Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:11/22.5BCLSB
Secção:CT
Data do Acordão:04/28/2022
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:IMPUGNAÇÃO ARBITRAL
PRONÚNCIA INDEVIDA
IRREPETIBILIDADE DO PROCEDIMENTO INSPETIVO
IMPUGNAÇÃO UNITÁRIA
LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
Sumário:I - As questões a apreciar pelo tribunal arbitral abrangem todas as que sejam suscitadas pelas partes.
II - Tendo sido emitidas as liquidações e, a esse respeito, tendo sido invocado vício procedimental (concretamente a violação do princípio da irrepetibilidade do procedimento inspetivo), vício esse que só pode ser apreciado em sede de impugnação da liquidação, dado o princípio da impugnação unitária que enforma o processo tributário, o tribunal arbitral pode e deve conhecê-lo.
III - O facto de a apreciação da violação do princípio da irrepetibilidade do procedimento inspetivo implicar a análise do âmbito da ação inspetiva inerente à impugnação e de uma outra ação inspetiva, que a precedeu e alheia à impugnação, não significa que se esteja a conhecer objeto alheio aos autos, porquanto o conhecimento de tal vício inexoravelmente implica uma análise comparativa das duas ações inspetivas.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. RELATÓRIO

A Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante Impugnante ou AT) veio apresentar impugnação da decisão arbitral proferida a 23.12.2021, pelo tribunal arbitral coletivo constituído no Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), no processo a que aí foi atribuído o n.º 491/2021-T, ao abrigo dos art.ºs 27.º e 28.º do DL n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária – RJAT).

Nesse seguimento, apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

“1ª) A decisão arbitral ora impugnada ao ter deliberado julgar totalmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência, ao entender:

“ A - Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

B - Anular a liquidação adicional de IRC n.º 20188510003672 e as correspondentes liquidações de juros compensatórios com os n.s 201800000221981 e 201800000221982, na parte ainda subsistente após o deferimento parcial de recurso hierárquico, que ascende ao montante, de juros compensatórios incluídos, de €1.179.164,95, relativo ao exercício de 2014 do Grupo Fiscal REN;

C) Julgar procedente o pedido de indemnização por garantia indevida e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente a esse título a quantia de €16.765,67, bem como despesas com a prestação de garantia bancária n.º 00125 - 02 - 2129714 suportadas após 11-07-2021 e até ao seu levantamento”

cometeu, pronúncia indevida , uma vez que excedeu a competência, em razão da matéria, do Tribunal Arbitral.

2ª) Na verdade, a competência dos tribunais arbitrais é, desde logo, circunscrita às matérias indicadas no n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.

Estabelece aquela norma que:

«1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.» (sublinhados nossos).

3ª) Por outro lado, a competência dos tribunais arbitrais também depende dos termos da vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais constituídos nos termos do RJAT, cfr. art. 4º do RJAT.

4ª) Nos termos das als. a) e b) da Portaria nº 112 - A/2011, ficam excluídas do âmbito da vinculação da AT à jurisdição dos tribunais arbitrais as “ pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131º a 133º do Código de Procedimento e de Processo tributária ”, bem como, “pretensões relativas a atos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão”.

5ª) Inexiste, pois, qualquer suporte legal que permita que sejam proferidas pelos tribunais arbitrais condenações de outra natureza que não as decorrentes dos poderes fixados no RJAT.

6ª) Como resulta do pedido de pronúncia arbitral, vem este interposto contra o indeferimento parcial do recurso hierárquico e da precedente reclamação graciosa e (em termos finais ou últimos), o acto de liquidação adicional de IRC n.º 2018 8510003672 na parte ainda subsistente (após o deferimento parcial do recurso hierárquico) e correspondentes juros compensatórios , relativos ao exercício de 2014.

7ª) Requerendo-se, a final a declaração de ilegalidade do ato de liquidação adicional de IRC n.º 2018 8510003672 e correspondentes juros compensatórios, na parte ainda subsistente após o deferimento parcial do recurso hierárquico.

8ª) São estes, efectivamente, os atos que a Requerente identifica e fixa como objecto e matéria a apreciar pelo tribunal arbitral.

9ª) Entendeu o tribunal arbitral que aos atos impugnados são imputados vários vícios, designadamente um vício procedimental por duplicação ilegal de procedimentos de inspecção externa, e vícios de violação de lei relativos a correções em matéria de preços de transferência, dedução fiscal de donativos, dedução fiscal majorada de quotizações par a associações empresariais e apuramento de tributação autónoma sobre remuneração variável.

10ª) Para assim, optar por, ao abrigo do n.º 1 do artigo 22.º do RJAT, decompor a decisão em pronúncias parciais, sendo uma sobre a questão da duplicação de procedimentos de inspeção e outra sobre as restantes questões de legitimidade das liquidações, caso o seu conhecimento não ficasse prejudicado pela solução da primeira questão.

Assim,

11ª) No ponto B) dos factos dados como provados, o tribunal arbitral deu como provado que:

«B) Foram efectuadas à Requerente, relativamente ao exercício de 2014, em sede de IRC, duas inspeções externas, ao abrigo das Ordens de Serviço n.º OI 201700110 e OI201700169, e uma inspeção interna, ao abrigo da Ordem de Serviço n.º 02018000 31».

12ª) Pois bem, os atos impugnados no processo arbitral n.º 491/2021T, decorrem da procedimento de inspeção realizado a coberto da OI201800031, à ora impugnada, na qualidade de sociedade dominante, para refletir na declaração de rendimentos do grupo, as correções levadas a cabo na sua esfera individual, na qualidade de sociedade dominada, pelo procedimento de inspeção credenciado pela OI 201700169.

13ª) Efectivamente conforme consta da matéria de facto dada como provada :

14ª) Sucede que, ao determinar apreciar uma eventual duplicação de procedimentos de inspeção, com a agravante de o procedimento de inspeção OI 201700110, ser completamente alheio à liquidação de imposto e atos em matéria tributária daí resultantes e identificados pela então Requerente como o acto tributário objecto do pedido de pronúncia arbitral, acabou o acórdão arbitral ora impugnado por, em alternativa à acção administrativa, apreciar o âmbito e extensão dos procedimentos de inspeção.

15ª) Como se refere no Acórdão arbitral, a pág .14:


«Imagem no original»

15ª) Para, concluir que:

«Pelo exposto, o pedido de pronúncia arbitral procede quanto ao vício de violação dos princípio da irrepetibilidade das inspeções externas, que emana do n.º 4 do artigo 63.º da LGT, que constitui vício de violação de le i, com potencialidade para anular a inspeção ao abrigo da Ordem de Serviço OI201700169, bem como os actos subsequentes que a tiveram por pressuposto, designadamente as liquidações de IRC e juros compensatórios impugnadas.»

17ª) Assim, o Acórdão arbitral analisou não qualquer acto de liquidação e sua (i)legalidade, mas antes, o âmbito e extensão das acções de inspeção. Aliás, note-se e repita-se que a OI 201700110 e os seus efeitos, não integram o objecto do pedido de pronúncia arbitral.

18 ª) Por isso, o pedido de pronúncia arbitral não consubstancia o meio próprio, o que, no caso, redunda na própria incompetência do Tribunal Arbitral, para apreciar a (i)legalidade de uma eventual duplicação de procedimentos de inspeção.

