Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:825/13.7BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:01/14/2021
Relator:JORGE CORTÊS
Descritores:IMPOSTO SOBRE SUCESSÕES E DOAÇÕES.
DECLARAÇÃO DO DONATÁRIO.
Sumário:A impugnação da veracidade da declaração do donatário perante a AT do recebimento de certa quantia pode ser feita mediante a recolha de indícios sérios e consistentes da falta de materialidade da mesma. // A invocação de intenção específica subjacente à doação não logra, só por si, descaracterizar o efeito translativo do negócio.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acórdão

I- Relatório

C........ deduziu impugnação judicial na sequência do despacho que negou provimento ao recurso hierárquico que interpôs do despacho que indeferiu a reclamação graciosa que apresentou contra o acto de liquidação de Imposto sobre as Sucessões e Doações (ISSD), relativo ao ano de 1995, no montante de Esc. 3.191.356$00/€ 15.918,42.

O Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, por sentença proferida a fls. 375 e ss., (numeração em formato digital – sitaf), datada de 19 de Julho de 2019, julgou procedente a impugnação. A Fazenda Pública interpôs recurso jurisdicional contra a sentença. Nas alegações de fls. 404 e ss. (numeração em formato digital – sitaf), a recorrente formula as conclusões seguintes:

«(…) II. A Fazenda Pública considera que a douta decisão do Tribunal a quo ora recorrida não faz, salvo o devido respeito, uma correcta apreciação da matéria de facto relevante no que concerne à aplicação dos artigos 1º, 3º e 9º, nº 1, todos, do C.I.M.S.I.S.S e 74.º LGT.

III. A dúvida sobre a existência do facto tributário não foi gerada por ação do fisco. Foi gerada porque, num primeiro momento, a ora Recorrida dirigiu-se ao SF Oeiras 1 e declarou ter recebido a título de doação determinados bens, doação que à data era tributada em I.M.S.I.S.S. e, posteriormente, veio nos presentes autos alegar que o que se verificou foi uma transmissão onerosa daqueles valores mobiliários através de uma cedência de quotas a seu favor, ficando o transmissário obrigado a pagar a quantia devida por aquela aquisição.

IV. Por outras palavras, a liquidação de CIMSISSD nº 131153, emitida em 12 de junho de 1995, é resultante das declarações por si produzidas e que teve por base a mencionada doação em dinheiro à sua pessoa, com o fim de adquirir uma quota na firma P……….., Lda, de que seus pais eram proprietários, conforme decorre da escritura, celebrada em 04 de fevereiro de 1993, no 1º Cartório Notarial de Lisboa.

V. Mais relevante, ainda é a sentença, ora recorrida, ter dado como provado aquele facto (alínea C): “Em 2 de Junho de 1995, a Impugnante apresentou-se junto do 1.° Serviço de Finanças de Oeiras, tendo declarado, para efeitos do disposto no artigo 60.º do CIMSISSD, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 41969, de 24 de Novembro de 1958, que, no dia 4 de Fevereiro de 1993, havia recebido de seus pais, bem como o seu irmão, M........, uma doação, em dinheiro, no valor de Esc. 12.500.000$00, cada (cf. fls. 34 e segs. do procedimento de reclamação graciosa e recurso hierárquico apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido)”.

VI. Vale isto por dizer que se mostram cabalmente preenchidos os pressupostos da incidência real e pessoal do imposto.

VII. Assim o entendeu o acórdão do TAC Sul, proferido nos presentes autos e que ordenou a produção de prova testemunhal: “…o reconhecimento pelo impugnante/recorrente da verificação de determinados factos que possam ser juridicamente qualificados como “facto tributário” releva para efeitos do ónus da prova e, por conseguinte, assentando a liquidação na declaração do contribuinte constante do “termo de declarações” (cfr. n.º 4 do probatório) a A. Fiscal estava legitimada a estruturar a liquidação do imposto sobre as sucessões e doações”.

