Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:27/10.4BEPDL
Secção:CT
Data do Acordão:12/03/2020
Relator:LUÍSA SOARES
Descritores:IRS/IRC;
PRINCÍPIO DA ESPECIALIZAÇÃO DOS EXERCÍCIOS.
Sumário:I- Por força do princípio da especialização dos exercícios, previsto no artigo 18.º do CIRC, os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento.
II- Não põe em causa tal princípio a imputação a um exercício, de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar transferência de resultados entre exercícios.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA 2ª SUBSECÇÃO DO CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL

I – RELATÓRIO

Vem a AT – Autoridade Tributária e Aduaneira interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por M.............., R.............. e R.............. (habilitadas em substituição de H.............., entretanto falecido) contra a liquidação de IRS do ano de 2006 no montante de €18.152,70, bem como do acto de compensação de que resultou o montante a pagar de € 21.290,39.

A Recorrente, nas suas alegações formulou conclusões nos seguintes termos:
A) O Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao aproveitar as despesas que os impugnantes tiveram em 2007 para as incluir no exercício de 2006, que é o ano fiscal que está em causa nos presentes autos, e que é anterior às despesas efetuadas;

B) Estas despesas encontram-se documentalmente comprovadas no processo, reportando-se todas ao ano de 2007;

C) Tanto a declaração aduaneira de veículo n.º 2007/0000697, elaborada em 19 de junho de 2007, como a nota de entrega n.º 3080, elaborada em 25 de junho de 2007, são
documentos referentes ao ano de 2007, onde são descritos os impostos pagos em 2007,
bem como o preço pago pela aquisição do veículo;

D) Na declaração aduaneira de veículo n.º 2007/0000697, a fls. 2 do pdf com a referência SITAF n.º 004179203, incorporado a 13-06-2018, pelas 11:00:24 – n.º 9 da matéria de facto dada como provada e assente – verifica-se que no n.º 31 do quadro B se estabelece «31. Data da transmissão … 2007/02/06», bem como no n.º 30 do quadro B, a fls. 3 do mesmo documento, se encontra «30. Data de transmissão: 2007-02-06»;

E) O princípio da especialização dos exercícios admite derrogações em casos excecionais, mas estas derrogações apenas operam relativamente aos exercícios posteriores ao exercício em que ocorreram os custos, tomando-se como exemplo o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo prolatado no âmbito do processo n.º 0291/08, de 06/25/2008, consultável em www.dgsi.pt, que dispõe que «I - Em matéria de custos, o princípio da especialização dos exercícios – artigo 18.º do CIRC – traduz-se na consideração, como custo de determinado exercício, dos encargos que economicamente lhe sejam imputáveis. II - Não põe em causa tal princípio a imputação, a um exercício, de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar transferência de resultados entre exercícios. III – Tal postulado é exigido pelo princípio da justiça, consagrado nos artigos 266.º, n.º 2, da CRP, e 50.º da LGT. IV - Para efeitos do n.º 2 do mesmo dispositivo legal, “as componentes positivas ou negativas” não são “imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas” quando a sua não consideração, no exercício a que respeitam, se deve a erro contabilístico ou outro, do próprio contribuinte, já que tal norma há-de interpretar-se no sentido de que tais pressupostos, para serem relevantes, hão-de decorrer de situações externas que aquele não pode controlar»;

F) Contrariamente a este entendimento, o Tribunal a quo adotou na sentença o entendimento de os custos/despesas terem efeitos para o passado, pois, a seguir a orientação nela consagrada, os custos do ano de 2007 produziriam efeitos no ano anterior, de 2006;

G) Nestes termos, não poderia o Tribunal a quo ter concluído como o fez na sentença, que «(…) o tribunal considerou que o impugnante teve de suportar cerca de € 43.160,43, relativos à aquisição do veículo que usou nas competições e respetivos impostos (cfr. 9) e 10))», e por isso «Este custo devia ter sido efetivamente considerado pela Administração Tributária (..)»;

