Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:417/08.2BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:03/28/2019
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:CONTRADIÇÃO REAL ENTRE FUNDAMENTOS E DECISÃO;
RENDIMENTOS CATEGORIA A;
ÓNUS DA PROVA
Sumário:I. Não se verifica contradição real entre os fundamentos e a decisão proferida quando na sentença recorrida o Tribunal a quo faz uma interpretação de direito distinta da vertida num despacho proferido em momento anterior.
II. Tendo sido efetuadas transferências bancárias ou emitidos cheques em nome de gerente da sociedade, na sequência da realização de transações por essa mesma sociedade com terceiros, valores esses não declarados como rendimentos desta última, afigura-se, prima facie, estar perante rendimentos de IRS enquadráveis na categoria A.
III. O ónus da prova de que tais valores não consubstanciam rendimentos compete ao sujeito passivo.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acórdão

I. RELATÓRIO

A......e P.... (doravante Recorrentes) vieram apresentar recurso da sentença proferida a 25.10.2011, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Sintra, na qual foi julgada improcedente a impugnação por si apresentada, que teve por objeto a liquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), relativa ao ano de 2003, no valor total de 71.086,97 Eur.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nesse seguimento, os Recorrentes apresentaram alegações, nas quais concluíram nos seguintes termos:

“I. Ao julgar improcedente a invocada falta de notificação da liquidação adicional de IRS relativa ao período de 2003, considerando que a mesma se presume efectuada no 3.° dia posterior ao do registo, nos termos do disposto no n.º 1 do art.° 39° do CPPT, o Tribunal a quo incorreu num vício de nulidade, por contradição real entre os fundamentos e a decisão proferida, nos termos do disposto no artigo 125° do CPPT, visto que se havia já pronunciado, por despacho proferido em 13 de Julho de 2010, no sentido de que, aquela presunção não operaria relativamente à liquidação adicional em causa, por se ter provado que a mesma havia sido devolvida ao remetente.

II. A sentença recorrida incorre também em nulidade ao não especificar os fundamentos de facto e de direito que sustentam o enquadramento dos rendimentos auferidos pelo ora Recorrente na alínea a) do n.º 3 do artigo 2.º do CIRS,


E

III. Bem como em erro de julgamento, por fazer uma errada interpretação e aplicação do disposto naquela alínea, ao considerar aquelas verbas como remuneração do Recorrente enquanto gerente,

IV. Uma vez que, ao contrario do que entende a Administração fiscal, nem todas as transferências de recursos próprios da sociedade para os seus gerentes podem ser enquadradas na alínea a) do n.º 3 do artigo 2º do CIRS,

V. Só se podendo enquadrar naquele preceito aquelas que sejam efectuadas a título de remuneração, o que manifestamente não ocorre no caso sub judice.

VI. Na verdade, verifica-se que todas as importâncias em causa no presente processo foram depositadas numa conta bancária cujos titulares são o Recorrente e o seu pai, M…., sócio e também gerente da referida sociedade,

VII. O qual, em 31 de Dezembro de 2002, era detentor de um crédito sobre aquela no montante de €1.443.664,64 Euros, tendo sido reembolsado, durante o exercício de 2003, de pelo menos €1.232.769,70 Euros, vendo o seu crédito reduzido, em 31 de Dezembro de 2003, para apenas €210.894,93 Euros,

VIII. Motivo pelo qual os valores em causa têm a natureza de reembolso do financiamento efectuado e devidamente registado na conta da referida sociedade com o n.º 26…., em nome do gerente M...., devendo ser considerados como tais, sob pena de violação da alínea a) do n.º 3 do artigo 2º do CIRS,

IX. Podendo, no limite, e tendo em conta que aquele gerente é também sócio da sociedade em causa, ser considerados pela Administração como rendimentos de capital, nos termos da alínea h) do n.º 2 do artigo 5o do CIRS.”.