VIII. Não obstante, o tribunal a quo, ao invés de, de através da prova superveniente apresentada se convencer da inexistência do facto tributário (ou não) conforme orientação do TCA Sul – refugia-se na dúvida! Ora, salvo melhor opinião, incorre a sentença ora recorrida em erro de julgamento considerando a factualidade dada como provada.

IX. Em bem da verdade se diga que, se o tribunal tinha dúvidas, então a Recorrida não logrou provar a inexistência de facto tributário.

X. E nessa conformidade, a AT estava legitimada a estruturar a liquidação do imposto sobre as sucessões e doações e, consequentemente, a sentença ora recorrida tinha que o reconhecer, dando vencimento de causa à AT.

XI. Em bom rigor, e embora não o afirme expressamente, decidiu o tribunal a quo julgar procedente a presente a presente impugnação “in dúbio contra fisco” por referência ao artigo 100.º do CPPT.

XII. Em bem da verdade se diga que este artigo, cuja aplicação é sobejamente residual, não pode servir para driblar o ónus que recai sobre a Impugnante de vir abalar a liquidação que foi feita - liquidação esta, repete-se, que não foi emitida oficiosamente por ação dos serviços da administração fiscal mas porque a própria Impugnante se dirigiu ao SF para declarar as doações.

XIII. O nosso sistema fiscal dá assim especial prevalência ao “método da declaração do contribuinte”, declarações que, se apresentadas nos termos da lei, presumem-se verdadeiras ou de boa-fé.

XIV. Todavia, a presunção de veracidade e boa – fé da declaração, não sendo absoluta, cessa se ficar demonstrado que as declarações contêm omissões, erros, inexatidões ou indícios fundados reveladores de que as mesmas não refletem a matéria tributável real do sujeito passivo.

XV. Nestes casos, inverte-se o ónus da prova dos factos constitutivos do direito que recai sobre quem os invoca, nos termos do artigo 74º, nº 1, LGT, tendo vindo a ser sucessivamente entendido pela jurisprudência dos nossos tribunais que: “Em geral, as regras de distribuição do ónus da prova destinam-se a evitar que, quem tem a obrigação de decidir (no âmbito do procedimento tributário, a administração e em sede de processo judicial, o tribunal), seja colocado numa situação de non liquet perante determinado facto, implicando que aquele non liquet se transforme num liquet contra quem está onerado com a prova.”

XVI. A declaração produzida pela Impugnante assume força probatória plena que, só pode ser contrariada por outro meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objeto, nos termos do artigo 347, do C.C.

XVII. Ora, mediante a prova testemunhal produzida (para o efeito) nos autos, não logrou a Recorrida abalar os pressupostos da liquidação cujo ónus sobre si recai, tanto mais que é a própria que vem colocar em causa a boa fé declarativa que goza nos termos do artigo 75º da LGT. Então a sorte dos autos, neste caso, tem de reverter necessariamente contra ela.

XVIII.  Deste modo, e tendo presente a realidade em análise e de todos os elementos constantes do probatório, considera a Fazenda Pública, contrariamente ao doutamente decidido, que a atuação da Administração Tributária foi no estrito cumprimento dos artigos 1º, 3º e 9º, nº 1, todos, do C.I.M.S.I.S.S, 74.º e 75.º LGT.

XIX. Face ao exposto, salvo o devido respeito que é muito, entendemos que a douta sentença recorrida ao julgar procedente a presente oposição judicial, enferma de erro de apreciação da prova, de erro de interpretação de lei».

Termina, pedindo que seja concedido provimento ao recurso e revogada a sentença recorrida.


*

A recorrida, nas suas contra-alegações de fls. 422 e ss. (numeração em formato digital – sitaf), formulou as conclusões seguintes:

«1. A sentença ora em sindicância pela recorrente – Fazenda Nacional – não merece, segundo a recorrida qualquer reparo.

2. Assevera a Fazenda Nacional que a sentença proferida pelo Tribunal a quo, faz uma incorrecta interpretação dos artigos 1, 3º, e 9º, nº 1, todos do CIMSISS e do artigo 74º da LGT, mormente quando confrontadas tais disposições com a matéria de facto assente.