H) Propõe-se a alteração da redação do n.º 9 dos factos dados como provados, onde passaria a constar que:
«9) Em 19 de junho de 2007, a Alfandega de Ponta Delgada elaborou a declaração aduaneira de veículo n.º 2007/0000697, referente ao veículo de marca Mitsubishi, modelo Lancer Evolution (CT9A), com a matrícula ............, da qual consta que H.............. é proprietário do veículo referenciado, que este tem indicada como data de transmissão o dia 2007-02-06, e se menciona como valor de aquisição do mesmo a quantia de € 28.860,00, como valor do imposto automóvel o valor de € 8.670,81 e IVA na importância de € 5.629,62 (cfr. fls. 2 do pdf com a referência SITAF n.º 004179203, incorporado a 13-06-2018, pelas 11:00:24)»
[alterações introduzidas no texto e assinaladas com realce e sublinhado, sem itálico];

I) E não se olvide que o sujeito passivo tinha contabilidade organizada (número 1 da fundamentação de facto), pelo que teria necessariamente de conhecer as regras desta contabilidade, sendo coadjuvado por um profissional de contabilidade que, naturalmente, não iria imputar despesas de 2007 ao ano anterior a estas terem ocorrido, até porque, por maioria de razão, estas ainda não tinham ocorrido aquando da data de entrega da declaração de rendimentos de 2006;

J) Ainda que se considerasse que os custos em que incorreram os impugnantes correspondiam ao ano de 2006 – o que não se concede nem se admite, pelas razões evidentes expostas supra – não poderia a liquidação ser anulada na sua totalidade, antes enformando esta liquidação os custos incorridos, que orçam €43.160,43, e que, como salta à vista, são inferiores aos proveitos de €62.500,00, redundando na procedência parcial da impugnação, e consequente anulação parcial da liquidação;

K) E o mesmo efeito teria de haver sobre as custas do processo judicial, que não poderiam ser totalmente imputadas à Fazenda Pública, antes sendo imputadas na medida do decaimento do pedido, sendo certo que o pedido, como se referiu, não seria totalmente procedente;

L) Em síntese útil, conclui-se que os custos não podem retroagir, mas apenas serem considerados para o futuro e, ainda assim, em situações bastante excecionadas na lei, por força do referido princípio da especialidade dos exercícios, ao contrário do que foi
determinado na sentença do Tribunal a quo.
Nestes termos, e nos mais de Direito que V. Exas., VENERANDOS DESEMBARGADORES, doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser considerado totalmente procedente por provado, revogando-se a sentença proferida pelo Tribunal a quo, sendo substituída por outra que determine a improcedência da impugnação, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!”
* *
As Recorridas apresentaram contra-alegações tendo formulado as seguintes conclusões:

A) O Impugnante participou, em 2006, nos rallies descritos em 2) dos factos provados, usando para tal o veículo Mitsubishi Lancer referido nos factos dados como provados sob os n.ºs 9) e 10).

B) Em 2006, o referido veículo circulava com a sua matrícula original (espanhola).

C) A consideração das quotas de amortização como gasto fiscalmente dedutível é feita a partir do momento em que um bem do ativo não corrente entra em funcionamento ou utilização.

D) Em 2006, sempre haveria que considerar como gasto a quota de amortização anual do veículo em causa, ou seja, existiram gastos fiscalmente relevantes que sempre deveriam ter sido considerados na liquidação impugnada.

E) É um facto que os valores despendidos com a aquisição do veículo em causa deveriam relevar como gastos ao longo de vários exercícios pelos quais se prolonga a sua vida útil, ou seja, no exercício de 2006 e nos seguintes.

F) É também um facto que a consideração de tais gastos apenas no exercício de 2006, como ordenado pela sentença recorrida, constitui uma violação do princípio da especialização dos exercícios.

G) O STA tem jurisprudência pacífica sobre a violação do princípio da especialização dos exercícios, entendendo que esta deve ser admitida quando, de outro modo, se gere uma irreparável situação de injustiça.

H) É um absurdo afirmar que o STA apenas aceita a violação do princípio da especialização dos exercícios quando tal se traduza numa antecipação da receita do imposto.

I) No caso concreto, existe manifesta impossibilidade de as restantes quotas de amortização relativas ao veículo em causa serem consideradas como gasto fiscal nos exercícios em que, em princípio, deveriam relevar (2007 a 2009), por ter decorrido o prazo em que seria possível a revisão oficiosa das liquidações relativas a tais anos.

J) Os princípios da justiça e da tributação pelo rendimento real impõem que, no caso concreto, se aceite, como mal menor, uma violação do princípio da especialização dos exercícios traduzida na antecipação do exercício em que devem ser considerados gastos fiscalmente relevantes cuja existência ficou dada por provada.

