se inscrevem no âmbito da mesma relação jurídica material, tendo o pedido primitivo e o pedido acrescentado diferentes causas de pedir.

Assim, nos termos do artº 4º nº 1 al. b) do CPTA, seria necessário que ambos os pedidos dependessem da apreciação dos mesmos factos o que não se nos afigura ocorrer, dado que o novo pedido diz respeito a um acto em que o A. não foi interveniente.

Por outro lado, a procedência ou não do pedido primitivo está dependente, a nosso ver, da decisão que vier ser tomada no processo crime em que se averigua a falsidade ou autenticidade dos registos de nascimento em causa, não podendo ser tal falsidade conhecida ou declarada no presente processo. [sublinhado nosso]

5 – Pelo exposto, emite-se pronúncia no sentido de que o recurso se mostra admissível e merece provimento, havendo que ser revogado o despacho recorrido e proferindo-se outro que não admita a ampliação do pedido.

Assim, por remissão para a fundamentação supra, conhecendo do recurso, haverá que conceder provimento ao mesmo e revogar o despacho recorrido.”

A decisão proferida pelo relator sobre o mérito da causa é de manter.

Com efeito, como já afirmado, o artº 63º, nº 1, do CPTA dispõe que “até ao encerramento da discussão em primeira instância, o objeto do processo pode ser ampliado à impugnação de atos que venham a surgir no âmbito ou na sequência do procedimento em que o ato impugnado se insere, assim como à formulação de novas pretensões que com aquela possam ser cumuladas.” Donde cabe averiguar se a nova pretensão reúne, ou não, os requisitos legais da cumulação de pedidos.

Ora, embora na aparência seja possível prefigurar uma relação de dependência entre o pedido inicial da intimação – condenação na aceitação do pedido de cartão de cidadão formulado pelo requerente e respectiva emissão – e o pedido objecto da ampliação requerida – pedido de declaração de nulidade do acto de emissão do cartão de cidadão nº .......... -, certo é que, no detalhe, os pedidos não dependem da apreciação dos mesmos factos, dado que o novo pedido diz respeito a um acto em que o A. não foi sequer interveniente. Sendo que, como notado pelo Ministério Público, a procedência ou não do pedido está dependente, também ela, que vier a ser tomada no processo-crime em que se averigua a falsidade ou autenticidade dos registos de nascimento em causa, não podendo ser tal falsidade conhecida ou declarada no presente processo.

Com efeito, o objecto do pedido de ampliação importará a instauração de acção para declaração da nulidade e cancelamento do registo de nascimento e da inscrição da nacionalidade portuguesa, sendo que nos termos do art. 94.º do Código do Registo Civil se prevê a rectificação do registo judicial a operar mediante decisão proferida em processo de justificação judicial – processo próprio - quando se suscitem dúvidas acerca da identidade das pessoas a quem o registo respeita. Como se vê, a ampliação requerida escapa ao âmbito do presente processo de intimação (e ao âmbito da competência material desta Jurisdição).

E assim sendo, não poderia ter sido admitida a ampliação requerida pelo Recorrido e ora Reclamante.

Pelo que, nada mais importando apreciar, na improcedência da presente reclamação, terá que manter-se a decisão do relator.



9. Sumariando:

i) Dispõe o art. 63.º, n.º 1, do CPTA que “até ao encerramento da discussão em primeira instância, o objeto do processo pode ser ampliado à impugnação de atos que venham a surgir no âmbito ou na sequência do procedimento em que o ato impugnado se insere, assim como à formulação de novas pretensões que com aquela possam ser cumuladas.

ii) Nos termos do disposto no art. 4.º, n.º 1, do CPTA, é permitida a cumulação de pedidos sempre que: “a causa de pedir seja a mesma e única ou os pedidos estejam entre si numa relação de prejudicialidade ou de dependência, nomeadamente por se inscreverem no âmbito da mesma relação jurídica material” (al. a)); e “sendo diferente a causa de pedir, a procedência dos pedidos principais dependa essencialmente da apreciação dos mesmos factos ou da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito” (al. b).

iii) Não é possível ampliar-se o objecto do processo, inicialmente com pedido de intimação de emissão do cartão de cidadão formulado pelo requerente, ao pedido de declaração de nulidade do acto de emissão de cartão de cidadão relativo a pessoa distinta e respectivo cancelamento do registo, quando tal depende da instauração de acção própria, existindo igualmente previsão no art. 94.º do Código do Registo Civil da rectificação do registo a operar mediante decisão proferida em processo de justificação judicial – para o qual são competentes os tribunais judiciais - quando se suscitem dúvidas acerca da identidade das pessoas a quem o registo respeita.



10. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em indeferir a reclamação apresentada, confirmando-se a decisão sumária do relator.

Sem custas.

Lisboa, 12 de Setembro de 2019



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Pedro Marchão Marques


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Paula de Ferreirinha Loureiro


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Jorge Pelicano