3. Insurge-se contra a aplicação pelo Tribunal a quo do disposto no artigo 100º, nº 1 do CPPT, porquanto,

 4. A liquidação de imposto de CIMSISSD, nº 131153, resulta das declarações da própria recorrida, logo impossibilita a aplicação do disposto 100º, nº 1 do CPPT ao caso concreto e,

5. A declaração da contribuinte faz prova plena, pelo que e nos termos do artigo 347º do Cód. Civil, apenas pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto;

6. Para a recorrente, porque verificados os pressupostos estabelecidos nos artigos 74º e 75º da LGT, conjugado com a matéria de facto assente, não poderia o Tribunal a quo, sustentar a dúvida sobre a existência de uma doação ou atribuição patrimonial, favorecendo a recorrida, nos termos do disposto no artigo 100º, nº 1 do CPPT,

7. Incorrendo, desta forma, a sentença em erro de julgamento, considerando a factualidade dada como provada.

8. Entende-se que bem andou o Tribunal a quo na sentença proferida, pois, dispõe o artigo 100.º, nº 1 do CPPT, que “Sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado.”

9. Salvo o respeito por opinião diversa, a questão trazida aos autos, não se enquadra no estabelecido nos artigos 74º e 75º da LGT, uma vez que,

10. Nos presentes autos, é a recorrida que vem discordar do conteúdo das declarações por si apresentadas em 02 de Junho de 1995, no chamado termo de declaração.

11. Ora, por assim ser, não há lugar a aplicação da presunção legal prevista no artigo 75º da LGT, porque esta não é estabelecida em favor da Fazenda Pública.

12. Donde, e cabendo à recorrida demonstrar o erro na declaração prestada, o que a sentença considerou ter sido feito, quer através de prova documental, quer através de prova testemunhal, decidiu e bem o Tribunal a quo.

13. Nesta senda e bem, assim considerou o Supremo Tribunal Administrativo em acórdão proferido no processo nº 03/10, de 28-04-2010 in www.dgsi.pt.

14. Também não colhe, o argumento produzido pela recorrente de que a declaração da contribuinte faz prova plena, pelo que e nos termos do artigo 347º do Cód. Civil, apenas pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto, uma vez que

15. E como bem já se pronunciou o Tribunal Central Administrativo Sul, em acórdão proferido no processo nº 08058/14, em 18-06-2015, in www.dgsi.pt “As declarações do Impugnante configuram tão-somente um reconhecimento dos factos que declarou, mas que admite sempre que seja feita prova de que os factos declarados não correspondem à verdade, e admite também que o próprio declarante possa retractar-se por erro, e fazer prova de que os factos declarados não são verdadeiros”, podendo o impugnante “…alterar a sua declaração vertida no “termo de declarações” e fazer prova da inexistência do facto tributário através de prova testemunhal, pois no processo tributário são admitidos os meios gerais de prova (art. 115.º, n.º 1 do CPPT), designadamente, a prova testemunhal (cfr. artigos 118.º e 119.º do CPPT).”

16. Concluindo, a sentença proferida pelo Tribunal a quo não vem pôr em crise a verdade declarativa do contribuinte, reflecte isso a dúvida acerca da existência do facto tributário, após a análise da matéria de facto que foi dada como provada.

17. Pelo que bem andou o Tribunal a quo, não merecendo a sentença proferida qualquer censura ou reparo.»

Termina, pedindo que seja negado provimento ao recurso, mantendo-se a sentença proferida.

X

A Digna Magistrada do M. P. junto deste Tribunal, notificada para o efeito, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso quanto à invocada inaplicabilidade do artigo 100.º, n.º 1 do CPPT.

X

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.

X

II- Fundamentação.