A Fazenda Pública (doravante Recorrida ou FP) não apresentou contra-alegações.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 289.º, n.º 2, do CPPT) vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:

a) Há nulidade por contradição real entre os fundamentos e a decisão proferida?

b) Há nulidade em virtude de na sentença recorrida não se especificarem os fundamentos de facto e de direito que sustentam o enquadramento dos rendimentos auferidos pelo Recorrente na alínea a) do n.º 3 do art.º 2.º do CIRS?

c) Há erro de julgamento, havendo errada interpretação da al. a) do n.º 3 do artigo 2.º do CIRS?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“A) No ano de 2003 A...... declarou rendimentos pertencentes às categorias "A" (€ 12.222,00, pagos pela empresa G....; S:A) e "E" (€ 183,30) e a contribuinte P.... declarou rendimentos pertencentes à categoria “A” (€ 4.189,92) (cfr. fls 50 a 57 do PAT).

B) No referido ano, o impugnante A......exerceu o cargo de gerente da “S...., LDA." (cfr. art. 10º e 11º da p.i, fls. 16/17 dos autos, depoimento das testemunhas).

C) Dos estatutos da sociedade "S....LDA." consta no respectivo artigo 4º, nº 1, “A gerência da sociedade, dispensada de caução e com ou sem remuneração, conforme foi deliberado em assembleia geral, é formada por: Grupo “A”: -(...) A.....” (Cfr. fls. 16 e 17 dos autos).

D) Na sequência da emissão da ordem de serviço n° 01200…., de 21/09/2007, da Direcção de Finanças de Lisboa, os impugnantes foram objecto de uma acção de inspecção ao exercício do ano de 2003 (fls. 69 a 85 do processo administrativo tributário apenso - PAT).

E) Do relatório de inspecção constante de fls. 72 a 76 do PAT apenso, que se dá aqui por integralmente reproduzido, confirmado pela Chefe de Equipa de Inspecção Tributária no parecer de fls. 70 do PAT apenso, que igualmente se dá aqui por integralmente reproduzido, destaca-se o seguinte:

«(...) Esta acção inspectiva foi determinada pela OS/Ordem de Serviço n° 01200…., PNAIT 311,16, com despacho datado de 21/09/2007, visando o ano de 2003.

O trabalho inspectivo efectuado aos S.P. 's A....., NIF 178 …..e P....., NIF 198 ….com domicílio fiscal na Av. ….n? 2 Alameda ….n° 2 Quinta da …B Piso OC 2... …foi iniciado em 24/09/2007.

B - Motivo, âmbito e incidência temporal

O pedido de inspecção foi formulado na sequência da análise efectuada à S...., LDA., onde foram recolhidos elementos susceptíveis de tributação em sede de IRS, que não foram declarados na declaração de rendimentos IRS - Mod. 3 de 2003 dos S.P.'s. acima identificados.

O âmbito da acção tem o propósito do controlo fiscal interno dos S.P.'s no tocante ao IRS do exercício de 2003.

(...)

Na análise efectuada ao sistema informático verificámos que o contribuinte A......declarou rendimentos pertencentes às categorias "A" (€ 12.222,00) e "E" (€ 183,30) e a contribuinte P.... declarou rendimentos pertencentes à categoria "A" ( € 4.189,92 ) na Mod. 3/1RS do ano de 2003.

Os rendimentos declarados pelo contribuinte A…. no Anexo "A" foram pagos pela empresa G...., S.A. com o NIPC 502 ……e os declarados pela sua esposa foram pagos pela empresa R.....LDA, com o NIPC 505 1…...

Mais informamos que o Sr. A......consta no sistema informático como ADMINISTRADOR/ OU SÓCIO das seguintes empresas:

E....., LDA. - NIPC 502 …..( Em 27/05/1991 o Sr. A…. cedeu a sua quota a favor de H…. mas é gerente)

I….., LDA. - NIPC 503 …..

R….., LDA. - NIPC 505…..

G...., S.A. - NIPC 502 …

e a contribuinte P.... consta no sistema informático como SÓCIA das seguintes empresas:

R……, LDA. - NIPC 505 …..

E……, LDA. - NIPC 504 ….

e contabilista de

S……, LDA. - NIPC 501 8…..

