Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:53/18.5BECTB
Secção:CT
Data do Acordão:11/19/2020
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:IMPUGNAÇÃO ARBITRAL
PRONÚNCIA INDEVIDA
COMPETÊNCIA MATERIAL
Sumário:
I. A competência de um tribunal afere-se pelo quid decidendum.

II. Se o objeto do pedido de pronúncia arbitral são atos de liquidação adicional de IVA, emitidos na sequência de ação inspetiva, aos quais são apontados vícios específicos, o seu conhecimento entra na esfera de competência dos tribunais arbitrais.

III. O referido em II. não colide com a circunstância de o mote para a ação inspetiva ter sido um pedido de reembolso de IVA formulado pelo contribuinte.

IV. A CRP prevê a possibilidade de a lei institucionalizar instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos.

V. A CRP não prevê o direito ao duplo grau de jurisdição, exceto no âmbito criminal.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

A Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante Impugnante ou AT) veio apresentar impugnação da decisão arbitral proferida a 27.04.2018, pelo tribunal arbitral singular constituído no Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), no processo a que aí foi atribuído o n.º ….., ao abrigo dos art.ºs 27.º e 28.º do DL n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária – RJAT).

Nesse seguimento, a Impugnante apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

“A. Por via da presente Impugnação pretende a ora Impugnante reagir contra a decisão arbitral proferida a 2018-04-27 pelo Tribunal Arbitral Colectivo, constituído no CAAD que julgou procedente o pedido de anulação das "demonstrações de liquidações" referentes aos períodos de 2012 a 2015/09, com a consequente condenação do reembolso das quantias peticionadas.

B. O que foi, efectivamente, sindicado foram verdadeiros actos de indeferimento parcial de reembolsos e não, como pretendeu fazer crer a Impugnada e, mais concretamente, o Tribunal arbitral, pretensos actos de liquidação adicional de IVA.

C. Indeferimentos parciais de reembolsos, esses, que, no caso em apreço, a ora Impugnada solicitou nos períodos de imposto referentes aos períodos de 2012 a 2015/09.

D. Os actos de indeferimento de pedidos de reembolsos não se subsumem à clássica definição de actos de liquidação de imposto, pois que, contrariamente aos primeiros, através da liquidação «determina-se a colecta que vem a coincidir com o imposto a pagar, a menos que haja lugar a deduções à colecta, caso em que a liquidação também abarca esta última operação.»

E. Sem esquecer que o imposto - isto é, o objecto que subjaz ao acto de liquidação - é, do ponto de vista conceptual, uma prestação pecuniária, unilateral, definitiva e coactiva, exigida a (ou devida por) detentores (individuais ou colectivos) de capacidade contributiva, a favor de entidades que exerçam funções ou tarefas públicas.

F. Diferentemente, o pedido de reembolso é uma das três modalidades legalmente existentes para exercer o direito à dedução de imposto suportado, isto é, para exigir da Administração Tributária um crédito que há mais de 12 meses se encontra em excesso e se efectivou a favor do sujeito passivo.

G. Ou seja, para além de a figura do reembolso mais não ser que uma das modalidades de dedução do imposto, foi criada, e continua a existir, com o propósito de preservar o princípio da neutralidade fiscal e assim eliminar a distorção de concorrência entre os operadores económicos que se movem nos mesmos meandros comerciais.

H. Bem distinto disto é o princípio que subjaz ao acto de liquidação, que pura e simplesmente se coaduna com a satisfação das necessidades financeiras do Estado, de acordo com o plasmado no artigo 103.º, n.º 1 da CRP, sendo desse modo, decisões de reembolso e actos de liquidação, actos tributários com naturezas diferentes entre si.

I. A partir de um belo exemplo de escola, é possível perceber não apenas a utilidade da figura de reembolso, como também da sua diferença face ao verdadeiro acto de liquidação: se se estiver perante uma isenção completa, como é o caso, se uma certa operação é tributada com a chamada taxa zero, o sujeito passivo tem o direito a um reembolso que vai abranger todas as operações de IVA que podem ser imputadas ao produto final.

J. Deste modo, surge a figura do reembolso, precisamente para dar concretização à neutralidade, a fim de não permitir a tão indesejada distorção em sede de IVA, permitindo que os sujeitos passivos possam recuperar os valores em sede de Iva com foram onerados no passado.

K. O que não se confunde, de todo, com o objectivo que preside aos actos de liquidação, que, como se sabe, se trata de dar a conhecer aos sujeitos passivos o valor de imposto devido, calculado a partir da matéria tributável apurada.

L. O Tribunal arbitral, ao decidir de mérito a questão respeitante aos pedidos de reembolso em escrutínio, imiscuiu-se em matéria para a qual é materialmente incompetente, pois que as apelidadas "demonstrações da liquidação" não são demonstrações de liquidação adicional de IVA, nem tão pouco são actos de liquidação de IVA.

M. Não são, nem nunca serão, actos tributários de liquidação em sentido estrito (sendo actos instrumentais que podem integrar vários tipos de actos em matéria tributária), se tivermos em conta o imposto que estamos a tratar, nomeadamente, para efeitos da atribuição de competência e vinculação da ora Impugnante à jurisdição arbitral.

N. As apelidadas demonstrações da liquidação naqueles casos, como a que se reportam os presentes autos mais não são do que indeferimentos parciais de reembolsos.

O. Não pode uma mera questão semântica e ao mesmo tempo formalista - isto é, a atribuição da nomenclatura de "liquidação" a um acto que o não é, como acontece com os actos de indeferimentos de reembolsos - legitimar que o Tribunal arbitral conheça de matéria que lhe não pertence.

P. Tal redundaria na vitória da forma sobre a substância, autorizando que a caracterização de um acto puramente administrativo, versando sobre uma questão fiscal (o deferimento parcial do reembolso), se transformasse, como que num golpe de mágica, em pretenso acto de liquidação, apenas por que à notificação do dito deferimento se lhe atribuiu o título de "demonstração de liquidação".

Q. O acto de liquidação trata de ser o veículo onde se determina a colecta e se aplica a taxa à matéria colectável e que, a um tempo, leva também ao conhecimento do contribuinte o montante de imposto que tem a pagar, de acordo com a sua capacidade contributiva, em ordem à satisfação das necessidades financeiras do Estado de Direito.

R. Conceptualmente, esta definição em nada se confunde com os actos em matéria tributária que indeferem os pedidos de reembolsos, pois destes últimos actos não resulta qualquer obrigação dos contribuintes perante a máquina fiscal que não tivessem já antes.

S. Este tipo de actos administrativos em matéria fiscal - como é o caso da situação aqui em apreço - resultam de pretensões dos contribuintes, que, depois, pela Administração serão deferidos ou indeferidos.

T. A própria decisão que agora se impugna, acaba por, de forma quase subliminar, dizer isso mesmo, ainda que o faça por referência aos meios de defesa ao dispor dos contribuintes e ainda que tal passagem pretendesse, justamente, fazer vingar a ideia contrária, isto é, a de que reembolsos e actos de liquidação têm as mesmas características.

U. No artigo 17.º da p.i., a Requerente confessa que o procedimento interno de inspecção que foi instaurado - ordens de serviços n.º ….., ….., ….., ….., …..e …..-, foi-o no seguimento de um pedido de reembolso por si apresentado nos termos do artigo 22.º do CIVA, «decorrente do pedido de reembolso de IVA efectuado na declaração periódica respeitante ao mês de Agosto de 2015, no montante de419.798,24.»

V. Olvida o Tribunal que o artigo 93.9 do CIVA, precisamente o artigo para onde o artigo 22.º, n.º 11 e 13 do CIVA remete o contribuinte que pretenda impugnar um acto de indeferimento de reembolso, respeita aos actos de compensação e não aos actos de liquidação.

W. Se os reembolsos podem e devem ser qualificados como actos de liquidação, cabe perguntar por que razão o dito artigo 22.º, n.º 11 e 13 do CIVA não remeteu antes para o artigo 97.º do CIVA quanto a matéria de defesa, precisamente a norma que elenca os meios impugnatórios ao dispor do contribuinte sempre que é surpreendido por um acto de liquidação? A resposta é simples, porque enquanto um acto que indefere um reembolso é, como dissemos acima, um acto administrativo em matéria tributária, já um puro acto de liquidação é um acto tributário stricto sensu.

X. A referida "demonstração de liquidação" mais não se traduziu do que o resultado do acerto de contas entre o reembolso solicitado pela Impugnada e as correcções efectuadas pelos serviços de inspecção tributária após se ter procedido à aferição da legitimidade dos referidos pedidos de reembolso, sendo que esta questão não apresenta controvérsia na ponderada e correcta jurisprudência desta jurisdição arbitral.

Y. Neste sentido, v.p.t. o Acórdão Arbitral, de 3 de Outubro de 2015, proferido no âmbito do processo n.º48/2015-T, ou no Acórdão de 127/2007, processo n.º0303/07.