2.1. De Facto.

A sentença recorrida considerou provados os factos seguintes:
«A. Por escritura pública de “cessão de quotas”, outorgada no 1.º Cartório Notarial de Lisboa em 4 de Fevereiro de 1993, a Impugnante e o seu irmão, M........, adquiriram à sociedade P........, Lda. – representada no acto pelos seus sócios gerentes, seu pai, A........, casado com sua mãe, I........ e M........ -, duas quotas da sociedade G........, Lda., no valor nominal de Esc. 12.500.000$00, cada, perfazendo o valor total de 25.000.000$00, tendo-se convencionado o pagamento do respectivo preço em cinco prestações mensais de Esc. 2.500.000$00 (cf. doc. 3, junto com a p. i. a fls. 39 e segs. dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
B. Por escritura pública de “cessão de quotas”, outorgada no 1.° Cartório Notarial de Lisboa em 29 de Março de 1996, a Impugnante e o seu irmão, M........, alienaram à mesma sociedade P........, Lda., representada no acto pelo seu sócio gerente, seu pai, A........, as mesmas quotas, em pagamento do preço por que lhas haviam adquirido (cf. doc. 1, junto com a p. i. a fls. 18 e segs. dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
C. Em 2 de Junho de 1995, a Impugnante apresentou-se junto do 1.° Serviço de Finanças de Oeiras, tendo declarado, para efeitos do disposto no artigo 60.º do CIMSISSD, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 41969, de 24 de Novembro de 1958, que, no dia 4 de Fevereiro de 1993, havia recebido de seus pais, bem como o seu irmão, M........, uma doação, em dinheiro, no valor de Esc. 12.500.000$00, cada (cf. fls. 34 e segs. do procedimento de reclamação graciosa e recurso hierárquico apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
D. Na sequência do que, foi instaurado o processo para a liquidação de ISSD, tendo sido emitida a liquidação ora impugnada, no montante de Esc. 3.191.356$00/€15.918,42 – proc. N.º 13.153 (cf. doc. junto a fls. 54 e segs., cujo teor se dá por integralmente reproduzido e fls. 36 e segs. do procedimento de reclamação graciosa e recurso hierárquico apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
E. Em 7 de Julho de 1995, a Impugnante apresentou reclamação graciosa do acto de liquidação referido na letra anterior, à qual foi atribuído o n.º ........ (cf. fls. 2 e segs. do procedimento de reclamação graciosa e recurso hierárquico apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
F. A reclamação graciosa referida na letra E supra foi indeferida por despacho proferido em 18 de Maio de 2005 pelo Chefe de Finanças, concordante com Informação em que se conclui que não foi possível “averiguar se está expresso no registo contabilístico da sociedade P………..SA o movimento da entrada de dinheiro da aquisição de quotas pelo valor total de esc. 25.000.000$00. Conforme informação proveniente dos serviços de inspecção tributária está a decorrer acção inspectiva externa ao sujeito passivo “P........”, no âmbito da qual foi notificado para apresentar todos os documentos de contabilidade e respectivos documentos de suporte, sendo que esta notificação foi efectuada na pessoa do procurador dos administradores, o qual não correspondeu à notificação, apresentando apenas o livro de actas da sociedade, alegando terem sido a sociedade despejada das instalações que ocupava, bem como parte dos arquivos da mesma terem sido retirados das mesmas à sua revelia e a mando do anterior administrador da dita sociedade; também em 21.10.2002 foi declarada falência desta sociedade pelo Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia por requerimento de um dos seus fornecedores, aguardando-se ainda a nomeação do liquidatário judicial. Assim dada a situação de recusa de exibição de escrita que se verifica, não é possível a estes serviços informar sobre o facto tributário em questão. Nesta conformidade, tendo ainda em conta toda a complexidade da situação no que se relaciona com a cedência das quotas em questão, que foram cedidas pelo pai e mãe dos reclamantes, sócios gerentes da “P........”, e tributadas em sede de imposto sucessório como “doação”, considerando ainda que de acordo com o exposto, a impossibilidade de informar sobre o facto tributário, e sua posterior decisão é por culpa imputável ao sujeito passivo (P........), cuja contabilidade se recusou a exibir, parece-nos que o pedido não merece provimento” (cf. fls. 80 e segs. do procedimento de reclamação graciosa e recurso hierárquico apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