G...., S.A. - NIPC 502 ……

E....., LDA. - NIPC 502 ……(até ao exercício de 2005)

I……, LDA. - NIPC 503 ……

Durante a acção de fiscalização efectuada à Sociedade E....., LDA, foram contactados diversos contribuintes que adquiriram imóveis a esta Sociedade e verificámos que alguns dos adquirentes emitiam cheques e/ou transferências bancárias em nome do Sr. A....., referentes aos valores não declarados nas escrituras.

Dos elementos (cópias de cheques e transferências bancárias) que nos foi possível recolher obtivemos um total de € 174.974,89. Junto incluímos fotocópia dos elementos recolhidos (Anexos nºs 1 a 9).

Ora estes rendimentos terão de ser tributados na esfera deste sujeito passivo, uma vez que foram recebidos pelo Sr. A…., e como já foi demonstrado anteriormente, o mesmo é gerente da S...., Lda..

Estabelece o n° 1 do art° 252° do Código das Sociedades Comerciais (aprovado pelo Decreto-Lei n° 262/86 de 2 de Setembro) que "A Sociedade é administrada e representada por um ou mais gerentes, que podem ser escolhidos de entre estranhos à Sociedade e devem ser pessoas singulares com capacidade jurídica plena "condições essas que se verificam quanto ao gerente Sr. A…...

Mas o que importa aferir é qual o tratamento fiscal a dar a estes rendimentos.

E, nesse sentido, determina a alínea a) do n° 3 do art° 2° do Código do IRS (aprovado pelo Decreto-Lei n° 442-A/88, de 30 de Novembro), que os rendimentos obtidos do exercício de funções, pelos membros dos órgãos estatutários das pessoas colectivas e entidades equiparadas, sejam ou não eventuais servidores do Estado, são considerados rendimentos do trabalho dependente.

IV - Conclusões/propostas

Pelo exposto, propomos que se proceda à correcção oficiosa do Anexo “A" da Declaração de Rendimentos Mod. 3 de IRS, de acordo com os seguintes valores:

    Rendimento
Retenção na
    Segurança
Anexo “A”
Bruto
Fonte
Social
Sujeito Passivo “A”
12.222,00
1.161,14
1.344,42
valores declarados
Sujeito Passivo “A”
    valores não declarados
174.974,89
0
0
Sujeito Passivo “B”
4.189,92
0
418,99
Total
191.386,81
1.161,14
1.763,41



(...)»- (cfr. fls. 69 a 85 do PAT apenso).

F) Por despacho do Chefe da Divisão de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Lisboa, datado de 29/10/2007, foi aprovado o relatório de inspecção que consta de fls. 72 a 76 do processo administrativo tributário apenso, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, juntamente com os respectivos anexos, nos seguintes termos:

«Concordo com o parecer do Chefe de Equipa e com o relatório da acção inspectiva, em anexo.

Dos fundamentos deles constantes resulta que foram omitidos rendimentos na(s) declaração(ões) entregue(s) pelo sujeito passivo relativa(s) ao(s) ano(s) em referência.

Desta forma, nos termos e com os fundamentos referenciados, bem como do art.° 65° n° 4 do Código do IRS, determino a alteração dos elementos declarados pelo sujeito passivo, Cat. A, em conformidade com o proposto.» (cfr. fls, 69 do PAT apenso).

G) Em 09/10/2007, os impugnantes foram notificados do projecto de relatório da inspecção tributária para, querendo exercerem o direito de audição prévia, o que não fizeram (cfr. fls. 105 a 108 do PAT).

H) Para notificação dos impugnantes do teor do relatório final, a Administração Fiscal remeteu-lhes carta registada com aviso de recepção, sob registo n° R01932…PT, a qual foi recebida em 06/11/2007 (fls. 98/99 do PAT apenso).

I) Os impugnantes receberam no dia 05/12/2007 o documento que consta de fls. 13, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, intitulado demonstração de acerto de contas, referente a I RS do ano de 2003, do qual resultou o montante a pagar de € 18.111,25 (dezoito mil, cento e onze euros e vinte e cinco cêntimos), com data limite de pagamento no dia 02/01/2008 (artigo 1o da p.i. e fls. 15 dos autos).