K) Outro entendimento seria inconstitucional, dada a dignidade constitucional dos referidos princípios.

L) A lei não impõe (seria até absurda uma tal imposição) que o Tribunal anule parcialmente uma liquidação, mesmo que constate que ela, em parte, deve subsistir, quando não disponha de elementos suficientes para quantificar o valor do imposto que continua a ser devido.

M) É à AT que cabe proceder à reforma da liquidação imposta por sentença judicial, sendo, aliás, a única entidade competente, em razão da matéria, para tal.

N) Decidiu bem o Tribunal a quo, pela que a sentença recorrida deve ser confirmada na íntegra.

Termos em que deve improceder totalmente o recurso interposto, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.”.
* *
O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.
* *
Colhidos os vistos legais e nada mais obstando, vêm os autos à conferência para decisão.

II – DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações (cfr. artigo 635°, n.° 4 e artigo 639°, n.°s 1 e 2, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente.

Assim, delimitado o objecto do recurso pelas conclusões das alegações da Recorrente, a questão controvertida consiste em aferir se a sentença enferma de erro de julgamento:
i) ao ter sido aceite como custo de 2006 os valores gastos com a aquisição e legalização da viatura automóvel no ano de 2007;
ii) por ter determinado a anulação total da liquidação.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1) O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“1) Em 1 de fevereiro de 1986, H.............. iniciou a atividade no âmbito da atividade de Manutenção e Reparação de Veículos Automóveis, a que corresponde o CAE 45200 e estava enquadrado no regime de contabilidade organizada em sede de IRS (cfr. teor do relatório de inspeção, constante de fls. 5 do pdf com a referência SITAF n.º 004179389, apresentado a 14-06-2018, pelas 11:41:46).

2) Em 15 de fevereiro de 2006, foi elaborado um escrito denominado “Contrato de Patrocínio (Campeonato Regional)”, nos termos do qual a sociedade F..........., S.A., se comprometeu a entregar a H.............. a quantia de € 62.500,00, pela participação nas provas de automobilismo de “Rali Cidade da Ribeira Grande”, “Rali Sical”, “Rali Ilha Azul”, “Rali Açores”, “Rali Lagoa”, “Rali Santa Maria”, “Rali Ilha Lilas”, na época desportiva de 2006, nos termos constantes do doc. n.º 3, apresentado com a petição inicial, de fls. 7 a 8 verso do suporte físico do processo.

3) H.............. foi alvo de uma ação inspetiva, que teve início a 29 de setembro de 2009 e foi desenvolvida pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Ponta Delgada, a coberto da ordem de serviço n.º OI200900251, incidindo sobre o IRS, de 2006 (cfr. teor do relatório de inspeção, constante de fls. 5 do pdf com a referência SITAF n.º 004179389, apresentado a 14-06-2018, pelas 11:41:46).

4) Em 26 de outubro de 2009, os Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Ponta Delgada elaboram o relatório de inspeção tributária, no qual foi proposto uma correção arimética do lucro tributável do ano 2006, por forma a incluir o valor de € 62.500,00, de acordo com os fundamentos seguintes:
«imagem no original»


(cfr. doc. com a referência SITAF n.º 004179389, apresentado a 14-06-2018, pelas 11:41:46).

5) Em 26 de abril de 2009, o Diretor de Finanças de Ponta Delgada concordou com o teor das conclusões referenciadas em 4) (cfr. fls. 1 do pdf com a referência SITAF n.º 004179389, apresentado a 14-06-2018, pelas 11:41:46).
6) Foi efetuada a liquidação de IRS n.º ..........., de 2006, no valor de € 16.311,46, acrescido de juros compensatórios no valor de € 1.841,24 (cfr. doc. n.º 1, apresentado com a petição inicial, de fls. 7 a 8 verso do suporte físico do processo).

7) Foi efetuada a compensação n.º ..........., de IRS, de 2006, da qual resultou o valor a pagar de € 21.290,39 (cfr. doc. n.º 2, apresentado com a petição inicial, de fls. 6 do suporte físico).

8) Em 5 de março de 2010, H.............. apresentou a petição inicial que deu origem ao presente processo de impugnação n.º 27/10.4BEPDL (cfr. fls. 2 do suporte físico do processo).