G. Do despacho de indeferimento da reclamação foi interposto recurso hierárquico, o qual mereceu despacho de não provimento proferido em 3 de Novembro de 2011 pela Sub-Directora Geral dos Impostos, concordante com Informação em que se considera o seguinte (cf. doc. junto a fls. 60 e segs., cujo teor se dá por integralmente reproduzido e fls. 109 e segs. do procedimento de reclamação graciosa e recurso hierárquico apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido):
“1. Nos termos do art.° 1o do Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações (CIMSISSD), «São sujeitas a sisa e a imposto sobre as sucessões e doações, nos termos dos artigos seguintes, as transmissões perpétuas ou temporárias dos bens, qualquer que seja o título por que se operem».
2. «O art.° 1° não exige qualquer espécie de formalidade ou forma externa para a tributável transmissão gratuita de bens.
Para efeitos do imposto devido, desde que exista uma tradição de valores de um património para outro, sem qualquer espécie de compensação ou contrapartida por parte de quem os recebe, existe uma doação sujeita a colecta, qualquer que seja o meio ou o acto jurídico através do qual essa tradição de valores se opera.
Para efeitos deste imposto, o que interessa é o conceito económico de doação, que é fundamentalmente uma transmissão gratuita de bens, e não o conceito civilístico que pressupõe a existência do contrato a que se refere o art° 1452º do Código Civil.» (Ac. do S.T.A., de 29-06-1961-T.Pleno-Rec. N° 1182, no Boletim de 1961, págs, 968 a 978).
3. Alegam os recorrentes que a participação da doação só foi feita, porque assim «foi determinado por pessoa que se encontrava a proceder a fiscalização tributária aos pais dos reclamantes e à P........, Lda.»
Ora, face a esta alegação tudo indica que, à data, foi detectado na contabilidade da firma indícios de que houve uma doação, por parte dos pais, aos filhos, para aquisição das quotas.
4. Aliás, em sede de reclamação a recorrente afirma que, aquando da fiscalização, face à escritura da cessão de quotas, foi-lhe perguntado «...como iria ela pagar o preço de aquisição...», ao que respondeu «...que esse preço seria pago por seus Pais.»
5. Afirma ainda que: «O sentido desta afirmação era tão só o de que o dinheiro necessário ao pagamento das diversas prestações seria, até á alienação das quotas, adiantado por seus Pais. Alienadas as quotas, os pais dos reclamantes seriam reembolsados.»
6. Perante tais afirmações é mais que evidente que estávamos perante uma doação.
7. Não podem agora os recorrentes, querer anular a participação da doação, que foi feita voluntariamente, com base em declarações verbais e numa escritura de cessão de quotas, novamente à firma, pelo mesmo valor, sem ter disponibilizado documentos que comprovem que não houve qualquer pagamento, nem terem sido disponibilizados os elementos contabilísticos da empresa, de forma a se verificar se está expresso no registo contabilístico, da sociedade, o movimento referente à divida e respectiva anulação subjacente à cedência e aquisição de quotas.
8. Nos termos do n° 1 do art.° 74° da Lei Geral Tributária (LGT), o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.
9. Não tendo sido apresentados documentos que comprovem o alegado, nem tendo sido possível a inspecção tributária informar sobre o facto tributário, por falta de exibição dos elementos contabilísticos, afigura-se de negar provimento ao presente recurso, mantendo-se a decisão recorrida, com as legais consequências”;
H. A Impugnante foi notificada da decisão referida na letra anterior em 20 de Dezembro de 2011 (cf. aviso de recepção a fl. 120 do procedimento de reclamação graciosa e recurso hierárquico apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
I.   Em 14 de Junho de 2013, deu a presente impugnação judicial entrada no Serviço de Finanças de Oeiras 1 (cf. carimbo aposto na p. i., a fl. 4, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
J.   A Impugnante e o seu irmão, M........, figuram nas escrituras referidas nas letras A e B supra, primeiro, como adquirentes e depois, como alienantes, com o intuito alheio de contornar a proibição de aquisição de participações estabelecida no artigo 487.º do CSC (cf. depoimentos das testemunhas inquiridas e declarações tomadas à Impugnante, os quais se revelaram isentos e credíveis).»