Z. O direito ao reembolso de IVA não assume o carácter de um verdadeiro direito potestativo que se imponha, sem mais, de forma inelutável, a quem o deve prestar.

AA. Efectivamente, há um dado fundamental, que diz respeito à aferição da legitimidade do reembolso face aos sujeitos passivos do imposto e essa legitimidade só se afere, nomeadamente, em função da legitimidade do exercício do direito à dedução, em sede de IVA, sendo que no caso dos presentes autos, a aferição da legitimidade dos referidos reembolsos foi efectuada através dos procedimentos inspectivos, nos termos do exigido no artigo 22.º do CIVA.

BB. Atendendo, por um lado, ao disposto no artigo 9.º, n.º 3 do CC, que prevê que na fixação e no alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas, bem como atendendo, por outro lado, que existe uma diferença conceptual entre acto de liquidação stricto sensu e acto em matéria tributária,

CC. Os actos que indeferem pedidos de reembolsos não são passíveis de serem sindicados em jurisdição arbitral, muito simplesmente porque, nem no RJAT, nem na Portaria de Vinculação o legislador aí inseriu - nas competências do CAAD - precisamente a declaração de ilegalidade de actos de indeferimento que provenham de pedidos de reembolsos.

DD. Leia-se então, por contraponto à Portaria e ao RJAT, o ETAF, artigo 49.º, a propósito da competência dos tribunais tributários, onde, no seu n.º 1, i) e iv), para além de apreciarem os actos de liquidação, têm também competência para apreciar actos administrativos respeitantes a questões fiscais que não sejam atribuídos à competência de outros tribunais.

EE. O ETAF, aquando da delimitação de competências dos tribunais tributários, não apenas os muniram do poder de decidir de actos de liquidação, como também de outros actos administrativos que versam sobre questões fiscais.

FF. Isso, contrariamente ao que consta quer na Portaria, quer no RJAT, onde somente se faz referência à declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamentos por conta e à declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria tributável e de actos de fixação de valores patrimoniais.

GG. Aquela jurisdição arbitral não se mostrava competente para conhecer da pretensão da ora Impugnada relativamente ao pedido que formulou, já que o acto de indeferimento parcial de um pedido de reembolso não traduz um acto tributário de liquidação.

HH. Efectivamente, no âmbito do imposto sobre o valor acrescentado, o sujeito passivo tem o dever de liquidar imposto em todas as operações que pratica, e o direito a deduzir o imposto suportado nos inputs da sua actividade.

II. Não estávamos, pois, no que diz respeito ao pedido da Impugnada em sede arbitral, face a um acto tributário de liquidação, de autoliquidação, de retenção na fonte ou de pagamento por conta susceptível de ser apreciado por esta jurisdição arbitral.
JJ. Na verdade, nas denominadas "demonstrações da liquidação" que mais não são do que um apuramento ou acerto de contas, repete-se, expressamente se refere: "Fica V. Ex.g notificado (a) da liquidação de IVA relativa ao período a que respeitam as operações, em resultado da qual se verifica haver lugar a reembolso no montante apurado, conforme nota demonstrativa supra.

KK. E tanto assim é que o montante apurado na erradamente apelidada liquidação traduz o montante a reembolsar e não o montante das correcções efectuadas aquando da aferição da legitimidade do reembolso através dos procedimentos inspectivos atrás referidos.

LL. Acresce que, actos tributários de liquidação, no âmbito deste imposto, formalmente nunca são apelidados de demonstrações de liquidação mas tão só, como é sobejamente conhecido, como autoliquidações ou quando efectuadas pela administração como liquidações adicionais.

MM. E, como bem se decidiu no Acórdão Arbitral, proferido no âmbito do processo n9 341/2015T, onde expressamente se refere que tais demonstrações da liquidação (a que a requerida no âmbito do referido processo apelidava de acerto de contas), não produzem efeitos jurídicos próprios.

NN.Aqui produzem efeitos jurídicos próprios mas tão só como indeferimentos parciais do reembolso atentos os termos, nomeadamente, das referidas notificações.

OO. No caso dos autos ela constituiu uma realidade instrumental à aferição dos pedidos de reembolso efectuados pela aí Requerente, que veio a redundar no deferimento parcial dos referidos pedidos, mas que até poderia redundar num indeferimento total e então as demonstrações da liquidação seriam de montante zero.

PP. Aqui chegados, convirá dizer que a interpretação normativa efectuada pelo Tribunal Arbitral acerca do artigo 2.º, n.º 1 do RJAT e do artigo 2.º da citada Portaria, ambas acerca da competência material daquele Tribunal, tal como vem gizada na decisão em escrutínio, é inconstitucional por violação do artigo 212.º, n.º 3 da CRP e bem assim por violação do princípio do livre acesso aos tribunais, na vertente do direito ao duplo grau de jurisdição.

QQ. Interpretação normativa inconstitucional por violação do artigo 212.º, n.º 3 da CRP, dado que a competência dos tribunais administrativos e fiscais estio especificamente delimitados por lei, cabendo-lhes o julgamento de acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

RR. Acções e recursos que, nos termos do disposto do já apontado 49.º, n.º 1 do ETAF, se espartilham em impugnações de actos de liquidação e em actos administrativos de questões tributárias.

SS. Por sua vez, nos termos do disposto no artigo 211.º, n.º 2 da CRP, podem, existir, entre outros, tribunais arbitrais, mas somente a estes competirá dirimir os litígios que por lei lhes estão especificamente acometidos.

TT. Assim, se a lei não atribuiu ao Centro de Arbitragem Administrativa a competência para apreciar actos administrativos-tributários, como é o caso dos pedidos de reembolso, e se em decisão judicial o Tribunal Arbitral constituído entende, não obstante, que é a sua a competência, há, manifestamente, uma clara violação do teor do artigo 212.º, n.º 3 da CRP.

UU. Pois decide em matéria que vai para além daquilo que 0 legislador, a lei e as partes que à arbitragem aderiram, pretenderam desde 0 início: subjugar a apreciação dos actos de liquidação ao Centro de Arbitragem, isso em alternativa aos Tribunais Administrativos e Fiscais; mas salvaguardar outro tipo de actos ao exclusivo escrutínio daqueles mesmos Tribunais Administrativos e Fiscais.

VV. Em concordância e em complemento ao antedito, soma-se ainda 0 facto de o Regime Jurídico de Arbitragem somente prever três tipos de reacções recursórias: recurso para 0 TC; recurso por uniformização de jurisprudência; impugnação arbitral, com base nas nulidades elencadas no artigo 28.º, n.º 1 do RJAT.

WW. Em sede arbitral, não existe o clássico recurso de direito e de facto, em princípio a interpor para o Tribunal Central Administrativo competente, dado as Partes envolvidas terem, neste ponto específico, expressamente renunciado ao auxílio dos Tribunais superiores.

XX. Tal renúncia aconteceu quanto às matérias da competência do Centro de Arbitragem, in casu, as matérias elencadas no artigo 2.º do RJAT, donde não consta a apreciação de actos administrativos-tributários, como acontece com os indeferimentos de reembolsos.

YY. Sujeitar os indeferimentos de pedidos de reembolsos à competência do Centro de Arbitragem, mais não é que sentenciar tais matérias à insusceptibilidade de serem revistas em 2.ª instância, com excepção do recurso para o TC, do recurso para o STA para uniformizar jurisprudência e da impugnação para o TCA, por vícios de nulidade de sentença.

ZZ. Insusceptibilidade que, mais uma vez, que não foi querida nem pelo legislador, nem pela lei, nem pelas Partes que aderiram à arbitragem.

AAA. Motivo porque a interpretação normativa encetada pelo Tribunal Arbitral na decisão que se impugna viola frontalmente o princípio do livre acesso aos tribunais, na vertente do duplo grau de decisão.

BBB. Por se estar ante uma manifesta incompetência absoluta do foro arbitral para conhecer da matéria a que se reporta o indeferimento pardal do reembolso solicitado e que subjaz ao acto impugnado nos presentes autos, infere-se que a decisão arbitral é nula, porquanto aquele Tribunal conheceu indevidamente do mérito da acção.

CCC. O que, nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1, al. c), consubstancia uma nulidade da decisão arbitral, que deve ser decretada por esse Tribunal superior, devendo ainda o dito aresto ser revogado e substituído por outro, isso em harmoniosa consonância com a Lei.

DDD. Deverá subsidiariamente esse Tribunal decretar a inconstitucionalidade da interpretação normativa efectuada pelo Tribunal Arbitral quanto aos artigos 2.º do RJAT e à Portaria 112-A/2011, ao declarar-se competente para apreciar actos de indeferimento de reembolsos, por violação do artigo 212, n.º 3 da CRP e do princípio do livre acesso aos tribunais”.