J) A liquidação respectiva com o n° 2007 5004586…. foi enviada sob registo RY45325…PT em 27/11/2007, tendo sido devolvida com a indicação “objecto não reclamado” (cfr. fls. 41,42 dos autos e fls. 100 do PAT)”.

II.B. Relativamente aos factos não provados, refere-se na sentença recorrida:

“Dos factos com interesse para a decisão da causa, constantes dos articulados, todos objecto de análise concreta, não se provou que os montantes transferidos para a conta bancária do impugnante e constantes dos anexos 1 a 9 do relatório de inspecção se referem a reembolsos de financiamentos que o gerente M.... efectuara à sociedade F...... Também não se provou que os cheques tenham sido depositados numa conta cujos titulares são o Impugnante A…. e M.... e que os referidos montantes tenham sido deduzidos dos créditos que este último tinha sobre a Sociedade F......”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“A decisão da matéria de facto efectuou-se com base no exame dos documentos e informações oficiais, que dos autos constam, tudo conforme referido a propósito de cada uma das referidas alíneas do probatório.

Os depoimentos das duas testemunhas, funcionárias de empresa de que o impugnante é representante legal, em nada vieram alterar a matéria fáctica que consta dos aludidos documentos.

Em primeiro lugar, as mesmas não trabalham para a sociedade F....., mas sim para a sociedade S....., pelo que se afigurou irrelevante a sua convicção de que o impugnante não era remunerado através daquela primeira sociedade, mas através desta para a qual trabalham.

Por outro lado, as testemunhas nada sabiam de concreto quanto a pagamentos efectuados pela F..... ao impugnante ou que créditos este ou o seu pai detinham sobre a mesma.

Tendo em consideração que se tratam de funcionárias que trabalham sob as ordens do impugnante, o seu depoimento mostra-se irrelevante, do ponto de vista da prova dos factos, porquanto, para além de não encontrar suporte em elementos documentais, do mesmo não se retira qualquer justificação para o facto das entradas em dinheiro na conta bancária do impugnante.

A testemunha M…. não é concludente quanto à existência de créditos do impugnante e do seu pai sobre a F....., nem quanto ao seu eventual pagamento, desconhecendo igualmente se o impugnante e o seu pai tem conta bancária conjunta.

Em suma, o desconhecimento dos factos revelado pelos dos depoimentos das testemunhas e a ausência de prova documental, contribuíram para que se desse como não assente a matéria constante dos factos não provados”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Da nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão proferida

Entendem, desde logo, os Recorrentes que se verifica nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão proferida, em virtude de, no que respeita à notificação da liquidação de IRS impugnada, já ter sido proferido despacho, a 13.07.2010, no sentido de não operar a presunção prevista no art.º 39.º, n.º 1, do CPPT.

Vejamos.

Nos termos do art.º 125.º, n.º 1, do CPPT, constitui nulidade da sentença a oposição dos fundamentos com a decisão (cfr. igualmente o art.º 615.º, n.º 1, al. c), do CPC, correspondente, nesta parte, ao art.º 668.º, n.º 1, al. c), do CPC/1961, em vigor à data da prolação da sentença recorrida).

Esta nulidade consubstancia-se na contradição formal entre os fundamentos de facto ou de direito e o segmento decisório da sentença (1), ou seja, na circunstância de o iter constante da sentença, na sua motivação, estar em contradição com a decisão a final proferida (2).

Como referido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 05.11.2014 (Processo: 0308/14), “… esta nulidade ocorre quando a construção da sentença é viciosa, quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas ao resultado oposto. Isto é, quando das premissas de facto e de direito que o julgador teve por apuradas, ele haja extraído uma oposta à que logicamente deveria ter extraído: a fundamentação aponta num sentido e a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente”.

Aplicando estes conceitos ao caso dos autos, cumpre desde já salientar que, no despacho mencionado pelos Recorrentes, de 13.07.2010, o Tribunal a quo conheceu da matéria de exceção invocada pela FP na sua contestação, a saber a caducidade do direito de ação.