9) Em 19 de junho de 2007, a Alfândega de Ponta Delgada elaborou a declaração aduaneira de veículo n.º 2007/0000697, referente ao veículo de marca Mitsubishi, modelo Lancer Evolution (CT9A), com a matrícula ............, da qual consta que H.............. é proprietário do veículo referenciado e se menciona como valor de aquisição do mesmo a quantia de € 28.860,00, como valor do imposto automóvel o valor de € 8.670,81 e IVA na importância de € 5.629,62 (cfr. fls. 2 do pdf com a referência SITAF n.º 004179203, incorporado a 13-06-2018, pelas 11:00:24).

10) Em 25 de junho de 2007, a sociedade dos despachantes oficiais da Região dos Açores elaboraram a nota de entrega n.º 3080, em nome de H.............., da qual consta que este entregou a quantia de € 14.301,33, referentes a imposto automóvel e IVA, nos termos constantes de fls. 5 do pdf com a referência SITAF n.º 004179203, incorporado a 13-06-2018, pelas 11:00:24.
*
Da instrução da causa não resultou demonstrado que H.............. tivesse suportado outro tipo de encargos, para além dos indicados em 9) e 10), em consequência da participação das provas indicadas em 2).
*
O tribunal fundou a sua convicção com base nos documentos juntos aos autos (nos termos especificados), apoiando-se ainda nos depoimentos das testemunhas inquiridas (cfr. ata de fls. fls. 85 e 86 do suporte físico do processo).
No tocante à matéria não provada, o tribunal não ficou convencido da existência de outro tipo de encargos, designadamente despendidos com viagens/transporte, estadias, alimentação, despesas de inscrição e participação nas provas de automobilismo (combustível, peças etc.).
As únicas despesas inequivocamente comprovadamente são as referidas no ponto 9) e reafirmadas no ponto 10) da fundamentação de facto.
Ora, analisada a declaração aduaneira de veículo n.º 2007/0000697 (cfr. 9)), constata-se que o mesmo identifica-se com o veículo que o impugnante se comprometeu a usar no acordo indicado em 2).
Por essa razão, a despesa documentada em tal escrito deve ser tida em consideração.
Quanto ao demais alegado, inexiste qualquer indício de prova escrito (faturas, recibos ou algum documento interno credível) que permita concluir que haja sido efetuada outro tipo de despesa.
De facto, não foram identificados os hotéis onde o impugnante e a respetiva equipa ficaram hospedados, os restaurantes que lhes forneceram as refeições, nem os concretos fornecedores de peças e de combustível (não permitindo ao tribunal determinar outro tipo de diligências, com vista a indagar sobre a ocorrência dos factos alegados).
Nenhuma das testemunhas inquiridas explicou de forma convincente “quem” “comprou” o “quê” a “quem”.
Também não foi explicada a razão pela qual o impugnante não solicitou, de forma expedita, quando confrontado com a ação inspetiva, as segundas vias de faturas ou recibos representativos de despesas.
Este aspeto é ainda mais incompreensível se se atentar no relatório de inspeção tributária: no ponto III.2 alude-se a despesas declaradas (nomeadamente com restaurantes - € 85.45 - e um hotel - € 146,07) que, todavia, acabaram por não ser fiscalmente consideradas.
Por que motivo o impugnante não procedeu da mesma forma, solicitando as faturas representativas de despesas efetuadas nos hotéis e restaurantes, durante as provas de automobilismo (as quais alegadamente eram mais avultadas que as enumeradas no ponto III-2 do relatório)?
Tal situação é manifestamente anómala e incompreensível.
Note-se, aliás, que durante a inquirição de uma testemunha arrolada pela própria impugnante foi facilmente apurada a existência dos documentos especificados em 9) e 10).
Quer isto dizer que, não fosse a inércia do impugnante, provavelmente teria sido possível apresentar outro tipo de documentos comprovativos das despesas que alega ter efetuado.
Mas o facto de essa documentação não ter sido apresentado não pode significar que a mesma seja inexistente.
Ademais, como bem analisa o Digno Magistrado do Ministério Público, no seu parecer, não é de excluir que parte dessas despesas possa ter ficado a cargo da organização das provas (v.g., alojamento e transporte do próprio e da sua viatura, a título de compensação pela sua participação na competição…), que outra parte possa ter sido suportada pelos seus colaboradores (porventura motivados pelo prestígio social, pelo gosto e satisfação pessoal que extrairiam dessa atividade), que outra ainda tenha sido suportada por outros patrocínios de natureza não financeira.
Ora, a dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o mesmo aproveita, in casu contra o impugnante (cfr. artigo 414.º do Código de Processo Civil).
Assim sendo, vai tal matéria dada como não provada.”
* *
Pretende a Recorrente a correção ao facto elencado no ponto 9) do probatório no sentido de incluir a data de aquisição do veículo automóvel constante da declaração mencionada.