Foi ordenada a notificação de C….., S.A. (doravante Impugnada) para alegar, nos termos consignados no art.º 144.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), ex vi art.º 27.º, n.º 2, do RJAT, tendo sido apresentadas contra-alegações, nas quais foram formuladas as seguintes conclusões:

“1.ª A Autoridade Tributária vem deduzir a presente impugnação contra a decisão arbitral proferida no âmbito do processo n.º ….., que julgou procedente o pedido de pronúncia arbitral tendente à declaração de ilegalidade das liquidações adicionais com os n.ºs ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….. e ….., todas referentes aos anos de 2012 a 2015/09, no montante total de € 51,014.73, as quais foram objeto de reclamação graciosa e posterior indeferimento expresso.

2.ª A Autoridade Tributária alega que a decisão arbitral em crise padece de vício de pronúncia indevida [cf. artigo 28.º, n.° 1, alínea c), do RJAT], na medida em que o Tribunal Arbitral excedeu o âmbito da sua competência material e pronunciou-se sobre a legalidade de atos que a Impugnante carateriza como de mero indeferimento parcial de pedido de reembolso de IVA cuja apreciação está excluída do âmbito da sua competência (cf. artigo 2.º, n.º 1, do RJAT).

3.º As matérias que podem ser apreciadas pelos tribunais arbitrais encontram-se previstas no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT e no artigo 2.º da Portaria de Vinculação, dependendo a determinação da competência material somente da prévia aferição do objeto do processo.

4.ª A Impugnada pretendia a apreciação da legalidade das liquidações adicionais de IVA identificadas no artigo 21.º do pedido de constituição de tribunal arbitral, configurando aquelas o objeto do processo.

5.ª Os atos cuja legalidade se contesta configuram atos de liquidação, uma vez que, em face da correção levada a cabo em sede inspetiva, procedem à determinação de imposto a pagar mediante a aplicação da taxa de IVA à matéria coletável formada pela contraprestação obtida pelo fornecimento de bebidas, deduzindo esse mesmo imposto adicional liquidado na linha 3 da Tabela patente nos atos postos em crise (cf. Doc. 2 junto com o pedido de constituição de tribunal arbitral).

6.ª A qualificação de um ato como ato de (in)deferimento de pedido de reembolso ou ato de liquidação não tem de ser alternativa, estando no caso vertente em causa atos de deferimento parcial de reembolso que determinam, no seu âmbito, o apuramento adicional de imposto devido para dedução ao valor a creditar ao sujeito passivo.

7.ª De facto encontrar-nos-íamos no âmbito da contestação de um mero ato de indeferimento de pedido de reembolso se, por hipótese exemplificativa que não se verifica in casu, 0 ato se limitasse a indeferir tal pedido com fundamento em intempestividade (cf. artigo 22.º, n.ºs 5 e 6 do CIVA) ou na não facultação pelo sujeito passivo de elementos que permitam aferir da legitimidade do reembolso (cf. artigo 22.º, n.º 11 do CIVA), situação em que a Autoridade Tributária se limitaria a indeferir o pedido com um fundamento formal.

8.ª O facto de os atos em causa terem tido origem num procedimento de inspeção iniciado na sequência de pedidos de reembolso de imposto não é suficiente para se minorar os atos de liquidação adicional em causa a meros atos de deferimento parcial de pedido de reembolso.

9.ª Este mesmo entendimento foi sufragado pela própria Impugnante que designou os atos como atos de liquidação, não se podendo admitir que a Autoridade Tributária considere os atos como atos de liquidação no momento da sua emissão e notificação e como meros atos de deferimento parcial de pedido de reembolso no momento da aferição da competência material.

10.ª Termos em que, uma vez que o presente pedido de pronúncia arbitral comporta a apreciação de atos tributários, dúvidas inexistem de que o tribunal arbitral é materialmente competente para apreciar a pretensão da Impugnada, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e do artigo 2.º da Portaria de Vinculação, devendo improceder a exceção invocada pela Impugnante.

11.ª Mesmo que, o que por mera hipótese e dever de cautela se admite, sem conceder, os atos em causa fossem juridicamente qualificados como meros atos de deferimento parcial de pedido de reembolso, a competência material do presente Tribunal Arbitral não se encontraria prejudicada.

12.ª De facto, definindo-se os atos em crise como de mero deferimento parcial de pedido de reembolso sempre deverá considerar-se que estes equivalem integralmente a um ato de liquidação para efeitos de reação administrativa ou judicial (cf. Xavier De Basto, José e Nunes Gonçalo Avelãs, Q que é “Garantia Adequada” para Efeitos de Reembolso do IVA?, Estudos em Memória do Prof. Doutor J. L. Saldanha Sanches, Vol. IV, pp. 276 e 277).

13.ª Foi a similitude entre estes atos que ditou que o legislador previsse no n.º 13 do artigo 22.º do CIVA que do ato de indeferimento de pedido de reembolso coubessem a totalidade dos meios de reação que se encontravam previstos para reagir de liquidações adicionais à data da aprovação legal do artigo 22.º, n.º 13 do CIVA, reconhecendo e acentuando a equivalência entre estes atos para efeitos de determinação dos meios processuais.

14.ª Ao ditar que dos atos de indeferimento de pedidos de reembolso se deve reagir recorrendo aos mesmo meios que se deveria recorrer para reagir de outro qualquer ato de liquidação, 0 legislador reconheceu expressamente a equivalência entre estes atos para efeitos de aferição da competência material das instâncias administrativas ou judiciais, devendo falecer assim os argumentos invocados pela Impugnante a propósito da incompetência do Tribunal para conhecimento da causa.

15.ª A competência material para conhecer da presente causa nos termos propostos é a única exegese compatível com 0 espírito da arbitragem como meio alternativo de resolução de litígios em matéria tributária.

16.ª O legislador sempre manteve os poderes decisórios dos tribunais arbitrais em processos paralelos a impugnações judiciais e em matéria de IVA.

17.ª Sendo a arbitragem tributária um meio alternativo à impugnação judicial, sempre redundaria em incongruência sistemática a tese no sentido de que perante um ato de indeferimento de pedido de reembolso apenas se poderia apresentar impugnação judicial, mas não pedido de constituição de tribunal arbitral.

18.ª Pelo que, mesmo que se admitisse que os atos postos em crise configuram meros atos de deferimento parcial de pedidos de reembolso de IVA, no que não se concede, sempre os mesmos cabem no âmbito da competência decisória dos tribunais arbitrais, porquanto devem ser considerados como atos de liquidação para efeitos de determinação de meio de reação.

19.ª Mesmo que se entenda que os atos em questão devem ser qualificados como meros atos de deferimento parcial de pedidos de reembolso não equiparáveis a atos de liquidação para efeitos de determinação dos meios de reação, no que não se concede e por mero dever de cautela se admite, sem conceder, sempre se deve entender que o Tribunal beneficiava de competência material para apreciar a legalidade dos atos postos em crise em decorrência do princípio constitucional da proteção da confiança e do acesso à justiça, que encontram respaldo no princípio do estado de direito, presente nos artigos 2.º, 2o.º,68.º, n.º 4 e 268.º, n.º 5 da CRP.

20.ª Os artigos 2.º do RJAT e 2.º da Portaria de Vinculação estipulam que os tribunais arbitrais têm competência para julgar, entre outros, a legalidade de atos de liquidação de impostos.

21.ª Foi a própria Autoridade Tributária que induziu expressamente a ora Impugnada à qualificação do ato como ato de liquidação mediante a identificação reiterada dos atos como tal, originando a confiança legítima de que estes se reputam atos de liquidação que caberiam no leque de atos para cuja aferição da legalidade os tribunais arbitrais beneficiam de competência.

22.ª Para além da expressa e reiterada identificação do ato como um ato de liquidação, a Autoridade Tributária adensou ainda a invocada indução da Impgunada na determinação do ato como ato de liquidação mediante a assinalação intencional do campo que indica que o ato decorre do artigo 87.º do CIVA, que tem desde logo como epígrafe “Rectificação das declarações e liquidações adicionais”.

23.ª Não se afiguraria legalmente admissível que a Autoridade Tributária notificasse um sujeito passivo de IVA de determinado ato referindo expressamente que este configura um ato de liquidação adicional e 0 sujeito passivo que agisse nesse pressuposto na escolha do meio processual viesse a ser penalizado por isso.

24.ª De facto, a iniciativa da Autoridade Tributária na identificação dos atos como atos de liquidação revelou-se decisiva na determinação do meio processual adotado, considerando a ora Impugnada que os atos se tratavam de atos de liquidação, tendo-lhe sido incutida a expetativa de que este era um meio contencioso de que se poderia socorrer para legalidade dos atos.

25.ª Deste modo, a competência material do Tribunal Arbitral para conhecer do presente litígio afigura-se a única interpretação compaginável com o princípio da justiça, ínsito no conceito de Estado de Direito democrático (artigo 2.º da CRP) bem como com o princípio de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos (artigos 20.°, 68.°, n.º 4 e 268.°, n.º 5 da CRP) que exige uma possibilidade efetiva e não meramente teórica de utilização dos meios contenciosos de defesa de direitos e interesses legalmente protegidos, princípios que desde já se invocam para efeitos do artigo 7o.º, n.º 1, alínea b) e 72.°, n.º 2, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, ex vi artigo 25.º do RJ AT.