X

Ao abrigo do disposto no artigo 662.º/1, do CPC, adita-se a seguinte matéria de facto:
K. Por meio de escritura pública outorgada no 1.º Cartório Notarial de Lisboa, em 04.02.1993, os únicos sócios da sociedade “P........ – ......., Limitada”, M........ e A........ cedem as quotas que detém na sociedade aos cessionários sociedade “G.......” [245.000.000$00] e A........ [5.000.000.000$00] – fls. 9/20, do p.a.
L. A sociedade “P........ – ......., Limitada” detinha na sociedade “G.......” uma quota de 74.000.000$00, a qual passou a 49.000.000$00 após as cedências referidas em A – fls. 21/27.
M. Do requerimento de reclamação graciosa referido em E. consta, designadamente, o seguinte:
«(…) Quanto às razões da aquisição das quotas pelos reclamantes para posterior alienação pelo mesmo preço e a quem lhas cedeu, fundam-se elas no artigo 487° do Código das Sociedades Comerciais, que estabelece a proibição de uma sociedade adquirir quotas ou acções de sociedades que a dominem. // Ora, nesse mesmo dia 4 de Fevereiro de 1993, no mesmo Cartório Notarial, por escritura elaborada de fls. 5 a 10 do citado livro 54-G, a G....... Lda ia adquirir uma quota com o valor nominal de 245.000.000$00 no capital social da P........, Lda. - Doc. n° 2. // A G......., porém, era detida em 75% pela P........, como se vê de folhas 4 do documento n° 1; este facto impedia a referida aquisição, por força do citado artigo 487° do Código das Sociedades Comerciais. // Desta forma, para que a operação pudesse ser feita, era necessário que a P........ alienasse, pelo menos temporariamente, o mínimo de 25 mil contos do capital que detinha na G........ // Por esse motivo foram transferidas para os ora reclamantes as referidas duas quotas de 12.500.000$00 cada uma, e ficou decidido que essas quotas seriam readquiridas pela P........ pelo mesmo preço, já que assim nenhuma das sociedades ficaria a dominar a outra (…)» - fls. 2/3, do p.a.

X

2.2. De Direito

2.2.1. A presente intenção recursória centra-se sobre o alegado erro de julgamento quanto ao direito aplicável em que terá incorrido a sentença recorrida, no que respeita à aplicação do disposto no artigo 100.º do CPPT, como fundamento de anulação do acto tributário.

2.2.2. Está em causa o imposto sobre as sucessões e doações. Este incide sobre as transmissões a título gratuito de bens mobiliários e imobiliários (artigo 3.º do CSISD). «Só se considera transmissão, para efeitos deste imposto, a transferência real e efectiva dos bens» (artigo 3.º/§1º, do CSISD). Para efeitos deste artigo, são, designadamente, sujeitas a imposto sobre sucessões e doações «as transmissões por doação ou sucessão hereditária, ainda que realizadas sob a forma de constituição de direitos» (artigo 9.º/1º do CISSD). De acordo com o artigo 60.º do mesmo diploma, os «beneficiários de qualquer liberalidade são obrigados a participar à repartição de finanças competente a doação (...) ou qualquer acto ou contrato que envolva transmissão gratuita de bens, dentro dos prazos seguintes (…)».

«Para efeitos de imposto sobre doações, desde que exista uma tradição de valores do património de uma pessoa para o de outra sem qualquer espécie de compensação ou contrapartida económica ou fiduciária por parte de quem os recebe, existe uma doação sujeita a tributação, qualquer que seja o meio ou acto jurídico através do qual essa tradição de valores se opera. // O que interessa ao direito tributário é o conceito económico de doação, que é, fundamentalmente, uma transmissão gratuita de bens, e não o seu conceito civilístico, que pressupõe a existência do contrato a que se refere o artigo 1452 do Código Civil»[1].