19ª) A condenação da AT nos termos em que foi feita pelo Tribunal arbitral, encontra-se, portanto, excluída do âmbito da competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD.

20ª) Assim, porque não cabe no art. 2º do RJAT e atenta a Portaria de Vinculação, a apreciação de atos administrativos em matéria tributária que não comportam a apreciação da legalidade da liquidação, deveria o Tribunal Arbitral ter concluído pela sua (in)competência.

V - Do pedido de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça:

Atendendo ao facto de o valor do recurso ser superior a €275.000,00 requer-se que esse Venerando Tribunal se pronuncie e decida, a final, pela dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, atendendo a que estamos em sede de impugnação de decisão arbitral, que não há lugar à produção de prova testemunhal e que ao Tribunal se pede que analise e decida sobre questão que não se afigura revestir grande complexidade, cfr. art. 6º nº 7 do RCP.

Termos pelos quais e, como o douto suprimento de V. Ex.as, incorrendo a decisão arbitral ora impugnada no vício de pronúncia indevida deve a mesma ser julgada nul a ou anulada, com todas as legais consequências”.

Foi ordenada a notificação de REN - Rede Eléctrica Nacional, S.A. (doravante Impugnada) para alegar, nos termos consignados no art.º 144.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), ex vi art.º 27.º, n.º 2, do RJAT, tendo sido apresentadas contra-alegações, nas quais foram formuladas as seguintes conclusões:

“A) O acórdão arbitral recorrido apreciou e julgou ilegalidade do acto de liquidação de IRC n.° 2018 8510003672, cujo vício se reconduzia a ilegalidade invalidante do mesmo do procedimento de inspecção tributária efectuada ao abrigo da ordem de serviço 01201700169, procedimento este que estava e está na base daquele acto de liquidação, procedimento inspectivo este que efectuou a correcção e produziu a fundamentação das quais brotou aquele acto de liquidação.

B) E tendo julgado verificada violação por este procedimento inspectivo da norma de proibição de repetição de inspecções externas (artigo 63.°, n.° 4, da LGT), anulou o acto de liquidação que inteiramente dele dependia, cujo vício daquele nele se projectava, conforme princípio estruturante do contencioso tributário dito da impugnação unitária, previsto no artigo 54.° do CPPT, aplicável à arbitragem tributária ex. vi. artigo 29.°, n.° 1, alínea a), do RJAT.

C) Não se verifica, pois, isso é uma evidência, incompetência alguma do Tribunal arbitral que proferiu o acórdão arbitral recorrido, não se verifica, pois, pronúncia indevida alguma do mesmo, porquanto a sua primeira e principal competência é justamente a apreciação de pretensões relativas a ilegalidade de actos de liquidação de tributos.

D) A AT faz afirmações falsas e maliciosas nas suas alegações de recurso.

E) A AT apresenta uma fundamentação para o recurso descuidada, inequivocamente impertinente e desprovida sequer de aparência de laivo de plausibilidade.

F) Dúvida razoável a recorrida não tem de que a AT, com dolo ou, pelo menos negligência grave, deduziu pretensão/recurso cuja falta de fundamento não devia ignorar, e faz do processo um uso manifestamente reprovável, com o fim de protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão recorrida.

G) Pelo que deve ser condenada por litigância de má-fé, conforme previsto no artigo 542.°, n.° 1 e n.° 2, alíneas a) e d), do Código de Processo Civil, em multa a fixar de acordo com o prudente arbítrio deste Tribunal, e em indemnização à parte contrária pelos custos acrescidos em honorários suportados que se vierem a apurar.

II) E em face desta conduta processual da AT, não se crê que seja de atender o pedido de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça.

Nestes termos e nos mais de direito, sempre com o mui douto suprimento de vossas excelências, deve ser negado provimento à impugnação da decisão arbitral, mantendo-se na ordem jurídica a douta decisão proferida pelo tribunal arbitral.

No mais, deve a recorrente at ser condenada por litigância de má-fé, conforme previsto no artigo 542.°, n.° 1 e n.° 2, alíneas a) e d), do código de processo civil, em multa a fixar de acordo com o prudente arbítrio deste tribunal, e em indemnização à parte contrária pelos custos acrescidos em honorários suportados que se vierem a apurar.

E em face desta conduta processual da at, não deve, excepcionalmente, ser atendido o seu pedido de dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça.

Assim deliberando, farão vossas excelências justiça e promoverão uma vivência mais sã das leis processuais”.

O Ilustre Magistrado do Ministério Público foi notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 146.º, n.º 1, do CPTA.

Atenta a litigância de má-fé suscitada pela Impugnada nas suas contra-alegações, foi a Impugnante notificada para, querendo, se pronunciar, o que fez, pugnando pela sua não ocorrência.

Colhidos os vistos legais vem o processo à conferência.

São as seguintes as questões a decidir:

Questão suscitada pela Impugnante:

a) A decisão impugnada padece de nulidade, por pronúncia indevida, por terem sido exorbitados os poderes de cognição do tribunal arbitral, acabando o acórdão arbitral por, em alternativa à ação administrativa, apreciar o âmbito e extensão dos procedimentos de inspeção?

Questão suscitada pela Impugnante:

b) A Impugnante litigou de má-fé?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. Para a apreciação da presente Impugnação estão provados os seguintes factos:

1) A 13.08.2021, a ora Impugnada apresentou junto do CAAD pedido de constituição de tribunal arbitral, do qual consta designadamente o seguinte:

“… 2. Duplicação de procedimentos de inspecção externa ao mesmo imposto (IRC) ano (2014) e contribuinte (REN SGPS e seu Grupo Fiscal)


18º

No segundo trimestre de 2017, a ora requerente foi objecto de uma inspecção externa ao IRC do exercício de 2014, e passados três meses, no final do terceiro trimestre de 2017, voltou a ser objecto de uma inspecção externa ao IRC do exercício de 2014, segunda inspecção externa esta que originou a liquidação adicional de IRC aqui em causa.

19º

Com datas, e documentadamente, a cronologia é esta:

i) Em 26.05.2017 foi emitida a ordem de serviço n.º OI201700110 para inspecção externa em sede de IRC ao exercício de 2014 (Doc. n.º 5); subsequentemente, em 25.09.2017, foi emitida a ordem de serviço n.º OI201700169 para inspecção externa em sede de IRC ao exercício de 2014, segunda inspecção esta que originaria o RIT e liquidação adicional de IRC aqui em causa (Doc. n.º 6);

ii) Com data de 30.05.2017 foi remetida a carta-aviso de início daquela primeira inspecção externa ao IRC de 2014 (Doc. n.º 7), ao abrigo da citada ordem de serviço n.º OI201700110, e com data de 27.09.2017 foi remetida a carta-aviso de início da segunda inspecção externa ao IRC de 2014 (Doc. n.º 8), ao abrigo da citada ordem de serviço n.º OI201700169;

iii) Em 6 de Junho de 2017 iniciaram-se os actos de inspecção daquela primeira inspecção externa ao IRC de 2014 (cfr. a data de assinatura pela inspeccionada da ordem de serviço atrás junta como Doc. n.º 5 , ou a informação constante da nota de diligência que aqui se junta como Doc. n.º 9), e na mesma data foi endereçado à requerente o pedido de elementos que a AT entendeu por bem solicitar (Doc. n.º 10), e em 17.10.2017 iniciaram-se os actos de inspecção da segunda inspecção externa ao IRC de 2014 (c fr. a data de assinatura pela inspeccionada da ordem de serviço atrás junta como Doc. n.º 6 , ou a informação constante da nota de diligência que aqui se junta como Doc. n.º 11), e na mesma data foi endereçado à requerente o pedido de elementos que a AT entendeu por bem solicitar (Doc. n.º 12), sendo que um segundo e adicional conjunto de pedidos se lhe seguiu em 14 de Novembro de 2017 (Doc. n.º 13).