26.ª Termos em que, também por força do princípio da justiça e de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, deve julgar-se que 0 tribunal arbitral é materialmente competente para apreciar a pretensão da Impugnada, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e do artigo 2.º da Portaria de Vinculação, devendo improceder a exceção invocada pela Impugnante.

27.ª Por último não pode deixar de se referir que devem improceder os vícios de inconstitucionalidade invocados, uma vez que esses putativos vícios configuram meras decorrências do acesso à arbitragem tributária em resultado da qualificação dos atos sub judice como atos de liquidação, qualificação essa que partiu primeiramente da livre iniciativa da Autoridade Tributária.

28.ª Uma vez que a qualificação dos atos postos em crise nos autos como atos de liquidação partiu da própria mão da Autoridade Tributária, a invocação de tais vícios de inconstitucionalidade representa um abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.

29.ª Deste modo, tendo presente todo o exposto, não pode a impugnação deixar de ser julgada improcedente e em consequência confirmada a decisão recorrida”.

O Ilustre Magistrado do Ministério Público (IMMP) foi notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 146.º, n.º 1, do CPTA.

Colhidos os vistos legais vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:
a) Há nulidade por pronúncia indevida, em virtude de ter sido conhecida questão para a qual os tribunais tributários arbitrais não são materialmente competentes?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. Para a apreciação da presente Impugnação estão provados os seguintes factos:

1) A 25.09.2017 a ora Impugnada apresentou junto do CAAD pedido de constituição de tribunal arbitral, do qual consta designadamente o seguinte:
“                                                                             4.º

Em 27 de junho de 2017, a Requerente foi notificada do indeferimento da reclamação graciosa, respeitante a liquidações adicionais de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”), de seguida melhor identificadas, referentes aos anos de 2012 a 2015/09, no montante total de 51,016.80 € (cinquenta e um mil e dezasseis euros e oitenta cêntimos), pelo que o presente pedido é tempestivo.

(…)


17.º

Em cumprimento das ordens de serviço n.ºs ….., ….., ….., ….., …..e ….., foi efetuado procedimento interno de inspeção à Requerente, o qual teve como objetivo a análise da situação tributária da mesma, em sede de IVA, quanto aos períodos de 2012 a 2015/09, decorrente do pedido de reembolso de IVA efetuado na declaração periódica respeitante ao mês de agosto de 2015, no montante de € 419.798,24.

(…)


21

Neste contexto, concluiu a AT que a Requerente deveria ter liquidado IVA sobre a transmissão das bebidas e, consequentemente, notificou a Requerente das respetivas liquidações adicionais com os números ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., …..e ….., referentes aos anos de 2012 a 2015/09, no montante total de € 51,014.73, as quais foram voluntariamente pagas pela Requerente, como decorre dos documentos que ora se juntam e aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais (Doc. 2).

(…)

Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exa. doutamente suprirá se requer julgue o presente pedido de pronúncia arbitral procedente, por provado, e, em consequência:

A. Anule integralmente, nos termos supra expostos, as referidas liquidações de IVA, referentes aos anos de 2012 a 2015/09, porquanto as operações realizadas pela Requerente são sempre processadas junto da Alfândega do Aeroporto de Lisboa, dispondo a mesma dos respetivos documentos alfandegários apropriados, e, como tal, encontrando-se isentas de IVA;

B. Subsidiariamente, em caso de improcedência do pedido anterior, anule integralmente as referidas liquidações de IVA, referentes aos anos de 2012 a 2015/09, por assentarem numa incorreta interpretação e aplicação do disposto no artigo 14.º, n.º 2, do CIVA, o qual é contrário aos artigos 148.°, alínea e) e 15o.º da Diretiva IVA e 7.º, n.ºs 5 e 6, 8.°, n.º 4, e 266.°, n.º 2, todos da CRP.

C. Caso considere ser duvidosa a compatibilidade do artigo 14.º, n.º 2, do CIVA com o quadro normativo da UE, proceda ao reenvio prejudicial da questão ao TJUE, nos termos do artigo 267. ° do TFUE;

D. Em qualquer caso condene a AT ao reembolso das quantias indevidamente arrecadadas;

E. Bem como ao pagamento de juros indemnizatórios que se mostrarem devidos, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária” (cfr. fls. 1 a 291 da certidão do processo em formato PDF, constante de CD apenso, a que correspondem futuras referências sem menção de origem, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

2) Na sequência do referido em 1), foi constituído tribunal arbitral singular, tendo dado origem ao processo n.º …..T (cfr. fls. 378).

3) No âmbito do processo referido em 2), foi proferida decisão arbitral, a 27.04.2018, da qual consta designadamente o seguinte:

“(…)

QUESTÕES PRÉVIAS

A) Incompetência material do tribunal

Sustenta a Requerida que no âmbito do presente processo são sindicados atos de deferimento parcial de reembolsos referentes aos períodos 2012 a 2015/09 solicitados pela Requerente, e não atos de liquidação adicional de imposto e que os atos que indeferem pedidos de reembolsos não são passíveis de serem sindicados em jurisdição arbitral porquanto, nem no RJAT, nem na Portaria de Vinculação o legislador aí inseriu a declaração de ilegalidade de atos de indeferimento que provenham de pedidos de reembolsos.

Por sua vez, sustenta a Requerente que os atos cuja legalidade se contesta nesta sede configuram, à luz do exposto, atos de liquidação, uma vez que procedem à determinação de imposto a pagar mediante a aplicação da taxa de IVA à matéria coletável formada pela contraprestação obtida pelo fornecimento de bebidas, e que este mesmo entendimento foi sufragado pela Requerida que, por sua livre espontânea iniciativa, designou os atos sub judice como atos de liquidação.

Vejamos.

No caso em apreço, estamos face a factos tributários que a Requerente considerou beneficiarem de isenção, posição não sufragada pela Requerida que, em consequência procedeu às liquidações adicionais ora reclamadas.

Não se trata, neste caso, de mero indeferimento de reembolso de imposto, mas sim deste indeferimento conexionado com liquidações de imposto. Por outras palavras: o indeferimento do pedido de reembolso foi motivado pelas liquidações adicionais de imposto.

Estamos, pois, perante verdadeiros atos de liquidação de imposto, aliás, assim qualificados pela Requerida no procedimento, designadamente nas notificações dos atos tributários à Requerente onde consta expressamente que se tratam de atos de liquidação, o respetivo número e que contra os atos tributários em causa poderá ser apresentada reclamação graciosa ou impugnação judicial.

De resto, como se decidiu no processo arbitral número 238/2013-T, de 4.04.2014 (…):

“(…), no caso em apreço, como se vê pelo documento reproduzido na alínea f) da matéria de facto fixada, foi a própria Autoridade Tributária e Aduaneira que efectuou uma operação de contabilização de IVA a reembolsar que denominou «DEMONSTRAÇÃO DE LIQUIDAÇÃO IVA», a que atribuiu um «NÚMERO LIQUIDAÇÃO» e uma «DATA LIQUIDAÇÃO», e indicou, na parte final, que a Requerente «fica (...) notificado(a) da liquidação de IVA relativa ao período a que respeitam as operações, em resultado da qual se verifica haver lugar a reembolso no montante apurado, conforme nota demonstrativa supra» e «Da liquidação efectuada, poderá V. Exa. apresentar, no Serviço de Finanças competente, reclamação graciosa ou impugnação judicial nos termos dos art°s 70° e 102° do CPPT».

Ou seja: face aos elementos documentais disponíveis, dever-se-á concluir que, em concreto, bem ou mal, foi praticado um acto de liquidação. Tal acto, corporizado no documento notificado à Requerente integrante da demonstração de liquidação de IVA n.º ..., datada de 20-02-2013, será, para além das restantes liquidações mais, o objecto dos presentes autos, reconduzível à previsão da alínea a) do artigo 2.º do RJAT.

A legalidade de tal acto – bem ou mal praticado – é susceptível de ser apreciada e enquadra-se, directamente, no âmbito das competências dos tribunais arbitrais a funcionar no CAAD, pelo que a invocada excepção de incompetência absoluta, haveria de improceder.

Mesmo que assim não se entendesse, desde há muito que se vem adoptando o entendimento de que os administrados não devem ser prejudicados no exercício de direitos processuais quando forem induzidos em erro por actos de entidades públicas competentes, regra que tem afloramentos explícitos, para os tribunais, no artigo 157.º, n.º 6, e no artigo 191.º, n.º 3, do CPC de 2013 (anteriores artigos 161.º, n.º 1, 198.º, n.º 3) e para os actos da administração, no artigo 7.º do CPA e no artigo 60.º, n.º 4, do CPTA.