2.2.3. A sentença acolheu o fundamento da pretensão anulatória da recorrida com base, em síntese, na asserção de que «face ao probatório e aos normativos citados, é sustentável dúvida fundada sobre a ocorrência de uma doação sujeita a tributação, isto é, de uma transmissão de bens do património dos pais para o património dos filhos sem qualquer espécie de compensação ou contrapartida económica, uma vez que foi feita prova da intenção alheia, subjacente às escrituras de “cessão de quotas” referidas nas letras A e B do probatório, de contornar a proibição de aquisição de participações estabelecida no artigo 487.º do CSC (cf. última letra do probatório), indiciadora da sua (e do seu irmão) interposição fictícia nas mesmas escrituras, não sendo certo que a Impugnante (e o seu irmão)  tenham  sido  beneficiários  de  uma  transmissão  gratuita  de  bens  à  custa  do património dos seus pais, pela qual tenha(m) que pagar imposto».

2.2.4. A recorrente censura o veredicto que fez vencimento na instância. Invoca que «[a] declaração produzida pela Impugnante assume força probatória plena que só pode ser contrariada por outro meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objeto, nos termos do artigo 347, do C.C». // «Ora, mediante a prova testemunhal produzida (para o efeito) nos autos, não logrou a Recorrida abalar os pressupostos da liquidação cujo ónus sobre si recai, tanto mais que é a própria que vem colocar em causa a boa fé declarativa que goza nos termos do artigo 75º da LGT».
Apreciação. Do probatório resultam os elementos seguintes:
i)   Por escritura pública de “cessão de quotas”, outorgada no 1.º Cartório Notarial de Lisboa em 4 de Fevereiro de 1993, a Impugnante e o seu irmão, M........, adquiriram à sociedade P........, Lda. – representada no acto pelos seus sócios gerentes, seu pai, A........, casado com sua mãe, I........ e M........ -, duas quotas da sociedade G........, Lda., no valor nominal de Esc. 12.500.000$00, cada, perfazendo o valor total de 25.000.000$00, tendo-se convencionado o pagamento do respectivo preço em cinco prestações mensais de Esc. 2.500.000$00[2].
ii)  Por escritura pública de “cessão de quotas”, outorgada no 1.° Cartório Notarial de Lisboa em 29 de Março de 1996, a Impugnante e o seu irmão, M........, alienaram à mesma sociedade P........, Lda., representada no acto pelo seu sócio gerente, seu pai, A........, as mesmas quotas, em pagamento do preço por que lhas haviam adquirido[3].
iii) Em 2 de Junho de 1995, a Impugnante apresentou-se junto do 1.° Serviço de Finanças de Oeiras, tendo declarado, para efeitos do disposto no artigo 60.º do CIMSISSD, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 41969, de 24 de Novembro de 1958, que, no dia 4 de Fevereiro de 1993, havia recebido de seus pais, bem como o seu irmão, M........, uma doação, em dinheiro, no valor de Esc. 12.500.000$00, cada[4].
iv)       «[P]ara que a operação pudesse ser feita, era necessário que a P........ alienasse, pelo menos temporariamente, o mínimo de 25 mil contos do capital que detinha na G........ // Por esse motivo foram transferidas para os ora Reclamantes as referidas duas quotas de 12.500.000$00 cada uma, e ficou decidido que essas quotas seriam readquiridas pela P........ pelo mesmo preço, já que assim nenhuma das sociedades ficaria a dominar a outra (…)»[5].

