Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:848/18.0BESNT-S2
Secção:CA
Data do Acordão:03/07/2019
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA (Relator por vencimento)
Descritores:INCIDENTE DE LEVANTAMENTO DE EFEITO SUSPENSIVO AUTOMÁTICO;
ARTIGO 103º - A, NºS 2 E 4 DO CPTA;
SOPESAMENTO DE INTERESSES E PREJUÍZOS - CRITÉRIO DOS PREJUÍZOS;
CRITÉRIO ESPECÍFICO DA DESPROPORCIONALIDADE.
Sumário:
I - A interpretação corretiva é proibida e inconstitucional, por violar (i) o princípio estruturante da separação de poderes, (ii) o princípio fundamental da obediência do juiz à lei e (iii) o artigo 9º do CC. Pelo que o efeito do recurso interposto contra a decisão do incidente de levantamento do efeito suspensivo automático, previsto no artigo 103º-A do CPA, é o efeito suspensivo, de acordo com o artigo 143º do CPTA.
II - O levantamento do efeito suspensivo automático depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos: a) grave prejuízo para o interesse público ou de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos; b) ponderação, sopesamento ou comparação de todos os interesses em presença segundo critérios de proporcionalidade, não bastando à entidade demandada e aos contra-interessados alegarem – e ficar provada – a existência de prejuízos para o interesse público e para os outros interesses envolvidos, sendo necessária a alegação e a aquisição processual de factos constitutivos da existência de grave prejuízo para o interesse público ou de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos.​
Votação:MAIORIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul

I – RELATÓRIO

…………………………………………, S.A., entidade demandada nos autos de contencioso pré-contratual à margem identificados, em que é A. a ………………………., S.A., requereu o levantamento do efeito suspensivo automático conferido à impugnação do ato de adjudicação, nos termos do art. 103º-A do CPTA.

Após a discussão do incidente, o Tribunal Administrativo de Círculo decidiu levantar o efeito suspensivo automático.

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Inconformada, a ……………………………., S.A. interpôs o presente recurso de apelação contra aquela decisão, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

A) Na visão da ora Recorrente, o Tribunal a quo não aplica corretamente o Direito.

B) Há pelo menos uma matéria, levada à apreciação do Tribunal, que não foi corretamente resolvida e que diz respeito ao primeiro e mais importante de todos os requisitos do levantamento do efeito suspensivo: a excecionalidade da situação invocada pelo Requerente do levantamento.

C) O levantamento não pode ser a solução regra a adotar apenas porque a necessidade pública fica temporariamente por satisfazer.

D) Pelo contrário, a razão de ser do contencioso pré-contratual, nacional e comunitária, é prevenir as lesões do direito comunitário da contratação pública numa fase em que as violações ainda podem ser corrigidas.

E) Pelo que, a menos que se verifiquem as “razões imperiosas de interesse geral” a que se refere o no artigo 2.º-D da Diretiva 89/665/CEE, na redação que lhe foi dada pela Diretiva 2007/66/CE, o efeito suspensivo deve manter-se.

F) É essa também a solução prevista no n.º2 do artigo 103.º-A do CPTA quando estabelece, precisamente, como pressuposto do levantamento, não ainda a ponderação de interesses, mas antes e precedentemente a existência de um grave prejuízo para o interesse público, isto é, de um prejuízo qualificado.

G) Só os casos verdadeiramente excecionais justificam que perante a suspeita de violação de normas que disciplinam a contratação pública se afaste o efeito que ope legis se determinou ab initio.

H) Por conseguinte, só há lugar à ponderação “dos interesses públicos e privados em presença” a que aludem o n.os 4 do artigo 103.º-A e n.º 2 do artigo 120.º do CPTA se, num momento prévio à ponderação, o Tribunal concluir que a situação invocada pela entidade demandada para afastar o efeito suspensivo se apresenta como uma situação excecional, dado que, para as situações regra, isto é, aquelas em que o interesse público é sempre afetado porque a mera suspensão impede a satisfação da necessidade aquisitiva, já a lei determinou o efeito suspensivo automático.

I) De um tal modo que se não ficar demonstrada a especial gravidade que a suspensão acarreta para o interesse público deve o pedido ser liminarmente indeferido, sem haver lugar a qualquer ponderação dos demais interesses em presença.

J) Até porque, é importante frisá-lo, o bem jurídico que em primeira linha se pretende defender e preservar com a introdução do efeito suspensivo automático não é o interesse dos particulares impugnantes, mas antes o interesse público, geral e abstrato, de prevenir adjudicações proferidas em violação da lei

K) Pelo que, pode mesmo afirmar-se, a inconstitucionalidade dos artigos 103.º-A n.º2 e n.º4 e 120.º n.º2 do CPTA se interpretados no sentido de que ao julgador apenas se exige um exercício de ponderação de interesses e não também um prévio juízo de verificação da excecionalidade da situação invocada como pressuposto próprio e autónomo (e prévio à) da ponderação, por violação do direito constitucional a uma tutela jurisdicional efetiva previsto no artigo 268.º n.º 4 da CRP.

L) Ora, a Decisão recorrida apenas se ateve com o juízo de ponderação dos interesses em presença.

M) Dado que, depois de (muito) assertivamente discorrer sobre o regime jurídico subjacente à existência de um efeito suspensivo automático por efeito da instauração da ação, a Meritíssima Juiz a quo, dá um salto quântico, à revelia do regime jurídico que acabara de descrever, para a ponderação dos interesses em presença, ignorando a necessidade de previamente, em juízo autónomo, com pressupostos próprios e muito diversos dos pressupostos comparativos do juízo de ponderação, dar por verificado o requisito da excecionalidade da situação, isto é, do grave prejuízo que para o interesse público representaria a suspensão.

N) Mal andou, nessa parte, a douta Decisão recorrida.

O) Tanto mais que se tivesse julgado essa questão, teria certamente concluído pela falta da verificação do requisito pois que os prejuízos que a suspensão acarreta para o interesse público, mesmo que possam ser superiores no âmbito da ponderação dos interesses em presença aos interesses privados, não são graves, não são excecionais e, por isso, não justificam o levantamento do efeito suspensivo.