iv) Em 31 de Outubro de 2017 concluíram-se os actos de inspecção daquela primeira inspecção externa ao IRC de 2014 (cfr. a data de assinatura pela inspeccionada da nota de diligência que atrás se juntou como Doc. n.º 9 , e o artigo 61.º, n.º 1, do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária e Aduaneira – doravante, RCPITA), e em 27 de Junho de 2018 concluíram-se os actos de inspecção da segunda inspecção externa ao IRC de 2014 (cfr. a data de assinatura pela inspeccionada da nota de diligência que atrás se juntou como Doc. n.º 11 , e o artigo 61.º, n.º 1, do RCPITA);

v) Com data de 22 de Dezembro de 2017 foi enviado o RIT daquela primeira inspecção externa ao IRC de 2014 (cfr. Doc. n.º 14), e a liquidação adicional que se seguiu data de 2 de janeiro de 2018 e foi notificada em 5 de Janeiro de 2018 (Doc. n.º 15), e em 27 de Junho de 2018 foi notificado o RIT da segunda inspecção externa ao IRC de 2014 (Doc. n.º 16) e a liquidação adicional que desencadeou data de 6 de Agosto de 2018 , tendo sido notificada em 8 de Agosto de 2018 (Doc. n.º 1 atrás junto);


20º

Em suma, A AT iniciou e concluiu uma primeira inspecção externa ao IRC de 2014, e suportado nela emitiu uma liquidação adicional de IRC ao Grupo REN, tendo então pedido e analisado tudo o que entendeu ser de pedir e de analisar.

21º

E subsequentemente iniciou uma segunda inspecção externa ao IRC de 2014, que terminou também após aquela primeira, e que desencadeou também uma (segunda e posterior) liquidação adicional de IRC ao Grupo REN.

22º

Sucede que o regime legal que rege as inspecções tributárias prescreve que só pode haver “ mais de um procedimento externo de fiscalização respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação mediante decisão, fundamentada com base em factos novos, do dirigente máximo do serviço, salvo se o procedimento visar apenas a consulta, recolha de documentos ou elementos ou a confirmação dos pressupostos de direitos que o contribuinte invoque perante a administração tributária e sem prejuízo do apuramento da situação tributária do sujeito passivo por meio de inspeção ou inspeções dirigidas a terceiros com quem mantenha relações económicas. ” (artigo 63.º, n.º 4, da LGT; sublinhado nosso).

23º

Ora, a segunda inspecção externa ao IRC de 2014 não se fundamenta em quaisquer factos novos (os factos apreciados já lá estavam desde pelo menos 31.12.2014), nem tão-pouco a AT tal alegou ou invocou, e nem tão-pouco houve despacho fundamentado algum do dirigente máximo do serviço a decidir sobre a realização desta segunda inspecção externa.

24º

Donde a ilegalidade da mesma, por violação do artigo 63.º, n.º 4, da LGT, e consequentemente a ilegalidade de todos os actos subsequentes (cfr. artigo 54.º do CPPT) que nela e nos seus resultados repousam, maxime ilegalidade do acto de liquidação adicional de IRC aqui em causa.

25º

Que deve, pois, por este primeiro motivo (além de outros que supra se desenvolverão), ser anulado.

(…)


27º

Impõe-se, pois, a anulação da liquidação adicional de IRC aqui em causa, por violação do disposto no art. 63.º, n.º 4, da LGT.

28º

Com efeito, o procedimento é ilegal, por se sustentar numa segunda inspeção externa ilegal, e esse vício comunica-se ao acto final da liquidação, nos termos do artigo 54.º do CPPT” (cfr. fls. 1 a 1273 da certidão do processo arbitral – Vols. 1 a 6, constante dos documentos com os números de registo no SITAF neste TCAS 004366196, 004366198, 004366204, 004366212, 004366217 e 004366223, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

2) Na sequência do referido em 1), foi constituído tribunal arbitral coletivo, tendo dado origem ao processo n.º 491/2021-T (cfr. fls. 1580 da certidão do processo arbitral – Vol. 7, constante do documento com o número de registo no SITAF neste TCAS 004366226).

3) No âmbito do processo referido em 2), foi proferida decisão arbitral, a 23.12.2021, da qual consta designadamente o seguinte:

“1.1. Pronúncia parcial

São imputados aos actos impugnados vários vícios, designadamente um vício procedimental por duplicação ilegal de procedimentos de inspecção externa, e vícios de violação de lei relativos a correcções em matéria de preços de transferência, dedução fiscal de donativos, dedução fiscal majorada de quotizações para associações empresariais e apuramento de tributação autónoma sobre remuneração variável.

O vício relativo à inspecção tributária efectuada ao abrigo da Ordem de Serviço OI201700169, que está subjacente às liquidações de IRC e juros compensatórios impugnadas, por «duplicação de procedimentos de inspecção externa ao mesmo imposto (IRC) ano (2014) e contribuinte (REN SGPS e seu Grupo Fiscal)», tem potencialidade de afectar a validade de todas as correcções efectuadas, pois repercute-se na totalidade da actividade da AT baseada nessa inspecção.

Por isso, o Tribunal Arbitral opta, ao abrigo do disposto no n.° 1 do artigo 22.º do RJAT, por decompor a decisão em pronúncias parciais, sendo a uma sobre aquela questão da duplicação de procedimentos de inspecção e outra sobre as restantes questões de legitimidade das liquidações, se o conhecimento destas não ficar prejudicado pela solução dada àquela primeira questão.

2. Pronúncia sobre a questão da «duplicação de procedimentos de inspecção externa ao mesmo imposto (IRC) ano (2014) e contribuinte (REN SGPS e seu Grupo Fiscal)» (artigos 18.º a 29.º do pedido de pronúncia arbitral)

2.1. Matéria de facto

2.1.1. Factos provados

Consideram-se provados os seguintes factos com relevância para apreciação desta questão:

A) A Requerente é a sociedade dominante do grupo REN, tributado pelo Regime Especial de Tributação de Grupos de Sociedades (RETGS), , nos termos do artigo 69.° do CIRC, demonstrando o quadro abaixo, o perímetro fiscal do grupo, no período de tributação de 2014:


«Imagem no original»

B) Foram efectuadas à Requerente, relativamente ao exercício de 2014, em sede de IRC, duas inspecção externas, ao abrigo das Ordens de Serviço n.° OI201700110 e OI201700169, e uma inspecção interna, ao abrigo da Ordem de Serviço n.° O201800031;