Por se considerar ser um elemento relevante para a boa decisão da causa e por estar documentalmente provado, nos termos e ao abrigo do preceituado no art. 662º do Código de Processo Civil, acorda-se em corrigir o ponto 9) probatório nos seguintes termos:

“9) Em 19 de junho de 2007, a Alfândega de Ponta Delgada elaborou a declaração aduaneira de veículo n.º 2007/0000697, referente ao veículo de marca Mitsubishi, modelo Lancer Evolution (CT9A), com a matrícula ............, da qual consta que H.............. é proprietário do veículo referenciado e se menciona como data de transmissão 2007/02/06, como valor de aquisição do mesmo a quantia de € 28.860,00, como valor do imposto automóvel o valor de € 8.670,81 e IVA na importância de € 5.629,62 (cfr. fls. 2 do pdf com a referência SITAF n.º 004179203, incorporado a 13-06-2018, pelas 11:00:24).

IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

No caso sub judice, na sequência de uma acção de inspeção, a Administração Tributária efectuou correções meramente aritméticas, tendo acrescido ao lucro tributável em sede de IRS do ano de 2006, o valor de € 62.500,00 resultante de publicidade e patrocínios de uma viatura de competição de rallies, que deram origem à liquidação impugnada.

Tendo apresentado impugnação judicial contra aquela liquidação, invocava o impugnante que a sua contabilidade relativamente ao exercício de 2006 era totalmente omissa no registo, quer de proveitos, quer de custos, dessa actividade acessória de piloto de rallies (cfr. art. 12º da petição inicial), razão pela qual deveria a Administração Tributária ter fixado a matéria colectável por avaliação indirecta nos termos da alínea b) do art. 87º da LGT.

A sentença recorrida entendeu, por um lado, não ser de aplicar métodos indirectos como pretendia o impugnante dado que não se verificavam os respectivos pressupostos, e que, tendo a Administração Tributária efectuado a correção meramente aritmética mediante acréscimo ao rendimento tributável, considerou que deveria ser aceite como custo o montante relativo à aquisição do veículo automóvel, mais decidiu que os restantes custos invocados pelo impugnante não seriam aceites por falta de prova. E com base em tal fundamentação determinou a anulação total da liquidação impugnada.

Vem a Recorrente insurgir-se contra a sentença por ter sido aceite como custo do exercício de 2006, o valor da aquisição do veículo automóvel, invocando para o efeito a violação do princípio da especialização dos exercícios na medida em que está em causa a liquidação de IRS do ano de 2006, tendo a correção sido feita pela Administração Tributária aos proveitos auferidos no ano de 2006 e que o custo aceite pelo tribunal foi realizado em 2007. E mesmo que se entendesse ser de aceitar tal custo nos termos em que a sentença recorrida o fez, a anulação da liquidação nunca seria total mas sim parcial.

As Recorridas nas respectivas contra-alegações vêm invocar que em 2006 sempre seria de considerar como custo a quota de amortização anual do veículo em causa, e que o valor da aquisição do veículo em causa deveria relevar como gasto ao longo de vários exercícios pelos quais se prolonga a sua vida útil, ou seja, no exercício de 2006 e seguintes, reconhecendo que a consideração de tais gastos apenas no exercício de 2006 constitui uma violação do princípio da especialização dos exercícios (cfr. conclusões C a F). Defendem no entanto que o princípio da justiça e da tributação pelo rendimento real devem prevalecer, e que “outro entendimento seria inconstitucional, dada a dignidade constitucional dos referidos princípios” (cfr. conclusões J e K).

Pois bem, o art. 18º do CIRC aplicável ao caso por remissão do art. 32º do CIRS consagra o princípio da especialização dos exercícios, nos seguintes termos (na redação à data):
“1 - Os proveitos e os custos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao exercício a que digam respeito, de acordo com o princípio da especialização dos exercícios.
2 - As componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a exercícios anteriores só são imputáveis ao exercício quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.
(…)”.