P) Até porque podem ser salvaguardados através do recurso ao ajuste direto previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º ou mesmo da alínea c) do n.º 1.º do artigo 24.º do CCP.

Q) Sendo certo que ao não realizar aquele julgamento prévio, mas necessário, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 103.º-A n.º2 e n.º4 e 120.º n.º2 do CPTA e 268.º n.º4 da CRP e no artigo 2.º-D da Diretiva 89/665/CEE, na redação que lhe foi dada pela Diretiva 2007/66/CE.

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A ………………………………………, S.A. contra-alegou, afirmando o oposto, sem conclui formalmente.

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Após impossibilidades de aceder a todos os ficheiros do processo e após buscas no caderno processual do SITAF mal-organizado, como vem acontecendo desde os TACs, e cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

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Do efeito do recurso:

O artigo 143º-1 do CPTA dispõe:

“Salvo disposto em lei especial, os recursos ordinários têm efeito suspensivo da decisão recorrida”.

E o artigo 143º-2 dispõe:

“Para além de outros a que a lei reconheça tal efeito, são meramente devolutivos os recursos interpostos de:

a) Intimações para proteção de direitos, liberdades e garantias;

b) Decisões respeitantes a processos cautelares e respetivos incidentes;

c) Decisões proferidas por antecipação do juízo sobre a causa principal no âmbito de processos cautelares, nos termos do artigo 121.º ”

Há quem entenda que o presente recurso cabe no artigo 143º-2-b). E não no nº 1.

Discordamos, em cumprimento do artigo 9º do CC.

Ora, o atual Direito objetivo [Direito, ordenamento jurídico vigente, “law”], seja público, seja privado, seja processual, seja substantivo, assenta em textos oriundos de uma autoridade numa dada comunidade humana. Isto corresponde à essencial natureza institucional do Direito. Este vive através de comandos, que podem ou não ser deduzidos da ordem jurídica pela “ciência” jurídica em sentido amplo [onde incluímos a “opinio iuris” ou “jurisprudência no sentido clássico romano” e a “jurisprudência dos tribunais”.

Mas ali estão sempre em causa enunciados ou textos jurídicos. Estes enunciados comunicativos – mais ou menos abstratos, mais ou menos gerais, mais ou menos vagos, mais ou menos fechados, ligados ou não à ordem moral, mais ou menos virados a um fim ou a uma conduta - exigem sempre do intérprete-aplicador a atribuição racional de um significado ou conteúdo [a norma ou regra jurídica], o qual será ou permissivo, ou proibitivo, ou impositivo.

Isso faz-se através do método jurídico, tendo hoje por referência (i) a separação de poderes e (ii) a hierarquia formal das fontes de direito objetivo; tudo muito diferente de Roma e dos tempos de Savigny, quando não havia Estado constitucional democrático.

Hoje, o essencial é, sempre, o caráter normativo dos artigos 1º a 11º do nosso CC(1), coadjuvados por princípios jurídicos fundamentais e máximas metódicas decorrentes dos atuais artigos 1º, 2º, 13º, 18º-2-3 e 112º da CRP, de modo a não se sair da moldura significante dada pelo legislador democrático, mas onde o elemento teleológico-objetivo da interpretação jurídica(2) [interpretação expositiva da “opinio iuris”; e interpretação prescritiva dos tribunais] não se sobrepõe - por razões assentes num realismo e positivismo metodológicos essenciais inegáveis, na divisão dos poderes do Estado democrático e na cientificidade e objetividade possível do ordenamento jurídico - ao elemento lógico-sistemático(3) e ao elemento linguístico-gramatical da interpretação. Estamos, assim, hoje, no artigo 9º do nosso CC, com um nem sempre assumido positivismo jurídico-metodológico [coisa diferente do positivismo em geral].

Por isso, não basta ao tribunal administrativo de um Estado democrático como o nosso (1) aplicar objetiva e efetivamente as máximas decorrentes das normas resultantes dos artigos 9º, 10º e 335º do CC [onde avultam a letra dos preceitos jurídicos e a unidade do sistema jurídico encimado pela Constituição], sendo ainda necessário (2) atender à metodologia interpretativa imposta pelos enunciados linguísticos da lei fundamental, de onde resulta a atendibilidade do elemento interpretativo sistemático intraconstitucional, do elemento interpretativo da identidade da Constituição, do elemento interpretativo teleológico-objetivo adequante à Constituição e do elemento de interpretação da máxima efetividade possível dos preceitos constitucionais de direitos fundamentais(4). Mas, logicamente, sem confundirmos uma interpretação orientada pela Constituição, ou pelo direito objetivo europeu, com uma inconstitucional interpretação corretiva ou à luz de comandos extrajurídicos.(5)

A Metodologia Jurídica, em sentido próprio, como instrumento da tecnologia jurídica, objetivo e rigoroso, ou “científico”, corresponde às diretrizes (i) para a correta apreensão ou conhecimento objetivo do material jurídico [é a essência dos positivismo de Kelsen: v., simplesmente, os prefácios de Kelsen às duas edições alemães da “Teoria Pura do Direito”, na 8ª edição da tradução portuguesa, Almedina, 2019] e (ii) para a aplicação prática do direito objetivo [cf. parcialmente assim José Lamego, Elementos…, 2016, pp. 7-10 e 237 ss; e Miguel Nogueira de Brito, Introdução ao Estudo do Direito, AAFDL Ed., Lisboa, Capítulo I, nºs 2.6, 3 e 4].

Assim, tendo como seu motor de arranque o caso ou problema a resolver, a Metodologia Jurídica procede (i) à identificação e interpretação do direito objetivo [“law”] e dos factos jurídicos, bem como (ii) à fixação dos critérios normativos da resolução judicial de litígios [cf. o artigo 1º, 2º, 3º/3, 18º e 112º da CRP e os artigos 9º a 11º e 335º do CC, bem como as regras de lógica e de argumentação jurídica: se a lei permite o mais, também permite o menos; se a lei proíbe o menos, também proíbe o mais; etc.].