Ou seja, tem-se entendido, em suma, que quando um administrado seja induzido à utilização de um determinado meio processual por uma determinada conduta da Administração, não poderá esta pretender obstar ao conhecimento do mérito do pedido, escudando-se na inadequação do meio processual cuja utilização ela própria, objectivamente, induziu.

No caso, verifica-se inclusive que há doutrina, (JOSÉ XAVIER DE BASTO e GONÇALO AVELÃS NUNES), a defender que, «um reembolso contestado pela administração fiscal em tudo equivale a uma liquidação de imposto e os meios de reagir contra esse acto da administração, que nega ou revoga um reembolso, são idênticos aos que a lei põe à disposição dos contribuintes para anular, no todo ou em parte a liquidação do imposto»), tese esta que está em sintonia com a aplicação, determinada pelo artigo 22.º, n.ºs 11 e 13 do CIVA, aos actos de indeferimento de pedidos de reembolso dos meios de impugnação administrativa e contenciosa dos actos de liquidação de IVA, previstos no artigo 93.º do mesmo Código.

Neste contexto, sendo a própria Administração Tributária que na notificação identificou o acto notificado como sendo de liquidação de IVA, induzindo a Requerente à utilização de um meio processual adequado à respectiva impugnação, e não sendo seguro que tal qualificação seja errada (como não pode deixar de se entender quando se constata que a adequação de tal qualificação é afirmada por dois reputados professores universitários de direito tributário) sempre, também por esta via, seria de julgar improcedente a excepção suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.”

Assim, sem necessidade de mais considerações, é manifesta a competência do tribunal arbitral, nos termos do art. 2º, nº 1, al. a) do RJAT, improcedendo a exceção suscitada pela Requerida.

(…)

II – A matéria de facto relevante

8. Consideram-se provados os seguintes factos:

1. A Requerente é uma entidade que tem por objeto a prestação de serviços de catering, predominantemente no setor da aviação, bem como a execução de operações de logística, relacionadas com o abastecimento de aeronaves no âmbito do serviço aos passageiros.

2. As operações de fornecimento de refeições representam cerca de 96% do volume de negócios da Requerente e traduzem-se no fornecimento de refeições prontas a consumir acompanhadas de bebidas, designadamente águas, sumos, leite e café, e, ocasionalmente, a pedido de alguma companhia de navegação aérea, bebidas alcoólicas.

3. As refeições são destinadas, exclusivamente, ao consumo dos passageiros e da tripulação das companhias de navegação aérea que se dedicam, principalmente, ao tráfego internacional.

4. Quanto a estas operações de fornecimento de refeições, a Requerente vinha considerando as mesmas como abrangidas pela isenção prevista na alínea h) do n.º 1 do artigo 14.º do Código do IVA (“CIVA”).

5. Em cumprimento das ordens de serviço números ….., ….., ….., ….., …..e ….., foi efetuado procedimento interno de inspeção à Requerente, o qual teve como objetivo a análise da situação tributária da mesma, em sede de IVA, quanto aos períodos de 2012 a 2015/09, decorrente do pedido de reembolso de IVA efetuado na declaração periódica respeitante ao mês de agosto de 2015, no montante de € 419.798,24.

6. De acordo com o disposto no relatório elaborado aquando da conclusão do procedimento inspetivo, concluiu a AT que “(…) a situação de crédito de imposto foi originada pela dedução do IVA suportado com a aquisição de existências necessárias à confeção de refeições e de outros bens e serviços essenciais à atividade desenvolvida, motivada pelo facto de a maior parte das operações ativas se encontrarem isentas (cerca de 96% do total do volume de negócios), de acordo com o preconizado nas alíneas j) e h) do nº 1 do art.º 14ºtodas do CIVA (…)”.

7. A Requerida entendeu que à transmissão de bebidas, no âmbito do fornecimento de refeições operada pela Requerente, não aproveita da isenção constante da alínea h) do n.º 1 do artigo 14.º do CIVA, devendo atender-se ao disposto no n.º 2 do mesmo artigo, segundo o qual as bebidas postas a bordo das aeronaves não estão isentas de IVA, apesar de ser concedido o direito à dedução na sua aquisição.

8. No relatório final a AT faz referência ao Ofício-Circulado n.º 18973, de 1989.02.21, da Direção de Serviços do IVA, segundo o qual, caso a isenção referida na alínea h) do n.º 1 do artigo 14.º do CIVA não seja aplicável às transmissões de bebidas, por via do disposto no n.º 2 do mesmo artigo, se existir a intervenção da Alfândega, a operação qualifica como uma exportação e se devidamente documentada tem plena aplicação a isenção da alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º do CIVA.

9. Neste contexto, concluiu a AT que a Requerente deveria ter liquidado IVA sobre a transmissão das bebidas e, consequentemente, notificou a Requerente das respetivas liquidações adicionais com os números ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., ….., …..e ….., referentes aos anos de 2012 a 2015/09, no montante total de € 51,016.80, do que resultou, em parte, cortes nos reembolsos solicitados pela Requerente e, ainda, num valor a pagar por esta no montante de 14.018,45 €, que a Requerente pagou, nos termos constantes do documento nº 2 junto à petição inicial e que se dá por reproduzido.

10. Não concordando com o teor do relatório, e consequentemente com as liquidações notificadas, a Requerente apresentou reclamação graciosa, sustentando que:

-O fornecimento de provisões de bordo que realiza, incluindo a colocação de bebidas a bordo das companhias de navegação aérea, é sempre processado na Alfândega e comprovado com documentos alfandegários apropriados, logo, a operação é isenta de IVA por aplicação da alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º do CIVA, conforme previsto no Ofício-Circulado n.º 18973 de 1989.02.21 da DSIVA;

-Não decorre do texto da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006 (“Diretiva IVA”) qualquer possibilidade de os Estados Membros da União Europeia derrogarem a isenção prevista nos termos da alínea e) do artigo 148.º da Diretiva IVA (transposto para a alínea h) do n.º 1, do artigo 14.º do CIVA), logo, nem o legislador nacional, nem a AT, poderão, válida ou legalmente, limitar ou derrogar as disposições preconizadas na Diretiva IVA quanto às isenções de tributação que os Estados Membros deverão aplicar.

11. Não obstante, a reclamação graciosa foi indeferida em 23-06-2017, com base nos fundamentos já apresentados pela AT em sede de procedimento inspetivo, objeto de notificação endereçada à Requerente em 26-06-2017.

12. O fornecimento de provisões de bordo que a Requerente realizou e sobre que incidem as liquidações objeto do presente processo, incluindo a colocação de bebidas a bordo das companhias de navegação aérea, foram processados na Alfândega do Aeroporto de Lisboa, nos termos dos documentos constantes do processo, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

         Com interesse para a decisão da causa inexistem factos não provados.

9. A convicção do Tribunal quanto à decisão da matéria de facto alicerçou-se nos documentos constantes do processo administrativo e nos documentos juntos pela Requerente, que não foram objeto de impugnação por nenhuma das partes, bem como das posições das partes constantes dos articulados apresentados.

-III- O Direito aplicável

10. Tendo a impugnante invocado a ilegalidade dos atos de liquidação por violação de lei substantiva e o vício de falta de fundamentação da decisão que indeferiu a reclamação graciosa apresentada contra aqueles atos, há que determinar a ordem do conhecimento dos mesmos, devendo ser observada, como é pacífico, a prevista no art. 124º do CPPT, aplicável por força do art. 29º, nº 1, al. a) do RJAT (Cfr. Jorge Lopes de Sousa, Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, in GUIA DA ARBITRAGEM TRIBUTÁRIA, Coord. Nuno Villa-Lobos e Mónica Brito Vieira, 2017, Almedina, pag. 205).

O vício de violação de lei é aquele que conduzirá à “mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos” na medida em que a sua eventual procedência impedirá a renovação do ato, o que não sucede com uma hipotética anulação decorrente do vício de falta de fundamentação da decisão que indeferiu a reclamação graciosa, na eventualidade de se considerar que a tal questão possa ser considerada objeto do processo.

Em conformidade, o Tribunal irá apreciar em primeiro lugar a questão da ilegalidade apontada às liquidações.

11. A Requerente aponta dois fundamentos jurídicos distintos para sustentar a ilegalidade das liquidações. Em primeiro lugar a violação do artigo 14º, nº 1, al. a) do CIVA em conjugação com o Ofício-Circulado n.º 18973 de 1989.02.21 da DSIVA. Em segundo lugar, por assentarem numa incorreta interpretação e aplicação do art. 14º, nº 2, do mesmo código, por ser contrário ao art. 148º, al. e) da Diretiva IVA.

É de observar que que se trata de fundamentos jurídicos distintos e não de vício distintos, porquanto a procedência de qualquer um deles será idónea a provocar a anulação dos atos tributários por vício de violação de lei, pelo que não é aqui aplicável o art. 124º do CPPT.