Ora resulta do nº 2 do transcrito art. 18º que excepcionalmente, aceita-se que os custos de um exercício possam ser registados e aceites nos exercícios seguintes, não nos exercícios anteriores.


Como se afirma no Acórdão do STA de 14/03/2018- proc. 0716/13 “O princípio da especialização dos exercícios, do qual resulta uma segmentação da vida das empresas em períodos de certo modo independentes entre si, correspondentes ao ano civil, tem em vista tributar a riqueza gerada em cada exercício, respondendo também a necessidades de natureza económica, contabilística e de gestão.
A periodização anual do imposto implica que tanto os rendimentos como os gastos (e as variações patrimoniais fiscalmente relevantes) sejam imputados a cada período de tributação. Esta imputação resulta essencialmente da aplicação das normas contabilísticas, justamente porque o legislador entendeu que as regras de periodização aí previstas oferecem um sistema coerente, fiável e eficaz também para efeitos fiscais (Vide António Rocha Mendes, IRC e as Reorganizações Empresariais, ed. da Universidade Católica, pag. 72.).
Por isso, como sublinha António Rocha Mendes (Ob. citada, pag. 72.), a maioria das regras descritas no artº 18º do CIRC são coincidentes com as regras de periodização dos rendimentos estabelecidas pelas normas contabilísticas.
Aquele princípio vale assim para os casos em que os custos são contabilizados num exercício mas em que a despesa efectiva só é suportada noutro, e para os casos em que o ganho ainda que contabilizado num exercício, só é, de facto, recebido noutro. Ora em tais situações, em que existe desencontro entre a contabilização dos custos e dos proveitos e a sua efectiva concretização, a lei ordena que os mesmos sejam contabilizados à medida que sejam obtidos e suportados, e não à medida que o respectivo recebimento ou pagamento ocorram.
Daí que se devam imputar ao exercício os encargos que emergem de operações nele realizadas, ainda que nele não suportadas, do mesmo modo que se devem imputar a um exercício os proveitos resultantes de operações nele feitas mesmo que arrecadados noutro (cfr. neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 27/4/2008, recurso nº 0807/07).
Com vista a evitar práticas de manipulação do cálculo do lucro tributável, nomeadamente o adiamento da tributação ou a sua concentração em exercícios onde a tributação possa resultar mais favorável, a lei fiscal consagra com grande rigidez este princípio da especialização de exercícios (Rui Duarte Morais, Apontamentos ao IRC, Ed. Almedina, pag. 69).
Testemunho dessa rigidez é, como sublinha Rui Duarte Morais (Ob. citada, pag. 70), o nº 2 do artº 18º do CIRC que dispõe que as componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a exercícios anteriores só são imputáveis ao exercício quando na data de encerramento das contas daquele a que deveriam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas.
Constitui no entanto jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal que a rigidez deste princípio tem de ser colmatada ou temperada com a invocação do princípio da justiça, nas situações em que, estando já ultrapassados todos os prazos de revisão do acto tributário e não havendo prejuízo para o Estado, se deve evitar cair numa injustiça não justificada para o administrado – vide, neste sentido, acórdãos da Secção de Contencioso Tributário de 19.11.2008, recurso 325/08, de 02.04.2008, recurso 807/07, de 19.05.2010, recurso 214/07, de 25.06.2008, recurso 291/08, de 09.052012, recurso 269/12 e de 02.03.2016, recurso 1204/13.”.

Salienta-se que no caso concreto o impugnante não registou na sua contabilidade do ano de 2006, nem os proveitos nem os custos decorrentes da sua actividade acessória de piloto de ralies. Ademais nem sequer resulta da prova produzida que, independentemente do momento do pagamento, os custos em causa respeitem a 2006.

Nas situações em que não seja possível a denominada “correcção simétrica”, por razões de tempestividade, a doutrina e a jurisprudência vêm afirmando que o custo, ainda que indevidamente contabilizado, deve ser aceite, nomeadamente quando a respectiva imputação não tenha resultado de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar transferência de resultados entre exercícios.

