Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:13140/16
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:12/15/2016
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:CONTRATO ADMINISTRATIVO
NULIDADE
ABUSO DO DIREITO
Sumário:I - A nulidade dos contratos administrativos (por ausência de qualquer procedimento administrativo prévio) significa que as indemnizações neles previstas e efetivadas nesta ação pela A., nada valem; eles não concedem qualquer direito ou outra posição jurídica subjetiva ativa.

II - Assim, nem há o direito (contratual) de o réu resolver os contratos (inválidos), por impossibilidade jurídica; nem há o direito de a autora ser compensada pelo facto de o réu ter comunicado que iria passar a ignorar os contratos (nulos). Logo, o réu não está aqui a abusar de qualquer direito, já que não tem um direito para dele abusar. O réu, de modo implícito e com fundamentação extravagante, atuou materialmente como se os contratos por si celebrados fossem, como são, nulos.

III - Isto significa que a situação de confiança invocada agora pela recorrente não era fundada ou de acordo com o sistema jurídico: se a recorrente tivesse cumprido o seu dever de conhecer e cumprir a lei (cfr. artigo 6º do Código Civil “A ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas”; artigos 178º e 181º do Código do Procedimento Administrativo, cits., o Decreto-Lei nº 211/79 e o Decreto-Lei nº 197/99), que impunha a ela e ao réu um procedimento administrativo pré-contratual, não teria celebrado estes contratos nulos.

IV - Ou seja, a eventual confiança da autora é desconforme com o direito objetivo imperativo da contratação pública.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

· O……….…………………….., LDA, com sede em ………….., freguesia de ……….., Mem Martins, Sintra, intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de LISBOA ação administrativa comum contra

· I…….. – INSTITUTO ………………….., como Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa (Ex Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa) com sede na Estrada de Benfica, n. º 529, 1549-020 Lisboa.

O pedido formulado foi o seguinte:

condenação do réu a pagar-lhe a quantia de € 30 234,17, acrescida dos juros vencidos à taxa legal e até 24.01.2014, no valor de € 1 909,17, e, bem assim, dos vincendos, contados sobre o capital (€ 29 667,44) desde 25.01.2014 e até efetivo e integral pagamento.

Por sentença de 29-10-2015, o referido tribunal veio a prolatar decisão, onde absolveu o réu do pedido.

*

Inconformada com tal decisão, a autora interpôs o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões (inutilmente longas e repetitivas):

1. Não é aceitável, que tendo o R. contratado com a A. os seis Contratos dos Autos, cometendo assumidamente uma ilegalidade, essa ilegalidade, em si mesma, faça dos mesmos Contratos, Contratos nulos e a seu favor;

2. Ao decidir assim, o Julgador “a quo” beneficiou o R., em manifesta situação de abuso de direito e na modalidade de “venire contra factum proprium”;

3. Para o Julgador “a quo”, tinha de ter ocorrido, previamente à celebração de cada Contrato, um “procedimento pré-contratual prévio à sua celebração”, e, como esse procedimento não ocorreu, os Contratos são nulos;

4. Quem tinha de cumprir esse procedimento pré-contratual prévio era o R. e não o fez, mas esse facto não é imputável à A.;

5. O R., e por seis vezes, contratou a A. para o servir (e como se sabe, bem, até os resolver) mas como, internamente, não cumpriu a Lei, os Contratos são nulos, sendo que sufragar este entendimento é beneficiar, claramente, o infrator;

6. A A. não se conforma com este entendimento de que o R. cometeu uma (várias) ilegalidade(s) ao contratar, e, como tal, os Contratos são nulos, exatamente por via dessa(s) ilegalidades).

7. Ora, tendo ficado provado que a celebração desses Contratos não foi precedida de “qualquer procedimento pré-contratual prévio à sua celebração” (Factos Assentes D), G), J), M), P) e S), o que o R. expressamente concede que preteriu, então, todos esses Contratos são nulos;

8. O R., sujeito a procedimento que tem de cumprir (a legalidade), subscreveu deliberadamente (o desconhecimento da Lei não favorece o infrator), contratou de forma expressa 6 vezes com a A., e não pode, obviamente, beneficiar das ilegalidades cometidas em seu proveito;

9. Não a A. pode ser “responsabilizada” pelo facto de o R. não ter feito respeitar o “Princípio da Imparcialidade, da transferência e da proporcionalidade”, a que estava indelevelmente sujeito, ao contratar em cada momento em que o fez (art. 2, nº 5 CPP);