No referido despacho, o Tribunal julgou não ser aplicável, in casu, a presunção prevista no art.º 39.º, n.º 1, do CPPT.

Já em sede de sentença, na apreciação da alegada falta de notificação da liquidação, invocada pelos ora Recorrentes como vício da própria liquidação, foi afirmado ser de aplicar tal presunção.

Assim, verifica-se que, em dois momentos distintos e para análise de duas questões distintas, o Tribunal a quo fez uma interpretação também ela distinta da mesma realidade.

Não obstante, tal circunstância não importa a verificação de qualquer nulidade, nos termos invocados pelos Recorrentes. Com efeito, em qualquer um dos casos, não obstante a distinta interpretação seguida, a decisão concretamente proferida mostrou­-se consentânea com a apreciação feita em torno de perfeição da notificação.

Ou seja, a nulidade invocada não abrange situações como a invocada pelos Recorrentes, de, em dois momentos decisórios distintos, se fazerem interpretações distintas.

Poderia, quando muito, configurar-se como erro de julgamento. Não obstante, no que a essa configuração respeita, verifica-se que a sua apreciação carece de pertinência na presente sede.

Com efeito, refira-se que a falta de notificação do ato contende não com a sua legalidade, mas com a sua exigibilidade (art.º 77.º, n.º 6, da Lei Geral Tributária – LGT), pelo que, ainda que se verificasse, a mesma não atingiria a validade do ato impugnado, sendo que em sede de impugnação é apenas aferível esta última.

Aliás, em sede de impugnação judicial, a eficácia invalidante da notificação só é relevante quando esteja em causa a apreciação da caducidade do direito à liquidação (3), questão que não é do conhecimento oficioso nem foi suscitada nos presentes autos.

Assim, a alegação singela de ocorrência de falta de notificação das liquidações não se configura como um fundamento de impugnação, mas sim de oposição à execução (4) (cfr. art.º 204.º, n.º 1, als. e) ou i), do CPPT), não tendo, pois, a virtualidade de pôr em causa a validade das liquidações impugnadas, o que é visado pelos impugnantes em sede de impugnação judicial.

Como tal, não há que apreciar o referido pelo Tribunal a quo a este propósito, porquanto não tem a virtualidade de pôr em causa a validade da liquidação.

Logo, não se verifica qualquer oposição dos fundamentos com a decisão, nos termos invocados pelos Recorrentes.

III.B. Da nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito

Consideram, por outro lado, os Recorrentes que a sentença padece de nulidade, por não especificação dos fundamentos de facto e de direito.

Nos termos do já mencionado art.º 125.º, n.º 1, do CPPT, constitui nulidade da sentença a não especificação dos fundamentos de facto e de direito (cfr. igualmente o art.º 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, correspondente, nesta parte, ao art.º 668.º, n.º 1, al. b), do CPC/1961).

A nulidade em causa abrange as situações de falta absoluta de fundamentação de facto ou de direito (5).

A lei processual exige, com efeito, que a sentença esteja cabalmente fundamentada, de facto e de direito, como resulta, desde logo, do disposto nos art.ºs 123.º, n.º 2, do CPPT, bem como no art.º 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC (cfr. art.º 659.º, n.ºs 2 e 3, do CPC/1961), por forma a que seja perfeitamente apreensível o itinerário cognoscitivo percorrido, fundamental para a sua cabal compreensão e eventual impugnação.

Nas palavras de Alberto dos Reis (6), “[u]ma decisão sem fundamentos equivale a uma conclusão sem premissas ; é uma peça sem base”.

Não obstante cumpre distinguir entre a não especificação dos fundamentos de facto e de direito, que se configura como nulidade da sentença, nos termos já referidos, da existência de algumas insuficiências ou deficiências na fundamentação de facto e de direito.

“O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.// Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto” (7).