C) Relativamente à inspecção efectuada ao abrigo da Ordem de Serviço n.° OI201700110:

i. Em 26-05-2017 foi emitida a Ordem de Serviço n.° OI201700110 para inspecção externa à Requerente, de âmbito parcial, em sede de IRC, referente ao exercício de 2014 (Documento n.° 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

ii. Em 30-05-2017, foi enviada à Requerente a carta-aviso cuja cópia consta do documento n.° 7, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que, além do mais, se refere que é enviada «nos termos da alínea I) do n.° 3 do artigo 59.° da Lei Geral Tributária (LGT) e do artigo 49.° do Regime Complementar do Procedimento da Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA)»;

iii. A Ordem de Serviço n.° OI201700110 foi notificada pessoalmente à Requerente em 06-06-2017 (documento n.° 5);

iv. A Requerente foi notificada pessoalmente para entregar documentos e prestar esclarecimentos, nos termos que constam do documento n.° 10 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;

v. Essa inspecção terminou em 31-10-2017 (documento n.° 9 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

vi. Nessa inspecção foi elaborado o Relatório da Inspecção Tributária (RIT) que consta do documento n.° 14 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, que foi notificado à Requerente por ofício datado de 22-12-2017;

vii. Na sequência da inspecção foi emitida em nome da Requerente a liquidação adicional de IRC, relativa ao exercício de 2014, com o n.° 2017 8510061212, bem como as respectivas liquidações de juros compensatórios n.°s 2018 00000001596 e 2018 00000001597 (documento n.° 15 junto com 0 pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

D) Relativamente à inspecção efectuada ao abrigo da Ordem de Serviço n.° OI201700169:

i. Em 25-09-2017, foi emitida a ordem de serviço n.° OI201700169 para inspecção externa à Requerente, de âmbito parcial, em sede de IRC, ao exercício de 2014 (documento n.° 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

ii. Em 27-09-2017, foi enviada à Requerente a carta-aviso cuja cópia consta do documento n.° 8, junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere que é enviada «nos termos da alínea I) do n.° 3 do artigo 59.º da Lei Geral Tributária (LGT) e do artigo 49.° do Regime Complementar do Procedimento da Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA)»;

iii. A Ordem de Serviço n.º OI201700169 foi notificada pessoalmente à Requerente em 17-10-2017 (documento n.° 6);

iv. Nessa inspecção, a Requerente foi notificada pessoalmente para entregar documentos e prestar esclarecimentos, nos termos que constam do documento n.° 12 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido;

v. Essa inspecção terminou em 27-06-2018 (documento n.° 11 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

vi. Nessa inspecção foi elaborado o Relatório da Inspecção Tributária (RIT) que consta do documento n.° 4 (como anexo A) e 16 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, Relatório esse que foi notificado pessoalmente à Requerente em 27-06-2018;

E) Relativamente à inspecção efectuada ao abrigo da Ordem de Serviço n.° O201800031:

i. Em 20-02-2018, foi emitida a Ordem de Serviço n.° O201800031, para uma inspecção à Requerente, de âmbito parcial, relativa ao período de 2014, que visou «refletir na declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC (DRM22) do grupo as correções efetuadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), decorrentes da ação de inspeção realizada ao abrigo da Ordem de Serviço n.° 01201700169 da Unidade dos Grande Contribuintes (UGC), ao imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, na esfera individual da sociedade dominante REN - Redes Energéticas Nacionais. SGPS, SA, nos termos do n.° 1 do artigo 70.º do Código do IRC (CIRC), bem como as subsequentes modificações ao apuramento da matéria coletável e ao cálculo de imposto a pagar pelo grupo, nos termos do artigo 115.° do mesmo diploma legal» (documento n.° 4 junto com 0 pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

F) Na sequência desta inspecção efectuada ao abrigo da Ordem de Serviço n.° O201800031 foi emitida a liquidação adicional de IRC n.° 2018 8510003672 e as respectivas liquidações de juros compensatórios n.°s 2018 00000221981 e 2018 00000221982 (documento n.° 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

G) A Requerente reagiu contra estes actos de liquidação apresentando reclamação graciosa, que teve o n.° 3107201804003403 e foi totalmente indeferida (Documento n.° 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

H) A Requerente interpôs recurso hierárquico da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, que teve o n.° 3017201910000456 e foi deferido parcialmente, sendo mantidas as correcções efectuadas, com excepção da relativa ao ponto "Donativos", em que foi corrigido o montante de € 35.054,25 a favor da ora Requerente (documento n.° 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

I) Não foi proferido qualquer despacho invocando a existência de «factos novos» como fundamento da Ordem de Serviço n.° OI201700169 (facto afirmado pela Requerente no artigo 23.° do pedido de pronúncia arbitral, que não é questionado pela Autoridade Tributária e Aduaneira);

J) Em 17-10-2018, a Requerente prestou garantia bancária n.° 00125-02-2129714 do Banco Millennium (Banco Comercial Português, S.A.) para suspender a execução fiscal n.° 3107201801113402, instaurada para cobrança coerciva das quantias liquidadas (documento n.° 62 junto com 0 pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);

K) Com a garantia bancária referida, a Requerente suportou, até 11-07-2021, despesas no valor global de € 16.765,67 (documentos n.°s 63 e 64 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);

L) Em 13-08-2021, as Requerentes apresentaram o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

2.1.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

Os factos foram dados como provados com base nos documentos juntos pela Requerente, e que parcialmente constam também do processo administrativo.,

Não há factos relevantes para decisão da questão da duplicação de procedimentos de inspecção a causa que não se tenham provado.

3. Matéria de direito

3.1. Questão da duplicação de procedimentos de inspecção externa ao mesmo imposto (IRC) ano (2014) e contribuinte (REN SGPS e seu Grupo Fiscal)»

3.1.1. Posições das Partes

A Requerente defende o seguinte, em suma, sobre esta questão:

– a AT iniciou e concluiu uma primeira inspecção externa ao IRC de 2014, ao abrigo da OI201700110 e suportado nela emitiu uma liquidação adicional de IRC ao Grupo REN, tendo então pedido e analisado tudo o que entendeu ser de pedir e de analisar;

– subsequentemente a AT iniciou uma segunda inspecção externa ao IRC de 2014, ao abrigo da Ordem de Serviço OI201700169, que terminou também após aquela primeira, e que desencadeou também uma (segunda e posterior) liquidação adicional de IRC ao Grupo REN;

– esta duplicação de inspecções viola o n.º 4 do artigo 63.º da LGT, que prescreve que só pode haver “mais de um procedimento externo de fiscalização respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação mediante decisão, fundamentada com base em factos novos, do dirigente máximo do serviço”;

– a segunda inspecção externa ao IRC de 2014 não se fundamenta em quaisquer factos novos (os factos apreciados já lá estavam desde pelo menos 31-12-2014), nem tão-pouco a AT tal alegou ou invocou, e nem tão-pouco houve despacho fundamentado algum do dirigente máximo do serviço a decidir sobre a realização desta segunda inspecção externa.