Ora, elemento essencial da Metodologia da “ciência” ou Técnica Jurídica é a interpretação das fontes do direito objetivo [Cf. Miguel Nogueira de Brito, Introdução ao Estudo do Direito, capítulo III].

As chamadas fontes de direito objetivo são os factos ou atos dos quais o ordenamento jurídico faz depender a produção de normas jurídicas [Norberto Bobbio, Teoria General del Derecho, trad., Madrid, 1991, p. 170]. São modos de formação e revelação de normas jurídicas.

E nem as decisões dos juizes, nem a “opinio iuris” ou dogmática jurídica, são fontes imediatas de Direito na ordem jurídica portuguesa atual, até porque as fontes constituem um problema legal e metodológico, e não teórico.

Como referido, uma norma jurídica é o significado juridicamente atribuído pelo intérprete a um enunciado jurídico-normativo [uma moldura portadora de um número limitado, ainda que múltiplo, de significados alternativos, significa­dos que constrangem, muito ou pouco, a liber­dade de escolha do intérprete], ou a um fragmento de enunciado normativo, ou a uma combinação de enunciados normativos ou a uma combinação de fragmentos de enunciados normativos. Normalmente, o enunciado de base é expresso, mas nem sempre assim ocorre, já que por vezes o intérprete obtém a norma a partir de enunciados implícitos [ou de lacunas normativa e ou valorativas], caso em que avulta a pretensão de correção interpretativa e de objetividade do intérprete.

Disposição normativa, diferente de norma, é um enunciado linguístico destinado à orientação da conduta dos destinatários dessa disposição.

E entre enunciado normativo e norma jurídica não existe uma relação biunívoca, o que significa que não se pode afirmar que a cada enunciado normativo corresponde uma norma. Com efeito, (i) de uma única disposição é possível deduzir duas ou mais normas jurídicas; (ii) podem ser necessárias duas ou mais disposições para a formação de uma única norma jurídica; (iii) é possível deduzir a existência de normas implícitas, que não decorrem diretamente de nenhuma disposição, mas podem ser inferidas logicamente de uma ou mais disposições; (iv) é possível a [re]construção de normas jurídicas não expressas, que não decorrem diretamente da interpretação de qualquer disposição textual.

Ontologicamente, como tem sublinhado Guastini, disposição ou enunciado normativo e norma jurídica são enunciados; porém, a disposição normativa pertence ao discurso das fontes e a norma jurídica obtida através do método da interpretação jurídica pertence ao discurso do intérprete [expositivo=dogmático; e prescritivo=jurisdicional].

Com efeito, como já se advinha, a interpretação jurídica é uma atividade mental de natureza discursiva, que consiste, essencialmente, no ato de atribuir um sentido ou um significado a um texto normativo. Interpretar não é descobrir um significado que o texto já possui, como sustentavam as teorias formalistas dos séculos XVIII e XIX acerca da interpretação jurídica. Nenhum documento normativo é dotado de um significado preciso e determinado antes de ser objeto da atividade de interpretação, como parece óbvio. Interpretar não é descobrir um significado preexistente do material interpretado, mas atribuir-lhe um significado, isto é, constituir ou determinar o seu sentido semântico, dentro de certas regras; no caso da metodologia, interpretar é atribuir significado às fontes textuais de Direito, ainda que isso se faça dentro de certos limites e condições; a subjetividade e a discricionariedade interpretativa, judiciais ou doutrinárias, são restringidas e disciplinadas por fatores internos à prática – entre eles o princípio democrático, o o princípio da separação de poderes, o argumento analógico, a igualdade perante a lei, a objetividade e a imparcialidade.

O intérprete-aplicador deve aplicar ao caso concreto o significado verdadeiro da disposição normativa e nunca - sob o pretexto da vagueza semântica [uma característica de todos os predicados na linguagem] ou da ambiguidade semântica e sintática dos enunciados linguísticos - um significado que ele possa escolher a seu gosto ou de acordo com as suas próprias construções conceituais ou dogmáticas e morais; com efeito, há uma grande diferença entre quem [re]constrói e aplica direito objetivo [o juiz e a “opinio iuris”] e quem cria os enunciados linguísticos desse direito objetivo, isto é, o legislador. Aliás, por tudo isto se deve ter em conta que o raciocínio jurisdicional é uma entidade complexa e qualitativamente heterogénea [cf. assim Michele Taruffo, em 1975, A Motivação da Sentença Civil, tradução, Marcial Pons, São Paulo, 2015, pp. 195-214]; raciocínio jurisdicional que só é unitário por causa da sua função, que é a de formular uma decisão jurisdicional e de justificar essa decisão.

Enfim, nem o teórico ou analista do Direito objetivo, nem o aplicador do Direito vigente, se podem substituir ao legislador.(6)

Neste contexto e no dos artigos 9º do CC e 1º, 2º, 112º, 203º e 204º da CRP, a prevalência normativa, hoje, depende da hierarquia formal das fontes de Direito [o grande legado do positivismo jurídico, a par do alerta permanente contra a confusão indesejável entre direito objetivo, política, moral, afetos e interesses dos juristas profissionais] e do princípio estruturante da separação de poderes, sendo por isso inaceitável e ilegal a chamada interpretação corretiva ou um Direito judicial superador da lei de base democrática; assim e por esta ordem, (i) significado do texto da disposição normativa, (ii) unidade do sistema jurídico, (iii) teleologia subjetiva ou critério genético-histórico, (iv) teleologia objetiva [o aspeto menos importante, por causa da segurança jurídica e da separação dos poderes], (v) lógica jurídica e seus argumentos, e (vi) vinculação do juiz à lei, entre outros argumentos(7) e ferramentas, andam de mãos dadas: só no caso das chamadas lacunas e das chamadas antinomias se poderá admitir que o juiz – ou a doutrina jurídica - surja como “legislador intersticial” [cf. artigo 203º da CRP e artigo 10º do CC].

Só assim se diminui a insegurança jurídica dos cidadãos. E se defende a democracia.