10. O exercício de um direito deve situar-se dentro dos limites das regras de boa-fé, dos bons costumes, e ser conforme com o fim social ou económico para que a Lei conferiu esse direito: sempre que se excedam tais limites, há abuso de direito, como “in casu”;

11. Como se percebe, a A. não se conforma com o desfecho dos Autos:

12. -o R. contratou os serviços da A., em cada momento;

13. -A A. prestou-os sem queixas;

14. -o R. pagou-os, sem mácula;

15. -E, quando pôs termo aos Contratos, assume que cometeu várias ilegalidades, e, por isso, seriam nulos;

16. Não é possível decidir-se assim: não pode o prevaricador sair beneficiado; cometeu – várias vezes - uma ilegalidade, e, mesmo assim, é-lhe dada a razão;

17. “Dura Lex Sed Lex”: incumprir a Lei traz consequências, não pode trazer benefícios ao respetivo infrator (e, ainda por cima) assumido, sob pena de se subverterem todos os mais elementares princípios da aplicação da Justiça; e

18. Não se pode acalentar a ideia de que Institutos como o R., que incumprem a Lei, são uns inimputáveis, quando têm gestores que têm de ser responsabilizados pelos seus atos: assinaram; vincularam; então que, depois e internamente, se exerçam os respetivos direitos de regresso sobre os respetivos responsáveis/titulares subscritores dos Contratos em causa.

*

O digno magistrado do M.P. junto deste tribunal foi notificado para se pronunciar em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, como previsto no nº 1 do art. 146º.

Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

*

Para decidir, este tribunal tem omnipresente a nossa Constituição, como (i) síntese da ideia-valor de Direito vigente, cujo (ii) modelo político é de natureza ético-humanista e cujo (iii) modelo económico é o da economia social de mercado, amparado no Direito.

Consideramos as três dimensões do Direito como ciência do conhecimento prático - por referência à ação humana e ao dever-ser inspirador das leis -, quais sejam, (i) a dimensão factual social - que influencia muito e continuamente o direito legislado através das janelas de um sistema jurídico uno e real, (ii) a dimensão ética e seus princípios práticos - que influenciam o direito objetivo também através das janelas do sistema jurídico - e, a jusante, (iii) a dimensão normativa e seus princípios prático-jurídicos.

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DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cabe, ainda, sublinhar que os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido e respetivos fundamentos, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso (cfr. artigos 144º/2 e 146/4 do CPTA, 5º, 608º/2, 635º/4/5, e 639º do CPC/2013, “ex vi” artigos 1º e 140º do CPTA), alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas.

Por outro lado, nos termos do artigo 149.º do CPTA, o tribunal “ad quem”, em sede de recurso de apelação, não se limita a cassar a decisão judicial recorrida, porquanto, ainda que a revogue ou declare nula, deve decidir o objeto da causa apresentada ao tribunal “a quo”, conhecendo de facto e de direito, reunidos que se mostrem no caso os pressupostos e condições legalmente exigidos.

As questões a resolver neste recurso são as identificadas no ponto II.2, onde as apreciaremos.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. FACTOS PROVADOS

«( Texto no original)»

*

Presente o quadro factual antecedente passemos, então, à apreciação das questões que constituem o objeto deste recurso.

*

II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO

a.

Aqui chegados, há, pois, condições para se compreender esta apelação e para, num dos momentos da verdade do Estado de Direito (o do controlo jurisdicional), ter presentes, “inter alia”, os seguintes princípios jurídicos fundamentais: (i) juridicidade e legalidade administrativas, ao serviço do bem comum; (ii) igualdade de tratamento material axiológico de todas as pessoas humanas; (iii) certeza e segurança jurídicas; e (iv) tutela jurisdicional efetiva.

Em consequência, este tribunal utiliza um método jurídico adequado à garantia efetiva, previsível e transparente dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos, através de um processo decisório teleologicamente orientado apenas (i) à concretização dos valores da Constituição e (ii) ao controlo racional de coerência dos nexos da sistematicidade jurídica que precedam a resolução do caso.