A Autoridade Tributária e Aduaneira defende o seguinte, em suma, sobre esta questão:

– analisado o RIT relativo a inspecção efectuada ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI201700110, verifica-se que reflete no Grupo de sociedades «a correção efetuada a título individual à sociedade dominada REN - Rede Elétrica Nacional, SA - 507 886 673, no âmbito da OI201700090, relacionada com perdas por imparidade»;

– analisado o RIT relativo à inspecção efectuada ao abrigo da OI201700169, constata-se que as correcções foram efetuadas a título individual à Requerente e posteriormente foram consolidadas na esfera fiscal do grupo, através da OI201800031;

– no âmbito do regime especial de tributação dos grupos de sociedades (RETGS) as sociedades que o compõem poderão ser sujeitas a correções, a nível individual, que irão alterar o seu resultado fiscal, e como tal terão que ser materializadas na declaração do grupo abrangido pelo RETGS, a qual gera a liquidação do imposto a pagar/receber do grupo fiscal;

– deste modo, poderá existir uma OI no âmbito de procedimento inspetivo à sociedade, a título individual e simultaneamente existir outra OI à mesma sociedade, mas na qualidade de sociedade dominante do grupo;

– assim sendo, havendo uma declaração única de imposto e existindo correções /alterações aos resultados fiscais declarados pelas sociedades pertencentes ao grupo, o lucro tributável deste terá de ser ajustado em conformidade com tais correções/alterações;

– na situação em análise, embora as duas OI sejam de âmbito externo, ao mesmo exercício – 2014, à mesma sociedade –REN Redes Energéticas Nacionais, SGPS. SA e ambas de âmbito parcial- IRC, retratam realidades distintas, pois na OI201700110 foi refletida no Grupo a correção efetuada à sociedade individual REN - Rede Elétrica Nacional, SA - 507 886 673 (…) e, na OI201700169, o que está em causa são correções a título individual nesta sociedade REN Redes Energéticas Nacionais, SGPS, SA, com o NIPC n° 503 264 032.

3.1.2. Apreciação da questão

O n.º 4 do artigo 63.º da LGT estabelece o seguinte:

4. O procedimento da inspeção e os deveres de cooperação são os adequados e proporcionais aos objetivos a prosseguir, só podendo haver mais de um procedimento externo de fiscalização respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação mediante decisão, fundamentada com base em factos novos, do dirigente máximo do serviço, salvo se o procedimento visar apenas a consulta, recolha de documentos ou elementos ou a confirmação dos pressupostos de direitos que o contribuinte invoque perante a administração tributária e sem prejuízo do apuramento da situação tributária do sujeito passivo por meio de inspeção ou inspeções dirigidas a terceiros com quem mantenha relações económicas.

O âmbito e extensão de cada uma das inspecções são os que se indicam na respectiva ordem de serviço, como decorre da alínea c) do n.º 3 do artigo 46.º do RCPITA.

Neste caso, os âmbitos e extensões das duas Ordens de Serviço n.°s OI201700110 e OI201700169, definidos nos respectivos Campos 4, são absolutamente iguais (documentos 5 e 6)

(…)

O mesmo se passa com o âmbito e extensão indicados nas cartas-aviso enviadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira à Requerente «nos termos da alínea I) do n.º 3 do artigo 59.º da Lei Geral Tributária (LGT) e do artigo 49.º do Regime Complementar do Procedimento da Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA)», que contêm os respectivos campos 4, com teores absolutamente idênticos aos que consta da Ordens de Serviço (documentos n.ºs 7 e 8).

O âmbito e a extensão da inspecção têm de ser notificados aos sujeitos passivos, por força do disposto no artigo 49.º, n.º 2, alínea b), do RCPITA e na alínea l) do n.º 3 do artigo 59.º da LGT, pelo que as ordens de serviço produzem efeitos em relação aos sujeitos passivos, nos termos que delas constam e que foram notificados.

Assim, sendo absolutamente idênticos os âmbitos e extensões das inspecções notificados à Requerente, com base nas ordens de serviço OI201700110 e OI201700169, a AT podia efectuar em qualquer das inspecções parciais o que fez na outra e, por isso, na 1.ª podia fazer também todas as correcções que fez na 2.ª.

É certo que a alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º do RCPITA estabelece que, quanto ao âmbito, o procedimento de inspecção pode ser «parcial ou univalente, quando abranja apenas algum ou alguns tributos ou algum ou alguns deveres dos sujeitos passivos ou dos demais obrigados tributários», pelo que os âmbitos parciais das inspecções referidas, para além de serem definidos pelo tributo (como foram), também poderiam sê-lo com restrição a apenas a «algum ou alguns deveres dos sujeitos passivos».

Assim, abstractamente, podia o âmbito parcial ser definido como abrangendo apenas as obrigações da Requerente a nível do grupo.

Mas, neste caso, as hipotéticas restrições a apenas algum ou alguns deveres não constam de qualquer das Ordens de Serviço, nem das respectivas notificações, pelo que não pode com base nelas definir-se o âmbito parcial de cada uma das inspecções, sendo, por isso, esse âmbito parcial apenas definido pelo tipo de imposto.

Na verdade, em ambas as ordens de serviço e respectivas notificações faz-se apenas referência a que o âmbito é parcial e se restringe a IRC de 2014, não havendo qualquer alusão a que o âmbito da 1.ª se restringisse a correcções a nível do grupo ou a que o âmbito da 2.ª se reportasse à sociedade dominante a título individual.

De qualquer modo, os diferentes objectivos e a restrição do âmbito da inspecção parcial dentro do mesmo imposto não têm qualquer relevância a nível de possibilidade de repetição de inspecções.

Com efeito, o artigo 63.º, n.º 4, da LGT proíbe a repetição desde que sejam respeitantes «ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação», independentemente dos objectivos visados e de eventuais restrições do âmbito dentro do mesmo tipo de imposto.

Só são excepções a esta regra da irrepetibilidade as situações previstas nesse n.º 4, que são as de ser proferido um despacho fundamentado invocando a existência de «factos novos» e a de a nova inspecção «visar apenas a consulta, recolha de documentos ou elementos ou a confirmação dos pressupostos de direitos que o contribuinte invoque perante a administração tributária e sem prejuízo do apuramento da situação tributária do sujeito passivo por meio de inspeção ou inspeções dirigidas a terceiros com quem mantenha relações económicas», situações estas que não ocorrem no caso dos autos.

Assim, a hipotética restrição que se fizesse do âmbito da inspecção dentro do mesmo tipo de imposto, não afastaria a aplicação do princípio da irrepetibilidade, que o n.º 4 do artigo 63.º da LGT consagra, não sendo, designadamente, admissível a realização de mais que uma inspecção relativamente ao mesmo sujeito passivo, imposto e período de tributação, mesmo que tenham âmbitos e objectivos diferentes, inclusivamente os de apuramento do cumprimento por uma sociedade dominante dos deveres fiscais a nível de grupo e a nível individual.

O que, aliás, tem razoabilidade evidente, pois destinando-se o princípio da irrepetibilidade das inspecções a evitar incómodos desproporcionados e dispensáveis ao sujeito passivo, para além de satisfazerem o seu direito à segurança jurídica, não seria aceitável que a AT pudesse realizar plúrimas inspecções sucessivas, definindo para cada uma delas um âmbito reduzido: por exemplo, como no caso dos autos, uma inspecção para correcção com base em preços de transferência, outra relativa a dedução fiscal de donativos, outra relativa a dedução fiscal majorada de quotizações para associações empresariais, outra relativa a tributações autónomas sobre remunerações variáveis, ou muitas outras, como uma para apurar correcções a nível de despesas de financiamento, outra para amortizações, outra para cada um dos benefícios fiscais, outras para cada um dos tipos de gastos etc..