A interpretação corretiva é, pois, proibida, inconstitucional, por violar (i) o princípio estruturante da separação de poderes, (ii) o princípio fundamental da obediência do juiz à lei e (iii) o artigo 9º do CC.

Por outro lado, aqui não há necessidade ou possibilidade jurídico-legal de uma interpretação extensiva do previsto no cit. artigo 143º-2-b).

Assim, ao contrário do que é entendido sobretudo pela “opinio iuris” ou dogmática jurídica dominante, entendemos, em obediência ao artigo 9º do CC, que o efeito do recurso interposto contra a decisão do incidente de levantamento do efeito suspensivo automático, previsto no artigo 103º-A do CPA, é o efeito suspensivo, de acordo com o cit. artigo 143º-1 do CPTA – cf. assim o Ac. deste TCA Sul de 04-10-2018, pr. Nº 722/18...

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Delimitação do objeto do recurso:

Os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso, alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas; sem prejuízo das especificidades do contencioso administrativo. Por outro lado, nos termos do artigo 149.º do CPTA, o tribunal “ad quem”, em sede de recurso de apelação, não se limita a cassar a decisão judicial recorrida, porquanto, ainda que a revogue ou a anule - isto no sentido muito amplo utilizado no CPC - deve decidir o objeto da causa apresentada ao tribunal “a quo”, conhecendo de facto e de direito, desde que se mostrem reunidos nos autos os pressupostos e as condições legalmente exigidos para o efeito.

Assim, as questões a resolver neste recurso - contra a decisão recorrida – são as identificadas no ponto II.2, onde as apreciaremos.

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II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O tribunal recorrido decidiu estar provada a seguinte factualidade:

1. A Autora dedica-se exclusivamente à prestação de serviços de segurança privada - cfr. Certidão Permanente - documento n.º 3 que se dá por integralmente reproduzido.

2. No dia 04 de Agosto de 2017, a Ré fez publicar no Diário da República n.º 150, II série, Parte L, um anúncio de Concurso Limitado por Prévia Qualificação designado “Aquisição de serviços de segurança e vigilância para as instalações da ………, S.A.” (cfr. Anúncio do Diário da República - documento n.º 1 que se dá por integralmente reproduzido).

3. No dia 02 de março de 2018, e terminada a fase de qualificação do procedimento dos autos, a Autora apresentou a sua proposta (cfr. Processo Administrativo).

4. No dia 27 de março de 2018, a Autora foi notificada do Relatório Preliminar onde o Júri do Concurso entendeu ordenar as propostas apresentadas, ficando a Autora em 1º lugar – facto admitido.

5. No dia 08 de maio de 2018, a Autora foi notificada do 2.º Relatório Preliminar onde o Júri entendeu excluir a proposta da Autora e classificar as restantes propostas, com a proposta da ……………….. em 1º lugar – idem.

6. No dia 15 de Maio de 2018, a Autora apresentou um requerimento em sede de audiência prévia ao 2.º Relatório Preliminar onde expôs as razões pelas quais entendia que a sua proposta deveria ser definitivamente readmitida e as razões pelas quais entendia que as propostas da ………………………………, S.A. (doravante, “………….”), ……………………………, S.A. (doravante, “…………”) e ………………………………, S.A. (doravante, “……………..”) deveriam ter sido excluídas - cfr. documento n.º 2 que se dá por integralmente reproduzido.

7. No dia 26 de junho de 2018, a Autora foi notificada do Relatório Final onde o Júri manteve as conclusões do 2.º Relatório Preliminar - cfr. Processo Administrativo.

8. Tendo sido notificada, no mesmo dia, da decisão de adjudicação à proposta da …………… tomada pela Ré - cfr. Processo Administrativo.

9. O Contrato de Aquisição de Serviços de Segurança e Vigilância para as Instalações da …………………………, S.A. estabelecido entre a …….. e a …………….. foi celebrado em 1 de agosto de 2018 – fls. 82 e ss. dos autos, doc. nº 1 junto com o requerimento de incidente da ……...

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II.2 – APRECIAÇÃO DO RECURSO

São as seguintes as questões a resolver contra a decisão jurisdicional ora impugnada:

- Erro de julgamento de direito na aplicação do artigo 103º-A, nºs 2 e 4, do CPTA.

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Tenhamos presente tudo o que já expusemos, bem como que existe uma correta e rigorosa Metodologia Jurídica para decidir processos jurisdicionais(8) [cf., sem prejuízo da lei fundamental, os essenciais artigos 8º a 11º do CC, os quais, num Estado Constitucional democrático do século XXI e no contexto da estrutural separação dos poderes estaduais, impõem a toda a interpretação-aplicação do direito objetivo a nobre tarefa de objetivar - o mais possível - o critério teleológico da interpretação jurídica, sem o sobrepor aos demais critérios impostos no artigo 9º do CC português(9); e Miguel Nogueira de Brito, Introdução ao Estudo do Direito, 2ª ed., AAFDL Editora, Lisboa, 2018, capítulo I, nº 3, e capítulo III], tudo no âmbito de um Direito português positivado que, a montante da atividade do juiz e da chamada ciência jurídica ou Dogmática Jurídica como uma ciência cultural ou do espírito/saber rigoroso e sistemático, resulta (i) de opções político-legislativas e ou (ii) de legitimações sócio-ético-políticas, ambas sem natureza objetiva ou absoluta.(10) O que significa, num cumprimento rigoroso, objetivo e transparente dos artigos 8º a 11º do CC português, no âmbito de um Estado democrático de Direito com separação de poderes e busca de segurança jurídica, que a atividade soberana e independente de resolução imparcial de litígios jurídicos é distinta: da política jurídica [que compete à criação da lei e do costume], da filosofia jurídica [que compete à especulação ou razão teorética], da reconstrução sistemática do direito objetivo vigente [que compete à teoria sobre o Direito vigente], da formulação de meras opiniões jurídicas - racionalmente fundamentadas - [que compete à Dogmática Jurídica ou “opinio iuris”], e, ainda, da sociologia e da psicologia.