Assim, a resolução de litígios através do tribunal, num Estado democrático de Direito, implica: (i) um rigoroso respeito pelas normas materialmente constitucionais inseridas nos artigos 9º e 10º do Código Civil, na busca do pensamento legislativo da fonte de direito, dentro do sistema jurídico atual e com respeito pela máxima constitucional da sujeição dos juizes às leis e aos artigos 111º e 112º da Constituição da República Portuguesa; (ii) e, nos casos “difíceis” e excecionais em que tal for lícito ao juiz, implica ainda a metodologia racional-justificativa consistente no sopesamento ou ponderação de bens, interesses e valores eventualmente colidentes na situação concreta, sob a égide da máxima metódica da proporcionalidade, mas sempre sem prejuízo, quer dos cits. quatro princípios jurídicos fundamentais, quer do princípio constitucional da sujeição da atividade jurisdicional às leis.

b.

Ora, o presente recurso de apelação demanda que conheçamos do seguinte:

- Erro de direito na sentença recorrida, por assim tutelar um abuso do direito por parte do réu, com “venire contra factum proprium”.

Vejamos, pois.

c.

O pedido indemnizatório da autora (vd. Relatório) assentou no seguinte:

- existem vários contratos de prestação de serviços da A. ao R. (cfr. artigos 1154º ss do Código Civil);

- sem justa causa, o R. rescindiu aqueles contratos;

- (não havendo danos invocados) trata-se de acionar a cláusula contratual que prevê uma indemnização determinada (cláusula penal) no caso de o R. fazer a “denúncia antecipada” dos contratos.

O Tribunal Administrativo de Círculo não deu razão à autora, invocando o seguinte:

- os contratos em causa são nulos, por não terem sido antecedidos de qualquer procedimento administrativo;

- como não há nada a restituir, de acordo com os artigos 286º, 289º e 294º do Código Civil, e não há prejuízos alegados e provados, improcede a ação.

d.

Com efeito, ninguém, neste recurso, põe em dúvida que aqueles contratos (administrativos) de prestação de serviços, “denunciados”, ou melhor, pretendidos resolver pelo R., são nulos (cfr. artigo 294º do Código Civil “ex vi” artigo 185º/3-b) do Código do Procedimento Administrativo/1996), por causa do vício de falta de prévio procedimento administrativo, concursal ou não - cfr. assim o Decreto-Lei nº 211/79 alt. pelo Decreto-Lei nº 227/85 e os artigos 178º/1 e 181º do Código do Procedimento Administrativo/1991.

A resolução de um contrato é a destruição, por parte de um dos contraentes, da relação contratual validamente constituída, por causa de um facto posterior à celebração do contrato (A. VARELA, Das Obrig…, 2º, 3ª ed., pág. 242). A denúncia de um contrato (aliás, prevista nestes contratos “subjudice”, com uma cláusula penal no caso de ser “antecipada”) é outra coisa: “a declaração feita por um dos contraentes, em regra com certa antecedência sobre o termo do período negocial em curso, de que não quer a renovação ou a continuação do contrato renovável ou fixado por tempo indeterminado” (A. VARELA, ob. cit., pág. 246).

É claro que, se o contrato for nulo, não há, logicamente, resolução ou denúncia.

d.

O Tribunal Administrativo de Círculo, com base na nulidade dos contratos referidos na petição inicial, aplicou ao caso o previsto nos artigos 286º e 289º do Código Civil, tendo considerado que não há nada a restituir (são contratos de execução continuada) e que as cláusulas contratuais “indemnizatórias” (“rectius”, penais: as partes fixam, por acordo, o montante da indemnização, no caso de não cumprimento ou mora do devedor, ao mesmo tempo que criam ou podem criar um novo ou mais eficaz instrumento de pressão sobre o devedor – P. LIMA/A. VARELA, C.C.An., nota ao artigo 810º) fixadas em cada contrato e invocadas na petição inicial são ineficazes, logicamente devido à nulidade dos contratos.

A recorrente, após ver naufragar a tese da petição inicial quanto ao fundamento da obrigação de indemnizar, afirma que aceitar tal conclusão do Tribunal Administrativo de Círculo seria injusto, pois o réu terá agido com abuso do direito; deu causa à nulidade dos contratos escritos celebrados e agora estaria a “aproveitar-se” dela.