Ora, in casu, não se pode afirmar que haja total omissão dos fundamentos de facto ou de direito em que decisão assenta. Com efeito, do ponto de vista dos fundamentos de facto, foram elencados os factos provados e os não provados, bem como explanada a motivação subjacente a esse julgamento de facto, como, aliás, foi transcrito – v. pontos II.A, II.B e II.C, supra. Quanto aos fundamentos de direito, os mesmos encontram-se igualmente explanados na sentença, cujo itinerário cognoscitivo é perfeitamente apreensível, sem prejuízo da apreciação do alegado erro de julgamento.

Assim, não procede o alegado pelos Recorrentes nesta parte.

III.C. Do erro de julgamento

Entendem, por outro lado, os Recorrentes que houve erro de julgamento, na medida em que, em seu entender, nem todas as transferências de recursos próprios de uma sociedade para os seus gerentes se enquadram no art.º 2.º, n.º 3, al. a), do CIRS, só se podendo enquadrar aquelas que sejam remuneração, o que não foi o caso, uma vez que as importâncias foram depositadas em conta bancária do Recorrente e do seu pai, que era credor da sociedade, tendo sido reembolsado, motivo pelo qual os valores em causa têm a natureza de reembolso do financiamento efetuado ou, quando muito, de adiantamento por conta de lucros do pai do Recorrente.

Apreciando.

Antes de mais refira-se que, nesta parte, os Recorrentes vieram reafirmar o que já constava da sua petição inicial, sem que, no entanto, tenha sido impugnada a decisão da matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo.

Assim, será considerando tal factualidade, não impugnada, que o alegado erro de julgamento será apreciado.

Vejamos então.

À época, como hoje, a tributação dos rendimentos das pessoas singulares era feita considerando seis categorias de rendimentos, como decorria desde logo do art.º 1.º, n.º 1, do CIRS, a saber:

¾ Categoria A - Rendimentos do trabalho dependente;

¾ Categoria B - Rendimentos empresariais e profissionais;

¾ Categoria E - Rendimentos de capitais;

¾ Categoria F - Rendimentos prediais;

¾ Categoria G - Incrementos patrimoniais;

¾ Categoria H - Pensões.

Nos termos do então art.º 2.º, n.º 3, al. a), do CIRS, são considerados rendimentos de trabalho dependente as remunerações dos membros dos órgãos estatutários das pessoas coletivas. A necessidade de consagração desta norma prendeu-se com o facto de a relação entre os membros dos órgãos estatutários de pessoas coletivas não ser uma relação laboral qua tale, tendo o legislador entendido que, no entanto, para efeitos de tributação, é considerada como rendimento de trabalho dependente, independentemente da natureza jurídica do vínculo que ligue a pessoa coletiva e o membro do seu órgão estatutário.

Por seu turno, os art.ºs 5.º e 6.º do mesmo código respeitam aos rendimentos da categoria E (rendimentos de capitais), onde designadamente se enquadram os adiantamentos por conta de lucros. É desde já de salientar que esta categoria de rendimentos é caraterizada como sendo residual, o que resulta, desde logo, da parte final do n.º 1 do art.º 5.º do CIRS.

In casu, não é controvertido que o Recorrente marido era gerente da sociedade S...., Lda (doravante F.....) e que exerceu efetivamente o cargo [cfr. facto B)]. Está igualmente provado que, estatutariamente, o exercício de tais funções podia ser ou não remunerado [cfr. facto C)].

Não é igualmente controvertido que, em 2003, vários adquirentes de imóveis à F..... emitiram cheques ou realizaram transferências bancárias diretamente ao Recorrente marido, tendo a administração tributária (AT) recolhido elementos (cópias de cheques e transferências bancárias) que lhe permitiram computar tais valores nos 174.974,89 Eur. [cfr. facto E)].

Face aos elementos obtidos em sede de ação inspetiva e referidos supra, e que, em termos factuais, não são postos em causa pelos Recorrentes, a AT reuniu informação suficiente para poder concluir tratar-se de rendimentos de trabalho dependente, para efeitos de tributação em IRS: foram valores, entregues diretamente ao Recorrente marido (através de cheques e transferências bancárias), gerente da F....., na sequência de alienações de imóveis efetuadas por esta última, tendo sido referido pela AT tratar­-se da diferença entre o valor real das transações e o valor declarado nas escrituras públicas, o que nunca é posto em causa. Ou seja, parte do preço dos imóveis foi paga através de cheques ou transferências em nome do Recorrente marido e diretamente a este.