Passemos, agora, à análise do recurso de apelação.

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Do erro de julgamento de direito na interpretação-aplicação do artigo 103º-A, nºs 2 e 4, do CPTA

Ora, o TAC fundamentou-se assim:

“Resulta, assim, dos artigos 103º-A, nº 2, e 120º-2, ambos do CPTA, que, o levantamento do efeito suspensivo, depende da alegação [«alegando»], pelo requerente, de que «o diferimento» no tempo da «execução do ato» de adjudicação será prejudicial, de forma grave [«gravemente»], para o interesse público, «ou» [de que esse «diferimento»] gerará lesões desproporcionadas, de forma clara [«claramente»], para outros interesses envolvidos. Mais resulta que a decisão obedece ao critério do artigo 120º-2.

Em suma, para que se verifique o levantamento da suspensão automática, o diferimento da execução terá de prejudicar, de forma grave, o interesse público, «ou», alternativamente, terá de gerar lesões visivelmente desproporcionadas de outros interesses envolvidos. …

Adaptando «o critério» do artigo 120º-2, resulta que [a adoção da "providência"] o levantamento do efeito suspensivo 'é recusado' quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam do levantamento desse efeito se mostrem superiores aos danos que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências.

Por fim, resulta do artigo 103º-A, nº 4, do CPTA, que, o efeito suspensivo «é levantado», ou seja, a providência é deferida, quando, ponderados os interesses suscetíveis de serem lesados, os danos que resultariam da manutenção do efeito suspensivo [do indeferimento da 'providência'] se mostrem superiores aos que podem resultar do seu levantamento [do deferimento].

Deve notar-se que o legislador utiliza as expressões «é recusada» [artigo 120º-2] e «é levantado» [artigo 103º-A, nº 4] e não a expressão "pode ser" recusado, ou levantado, pelo que aponta claramente, ao intérprete, no sentido de que quis [artigo 9º, do CC] evitar, na medida do possível, juízos subjetivos e de tipo discricionário.

Traçados os critérios legais a observar, neste complexo puzzle, importa agora analisar o caso concreto.

Verifica-se que os serviços de segurança e vigilância a prestar nas instalações da R., aqui em causa, são essenciais para o seu efetivo e normal funcionamento.

Aqui, e em sede incidental, apenas interessa o critério do prejuízo para o interesse público, o que é óbvio, conforme a alegação da RTP.

Além disso, também interessa o valor da estabilidade contratual para o bom funcionamento da Entidade Pública Demandada, requerente do levantamento, e para os serviços de vigilância e segurança prestados nas suas instalações.

Não nos oferece dúvida que o diferimento da execução do contrato adjudicado prejudica, no caso em presença, de forma grave, o interesse público acima referido e invocado pela requerente RTP.

Em face de tudo o exposto, esta conclusão constitui motivo suficiente para justificar, como vimos acima, o levantamento do efeito suspensivo automático, operado pelo artigo 103º-A, nº1, do CPTA, em face da presente impugnação do ato de adjudicação.

Alternativamente, mas nada impedindo a alegação e verificação cumulativa, haveria que ponderar se o diferimento da execução da adjudicação geraria claramente lesões desproporcionadas para outros interesses envolvidos, para além do interesse público, nomeadamente para os interesses da contrainteressada adjudicatária.

No entanto, o interesse da Autora não se sobrepõe, de modo algum, ao interesse da adjudicatária de iniciar a prestação de serviço1, pelo que, nesta ponderação de custos e ganhos, não se verifica, muito menos de forma clara, quaisquer lesões desproporcionadas nomeadamente para os interesses da Autora.

Não há fundamento, pois, para a recusa da providência incidental.

Por fim, como vimos, o artigo 103º-A/4, do CPTA, estabelece um comando positivo, ou seja, manda que seja levantada suspensão de eficácia automática, deferindo-se a providência, se, ponderados os interesses suscetíveis de serem lesados, os danos que resultariam da manutenção do efeito suspensivo, [ou seja do indeferimento] se mostrarem superiores aos danos que podem resultar do seu levantamento [ou seja do deferimento da providência].

Ora, entendemos que, ponderados os interesses suscetíveis de serem lesados, designadamente, os interesses públicos da ………, os interesses particulares da A, …….., e os interesses particulares da CI, ……………., entendemos que os danos que resultariam do indeferimento, ou seja da manutenção do efeito suspensivo, para o interesse público da ……… e para o interesse privado da adjudicatária, se mostram superiores aos danos que, para a A, podem, eventualmente, resultar do seu levantamento ou seja do deferimento.”.

Não é fácil seguir os raciocínios expostos pelo TAC.

Porém, devemos afirmar que ali o TAC faz ora uma cisão, ora uma fusão, algo obscuras entre o nº 2(11) e o nº 4(12) do artigo 103º-A do CPTA. E que apresenta como conclusão o que apresentou como premissa, o que desde logo retira valia ao decidido.

Adotamos aqui o assim exposto no nosso acórdão de 04-10-2018, proc. nº 722/18…:

“A decisão sobre o pedido de levantamento do efeito suspensivo automático depende dos concretos interesses que as partes aleguem e demonstrem que possam ser lesados, por forma a possibilitarem uma aferição acerca da sua relevância através da ponderação jurisdicional dos mesmos.

Como consta do Ac. deste TCA Sul de 24-11-2016, Proc. nº 919/16…, “o fim ou o objetivo do efeito suspensivo automático constante do artigo 103º-A/1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos é a tutela jurisdicional efetiva da posição jurídica do autor, evitando o facto consumado resultante da “corrida ao contrato” e favorecendo ex legis a apreciação jurisdicional útil ou consequente da legalidade do ato administrativo de adjudicação.