Ora no caso em apreço, nem o proveito nem o custo estavam contabilizados no exercício de 2006 (conforme invocava o impugnante no ponto 12 da petição inicial), e não podemos afirmar que não tenha resultado de omissão voluntária e intencional, com vista a operar transferência de resultados entre exercícios.

O princípio da justiça e da tributação pelo lucro real alegados pelas Recorridas, no sentido de ser aceite em 2006 como gasto “a quota de amortização anual do veículo em causa, ou eja existiram gastos fiscalmente relevantes que sempre deveriam ter sido considerados na liquidação impugnada”, não impõem o afastamento do art. 18º, nº 1, do CIRC, e a existir quotas de amortização anual do veículo a partir de 2006, tal facto nunca foi invocado na impugnação judicial, pelo contrário, foi afirmado pelo impugnante que a sua contabilidade era totalmente omissa quanto a proveitos e custos da sua actividade acessória.

Considerando que o princípio da justiça não é absoluto, tem de ser equacionado em cada situação concreta em confronto com outros princípios como, por exemplo, o da legalidade.

Na verdade “O princípio da justiça, como parâmetro aferidor da conformidade constitucional das normas jurídicas, pressupõe, porém, que esteja em causa uma solução normativa absolutamente inaceitável (…), que afete uma dada dimensão do núcleo fundamental dos interesses essenciais da pessoa e que colida com os valores estruturantes do ordenamento jurídico” [Cfr acórdão do Tribunal Constitucional 363/2001 (publicado no Diário da República, II Série, de 13 de Outubro de 2001)]

E “A administração deverá abster-se de concretizar os comandos legais quando, em face das particularidades do caso, não se verifiquem as razões de interesse público que justifiquem a sua atuação ou quando produza um resultado manifestamente injusto” - Cfr. Lei Geral Tributária – Anotada e Comentada, de Diogo Leite de Campos, Benjamim Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa – Anotação ao artigo 55º, onde se prevêm os princípios do procedimento tributário.

Pois bem, não resulta manifestamente injusto o resultado do cumprimento da regra de periodização de exercícios, nem está evidenciado – bem pelo contrário – que as omissões declarativas no ano de 2006 por parte do Impugnante fossem involuntárias ou resultantes de desconhecimento não culposo dessa obrigação, sendo que tal entendimento não viola os princípios constitucionais da justiça e da tributação pelo rendimento real.

Reafirmamos ainda o entendimento vertido no Acórdão deste Tribunal de 19.12.2008 – proc. 909/09, a propósito do princípio da especialização dos exercícios e do princípio da tributação pelo rendimento real no sentido de que “O princípio da especialização ou do acréscimo encontra-se consagrado no artº.18, do C.I.R.C. (cfr.artº.22, do anterior C.C.I.), o qual determina que os proveitos e os custos devem ser imputados ao período a que respeitam, independentemente do seu recebimento ou pagamento. Por outras palavras, em determinado exercício, devem ser contabilizados os proveitos, e também os custos, que nele efectivamente tenham sido realizados.
O princípio da tributação pelo lucro real, como opção de tributação relativa aos entes empresariais, encontra consagração no artº.104, nº.2, da C.R.Portuguesa. Porém, tal princípio, não é absoluto, como desde logo a redacção da sua norma o pressupõe, ao dispor que a tributação das empresas incide "fundamentalmente" sobre o seu rendimento real, e não em todo e qualquer caso, antes tendo de ser concatenado com outros princípios e normas constantes em outros diplomas legais infra-constitucionais, como seja, por exemplo, o da satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas (artº.103, nº.1, da C.R.P.), tal como os artºs.18 e 23, do C.I.R.C”.

Em face do exposto concluímos que a sentença recorrida ao entender ser de aceitar como custo de 2006 o valor da aquisição do veículo que ocorreu no ano de 2007 padece efectivamente de erro de julgamento como defende a Recorrente, pelo que o recurso merece provimento, julgando-se improcedente a impugnação judicial apresentada com referência ao IRS de 2006 e ficando prejudicado o conhecimento dos demais fundamentos invocados no presente recurso.


V- DECISÃO

Por todo o exposto, acordam em conferência os juízes da 2ª Subsecção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar improcedente a impugnação judicial.

Custas a cargo das Recorridas em ambas as instâncias.
Lisboa, 3 de Dezembro de 2020
[A Relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo art. 3.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, as Desembargadoras Cristina Flora e Tânia Meireles da Cunha].
Luísa Soares