Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:13/20.6BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:04/30/2020
Relator:PEDRO NUNO FIGUEIREDO
Descritores:TRIBUNAL ARBITRAL DO DESPORTO; REGULAMENTO DISCIPLINAR DA LIGA PORTUGUESA DE FUTEBOL PROFISSIONAL;
AUDIÊNCIA PRÉVIA DO ARGUIDO;
PRINCÍPIOS DA CULPA, DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA, DO CONTRADITÓRIO E DO PROCESSO EQUITATIVO; VALOR DA CAUSA
Sumário:I. Decorre do disposto nos artigos 32.º, n.º 10, e 269.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP), que no âmbito de processo disciplinar não pode ser aplicada sanção ao arguido, sem que previamente lhe seja assegurada a possibilidade de apresentar a sua defesa.
II. Prevendo o Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP), no respetivo artigo 214.º, que no procedimento disciplinar sumário é excluída a audiência prévia do arguido antes de ser proferida a decisão punitiva, esta disposição regulamentar contende com aqueles normativos constitucionais e como tal padece de inconstitucionalidade material, cabendo ao Tribunal recusar a sua aplicação.
III. Ao não permitir ao arguido contraditar a presunção de veracidade dos elementos reportados pela equipa de arbitragem e delegados da Liga prevista no artigo 13.º, al. f), do RDLPFP, que assim se torna inilidível, esta disposição regulamentar é materialmente inconstitucional quando aplicada ao procedimento disciplinar sumário, por contender com os princípios da culpa, da presunção da inocência, do contraditório e do processo equitativo, consagrados nos artigos 32.º, n.º 2, e 20.º, n.º 4 da CRP, cabendo também aqui ao Tribunal recusar a sua aplicação.
IV. Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 77.º, n.º 1, da LTAD, e 33.º, al. b), do CPTA, quando esteja em causa a aplicação de sanções de conteúdo pecuniário nos processos do TAD, o valor da causa é determinado pelo montante da sanção aplicada.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul


I. RELATÓRIO

O S….. apresentou no Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), ao abrigo da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto (LTAD), aprovada pela Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, na redação da Lei n.º 33/2014, de 16 de junho, recurso da decisão da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, que manteve a decisão de condenação da demandante no âmbito do Processo de Recurso Hierárquico Impróprio n.º …../20, com aplicação de multas no valor de € 20.159,00, pela prática de infrações p. e p. pelos artigos 183.º, n.º 2, 186.º, n.º 2, 187.º, n.º 1, als. a) e b), e 127.º, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP).

Por decisão de 20/12/2019, o TAD decidiu, por maioria, julgar improcedente o recurso e, em consequência, manter a decisão recorrida.

Inconformada, a demandante interpôs recurso desta decisão, pugnando pela respetiva revogação, terminando as alegações com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem:
“A. O presente recurso tem por objecto o acórdão de 20.12.2019 do TAD, que confirmou a condenação da recorrente pela prática de cinco infracções disciplinares p. e p. pelos arts. 183.°-2, 186.°-2, 127.°-l e 187.°-l a) e b) do RD, punindo-a em multa no valor total de €20.159,00.
B. Acontece que, o acto punitivo proferido em 20.08.2019, e mantido pela Deliberação emitida em 17.09.2019 pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol é, desde logo, nulo por violação do direito de defesa da Recorrente, e bem assim por violação dos princípios da culpa e da presunção da inocência.
C. Com efeito, a norma plasmada no art. 13.°, al. f) do RD, na medida em que contém uma presunção inilidível da veracidade dos factos constantes dos relatórios dos árbitros e do delegado da Liga, é materialmente inconstitucional quando aplicada ao procedimento disciplinar sumário, por violação dos princípios da culpa e da presunção da inocência, preceituados no arts. 32.°, n.° 10 e 2 da CRP, bem como por violação dos direitos ao contraditório e ao processo equitativo, previstos no art. 20.°, n.° 4 da mesma Lei Fundamental - o que desde já se argui, para todos os efeitos e consequências legais.