O regime que resulta dos nº 2 e nº 4 do artigo 103º-A do Código de Processo nos Tribunais Administrativos é o seguinte:

1º- o “critério decisório”, ou melhor, a metodologia decisória do juiz passa pela ponderação racional e expressa, num juízo de prognose, de todos os interesses em presença e de todos os danos respetivos à luz da máxima metódica da proporcionalidade (com os seus três testes ou exames: adequação ou idoneidade, necessidade ou exigibilidade, proporcionalidade em sentido estrito ou equilíbrio);

2º- os dois pratos da balança do juiz, para ponderação ou sopesamento, são constituídos, (i) num lado, pelos prejuízos a causar pela continuação do efeito suspensivo automático e, (ii) por outro lado, pelos prejuízos a causar pela retoma do prosseguimento do procedimento pré-contratual na fase pós-adjudicatória;

3º- o juiz decidirá levantar o efeito suspensivo da interposição da ação (iniciado com a citação da entidade pública demandada) se - e só se – concluir que os prejuízos que resultarão da manutenção do efeito suspensivo se mostram claramente superiores aos prejuízos que possam resultar da retoma do prosseguimento do procedimento pré-contratual na fase pós-adjudicatória”.

Em síntese, o tribunal só pode levantar o efeito suspensivo automático quando, sopesando interesses e prejuízos, concluir que os danos decorrentes do efeito suspensivo para o interesse público (interesse coletivo; bem comum) e ou para os interesses dos contra-interessados são ou seriam consideravelmente superiores àqueles que advêm ou podem advir para o impugnante. Mário Aroso e Carlos Cadilha falam aqui em “desequilíbrio desproporcionado” em desfavor da entidade demandada ou dos contra-interessados (Comentário…, 4ª ed., p. 845).

O artigo 103º-A/2/4 do CPTA impõe que se considere a lesão dos interesses do requerente do incidente e a lesão dos interesses das contrapartes, em consequência da manutenção do efeito suspensivo automático.

Ou seja, o juiz deve decretar procedente o incidente se a manutenção do efeito suspensivo automático causar ao requerente prejuízos muito superiores ou desproporcionados aos prejuízos que o levantamento causará aos interesses das contrapartes.

Portanto, tem de se atender ao critério dos prejuízos.

Por outro lado, já não nos parece ser de atender, de todo, às medidas paliativas ou de emergência que a entidade demandada adote durante o efeito suspensivo automático, por causa deste.

É que isso seria pura contradição neste preciso contexto jurídico-processual.

Do lado da entidade demandada e requerente do incidente de levantamento o que interessa, para se saber se teria prejuízos muito superiores ou desproporcionados relativamente aos das contrapartes, é a “realidade” normalmente criada pelo efeito suspensivo automático e sua manutenção, desconsiderando, logicamente, a eventual conduta reativa da entidade demandada em consequência do efeito suspensivo automático.

Isto quer dizer que não relevam aqui os cits. ajustes diretos adotados pela entidade demandada para substituir o contrato cujo ato de adjudicação está em impugnação contenciosa. O que interessa saber é qual a situação concreta a causar pela continuação do efeito suspensivo automático sem eventuais medidas cautelares ou de reação adotadas pela entidade demandada; a não ser assim, não estaríamos a tratar das consequências da continuação do efeito suspensivo automático.

Cf. assim: Ac. do STA de 05-04-2017, Proc. nº 031/17; Ac. do TCAN de 15-09-2017, Proc. nº 00320/17...

Irrelevam, pois, os ajustes diretos que a entidade demandada seja obrigada a fazer (ou não).”

Em síntese, a análise do preenchimento dos requisitos legais para o levantamento do efeito suspensivo automático deve ocorrer apenas no quadro da relação contratual emergente do ato de adjudicação impugnado no concreto processo, não sendo de atender à possibilidade de contratação alternativa para satisfação das mesmas necessidades de interesse público.

Nestes termos, o que devemos aqui concluir, naturalmente com base nos factos alegados provados e ou eventualmente notórios?

Já vimos os factos alegados provados.

E não temos de aditar ou considerar outros factos, designadamente notórios. Ao contrário do contido nas considerações feitas no caso do CCB abordado pelo cit. acórdão deste tribunal de 04-10-2018. Como é notório, a realidade externa “CCB” é diferente da realidade externa “……..”.

Portanto, sobre o critério decisório para o levantamento do efeito suspensivo automático, entende-se que do art. 103º-A do CPTA resulta que o levantamento do efeito suspensivo automático depende da verificação - cumulativa - dos seguintes requisitos:

a) grave prejuízo para o interesse público ou de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos;

b) ponderação, sopesamento ou comparação de todos os interesses em presença segundo critérios de proporcionalidade, não bastando à entidade demandada e aos contra-interessados alegarem – e ficar provada – a existência de prejuízos para o interesse público e para os outros interesses envolvidos, sendo necessária a alegação e a aquisição processual de factos constitutivos da existência de grave prejuízo para o interesse público ou de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos – cf. assim, além dos cits. Acs. deste TCA Sul de 24-11-2016 e de 04-10-2018, os Acs. deste TCA Sul de 24-05-2018, pr. Nº 78/17…, e de 04-10-2017, pr. Nº 1904/16…-A.

Já dissemos que, no caso presente, não temos de aditar ou considerar outros factos, designadamente notórios; ao contrário do referido nas considerações feitas no diferente caso do CCB abordado pelo cit. acórdão deste tribunal de 04-10-2018.

Assim sendo, como é, com base nos factos aqui provados temos de concluir, à luz do específico critério de desproporcionalidade exigido no artigo 103º-A do CPTA, acima explanado, que não existe qualquer prejuízo para a ……….. e os interesses por si aqui prosseguidos se se mantiver o legal efeito suspensivo automático da adjudicação impugnada. E muito menos um prejuízo manifestamente desproporcionado.

Nenhum facto concreto, alegado ou notório, o indicia sequer.

O que também significa que, de novo à luz dos factos aqui pertinentes no caso concreto, não há necessidade de dispensar muita atenção a quantos – um ou dois - juízos avaliativos está sujeito o juiz do artigo 103º-A do CPTA. Basta dizer o que já dissemos sobre o único juízo global e ou compósito de desproporcionalidade que é especificamente previsto na lógica, no texto e na economia da figura especial regulada no artigo 103º-A.