Tendo em conta que a norma especificamente aplicável ao caso dos autos, em primeira linha, seria a al. h), do nº 1, do art. 14º, alvo de restrição pelo nº 2 do mesmo artigo e colocando-se a questão da sua compatibilidade com o artigo 148º da Diretiva, afigura-se metodologicamente indicado iniciar a análise da pretensão da requerente pela apreciação deste quadro normativo, sendo certo que o eventual acolhimento da posição da Requerente nesta matéria implicará a procedência do pedido, independentemente da prova produzida a respeito das alegadas exportações, à luz do art. 14º, nº 1, al. a) do CIVA.

Vejamos então.

(…)

13.Determina o art. 14º do CIVA que:

 “1-Estão isentas do imposto:

a) As transmissões de bens expedidos ou transportados para fora da Comunidade pelo vendedor ou por um terceiro por conta deste;

(…)

g) As transmissões, transformações, reparações e operações de manutenção, frete e aluguer de aeronaves utilizadas pelas companhias de navegação aérea que se dediquem principalmente ao tráfego internacional, assim como as transmissões, reparações, operações de manutenção e aluguer dos objectos incorporados nas mesmas aeronaves ou que sejam utilizados para a sua exploração;

h) As transmissões de bens de abastecimento postos a bordo das aeronaves referidas na alínea anterior;

2 - As isenções referidas nas alíneas d), e) e h) do número anterior, no que se refere às transmissões de bebidas, efectivam-se através do exercício do direito à dedução ou da restituição do imposto, não se considerando, para o efeito, o disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 21.º”

Por sua vez, estabelece o artigo 148º da Diretiva IVA (Diretiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de Novembro de 2006):

“Os Estados–Membros isentam as seguintes operações:

(…)

e) As entregas de bens destinados ao abastecimento de aeronaves utilizadas por companhias de navegação aérea que se dediquem essencialmente ao tráfego internacional remunerado;”

Por outro lado, é a seguintes a redação do Artigo 150º da Diretiva:

“1. A Comissão deve apresentar ao Conselho, se necessário, no mais curto prazo, propostas destinadas a precisar o âmbito de aplicação das isenções previstas no artigo 148.º e as regras práticas da sua aplicação.

2. Até à entrada em vigor das disposições referidas no n.º 1, os Estados–Membros podem limitar o âmbito de aplicação das isenções previstas nas alíneas a) e b) do artigo 148.º.”

Analisando a mencionada regra constante do art. 148º, al. e) da Diretiva, verifica-se que a mesma consagra, sem margem para qualquer dúvida, uma isenção nas entregas de bens destinados ao abastecimento de aeronaves utilizadas por companhias de navegação aérea que se dediquem essencialmente ao tráfego internacional remunerado.

Por sua vez, também é indubitável que o nº 2, do art. 14º do CIVA não consagra a isenção respeitante a este facto tributário de IVA, no que respeita a bebidas.

 A lei determina que no que se refere à transmissão de bebidas, a isenção em causa se efetiva através do exercício do direito à dedução ou da restituição do imposto.

Trata-se, porém, duma ficção jurídica, que como é comum nesta técnica legislativa, não tem correspondência com a realidade, porquanto da solução legal decorre que o valor acrescentado correspondente ao facto tributário em causa não fica isento do imposto. Dito de outro modo: a diferença entre o custo das bebidas incorrido pelo sujeito passivo e o preço fixado para a entrega prevista no art. 148º, al. e) da Diretiva, com a solução estabelecida no CIVA, não fica isento de imposto mas, ao invés, sujeito.

Determina, ainda, o artigo 131º da Diretiva IVA que:

“As isenções previstas nos Capítulos 2 a 9 aplicam-se sem prejuízo de outras disposições comunitárias e nas condições fixadas pelos Estados–Membros a fim de assegurar a aplicação correcta e simples das referidas isenções e de evitar qualquer possível fraude, evasão ou abuso.”

Como escreve Rui Laires (…):

“No domínio das isenções de imposto, é jurisprudência constante do TJUE que a referência, actualmente constante do artigo 131da Directiva do IVA, segundo a qual a aplicação das isenções se efectiva nas condições fixadas pelos Estados Membros não se reconduz a uma faculdade de estes definirem o próprio conteúdo das isenções.Assim, a possibilidade dada aos Estados membros naquele artigo cinge-se ao estabelecimento de disposições que facilitem a aplicação das isenções e que assegurem o seu correcto funcionamento, nomeadamente, evitando a fraude e a evasão fiscal, não abrangendo o alargamento ou a redução das categorias de isenções”[6]
Na verdade, este entendimento consta, designadamente, nos seguintes acórdãos proferidas pelo TJUE: de 19 de janeiro de 1982 (8/81, Becker); de 13 de Julho de 1989 (173/88, Henriksen);de 28 de Março de 1996 (C-468/93, Gemeente Emmen); de 7 de Maio de 1998 (C-124/96, Comissão/Espanha; de 11 de Janeiro de 2001 (C-76/99, Comissão/França); de 20 de Junho de 2002 (C-287/00, Comissão/Alemanha); de 10 de Novembro de 2011 (processos apensos C259/10 e C260/10, Rank); de 26.04.2012 (processos apensos C621/10 e C129/11, Balkan and Sea Properties/Provadinvest).
Como se pode ler no acórdão de 20.6.2002 — processo C-287/00:

“o Tribunal de Justiça já decidiu que as condições das isenções fixadas pelos Estados-Membros não podem incidir sobre a definição do conteúdo das isenções previstas (v. acórdão de 28 de Março de 1996, Gemeente Emmen, C-468/93, Colect., p.I-1721,n.° 19).”

À luz do que fica exposto, como é bom de ver, improcede a alegação da Requerida no sentido que sempre estaria esfera de liberdade do Estado Português proceder ao afastamento da regra constante da Diretiva, não podendo o legislador suprimir a isenção em causa, através duma ficção jurídica pela qual ficaria sujeito a tributação o facto tributário que a norma da Diretiva isenta de imposto.

A Requerida, alega ainda que “E nem afirme a Requerente que a legislação interna se encontra a limitar o direito à isenção das operações de tráfego internacional, dado na realidade não existir uma exclusão tout court do dito benefício pois que, concatenando o teor do artigo 14.º, n.º 2 do CIVA com o do Ofício-Circulado n.º 18973, de 21-02-1989, infere-se, que as bebidas para abastecimento de embarcações e navios serão tributadas ao nível interno «caso não se trate de uma exportação devidamente documentada com o bilhete de despacho de exportação do fornecedor, pois, neste caso, tem plena aplicação a isenção referida na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º».”

É de observar, porém, que as isenções do art. 146º da Diretiva (Capitulo 6, Isenções na exportação) e do art. 148º (capítulo 7, Isenções aplicáveis aos transportes internacionais) em causa, têm fundamentos e requisitos distintos, umas vez que uma tem por fundamento a exportação e outra o fornecimento no âmbito de transportes internacionais sendo que, como é evidente, podem estar preenchidos os requisitos para a isenção por fornecimento a este título e não ocorrer qualquer exportação.

O que mesmo se diga, no que ao caso que nos ocupa diz diretamente respeito, às disposições do art. 14º, nº 1, al. a), do CIVA, por um lado, e à disposição da al. h), do mesmo número por outro.

Com escreve Miguel Gorjão Henriques, (…) citando o referido acórdão Becker “Na formulação do Tribunal de Justiça, «segundo jurisprudência assente, em todos os casos em que as disposições de uma directiva aparecerem como sendo, do ponto de vista do seu conteúdo, incondicionais e suficientemente precisas, os particulares podem invoca-las perante o Estado, quer quando este se abstém de transpor, dentro do prazo, a directiva para o direito nacional, quer quando faz uma transposição incorrecta»”.

Sendo claro que o Estado português, com a atual redação do art. 14º, nº 2 do CIVA fez uma transposição incorreta da Diretiva (ao tempo 6ª Diretiva), ao não isentar de imposto o facto tributário cuja isenção a Diretiva prevê, não pode esta supressão da isenção, à luz da jurisprudência do TJUE, deixar de ser desaplicada, pois como se pode ler no mencionado acórdão proferido nos processos c-621/10 e C-129/11 de 26.04.2012:

“54 Cabe ao órgão jurisdicional nacional, dentro da margem de apreciação que lhe é concedida pelo direito nacional, interpretar e aplicar as disposições de direito interno em conformidade com as exigências do direito da União e, se essa interpretação não for possível, deixar de aplicar qualquer disposição de direito interno contrária a essas exigências”[8]

Assim sendo, as liquidações em causa, carecem de base legal, não podendo deixar de ser anuladas, ficando, assim, prejudicado a apreciação dos demais fundamentos invocados pela Requerente bem como o conhecimento do vício de falta de fundamentação apontado à decisão que indeferiu a reclamação graciosa.

14. Veio, ainda, a Requerente pedir a condenação da Requerida a reembolso das quantias indevidamente arrecadadas, bem como o pagamento de juros indemnizatórios que se mostrarem devidos, nos termos do artigo 43.º da Lei Geral Tributária.