-II-
D. Não se conforma a Recorrente com a decisão condenatória, porquanto desprovidos que são os autos de provas que deponham em favor da sua responsabilização, ou seja, que o clube teve uma actuação culposa na verificação dos factos, mostrava-se necessariamente prejudicada a sua condenação pelas infracções disciplinares imputadas.
E. Em primeiro lugar, a mera circunstância de a bancada na qual teve origem a deflagração de engenhos pirotécnicos estar - por princípio - afecta a adeptos da Recorrente, sem sequer haver prova da exclusividade dessa afectação, não permite concluir - com toda a probabilidade próxima da certeza ou, pelo menos, para além de toda a dúvida razoável - que os autores das deflagrações tenham efectivamente sido sócios ou simpatizantes da recorrente.
F. Assim, não se tendo apurado qual a concreta identificação dos adeptos infractores, não bastava à Recorrida, e agora ao Tribunal a quo, invocar que os factos ocorreram em bancada afecta a adeptos desta para que se pudesse concluir (e levar à matéria assente) que os autores das condutas sub judice eram sócios ou simpatizantes da S…...
G. Autoria essa que deve ser dada como não provada, o que desde já se requer.
H. Considerando as infracções em causa nos autos, era necessário que o Conselho de Disciplina tivesse carreado aos autos prova suficiente de que não só os comportamentos indevidos foram perpetrados por sócio ou simpatizante da F….. - Futebol SAD, mas ainda que tais condutas resultaram de um comportamento culposo da F….. - Futebol SAD.
I. O ónus da prova em processo disciplinar cabe ao titular do poder disciplinar, pelo que, não tem arguido de provar que é inocente da acusação que lhe é imputada.
J. Aliado ao ónus da prova que recai sobre o titular da acção disciplinar, vigora ainda o princípio da presunção de inocência, o qual tem como um dos seus principais corolários a proibição de inversão do ónus da prova, não impendendo sobre o arguido - in casu a recorrente - o ónus de reunir as provas da sua inocência.
K. É precisamente o princípio de inocência que exigia ao Tribunal formular um juízo de certeza sobre o cometimento das infracções para condenar a Recorrente.
L. Nem mesmo a presunção de veracidade dos relatórios prevista no art. 13.º, f), do RD, pode contrariar esta quadro normativo, dado que, mesmo beneficiando de uma presunção de verdade, não se trata de prova subtraída à livre apreciação do julgador, não se permitindo daí inferir um início de prova ou sequer uma inversão do ónus da prova.
M. A míngua de meios de prova demonstrativos da violação de deveres de cuidado, o Tribunal a quo presumiu que a Recorrente falhou nos seus deveres, entendendo que caberia à Recorrente ilidir a presunção de culpa pela qual o Tribunal se segue.
N. Resulta claro da leitura do acórdão que o Tribunal a quo confirmou a condenação da Recorrente somente com base na prova da primeira aparência e num esquema argumentativo e racional fundado numa distribuição de ónus da prova: à demandada, titular do poder punitivo disciplinar, cabe fazer a prova da primeira aparência; e à demandante, uma vez comprovada essa primeira aparência, compete refutá-la, destruindo essa indiciação.
O. Este critério decisório viola o princípio da presunção de inocência, direito fundamental de que a Recorrente é titular e, do mesmo passo, implica que para a prova dos factos fundamentadores de responsabilidade disciplinar não será necessária uma racional e objectiva convicção da sua verificação, para além de qualquer dúvida razoável, sendo suficiente uma sua simples indiciação.
P. O critério decisório adoptado pelo Tribunal a quo - da prova da primeira aparência, com imposição de ónus da prova ao arguido - contraria aberta e frontalmente a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, jurisprudência que representa uma expressão consolidada do cânone da dogmática do princípio da presunção de inocência, constante de todos os tratados e comentários de processo penal e afirmado vezes sem conta pelos nossos tribunais superiores (TC, STJ, Relações e TCA’s).