Por isso se tem de concluir, sem mais, como concluiu a ora recorrente e requerida no incidente, a ……... O tribunal “a quo” errou na ponderação ou sopesamento que pareceu fazer, especialmente porque não tinha sequer factos que permitissem obter a conclusão e as premissas - conclusivas – em que se baseou para decidir a final.

Pelo que procedem as conclusões do recurso quando afirmam que o tribunal recorrido violou o artigo 103º-A-2-4 do CPTA.

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III - DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, os juizes do Tribunal Central Administrativo Sul acordam:

a) em alterar o decidido na 1ª instância quanto ao efeito do recurso e, assim, fixar ao recurso o efeito suspensivo da decisão incidental recorrida;

b) em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida e, conhecendo em substituição do TAC, absolver a requerida do cit. pedido incidental, mantendo-se o efeito suspensivo automático.

Custas do incidente a cargo da ……… em ambas as instâncias.

Lisboa, 07-03-2019


Paulo H. Pereira Gouveia [Relator por vencimento]

Pedro Marchão Marques

[vencido apenas na parte em que se fixou o efeito suspensivo ao recurso]

Carlos Araújo

[Vencido quanto ao mérito do recurso em conformidade com o projecto de acórdão que elaborei, de que junto cópia]


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(1)A propósito de um dos elementos ou critérios da interpretação jurídica das leis, parece-nos que a noção de sistema jurídico, ponto de partida da Teoria do Direito [uma área do conhecimento teórico que pretendeu afastar-se da “prudência” aristotélica e da “juris prudentia” romana, buscando um desejado estatuto científico ou sistemático nos séculos XVIII e XIX], foi o essencial para a posterior autodeterminação da novel “ciência” jurídica - nos finais do séc. XIX - e a análise da estrutura lógica das normas jurídicas.
Ao contrário do tradicionalmente entendido, sistema como método refere-se apenas à Teoria do Direito e não já à Técnica ou “ciência” do Direito, que, por ser uma técnica, atua, já sabedora da Teoria do Direito, através do verdadeiro método jurídico, que é muito diferente de sistema.
A ideia de sistema jurídico, como hoje a entendemos, proporciona a sua adaptação à evolução social. Adequa-se a algo que quase todos negam, mas que praticam atualmente: a um positivismo metodológico, não ideológico, mas construtivo de conceitos [necessariamente, como ensinou Kant]. A ideia de sistema jurídico quadra muito bem com o dia a dia da atual “ciência” jurídica como técnica utilizada nos tribunais e nos primeiros 11 artigos do nosso CC. Com efeito, diminui-se assim o casuísmo decisório, hoje alimentado (i) pelo uso não rigoroso das teleologias subjetivas, pelo Constitucionalismo exacerbado ou pós-positivismo e (iii) pelos neo-principialismos jurídicos, no que ao processo aplicativo do direito objetivo diz respeito.
Esses neo-principialismos jurídicos podem ser, na verdade, um perigoso “positivismo” das chamadas normas-princípio ou dos “standards” [?], “positivismo” das chamadas normas-princípio esse importado da era pré-codificação alemã e das ordens jurídicas e teorias de língua inglesa, apesar das profundas diferenças com a atual Europa continental. Basta pensar na “ideologia” do doutrinador [autodenominado “cientista” do Direito] ou do intérprete-aplicador, “ideologia” ou intenção que pode tender, não para o importantíssimo critério sistemático - não teleológico - da interpretação, mas sim, como é comum entre nós, para um perigoso e antidemocrático critério teleológico-subjetivo-valorativo [cf. M. TARUFFO, em 1975, A Motivação da Sentença Civil, tradução, Marcial Pons, São Paulo, 2015, p. 213]. Isso apesar de tal critério teleológico-subjetivo-valorativo não ter autonomia nas regras legais democráticas sobre a interpretação jurídica [vd. os primeiros 11 artigos do nosso CC, tantas vezes menorizados ou mesmo ignorados por alguns juristas que, assim, confundem, voluntária ou involuntariamente, “ciência” jurídica - ciência social cujo objeto é o Direito posto, sistematizado na legislação e na Teoria do Direito, a aplicar a casos concretos segundo o método jurídico - com uma teoria geral do fenómeno jurídico ou com uma filosofia do fenómeno jurídico].
(2)Primeiramente acentuado por Anton Friedrich Justus Thibaut no começo do séc. XIX, antes da codificação alemã.
(3)Primeiramente acentuado por, i.a., Friedrich Carl von Savigny na 1ª metade do séc. XIX, antes da codificação alemã, quer na sua 1ª fase – algo positivista – quer na sua 2ª fase – institucionalista ligada ao espírito do povo.
(4) Cf. MARCELO REBELO DE SOUSA/A.S.MATOS, D. Adm. Geral, Tomo I, 1ª ed., P. D. Quixote, pp. 88-90, e 3ª ed., pp. 94-96; JORGE MIRANDA, no Manual…, ou no Curso de Direito Constitucional, 1, UCE, Lisboa, 2016, no § dedicado à “interpretação e integração das normas constitucionais”; H. HART, O Conceito de Direito, ed. FCG; MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO, Introdução ao Estudo do Direito, AAFDL Editora, Lisboa, 2017, pp. 35 ss e 159-340; MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução ao Direito, Almedina, 2012, pp. 301 ss, 315-384 e 413-434.
(5) Vd. GIOVANNI TARELLO, L´Interpretazione della Legge, Dott. A. Giuffrè Editore, Milão, 1980; cf. PEDRO FERNÁNDEZ SÁNCHEZ, “CCP e Constituição: problemas na aplicabilidade de procedimentos de contratação pública à luz da Constituição portuguesa”, in A Constituição e a Administração Pública – Problemas de Constitucionalidade das Leis Fundamentais do Direito Administrativo Português, coord. de Pedro Fernández Sánchez/Luis Alves, AAFDL Editora, 2018, pp. 51 e 61.
(6) Cf., sem prejuízo da centralidade do pensamento de C. Perelman: RICCARDO GUASTINI, Teoria e Dogmatica delle Fonti, Milano, 1998; “Il realismo giuridico ridefinito”, in Revus, 2013, nº 19, pp. 97-111; “Entrevista a Riccardo Guastini”, in DOXA, 2004, pp. 557-573; Teoría e Ideologia de la Interpretación Constitucional, Madrid, 2008; “A sceptical view on legal interpretation”, in Analisi e Diritto, a cura di P. Comanducci e R. Guastini, 2005; “A propósito del neoconstitucionalismo”, trad., in Gaceta Constitucional, nº 67, pp. 231 ss; Interpretare e Argumentare, Milano, 2011; “Lo scetticismo interpretativo revisitato”, in Materiali per una Storia della Cultura Giuridica, 2006, Nº 1, p. 227-236; HANS KELSEN, A Justiça e o Direito Natural, 2001, pp. 151-153; HERBERT HART, O Conceito de Direito, ed. FCG, Lisboa, maxime o posfácio de 1994; e ainda RÚBEN DAMIÃO, “A teoria dos princípios”, in O Direito, Ano 146º, 2014, IV, pp. 971 ss. E a síntese de J. J. MORESO, Cos´è il neoconstitucionalismo, in “Academia.edu” (2019).
(7)Vd. G. TARELLO, L´Interpretazione della Legge, Dott. A. Giuffrè Editore, Milão, 1980.
(8) Porém, não olvidemos que as metodologias teoréticas jurídico-construtivistas chocam frequentemente com o princípio fundamental da fidelidade à lei ou ao costume aplicáveis; e o mesmo só não acontecerá com uma metodologia jurídica teleológica se e apenas se esta for objetiva e objetivante. Por outro lado, o pensamento jurídico-teorético “dos interesses” e o pensamento jurisdicional “dos interesses” são diferentes do pensamento jurídico-teorético “das razões para” e do pensamento jurisdicional “das razões para”. Também há distinção entre “conhecer o direito objetivo com metodologia própria” e “aplicar o direito objetivo com metodologia própria”. É que direito objetivo é uma coisa e jurisciência ou dogmática jurídica é outra. Enfim, o Direito da dogmática [ou Jurisprudência Romano-Clássica transformada em jurisciência nos seculos XIX e XX, a “opinio iuris”, a Dogmática Jurídica] não é saber idêntico ao saber designável como jurisprudência dos tribunais. Por outro lado, não compete ao Direito judicial ou jurisprudência dos tribunais, nem à Dogmática Jurídica ou jurisciência, justificar o Direito existente; isto cabe à Ética [ciência cultural que estuda a moral] e à Política do Direito. Mas com isto não se está a negar que o direito objetivo - de origem humana tal como os seus valores – pode juridificar algumas normas morais e que é avaliável como justo ou injusto conforme o sistema moral que dê o critério de valoração ao avaliador, apenas se constatando que a vinculatividade ou existência da ordem jurídica não depende necessariamente da sua concordância com a normatividade moral vigente [H. KELSEN, Teoria Pura do Direito, trad., 7ª ed. portuguesa, pp. 75 ss].