Num imposto tão complexo como o IRC, os motivos diversos que poderiam em abstracto invocar-se para justificar novas inspecções externas seriam potencialmente infindáveis, tantas são as questões jurídicas que podem suscitar-se a propósito do cumprimento dos deveres que o mesmo encerra.

Ora, o telos da norma do n.º 4 do artigo 63.º da LGT seria muito facilmente frustrado se a AT pudesse fazer sucessivas inspecções externas dirigidas ao mesmo sujeito passivo e versando sobre o mesmo imposto, embora invocando motivos diversos, o que se reconduziria a deixar entrar pela janela a repetição de inspecções que n.º 4 do artigo 63.º da LGT fez sair pela porta.

Mesmo descontando o perigo acrescido de abuso de poder, o risco de banalização de inspecções externas – à margem da ocorrência devidamente fundamentada de factos novos – poderia pôr em causa o equilíbrio razoável e proporcional que a referida disposição da LGT pretendeu alcançar, a saber, entre a defesa do interesse público de preservação da base tributária do Estado, por um lado, e o interesse privado (também com uma inegável dimensão político-económica) de permitir às empresas o normal desenvolvimento da sua atividade económica, por outro lado.

Adoptando a metódica de ponderação de bens inerente ao princípio da proporcionalidade em sentido amplo, o n.º 4 do artigo 63.º da LGT permite à AT proceder ao escrutínio fiscal que considere legalmente devido, adequado e necessário, ainda que não de uma forma desproporcionalmente invasiva e intrusiva, susceptível de afectar a normal operação das empresas no mercado e, por essa via, restringir o direito fundamental de livre iniciativa económica privada constitucionalmente consagrado.

Por isso, cabe à AT programar e articular devidamente as suas inspecções internas e externas tendo em vista aproveitar e maximizar todas as suas virtualidades de fiscalização tributária e regulação de maneira eficiente e eficaz.

Por isso, se é certo que, como defende a Autoridade Tributária e Aduaneira no artigo 25.º da sua Resposta, «poderá existir uma OI no âmbito de procedimento inspetivo à sociedade, a título individual e simultaneamente existir outra OI à mesma sociedade, mas na qualidade de sociedade dominante do grupo», terá de se concluir que, tratando-se do mesmo sujeito passivo, relativamente ao mesmo tipo de imposto e período de tributação, terá de se efectuada uma única inspecção externa, cumulando os âmbitos definidos nas duas ordens de serviço, ou então, como é usual, a segunda inspecção ser de natureza interna, limitando-se a reproduzir para efeitos de liquidação de imposto na sociedade dominante as correcções decorrentes dos RIT das empresas individualmente consideradas, incluindo a própria sociedade dominante, com base numa análise formal e de coerência de documentos que estão já na disponibilidade da AT (como, aliás, sucedeu com a 3.ª inspecção efectuada à Requerente relativamente ao período de 2014, efectuada ao abrigo da O201800031, que teve natureza interna).

Este entendimento do princípio da irrepetibilidade das inspecções, que considera irrelevante o fim das inspecções, tem sido afirmado, uniformemente, pelo Tribunal Central Administrativo Sul, como se sintetiza no acórdão do TCAS de 23/04/2015, proc. n.º 06182/12, em sintonia com jurisprudência que se indica:

«Sublinhe-se ainda que a proibição sancionada no n.º 3 do art. 63.º do LGT encontra-se circunscrita ao procedimento externo de fiscalização (por oposição ao procedimento interno) e diz respeito à classificação do procedimento quanto ao lugar do procedimento (art. 13.º do RCPIT), independentemente da sua classificação quanto ao fim (art. 12.º do RCPIT), âmbito e extensão (art. 14.º do RCPIT) – nesse sentido, v. acórdão do TCAS de 23/04/2015, proc. n.º 06182/12 (Relatora Cristina Flora), secundado pelos acórdãos do TCAS de 14/03/2019, proc. n.º 1028/12.3BELRA, de 13/12/2019, proc. n.º 132/08.7BELRA, e de 20/02/2020, proc. n.º 134/08.3BELRA, e proc. n.º 133/08.5BELRA.»

Ainda na mesma linha refere-se no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 14-04-2015, processo n.º 05674/12, em que se concluiu pela violação do princípio da irrepetibilidade das inspecções:

«A essa conclusão não obsta o facto de os objectivos visados serem distintos uma vez que a restrição prevista no n.º 4 do artigo 63.° da Lei Geral Tributária – imposta pela necessidade de impedir os incómodos que as fiscalizações externas são susceptíveis de provocar ao sujeito passivo inspeccionado, assegurando, por essa via, a adequação e proporcionalidade entre tais incómodos e os fins que a inspecção visa prosseguir – não se encontra estabelecida em função do tipo ou fim do procedimento mas do local onde o mesmo deva ocorrer».

Na mesma linha, refere-se no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de de 17-09-2020, processo n.º 402/10.4BELRS,

«A regra da proibição em presença veda a repetição da realização de acção inspectiva assente na tripa identidade do acto inspectivo, pelo que o seu âmbito normativo estará preenchido, uma vez demonstrada a tripla identidade referida em relação a ambos os procedimentos inspectivos».

No caso em apreço, não se está perante a excepção prevista na parte final do n.º 4 do artigo 63.º da LGT (a consulta, recolha de documentos ou elementos ou a confirmação dos pressupostos de direitos que o contribuinte invoque perante a administração tributária) e verifica-se a tripla identidade em que assenta a proibição de repetição da inspecção: foram realizadas duas inspecções externas, relativamente ao mesmo sujeito passivo, mesmo imposto e período de tributação, pelo que a 2.ª só seria legalmente admissível se fosse proferido um despacho com fundamento em factos novos, o que não sucedeu.

Por outro lado, não é sequer objecto de controvérsia que as inspecções foram externas: a Autoridade Tributária e Aduaneira deu-lhes essa qualificação nas ordens de serviço e nos relatórios das inspecções tributárias e que reafirma tal qualificação no presente processo, nos artigos 13.º, 16.º, 18.º, 21.º e 28.º da sua Resposta; por sua vez, a Requerente, no pedido de pronúncia arbitral, também lhes dá essa qualificação. Por isso, desde logo por não haver controvérsia, tem de se considerar processualmente assente essa qualificação, não havendo, nesse ponto, qualquer litígio que seja pedido ao tribunal que dirima.

Para além disso, a Autoridade Tributária e Aduaneira adoptou efectivamente nas inspecções efectuadas ao abrigo das Ordens de Serviço OI201700110 e OI201700169 o procedimento próprio das inspecção externas, desde logo quanto à notificação pessoal da Requerente e pediu-lhe esclarecimentos e apresentação de documentos, que não tinha em seu poder.

E, por outro lado, a 1.ª inspecção, baseada na Ordem de Serviço OI201700110, embora acabasse por ter como resultado apenas a repercussão na matéria tributável do Grupo de uma correcção efectuada a título individual à sociedade dominada REN - Rede Elétrica Nacional, SA (…), foi efectivamente externa, pois, além dessa repercussão, a Autoridade Tributária e Aduaneira pediu à Requerente esclarecimentos e apresentação de documentos, inclusive relativamente a matérias de outras sociedades subsidiárias, que não teria necessidade de questionar se elas próprias tivessem sido objecto de procedimento de inspeção específico, aqui evidenciando de que não estava na sua disponibilidade essa informação.