Q. Pelo exposto, cumpre repor a legalidade, revogando-se o Acórdão recorrido e impondo-se ao Tribunal a quo que adopte um critério decisório em matéria de valoração da prova consentâneo com o princípio da presunção de inocência, exigindo-se, designadamente, que a prova de todos os elementos constitutivos da infracção corresponda a um convencimento para além de qualquer dúvida razoável, e não numa convicção da verificação decorrente da verificação de simples indícios resultantes de uma prova de primeira aparência,
R. e que não se imponha à Recorrente (arguida no processo disciplinar) o ónus de demonstração da não verificação de qualquer elemento tipicamente relevante,
S. Se assim não se fizer, incorrer-se-á em inconstitucionalidade: pois é inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.°, n.°s 2 e 10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.°-4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art. 2.° da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.° da CRP), a interpretação dos artigos 183.°-2, 186.°-2, 127.°-1, 187,°-l, al. a) e b), e 258.°, n.° 1, do RDLPFP, no sentido de que a indiciação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube, o que desde já se argui, para todos os efeitos e consequências legais.
T. Mas mais, nem mesmo acolhendo a presunção de verdade prevista no art. 13.°, f) do RD ou jurisprudência recente do Supremo Tribunal Administrativo (processo n.° 297/2018 de 18-11-2018) se alcançaria a condenação da aqui recorrente, porquanto sempre se mostra por preencher pressuposto de imputação e condenação: a actuação culposa da recorrente.
U. Nos relatórios de jogo, prova documental nos autos que beneficia da presunção de verdade, não se descreve um único facto relativamente ao que fez ou não fez o clube, por referência a concretos deveres legais ou regulamentares, nem tão-pouco se descreve por que forma essa actuação do clube facilitou ou permitiu o comportamento que é censurado.
V. Sendo a actuação culposa um dos “demais elementos das infracções’' que se impunha à FPF, aqui recorrida, provar, sempre se mostrava prejudicada a condenação do Clube por falta de preenchimento de pressuposto legal exigido pelos arts. 186.°-2, 183.°-2, 127.°-1 e 187.°-1, a) e b) do RD.
W. Como tal, é inconstitucional por violação do princípio da presunção de inocência (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.°, n.°s 2 e 10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.°-4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art. 2.° da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.° da CRP), a interpretação dos artigos 183.°-2, 186.°-2, 187.°, n.° 1, alíneas a) e b), 127.°-l e 258.°, n.° 1, do RDLPFP de 2017, no sentido de que se dá como provado que o clube violou deveres regulamentares e legais de vigilância, controlo e formação dos seus sócios e simpatizantes quando se prove, com base com base no artigo 13.°, al. f), do RDLFPF, que esses sócios ou simpatizantes adoptaram um comportamento social ou desportivamente incorrecto, cabendo ao clube aportar prova demonstradora do cumprimento desses seus deveres.
-III-
X. No que concerne à condenação pela infracção p. ep. pelo art. 187.°, n.° 1, a) do RD, sempre se diga que é completamente impossível à recorrente impedir manifestações vocais desse tipo e fica sempre por demonstrar a efectividade de qualquer possível esforço pedagógico nesse sentido.
Y. Responsabilizar disciplinarmente os clubes pelas grosserias ditas pelos seus adeptos significa puni-los por algo que, objectivamente, não estão em condições de prevenir ou evitar, o que equivale a uma responsabilidade objectiva. Pelo que, não podia o Tribunal a quo condenar a recorrente pela violação do art. 187.M, a) do RD.
-IV-
Z. Ao condenar a Recorrente simultaneamente pelas infracções tipificadas nos arts. 127.° e 187.°, 183 °-2 e 186.°-2 do RD, a decisão do Tribunal a quo viola o princípio do ne bis in idem, plasmado no art. 12.° do RD.
AA. Desde logo porque em ambas as normas se tipificam comportamentos incorrectos do público, qualificando-se e agravando-se uma em função da perigosidade para a integridade pessoal de terceiros, pelo que é óbvio que ao clube que deva responder por tais comportamentos só pode imputar-se a mais grave.