O facto de a transferência da quantia em causa da esfera dos pais da impugnante para a sua esfera ter uma motivação económica, distinta da mera liberalidade, impede a verificação do efeito económico associado à doação, ou seja, a transferência económica de um bem a título gratuito? Julgamos que a resposta à presente questão é negativa, pelas razões que se enunciam de imediato.
1) Havendo uma declaração do contribuinte a certificar a ocorrência do facto tributário (artigo 75.º/1, da LGT), cabe à parte que pretende afastar a presunção de veracidade da declaração o ónus de demonstrar a sua inexatidão; ou seja, «A presunção referida no número anterior não se verifica quando: As declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexactidões ou indícios fundados de que não reflectem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo»[6]. No caso, a recorrida emitiu declaração reconhecendo o recebimento da quantia em causa (alínea C), do probatório). O facto de a doação ter ocorrido com o intuito de contornar a proibição de aquisição de participações estabelecida no artigo 487.º do CSC não obvia à efectividade da transferência do montante em causa para a esfera jurídica da recorrida, nem põe em causa a veracidade da declaração emitida pela impugnante, reconhecendo o recebimento do montante em apreço (alínea C), do probatório). Não existe prova de que a referida declaração tenha sido emitida em erro. As declarações da impugnante foram prestadas perante a AT, tendo sido lavrado termo, pelo que se aplica o disposto no artigo 371.º do CC. «Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora». Não existem nos autos elementos que atestem a falsidade do termo em causa. Mais se refere que a recorrida não juntou elementos que documentem os movimentos financeiros em causa, tendo em vista sustentar a tese por si preconizada de que a transferência do dinheiro não ocorreu ou de que o mesmo foi restituído aos doadores.
2) A ineficácia do negócio jurídico não impede a aplicação da lei fiscal e a relevância tributária dos efeitos económicos produzidos. «[O artigo 38.º/1, da LGT] estabelece como determinante da tributação a produção de efeitos económicos – a produção dos efeitos económicos e a relevância tributária que a lei fiscal tipifica – são os factos determinantes da lei, sendo portanto, irrelevante a eventual ineficácia do negócio jurídico utilizado como instrumento»[7]. No caso, o enriquecimento da esfera jurídica da impugnante à custa do empobrecimento, em igual medida, da esfera jurídica dos doadores, é manifesto. Recorde-se que dos elementos colhidos nos autos resulta firme a convicção de que a quantia movimentada pela impugnante foi entregue pelos doadores, pais da impugnante. A justificação económica da liberalidade não transforma esta em negócio jurídico de outro tipo, nem afasta o efeito económico, translativo da mesma. Não existem elementos que contendam com a efetividade e a materialidade do efeito translativo em causa.
3) «Sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado»[8]. No caso, o facto de haver uma motivação económica para a doação realizada não afasta a efectividade da transmissão, a investidura na esfera da donatária do montante em causa, bem como o enriquecimento da sua esfera jurídica à custa do património dos doadores.
A aplicação do disposto no artigo 100.º/1, do CPPT, exige a demonstração da ocorrência de uma dúvida fundada. Esta supõe a prova da ocorrência de indícios sérios e consistentes de que o efeito económico da doação não se verificou. No caso, a invocação de que havia um interesse específico para a realização da doação, não logra só por si, seja afastar o efeito translativo do negócio, seja descaracterizar o enriquecimento da impugnante. A mesma recebeu dinheiro de terceiros, com o qual participou nos negócios jurídicos de cessão de quotas em exame (alíneas A) e B) do probatório). A declaração nesse sentido pela mesma prestada não logra ser impugnada, dado que não existem elementos que documentem a sua falsidade.

Em face do exposto, a sentença recorrida, ao julgar procedente a impugnação, incorreu em erro de julgamento, pelo que deve ser substituída por decisão que julgue improcedente a impugnação.

Termos em que se impõe conceder provimento ao recurso.


DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam, em conferência, os juízes da secção de contencioso tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar improcedente a impugnação.

Custas pela recorrida.

Registe.

Notifique.


(Jorge Cortês - Relator)

(1.ª Adjunta)



 (2.ª Adjunta)

[1] Acórdão do STA, de 29-06-1961, P. 001182.
[2] Alínea A).
[3] Alínea B).
[4] Alínea C).
[5] Alínea M).
[6] Artigo 75.º/2/a) da LGT.
[7] José Maria Fernandes Pires, LGT, anotada, 2015, p. 323.
[8] Artigo 100.º/1, do CPPT.