Pelo exposto, o pedido de pronúncia arbitral procede quanto ao vício de violação dos princípio da irrepetibilidade das inspecções externas, que emana do n.º 4 do artigo 63.º da LGT, que constitui vício de violação de lei, com potencialidade para anular a inspecção efectuada ao abrigo da Ordem de Serviço OI201700169, bem como os actos subsequentes que a tiveram por pressuposto, designadamente as liquidações de IRC e juros compensatórios impugnadas.

(…)

5. Decisão

Nestes termos acordam neste Tribunal Arbitral em:

A) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;

B) Anular a liquidação adicional de IRC (…) e as correspondentes liquidações de juros compensatórios (…);

…” (cfr. fls. 2336 a 2353 da certidão do processo em formato PDF – Vol. 10 – documento com o n.º de registo no SITAF 004366455 –, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Da nulidade por pronúncia indevida

Considera a Impugnante verificar-se uma situação de nulidade da decisão arbitral por pronúncia indevida, em virtude, na sua perspetiva, de terem sido exorbitados os poderes de cognição do tribunal arbitral, acabando o acórdão arbitral por, em alternativa à ação administrativa, apreciar o âmbito e extensão dos procedimentos de inspeção.

A Impugnada, em sede de contra-alegações, considerou não se verificar tal nulidade.

Vejamos.

Nos termos do art.º 27.º, n.º 1, do RJAT, a decisão arbitral pode ser anulada pelo Tribunal Central Administrativo, sendo que a impugnação pode ser apresentada considerando um dos fundamentos taxativamente elencados no n.º 1 do art.º 28.º do mesmo diploma.

Assim, nos termos desta última disposição legal, a decisão arbitral é impugnável com fundamento em:

“a) não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

b) oposição dos fundamentos com a decisão;

c) pronúncia indevida ou na omissão de pronúncia;

d) violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, nos termos em que estes são estabelecidos no artigo 16.º”.

Atento o disposto no art.º 29.º, n.º 1, do RJAT, é de considerar a disciplina subsidiariamente aplicável, de onde se destacam as normas constantes do CPPT, do CPTA e do CPC [cfr. art.º 29.º, n.º 1, als. a), c) e e), do RJAT].

In casu, como já referido, está em causa a pronúncia indevida por parte do tribunal arbitral.

Nos termos do art.º 125.º, n.º 1, do CPPT, há excesso de pronúncia, que consubstancia nulidade da sentença, quando haja pronúncia sobre questões de que o juiz não deva conhecer [cfr. igualmente o art.º 615.º, n.º 1, al. d), do CPC].

No âmbito do contencioso impugnatório de decisões arbitrais o conceito de pronúncia indevida é mais amplo do que o de excesso de pronúncia, nele se incluindo, por exemplo, as situações em que é suscitada a incompetência material dos tribunais arbitrais.

A este propósito, chama-se à colação o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 177/2016, de 29.03.2016, no qual foi julgada inconstitucional a alínea c) do n.º 1 do art.º 28.º do RJAT, na interpretação normativa de que o conceito de “pronúncia indevida” não abrange a impugnação da decisão arbitral com fundamento na incompetência material do tribunal arbitral. Sublinhou-se neste aresto que “as decisões de um tribunal arbitral tributário sobre a própria competência não podem deixar de estar submetidas a reapreciação por um tribunal do Estado, sob pena de serem as próprias atribuições deste em matéria tributária a ficar em risco”.

In casu, como se referiu, entende a Impugnante que o Tribunal arbitral exorbitou os seus poderes, ao ter apreciado uma eventual duplicação de procedimentos de inspeção, com a agravante de o procedimento de inspeção OI 201700110 ser completamente alheio à liquidação de imposto e atos em matéria tributária daí resultantes e identificados pela então Requerente como o ato tributário objeto do pedido de pronúncia arbitral, acabando por, em alternativa à ação administrativa, apreciar o âmbito e extensão dos procedimentos de inspeção.

Desde já se adiante que não assiste razão à Impugnante.

Para efeitos de concretização desta conclusão, cumpre, antes de mais, atentar na competência e nos poderes dos tribunais arbitrais tributários.

Nos termos do art.º 2.º do RJAT:

“1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:

a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;

b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais”.

Reconhecendo-se algumas limitações na redação deste n.º 1 do art.º 2.º do RJAT, é pacífico que os Tribunais arbitrais têm poderes de anulação (1) ou de declaração de nulidade ou inexistência do ato impugnado.

É ainda pacífico que, não obstante este contencioso ser essencialmente de mera anulação, à semelhança do que sucede com o contencioso tributário impugnatório no âmbito dos tribunais tributários estaduais, existem alguns poderes condenatórios, estreitamente ligados com o poder anulatório, relacionados com o direito a juros indemnizatórios ou com o direito a indemnização por prestação indevida de garantia (2).

Abstraindo destes poderes condenatórios, porquanto não são os mesmos que ora estão em causa, a questão sob apreciação prende-se com os poderes do tribunal arbitral quando se depara com um ato impugnado que considera ser ilegal.

Sob essa exclusiva perspetiva, como referimos, estamos perante um contencioso tendencialmente de mera anulação. Significa isso que, perante a impugnação de um ato tributário junto de um tribunal arbitral (ou junto de um tribunal tributário estadual, dado que, ao nível da impugnação judicial, os poderes de uns e outros são idênticos), a este tribunal cabe apenas considerar o ato legal ou ilegal e, em consequência, mantê-lo ou anulá-lo (ou declarar a sua nulidade ou inexistência).

Apliquemos estes conceitos ao caso dos autos.

In casu, a Impugnada veio reagir contra a liquidação adicional de IRC n.º 20188510003672, relativa ao exercício de 2014, e as dos respetivos juros compensatórios (atos mediatos impugnados), na parte em que subsistiram, após deferimento parcial de recurso hierárquico apresentado (ato imediato impugnado).

No seu pedido de pronúncia arbitral, a Impugnada alegou, em síntese:

a) Duplicação de procedimentos de inspeção externa ao mesmo imposto (IRC), ano (2014) e contribuinte (REN SGPS e seu Grupo Fiscal), referindo ter sido objeto de duas inspeções externas relativas ao mesmo exercício e imposto, concretamente as resultantes das OI201700110 e OI201700169;

b) Vícios de violação de lei, quanto às correções atinentes a preços de transferência, dedução fiscal de donativos, dedução fiscal majorada de quotizações para associações empresariais e apuramento de tributação autónoma sobre remuneração variável.

A decisão impugnada considerou verificar-se o vício de duplicação de procedimentos inspetivos, motivo pelo qual se julgou procedente o pedido de pronúncia arbitral. Entendeu-se que, subjacente à liquidação em causa, estava o “vício relativo à inspecção tributária efectuada ao abrigo da Ordem de Serviço OI201700169”.