- V -
BB. A modificação do valor da causa promovida pelo Tribunal a quo para € 30.000,01 - ao invés do total da multa por que foi a recorrente condenada - foi feita cm violação do previsto no art. 33.°, b) do CPTA, pelo que se impõe repor a legalidade, fixando- se o valor da acção no montante de € 20.159,00 daí se extraindo as devidas consequências.
CC. As custas fixadas pelo TAD comprometem de forma séria e evidente o princípio da tutela jurisdicional efectiva (arts. 20.°-l e 268.°-4 da CRP).
DD. Considerando o critério da nossa jurisprudência constitucional, não são compatíveis com o direito fundamental de acesso à justiça (arts. 20.° e 268.°-4 da CRP) soluções normativas de tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efectivo exercício de um tal direito, como é o caso do TAD.
EE. O artigo 2.°, n.°s 1, 4 e 5 da Portaria n.° 301/2015, conjugado com a tabela constante do Anexo I (2.a linha) dessa mesma Portaria, em acções de arbitragem necessária com o valor de € 20.159,00, é inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade (artigo 18.°, n.° 2, da CRP) e do princípio da tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.°, n.° 1, da CRP)”.
A recorrida FPF apresentou contra-alegações, terminando as mesmas com a formulação das conclusões que de seguida se transcrevem:
“1. O presente Recurso de Apelação foi interposto pela Recorrente do Acórdão do Tribunal Arbitral do Desporto, notificado a 9 de janeiro de 2020, que confirmou a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que sancionou a Recorrente em multas por aplicação dos artigos 183.º, n.º 2, 186.º n.º 2, 187.º, nº 1, al. b) e 127.º do RD da LPFP.
2. Entende a Recorrente que o ato punitivo proferido pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Recorrida será nulo por violação do seu direito de defesa, bem como por violação dos princípios da culpa e da presunção de inocência.
Sem razão, pois vejamos,
3. A consagração constitucional do direito ao desporto (artigo 79.º da CRP) veio conceber, sem margem para dúvidas, o desporto como uma matéria de interesse público.
4. O Direito ao Desporto, constitucionalmente consagrado, tem uma aceção bastante ampla, incluindo o desporto profissional e, ainda, o direito a organizar e participar em competições desportivas.
5. O RD da LPFP é aprovado em Assembleia Geral da LPFP, de que faz parte a Recorrente, assim como todos os outros clubes que integram as ligas profissionais.
6. Em concreto, a Recorrente não se manifestou contra a aprovação do artigo 214.º do RD da LPFP em sede de Assembleia Geral tendo, pelo contrário, aprovado a mesma decidindo conformar-se com ela.
7. A garantia dos direitos de audiência e defesa do arguido no âmbito de processos sancionatórios terá que se harmonizar com o direito ao desporto que, como acima se mencionou, também é um direito constitucionalmente consagrado.
8. Tem lugar a aplicação do processo sumário, que é o que ora importa nos presentes autos, quando estiver em causa o exercício da ação disciplinar relativamente a infrações disciplinares menos graves ou, em qualquer caso, infrações disciplinares puníveis com sanção de suspensão por período de tempo igual ou inferior à de suspensão por um mês ou por quatro jogos (artigo 257.º do RD da LPFP).
9. A celeridade dos procedimentos disciplinares é uma preocupação facilmente constatável ao longo do RD da LPFP e, em especial, nos processos sumários, onde são consagrados prazos de decisão muito reduzidos.
10. Atente-se, neste sentido, ao disposto no artigo 259.º do RD da LPFP.
11. Ora, atendendo à necessidade de garantir o regular e atempado funcionamento das competições desportivas, no âmbito dos processos sumários não é dado, a título excecional, o direito de audiência prévia ao arguido (artigos 259.n.º 1 e 214.º, todos do RD da LPFP).