Note-se que, em rigor, não é uma nova questão a resolver no processo. Trata-se “apenas” de enquadrar juridicamente o suposto erro de direito do tribunal “a quo”. As questões a resolver no processo continuam a ser as mesmas: existência dos pressupostos da responsabilidade civil subjetiva. Na petição, a obrigação indemnizatória do R. resultava da violação dos contratos escritos celebrados e das respetivas cláusulas penais por denúncia antecipada (o A. falava no artigo 1154º do Código Civil, ignorava a legislação da contratação pública e sublinhava a falta de justa causa para a conduta do R.); agora, no recurso, a obrigação indemnizatória do R. resulta da violação da boa fé, sendo ainda possível, no entanto, que a recorrente esteja a dizer que não concordar com a tese da petição inicial é tolerar o abuso do direito.

Mas qual é o direito (em sentido lato) abusado pelo réu?

e.

Decorre das disposições legais citadas que o contrato nulo não produz efeitos jurídicos; existe, mas é totalmente ineficaz do ponto de vista jurídico; por outras palavras, os seus efeitos não têm proteção jurídica.

Ora, o instituto puramente objetivo do “abuso do direito” ou “o exercício disfuncional de posições jurídicas”, íntimo concretizador da norma-princípio da boa fé (cfr. artigos 266º/2 da Constituição da República Portuguesa e 6º-A do Código do Procedimento Administrativo/1996) como “norma primária de conduta” (H. HART, The Concept of Law, 2ª ed., Oxford, 1994, págs. 82-95) que exprime os valores fundamentais do sistema jurídico, é uma expressão consagrada para traduzir, hoje, um instituto multifacetado (“venire contra factum proprium”, inalegabilidade formal, “suppressio”, “tu quoque” e desequilíbrio no exercício), internamente complexo e que prossegue, em concreto, os objetivos últimos do sistema jurídico (cfr. artigo 334º do Código Civil: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, …”).

O princípio jurídico-administrativo da boa fé é “uma exigência de confiança, veracidade e exatidão na atuação administrativa” (PAULO OTERO, Manual…, I, pág. 374).

A sua violação, com o exercício disfuncional de posições jurídicas, é uma ilicitude que, como tal, pode criar uma obrigação de indemnizar quando se verifiquem todos os pressupostos da responsabilidade civil subjetiva (cfr. os artigos 334º, 483º e 798º do Código Civil: “O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”; assim, por ex., MENEZES CORDEIRO, Litigância de Má Fé…, 2ª ed., pág. 119-120).

Como enfatiza MENEZES CORDEIRO (ob. cit., pág. 113), a disfuncionalidade intrassubjetiva constitui a base ontológica do abuso do direito.

Pode falar-se em “venire contra factum proprium” quando alguém (aqui, seria o R.), tendo-se comportado (aqui, seriam estas contratações repetidas com a A.) de modo a criar na outra parte (aqui, a A.) a legítima convicção de que certo direito não seria exercido (aqui, seria a não extinção dos contratos, segundo a tese da A.), vem depois exercê-lo (VAZ SERRA, in RLJ, 115º, pág. 187; cfr. Acórdão do STA de 23-1-2007, Processo nº 041000).

Ora, o “venire” é positivo quando se traduza numa ação contrária ao que o “factum proprium” deixaria esperar; será negativo caso redunde numa omissão contrária no mesmo “factum”. Sendo positivo, o “venire” pode implicar o exercício de direitos potestativos, de direitos comuns ou de liberdades gerais. Aqui, o princípio da confiança surge como uma mediação entre a boa fé e o caso concreto. Ele exige que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas. Várias razões depõem nesse sentido. Em termos antropológicos e sociológicos, podemos dizer que, desde a sedentarização, a espécie humana organiza-se na base de relacionamentos estáveis, a respeitar. No campo ético, cada um deve ser coerente, não mudando arbitrariamente de condutas, com isso prejudicando o seu semelhante. Juridicamente, a tutela da confiança acaba por desaguar no grande oceano do princípio da igualdade e da necessidade de harmonia, daí resultante: tratar o igual de modo igual e o diferente de forma diferente, de acordo com a medida da diferença” (MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé…, págs. 1271 ss; Litigância de Má Fé…, 2ª ed., pág. 93).

A pessoa que confie, legitimamente, num certo estado de coisas não pode ser tratada como se não tivesse confiado: seria tratar o diferente de modo igual.

Mas a tutela da confiança, embora convincente, só pode operar, na falta de preceitos jurídicos, quando se mostrem reunidos especiais pressupostos. De outro modo, poderíamos transformar a sociedade num colete de forças, que prejudicasse as iniciativas individuais necessárias para dar corpo à liberdade e para possibilitar a inovação e o progresso.