Refere-se na mesma decisão: “terá de se concluir que, tratando-se do mesmo sujeito passivo, relativamente ao mesmo tipo de imposto e período de tributação, terá de se efectuada uma única inspecção externa, cumulando os âmbitos definidos nas duas ordens de serviço, ou então, como é usual, a segunda inspecção ser de natureza interna, limitando-se a reproduzir para efeitos de liquidação de imposto na sociedade dominante as correcções decorrentes dos RIT das empresas individualmente consideradas, incluindo a própria sociedade dominante, com base numa análise formal e de coerência de documentos que estão já na disponibilidade da AT (como, aliás, sucedeu com a 3.ª inspecção efectuada à Requerente relativamente ao período de 2014, efectuada ao abrigo da O201800031, que teve natureza interna)”.

Do que aqui decorre é que houve duas ações inspetivas externas e uma interna, esta última para refletir as correções da segunda das ações inspetivas externas em termos de declaração de grupo, sendo que, na decisão arbitral, se considerou ser o segundo procedimento inspetivo externo ilegal, por violação do princípio da irrepetibilidade.

Ora, não se alcança de que forma o Tribunal arbitral excedeu as suas competências. Com efeito, foram emitidas as liquidações e, a esse respeito, foram invocados vícios, designadamente procedimentais, vícios esses que só podem ser apreciados em sede de impugnação da liquidação, dado o princípio da impugnação unitária que enforma o processo tributário (logo, carece de sustentação o alegado quanto ao facto de se estar perante matéria própria de ação administrativa) – cfr. o art.º 54.º do CPPT. A eventual violação do princípio da irrepetibilidade do procedimento inspetivo configura um vício do procedimento, passível de ser conhecido em sede da impugnação da liquidação resultante do procedimento ilegalmente levado a efeito.

Mais, a decisão arbitral não se pronunciou sobre a legalidade do procedimento inspetivo OI201700110, mas sim sobre a circunstância de, com o procedimento inspetivo externo OI201700169 – no qual radica, na verdade, a fundamentação da liquidação –, ter sido violado o princípio da irrepetibilidade do procedimento de inspeção, o que é coisa claramente distinta.

Veja-se que, como resulta do próprio relatório decorrente do procedimento inspetivo externo OI201700169, considerando que a REN SGPS era tributada de acordo com o RETGS, as correções resultantes daquela inspeção só produzem efeitos, em termos de liquidação, aquando da análise da declaração de grupo. Aliás, em situações de inspeção a grupos tributados pelo RETGS, a regra é haver inspeções, normalmente externas, às sociedades que integram o perímetro do grupo, havendo, a final, uma inspeção interna, de consolidação das correções em termos de reflexo na liquidação do grupo, dali resultando, se for o caso, a emissão de liquidações adicionais ao grupo.

Isso resulta de forma expressa do relatório efetuado no âmbito da ação inspetiva de âmbito parcial interna (Ordem de Serviço n.° OI201800031), que “visou «refletir na declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC (DRM22) do grupo as correções efetuadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), decorrentes da ação de inspeção realizada ao abrigo da Ordem de Serviço n.° 01201700169 da Unidade dos Grande Contribuintes (UGC), ao imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, na esfera individual da sociedade dominante REN - Redes Energéticas Nacionais. SGPS, SA, nos termos do n.° 1 do artigo 70.º do Código do IRC (CIRC), bem como as subsequentes modificações ao apuramento da matéria coletável e ao cálculo de imposto a pagar pelo grupo, nos termos do artigo 115.° do mesmo diploma legal»” [cfr. facto E) da decisão arbitral].

Ora, resultando as liquidações impugnadas de diretamente de um relatório de inspeção de consolidação que se sustenta num relatório de inspeção externo anterior, naturalmente que podem ser suscitados todos os vícios procedimentais relativos ao procedimento externo, que se refletem no ato de liquidação.

Em suma: atento o princípio da impugnação unitária, resulta como regra do processo tributário que todos os vícios que o contribuinte assaque quer ao procedimento inspetivo, quer às liquidações que daí resultem, são, por norma, objeto de impugnação judicial ou pedido de pronúncia arbitral. Logo, todos os vícios do procedimento alegados, que se refletem nos atos finais que do mesmo resultam, podem e devem ser analisados.

Como tal, carece de razão a Impugnante.

III.B. Da litigância de má-fé

Considera a Impugnada que a Impugnante incorreu em litigância de má-fé.

Cumpre apreciar.

O art.º 104.º da LGT, sob a epígrafe Litigância de má fé, determina, no seu n.º 1: “… a administração tributária pode ser condenada numa sanção pecuniária a quantificar de acordo com as regras sobre a litigância de má fé em caso de atuar em juízo contra o teor de informações vinculativas anteriormente prestadas aos interessados ou o seu procedimento no processo divergir do habitualmente adotado em situações idênticas”.

Sendo, in casu, aplicável esta disposição legal, só poderá a Impugnante ser condenada como litigante de má fé no caso de o seu procedimento no processo divergir do habitualmente adotado em situações idênticas, dado que não está em causa qualquer situação relativa a informações vinculativas.

Ora, in casu, não ficou demonstrado que a Impugnante tenha tido uma conduta processual divergente da que habitualmente adota em situações idênticas.

Por outro lado, o facto de a Impugnante defender um determinado entendimento, ainda que esse entendimento não tenha sido seguido por este TCAS, não faz com que a sua conduta revele qualquer má-fé (mesmo apelando ao n.º 2 do art.º 542.º do CPC), limitando-se, sim, a defender a posição jurídica que, em seu entender, era a correta.

Face ao exposto, improcede o incidente de litigância de má-fé suscitado.

Atento o valor dos autos (1.179.164,95 Eur.), e, aliás, em consonância com o requerido pela Impugnante, cumpre considerar o disposto no art.º 6.º, n.º 7, do RCP, aplicável na presente sede.

Assim, nos termos desta disposição legal, “[n]as causas de valor superior a (euro) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento”.

No caso, a Impugnada considera não se dever dispensar o pagamento de tal remanescente.

No entanto, nesta decisão, há que atentar na conduta processual das partes, que, na verdade, se revelou, nos presentes autos, adequada e correta, independentemente de, em termos de mérito, se ter considerado não assistir razão à Impugnante.

Por outro lado e sobretudo, é de sublinhar a simplicidade da questão apreciada, uma vez que, de forma que nos parece clara, a mesma se reconduz à análise de conceitos basilares do processo e procedimento tributário.

Assim, entende-se dever haver lugar à dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, prevista no art.º 6.º, n.º 7, do RCP.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Julgar improcedente a presente impugnação;

b) Custas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, com dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, na parte em que exceda os 275.000,00 Eur.;

c) Julgar improcedente o incidente de litigância de má-fé, absolvendo a Autoridade Tributária e Aduaneira do mesmo;

d) Custas do incidente mencionado em c) pela REN - Rede Eléctrica Nacional, S.A., fixando-se a taxa de justiça em 1 (uma) UC;

e) Registe e notifique.


Lisboa, 28 de abril de 2022

(Tânia Meireles da Cunha)

(Susana Barreto)

(Patrícia Manuel Pires)


(1) Cfr. Carla Castelo Trindade, Regime Jurídico da Arbitragem Tributária anotado, Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2016, pp. 119 e 120.

(2) Cfr. o Acórdão deste TCAS, de 06.08.2017 (Processo: 06112/12). Cfr. Jorge Lopes de Sousa, «Comentário ao regime jurídico da arbitragem tributária», Guia da Arbitragem Tributária, 3.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2017, pp. 96 e 97.