No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dos atos de liquidação, é procedente a pretensão do Requerente à restituição por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para restabelecer a situação que existiria se a ilegalidade em causa não tivesse sido praticada.

(…)

Termos em que se julga procedente o pedido de pronuncia arbitral, declarando-se a ilegalidade e consequente anulação dos atos tributários de liquidação impugnados, devendo a Requerida dar cumprimento ao artigo 24º do RJAT, designadamente restituindo à Requerente o imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios contados desde a data do pagamento até à do processamento da nota de crédito, em que são incluídos (art. 61.º, n.º 5, do CPPT)” (cfr. fls. 2626 a 2653, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Da nulidade por pronúncia indevida

Considera a Impugnante verificar-se uma situação de pronúncia indevida, em virtude de ter sido excedida a competência dos tribunais arbitrais, atenta a circunstância de na verdade se estar perante uma situação de reação a indeferimento de reembolso de IVA, o que não se compadece com as competências dos tribunais arbitrais.

A Impugnada, em sede de contra-alegações, considerou não se verificar tal nulidade, dado estarem em causa liquidações de IVA, sendo esses os atos objeto do pedido de pronúncia arbitral.

Vejamos.

Nos termos do art.º 27.º, n.º 1, do RJAT, a decisão arbitral pode ser anulada pelo Tribunal Central Administrativo, sendo que a impugnação pode ser apresentada considerando um dos fundamentos taxativamente elencados no n.º 1 do art.º 28.º do mesmo diploma.

Assim, nos termos desta última disposição legal, a decisão arbitral é impugnável com fundamento em:

“a) não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

b) oposição dos fundamentos com a decisão;

c) pronúncia indevida ou na omissão de pronúncia;

d) violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, nos termos em que estes são estabelecidos no artigo 16.º”.

Atento o disposto no art.º 29.º, n.º 1, do RJAT, é de considerar a disciplina subsidiariamente aplicável, de onde se destacam as normas constantes do CPPT, do CPTA e do CPC [cfr. art.º 29.º, n.º 1, als. a), c) e e), do RJAT].

In casu, como já referido, está em causa a pronúncia indevida por parte do tribunal arbitral.

Vejamos.

Nos termos do art.º 125.º, n.º 1, do CPPT, há excesso de pronúncia, que consubstancia nulidade da sentença, quando haja pronúncia sobre questões de que o juiz não deva conhecer [cfr. igualmente o art.º 615.º, n.º 1, al. d), do CPC].

No âmbito do contencioso impugnatório de decisões arbitrais o conceito de pronúncia indevida é mais amplo do que o de excesso de pronúncia, nele se incluindo designadamente as situações em que é suscitada a incompetência material dos tribunais arbitrais.

A este propósito, chama-se à colação o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 177/2016, de 29.03.2016, no qual foi julgada inconstitucional a alínea c) do n.º 1 do art.º 28.º do RJAT, na interpretação normativa de que o conceito de “pronúncia indevida” não abrange a impugnação da decisão arbitral com fundamento na incompetência material do tribunal arbitral. Sublinhou-se neste aresto que “as decisões de um tribunal arbitral tributário sobre a própria competência não podem deixar de estar submetidas a reapreciação por um tribunal do Estado, sob pena de serem as próprias atribuições deste em matéria tributária a ficar em risco”.

Assim, a nulidade suscitada é passível de apreciação por este Tribunal Central, por se enquadrar no âmbito do art.º 28.º, n.º 1, al. c), do RJAT.

Feito este introito, cumpre apreciar.

In casu, como se referiu, entende a Impugnante, desde logo, que o Tribunal arbitral decidiu sobre matéria para a qual não é materialmente competente.

Cumpre, antes de mais, atentar na competência e nos poderes dos tribunais arbitrais tributários.

Nos termos do art.º 2.º do RJAT:

“1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais”.

Por seu turno, nos termos do art.º 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março (Portaria de vinculação):

“Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objeto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com exceção das seguintes:

a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de atos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;

b) Pretensões relativas a atos de determinação da matéria coletável e atos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indiretos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;

c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indiretos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação;

d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efetuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira;

e) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade da liquidação de tributos com base na disposição anti abuso referida no n.º 1 do artigo 63.º do CPPT, que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos do n.º 11 do mesmo artigo”.

Como referido no Acórdão do Plenário do Supremo Tribunal Administrativo, de 21.03.2012 (Processo: 0189/11): “A competência (ou jurisdição) de um tribunal afere-se pelo quid decidendum, ou seja, pelos objectivos prosseguidos pelo autor, que são, no recurso de acto administrativo, anular este, ou declarar a sua nulidade, com fundamento nos vícios que se lhe apontem”.

Tendo este pressuposto como ponto de partida de análise, resulta que, in casu, como desde logo decorre do pedido de pronúncia arbitral, a Impugnada veio reagir contra atos de liquidação adicional de IVA emitidos pela AT (e após indeferimento de reclamação graciosa), atos esses emitidos na sequência de procedimento inspetivo motivado por pedido de reembolso de IVA efetuado na declaração periódica de IVA, relativa a agosto de 2015 [cfr. facto 1)]. Nessa sequência, formulou, entre outros, o pedido de anulação dos mencionados atos de liquidação.

Como tal, claramente são objeto mediato do pedido de pronúncia arbitral os mencionados atos de liquidação de IVA.

Por outro lado, como resulta da decisão proferida, a questão controvertida prendeu-se com a isenção ou não isenção de determinadas operações praticadas pela Impugnada.

In casu, a Impugnada entendeu que determinadas operações que praticava eram isentas, assistindo-lhe, no entanto, o direito à dedução de IVA, motivo pelo qual se encontrava em crédito de imposto e formulou pedido de reembolso.

Na ação inspetiva levada a efeito, a AT discordou que as mencionadas operações fossem isentas, tendo liquidado IVA em conformidade com este entendimento (o que, naturalmente, se refletiu em termos de “cortes nos reembolsos solicitados” – cfr. facto 9. da decisão arbitral).

Ou seja, apesar de o mote que deu origem à ação inspetiva ter sido a formulação de um pedido de reembolso, dessa ação resultaram correções aritméticas, pelos motivos já indicados, que redundaram, a final, na emissão das liquidações objeto de ulterior escrutínio.

Ademais, um dos vícios imputados pela Impugnada aos atos de liquidação foi, desde logo, o de erro sobre os pressupostos, tendo considerado o Tribunal arbitral que essas mesmas liquidações careciam de base legal, deferindo, nesse seguimento, a pretensão da Impugnada, tendo, a final, decidido no sentido da anulação das liquidações impugnadas.

Ora, ainda que o motivo que desencadeou a ação inspetiva tenha sido um pedido de reembolso de IVA formulado, do que se trata aqui é de reação a liquidações adicionais de IVA emitidas pela AT, relativamente às quais foram imputados vícios exclusivos da liquidação, e que, atento o quadro normativo a que já fizemos referência, entram na esfera de competência dos tribunais arbitrais. Ou seja, não é objeto dos autos o pedido de reembolso de IVA nem é alegado qualquer vício do procedimento atinente ao pedido de reembolso.

Portanto, estamos perante reação a liquidações adicionais de IVA, carecendo de sustentação o alegado pela Impugnante no sentido de estarmos perante “pretensos atos de liquidação adicional” ou de que “[a]s apelidadas demonstrações da liquidação naqueles casos, como a que se reportam os presentes autos mais não são do que indeferimentos parciais de reembolsos”.

No caso houve discordâncias da AT relativamente ao tratamento dado a determinadas operações por parte da Impugnada, houve correções aritméticas elaboradas em conformidade com esse entendimento, houve emissão de liquidações adicionais de IVA em consequência de tais correções.

Estamos perante efetivos atos de liquidações, que, naturalmente, têm impacto em termos de cômputo do reembolso solicitado, mas nem por isso faz com que se esteja perante “pretensos atos de liquidação” ou estejamos perante questões de “semântica”.

Carece, pois, de relevância atermo-nos sobre a distinção entre indeferimento de pedidos de reembolso ou emissão de atos de liquidação, porquanto é perante atos de liquidação que estamos e foi relativamente a eles que a Impugnada reagiu.

Aliás, atento o facto 9. da decisão arbitral, que dá por reproduzido o documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, das próprias notificações das liquidações em causa feitas pela AT consta que as mesmas podem ser objeto de reação direta, graciosa ou contenciosa – sendo que não pode a parte deixar de poder usar de um meio de reação que a própria administração reputa como meio próprio.

Ou seja, a própria AT, como não poderia deixar de ser, trata as liquidações em causa como aquilo que são: verdadeiras liquidações de imposto.

Neste sentido foi, aliás, a decisão arbitral, no conhecimento da matéria de exceção.