Na base da doutrina e com significativa consagração jurisprudencial, a tutela da confiança, apoiada na boa fé, ocorre perante quatro proposições. Assim:

i-Uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa fé subjetiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias;

ii-Uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objetivos capazes de, em abstrato, provocar uma crença plausível;

iii-Um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efetivo de atividades jurídicas sobre a crença consubstanciada;

iv-A imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela proteção dada ao confiante: tal pessoa, por ação ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao fator objetivo que a tanto conduziu.

Cfr. os Acórdãos do STA de 27-9-2001, Processo nº 047649; de 3-10-2001, Processo nº 047731; e de 8-7-2014, Processo nº 01561/13.

Simplificando, o abuso de direito na modalidade de “venire contra factum proprium” pressupõe: i) uma primeira conduta (que se poderá traduzir numa declaração negocial), entendida como uma tomada de posição vinculante em relação ao futuro e, por essa razão, geradora de uma situação objetiva de confiança; ii) a boa-fé da contraparte, que justificadamente ou de acordo com o sistema jurídico, confiou nessa conduta; iii) uma segunda conduta, contraditória com a anterior, que frustra a confiança gerada.

f.

Presente o quadro jurídico-normativo posto agora em evidência, estamos em condições de responder ao problema que nos é colocado.

Embora não o tenha dito, o R., ao pretender resolver (revogar ou rescindir) os contratos cits., agiu no pressuposto implícito verdadeiro da nulidade dos mesmos, sendo irrelevante o mais invocado pelo R.

Ora, a óbvia nulidade dos contratos significa que as indemnizações previstas naqueles contratos nulos e efetivadas nesta ação pela A., nada valem; eles não concedem qualquer direito ou outra posição jurídica subjetiva ativa.

Assim, nem há o direito (contratual) de o R. resolver os contratos (inválidos), por impossibilidade jurídica; nem há o direito de a A. ser compensada pelo facto de o R. ter comunicado que iria passar a ignorar os contratos (nulos). Logo, o réu não está aqui a abusar de qualquer direito, já que não tem um direito para dele abusar. O R., de modo implícito e com fundamentação extravagante, atuou materialmente como se os contratos por si celebrados fossem, como são, nulos.

Por isso, na realidade, o R. não fez extinguir os efeitos daqueles contratos, porque estes nunca foram válidos e eficazes segundo o direito objetivo vigente.

Isto tudo significa que a situação de confiança invocada agora pela recorrente não era fundada, ou de acordo com o sistema jurídico ou lícita: se a recorrente tivesse cumprido o seu dever de conhecer e cumprir a lei (cfr. artigo 6º do Código Civil “A ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas”; artigos 178º e 181º do Código do Procedimento Administrativo, cits., o Decreto-Lei nº 211/79 e o Decreto-Lei nº 197/99), que impunha a ela e ao R. um procedimento administrativo pré-contratual, não teria celebrado estes contratos nulos.

Ou seja, a eventual confiança da A. é desconforme com o direito objetivo imperativo da contratação pública; e é surpreendente, porque foi e vai frontalmente contra disposições legais imperativas, de natureza jusadministrativa, que vinculavam e vinculam tanto a A. como o R.

O R., por isso, não está a agir com abuso do direito, na modalidade do “venire”. Não há aqui um exercício disfuncional de posições jurídicas por parte do R., nem uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa fé subjetiva e ética.

E, portanto, não há aqui um ilícito contratual por parte do R., porque não há contrato lícito. Não havendo um ilícito contratual, não há ofensa de qualquer direito da A., o que quer dizer que não há dever de indemnizar (cfr. artigo 798º do Código Civil).

Tratou-se, simplesmente, de cessar uma relação de facto bilateral manifestamente ilegal.

Além disso, ambas as partes deram causa à nulidade dos contratos; não foi só o R., ao contrário do que “lamenta” a A.; ambas as partes violaram claramente a legislação relativa à contratação pública de aquisição de serviços, cada uma na sua posição jurídico-contratual.

E, como se diz na sentença recorrida, nem foram alegados (e provados) prejuízos para a A.

*

III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os juizes deste Tribunal Central Administrativo Sul em, negando provimento ao recurso, confirmar a decisão recorrida.

Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 15-12-2016


(Paulo Pereira Gouveia - relator)

(Nuno Coutinho)

(Carlos Araújo)