Ademais, refere-se ainda no RIT e não é controvertido que o Recorrente marido não era, em 2003, sócio da F....., mas tão-só seu gerente [como decorre da leitura do teor da petição inicial e do RIT resulta que a sua participação na F..... era, em 2003, indireta, enquanto sócio de uma outra sociedade, esta sim titular de uma quota da F..... (a H…..)], o que motivaria, desde logo, o afastamento da configuração dos valores como adiantamento por conta de lucros, configuração essa, aliás e como já mencionado supra, residual, como decorre do disposto no art.º 5.º, n.º 1, in fine, do CIRS.

Assim, considera-se que a AT demonstrou o quid da qualificação efetuada enquanto rendimento de trabalho dependente (cfr. art.º 74.º da LGT).

Logo, como referido pelo Tribunal a quo, caberia aos Recorrentes o ónus da prova de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito à liquidação da AT, o ónus de demonstrar o que alegaram, para afastar a qualificação efetuada pela AT.

Ora, como já se referiu supra, não foi impugnada a decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida, sendo que nessa mesma decisão foram considerados não provados justamente os factos que, segundo os Recorrentes, demonstrariam, se provados, o erro nos pressupostos de facto.

Não é, pois, suficiente os Recorrentes limitarem-se a reiterar o já afirmado na sua petição inicial, quando os factos alegados, cuja prova poderia eventualmente revelar uma diferente configuração dos valores em causa, resultaram não provados (sendo que o facto de os valores não terem sido registados, enquanto custo, pela F....., não apresenta relevância, uma vez que não é controvertido que os valores foram pagos à margem do que seria registado).

Com efeito, o Tribunal a quo considerou não provado que:

a) A conta bancária para a qual foram efetuadas as transferências bancárias fosse da titularidade do Recorrente marido e do seu pai;

b) Os valores em causa respeitem a reembolsos de financiamentos que o pai do Recorrente marido efetuara à F..... e que esses mesmos montantes tenham sido deduzidos dos mencionados créditos.

Ou seja, a AT carreou elementos suscetíveis de sustentar uma configuração dos valores pagos diretamente ao Recorrente marido como rendimentos da Categoria A, não tendo os Recorrentes logrado demonstrar o alegado no sentido de tais valores terem sido utilizados para pagamento de créditos ou de respeitarem a adiantamentos por conta de lucros do pai do Recorrente marido.

Face ao exposto, não assiste razão aos Recorrentes, não padecendo a sentença recorrida dos vícios que lhe são assacados.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida;

b) Custas pelos Recorrentes;

c) Registe e notifique.

Lisboa, 28 de março de 2019




(Tânia Meireles da Cunha)

(Isabel Fernandes)

(Jorge Cortês)

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(1) Cfr. Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário – Anotado e Comentado, 6.ª Edição, Vol. II, Áreas Editora, Lisboa, 2011, pp. 361 e 362; José Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum à luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª Ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2013, p. 333.

(2) V., exemplificativamente, os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 17.04.2013 (Processo: 0969/12) e de 15.09.2010 (Processo: 01149/09) e o Acórdão deste TCAS, de 18.06.2013 (Processo: 06121/12).

(3) Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, Vol. III, 6.ª Ed., Áreas Editora, Lisboa, 2011, pp. 488 e 489.

(4) Cfr. Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário, do Supremo Tribunal Administrativo, de 20.01.2010 (Processo: 0832/08).

(5) V., neste sentido, a título ilustrativo, os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 24.01.2018 (Processo: 01411/16), de 25.11.2015 (Processo: 0162/15) e de 04.03.2015 (Processo: 01939/13) e os deste TCAS, de 15.11.2018 (Processo: 1339/10.2BELRA) e de 15.05.2014 (Processo: 07508/14).

(6) Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, Vol. V, p. 139.

(7) Alberto dos Reis, ob. cit., p. 140.