Sobre idêntica questão já se pronunciou este TCAS, em Acórdão de 28.11.2019 (Processo: 44/19.9BCLSB), no qual se refere:

“[N]ão logra (…) provimento a esteira de entendimento da Autoridade Tributária no sentido de que a liquidação de IVA impugnada não representa em si um ato de liquidação, não só porque essa é a nomenclatura dela constante, como é a própria Administração Tributária no aludido ato tributário que a qualifica enquanto tal (…).

Pelo que, não podemos negligenciar tal nomenclatura -não sendo, como aduz a Impugnante uma questão de semântica ou meramente formalista- tendo a mesma de ser valorada enquanto tal.

No fundo, e como sustenta a Impugnada, a Impugnante no âmbito de um procedimento de inspeção, promoveu toda uma série de correções que alteraram a situação tributária da Impugnada, tendo procedido à correção de parte do IVA deduzido pela Impugnada e promovido uma verdadeira liquidação de imposto com base nos valores apurados, os quais são diferentes dos declarados pela Impugnada na sua Declaração Periódica, tendo dado origem a um diferente resultado final (liquidação) que, tanto se pode materializar num menor crédito de imposto, como ainda num imposto a entregar.

Face a todo o exposto, (…) encontramo-nos, assim, perante um ato de liquidação de quantificação da obrigação tributária (…), razão pela qual é este o ato de liquidação que corresponde ao objeto do pedido e que se enquadra no processo de impugnação de atos de liquidação, da competência da jurisdição arbitral”.

Invoca ainda a Impugnante que interpretação diversa é atentatória do disposto no art.º 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e, bem assim, do princípio do livre acesso aos tribunais, na vertente do direito ao duplo grau de jurisdição.

Nos termos do mencionado preceito da nossa lei fundamental:

“Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Ora, se é certo que a CRP consagra expressamente a existência de tribunais administrativos e fiscais nos termos referidos, é também certo que a mesma, no seu art.º 202.º, n.º 4, prevê que “[a] lei poderá institucionalizar instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos”.

Por outro lado, o art.º 20.º da CRP, relativo ao acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, não prevê o direito ao duplo grau de jurisdição, exceto no âmbito criminal (cfr. art.º 32.º, n.º 1, da CRP).

Chama-se à colação o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 396/2014, de 07.05.2014, onde se refere:

“Efetivamente, em matéria de direito ao recurso jurisdicional, o Tribunal Constitucional tem afirmado uniforme e repetidamente que não resulta da Constituição, em termos genéricos, nenhuma garantia do duplo grau de jurisdição; nem tal direito faz parte integrante e necessária do princípio constitucional do acesso ao direito e à justiça, expressamente consagrado no artigo 20.º da Constituição (cfr., por todos, os Acórdãos n.ºs 44/2008 e 339/2011, acessíveis, como os demais referidos, em www.tribconstitucional.pt, JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição da República Portuguesa Anotada, tomo I, 2.ª edição, nota XXI ao artigo 20.º, pp. 449 a 452, e GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4.ª edição revista, nota XIV ao artigo 20.º, p. 418).

Como se referiu, designadamente, no Acórdão n.º 202/99, o direito que o artigo 20.º, n.º 1, da Constituição a todos assegura de “acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos” consiste no “direito a ver solucionados os conflitos, segundo a lei aplicável, por um órgão que ofereça garantias de imparcialidade e independência, e face ao qual as partes se encontrem em condições de plena igualdade no que diz respeito à defesa dos respectivos pontos de vista (designadamente sem que a insuficiência de meios económicos possa prejudicar tal possibilidade)”. Da previsão constitucional decorre ainda que a tutela jurisdicional dos direitos e interesses legalmente protegidos deve ser efetuada “mediante processo equitativo” e cujos procedimentos possibilitem uma “decisão em prazo razoável” e sejam “caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos” (n.ºs 4 e 5 do referido artigo 20.º da CRP).

A exigência de um duplo grau de jurisdição apenas está expressamente consagrada no âmbito do processo penal e relativamente a decisões condenatórias ou que afetem a liberdade do arguido (artigo 32.º, n.º 1, da CRP). Para além disso, esse direito é considerado por alguma doutrina e jurisprudência, embora com fundamentação não inteiramente coincidente, como inerente à proteção contra decisões jurisdicionais que imponham restrições a direitos, liberdades e garantias pessoais.

Fora desses domínios específicos, o legislador ordinário goza de ampla margem de conformação do direito ao recurso, podendo regular diversamente a possibilidade e o modo de impugnação das decisões jurisdicionais. Refere LOPES DO REGO: “fora do âmbito processual penal, vem sendo uniformemente entendido pela jurisprudência constitucional que a garantia de um duplo grau de jurisdição não goza de proteção generalizada, não se podendo, nomeadamente, considerar incluída no direito de acesso aos tribunais – e gozando, consequentemente, o legislador infraconstitucional de uma ampla margem de discricionariedade legislativa” (Estudos em Memória do Conselheiro Luís Nunes de Almeida, 2007, p. 853).

Contudo, da não consagração de um direito ao duplo grau de jurisdição em processo civil não decorre que o legislador possa proceder arbitrariamente à regulação dos meios de impugnação das decisões judiciais. Para além da supressão ou inviabilização global da faculdade de recurso – limite que decorre da própria previsão constitucional de tribunais superiores -, as restrições ao direito ao recurso estão sujeitas aos princípios estruturantes do Estado de direito democrático e, de um modo especial, aos princípios da igualdade e da proporcionalidade, ambos invocados como violados pelos recorrentes.

No que respeita ao primeiro, é entendimento abundante e reiterado deste Tribunal que o princípio da igualdade não proíbe ao legislador que faça distinções, mas apenas diferenciações de tratamento sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objetiva e racional (cfr., por exemplo, os Acórdãos n.ºs 319/2000 e 460/2011 e, entre outros autores, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, ob. cit., p. 339); avaliação que se obtém mediante a ponderação da ratio das soluções em confronto e aferição destinada a determinar se a diferenciação possui fundamento razoável. Neste domínio, o Tribunal Constitucional controla sobretudo o respeito pela proibição do arbítrio, enquanto critério negativo e limitador da liberdade do legislador ordinário.

Desta forma, como se afirmou no Acórdão n.º 202/99, a ampla margem de discricionariedade na concreta conformação e delimitação dos pressupostos de admissibilidade e do regime dos recursos que deve ser reconhecida ao legislador ordinário em processo civil tem como “limite a não consagração de regimes arbitrários, discriminatórios ou sem fundamento material bastante, em obediência ao princípio da igualdade”.

Para além disso, tem de ser respeitado o princípio da proporcionalidade, enquanto princípio geral de limitação do poder público, decorrente do próprio princípio geral do Estado de Direito (artigo 2.º da Constituição). Impõem-se, na realidade, limites resultantes da avaliação da relação entre os fins e as medidas eleitas para a sua prossecução, devendo o legislador ajustar a sua projetada ação de modo a não conformar medidas desadequadas, desnecessárias ou excessivamente restritivas”.

Como mencionado no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 280/2015, de 20.05.2015:

“Contrariamente ao que sucede no processo criminal, domínio em que a Constituição, desde a revisão constitucional de 1997, consagra expressamente, como garantia de defesa do arguido, o direito ao recurso ou a um duplo grau de jurisdição (artigo 32.º, n.º 1) – direito que já antes vinha sendo reconhecido pela jurisprudência constitucional em relação à decisão final condenatória e todos os atos judiciais que tenham por efeito a privação ou restrição da liberdade ou outros direitos fundamentais do arguido -, não existe na Lei Fundamental qualquer previsão expressa atributiva do correspondente direito às partes em processo civil.

Com base nesse dado jurídico-constitucional, tem o Tribunal Constitucional concluído, em jurisprudência consolidada, pela inexistência, em processo civil (e, bem assim, em processo laboral e administrativo) de um direito geral a um duplo grau de jurisdição, considerando que «o direito à tutela jurisdicional não é (…) imperativamente referenciado a sucessivos graus de jurisdição. Ali se assegura apenas em termos absolutos, e num campo de estrita horizontalidade, o acesso aos tribunais para obter a decisão definitiva de um litígio» (Acórdão n.º 65/88) ou o «direito a ver solucionados os conflitos, segundo a lei aplicável, por um órgão que ofereça garantias de imparcialidade e independência, e face ao qual as partes se encontrem em condições de plena igualdade no que diz respeito à defesa dos respetivos pontos de vista (…)»(Acórdão n.º 638/98).”.

Ademais, em bom rigor, esta questão da alegada inconstitucionalidade nada de específico contém no caso concreto, estando sim relacionada com os próprios parâmetros definidores dos tribunais tributários arbitrais, que não atentam, nesse conspecto, com a nossa lei fundamental.

Em suma, não assiste razão à Impugnante.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:
a) Julgar improcedente a presente impugnação;
b) Custas pela Impugnante;
c) Registe e notifique.


Lisboa, 19 de novembro de 2020

[A relatora consigna e atesta que, nos termos do disposto no art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 01 de maio, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Senhores Desembargadores António Patkoczy e Mário Rebelo]

Tânia Meireles da Cunha