(9) Sendo que as “fontes” imediatas do Direito português atual são as que decorrem dos artigos 8º e 112º da CRP, isto é, as leis no sentido amplo do artigo 1º-2 do CC [todas as disposições genéricas provindas dos órgãos estaduais ou supraestaduais competentes, onde se incluem os regulamentos de administração pública]. E, nem as decisões dos juizes, nem a “opinio iuris” ou dogmática jurídica, são “fontes” imediatas de Direito na ordem jurídica portuguesa atual [utiliza-se aspas, porque o sentido jurídico de fonte de Direito é o utilizado como H. KELSEN o expõe em Teoria Pura do Direito, trad., 7ª ed., pp. 262-284; lembremo-nos que a chamada “norma fundamental” é apenas o fundamento lógico último da vinculatividade [existência ou “validade”] de uma dada ordem normativa posta pela lei ou pelo costume, devendo a chamada “norma fundamental” ser definida simplesmente como uma regra pensada ou pressuposta que, não resultando de um ato de vontade seja de quem for, nos diz que se deve obedecer a certo comando emitido por uma determinada autoridade ou comunidade produtora de normas jurídicas; a chamada “norma fundamental” é o ponto de partida necessário e lógico-formal do processo de criação do direito objetivo de uma dada ordem jurídica, vista sob a imagem espacial de supra-infra-ordenação das respetivas normas, mas sem negar que, a montante e ao redor do direito objetivo, existem filosofias do Direito, políticas do Direito e ideias de justiça [cf. assim H. KELSEN, ob. cit., pp. 67 ss; cf. em geral K. ENGISCH, Introdução ao Pensamento Jurídico, 11ª ed., FCG, Lisboa, 2014,
p. 387, sendo que ali pensamento jurídico e seu método é apenas com relação à dogmática jurídica ou jurisciência e não também relativamente à prática de concretização-realização do direito objetivo; cf. ainda os artigos 8º e 9º do nosso CC].
(10) Isto, porém, num contexto (i) de uma pluralidade não harmonizada de preceitos normativos sobre a mesma matéria, cada vez mais frequente, e (ii) de uma CRP doutrinária e politicamente desfigurada para uma constituição “light” ou flexível, em detrimento da segurança jurídica e de uma liberdade confiável. E em que a Administração Pública é, paradoxalmente, cada vez mais uma gestora de direitos e interesses diferentes, privados e ou públicos, para prosseguir o interesse coletivo.
(11) A entidade demandada e os contrainteressados podem requerer ao juiz o levantamento do efeito suspensivo, alegando que o diferimento da execução do ato seria gravemente prejudicial para o interesse público ou gerador de consequências lesivas claramente desproporcionadas para outros interesses envolvidos, havendo lugar, na decisão, à aplicação do critério previsto no n.º 2 do artigo 120.º
(12) O efeito suspensivo é levantado quando, ponderados os interesses suscetíveis de serem lesados, os danos que resultariam da manutenção do efeito suspensivo se mostrem superiores aos que podem resultar do seu levantamento.