12. E tal exceção encontra-se justificada, por um lado, pelo facto de estarmos perante infrações menos graves diretamente percecionadas pelos árbitros, delegados e forças de segurança, ou por estarmos perante um auto de flagrante delito, e, por outro, pelas especificidades inerentes à atividade desportiva, em concreto, pelo normal e atempado desenrolar das competições.
13. Quer isto dizer que, consoante a gravidade da infração, há uma diferente proteção que se expressa ao nível das garantias de defesa.
14. Mas mais, caso se garantisse o contraditório no âmbito dos processos sumários que, sublinhe-se, pretende sancionar infrações menos graves ou puníveis com sanção de suspensão por período de tempo igual ou inferior à de suspensão por um mês ou por quatro jogos, a própria continuidade das competições desportivas seria colocada em risco e, em última instância, a Recorrida não conseguiria promover e desenvolver a modalidade desportiva para a qual foi constitucionalmente incumbida.
15. Aliás, em bom rigor, a consagração de contraditório no âmbito dos procedimentos disciplinares sumários desportivos, levaria a que nenhuma federação desportiva conseguisse promover e desenvolver cabalmente a modalidade desportiva, funções para as quais foi constitucionalmente incumbida.
16. A concordância/harmonização do direito ao desporto com a garantia de audiência e defesa num momento anterior à prolação do ato punitivo não pode ser outra senão a constante do RJFD e, por conseguinte, no RD da LPFP, leia-se, a preterição excecional de audiência prévia do arguido em momento anterior à prolação do ato punitivo;
17. Não obstante, esta audiência será sempre garantida quando, em sede de recurso, se passa para o Plenário do Conselho de Disciplina, como sucedeu, saliente-se, nos presentes autos;
18. O modelo, assim desenhado, é o único que permite a realização de milhares de competições desportivas federadas, as quais, a sufragar a leitura restrita da Recorrente, pura e simplesmente colapsariam.
19. For todo o acima exposto, o ato punitivo sub judice proferido pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Recorrida é valido e não viola qualquer norma constitucional.
Prosseguindo,
20. Em causa nos presentes autos está o comportamento incorreto dos adeptos do S….. e a responsabilização desta sociedade anónima desportiva por violação de deveres a que estava adstrita de modo a evitar a ocorrência de tais comportamentos.
21. Sinteticamente, de acordo com os relatórios do jogo e de policiamento desportivo, os adeptos da Recorrente entraram no Estádio Municipal de Braga com objetos proibidos e deflagraram engenhos pirotécnicos. A Recorrente não coloca em causa que estes factos aconteceram, coloca em causa, sim, que tenham sido os seus adeptos a praticar os factos sub judice e que tenha qualquer responsabilidade sobre o comportamento levado a cabo por outras pessoas.
22. O processo sumário é um processo propositadamente célere, em que a sanção, dentro dos limites regulamentares definidos, é aplicada no prazo-regra de apenas 5 dias (cfr. artigo 259.º do RD da LPFP) somente por análise do relatório da equipa de arbitragem, das forças policiais e dos delegados da LPFP. Com efeito, tais relatórios têm, como se sabe, presunção de veracidade dos respetivos conteúdos (cfr. Artigo 13.º, al. f) do RD da LPFP).
23. Recorde-se, aliás, que esta forma de processo consta do Regulamento Disciplinar da LPFP, aprovado pelas próprias SAD's que disputam as competições profissionais em Portugal, entre elas a ora Recorrente.
24. Entende a Recorrente que cabia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta dos Relatórios dos Delegados da LPFP e do Relatório de Policiamento Desportivo da PSP) que a Recorrente violou deveres de formação, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, entende que cabia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo, o que, como se sabe, não é possível.
25. Assim, os Relatórios elaborados pelos Delegados da LPFP, atento o seu conteúdo, são perfeitamente suficientes e adequados para sustentar a punição da Recorrente nos casos concretos. Ademais, há que ter em conta que existe uma presunção de veracidade do conteúdo de tal documento (artigo 13.º, al. f) do RD da LPFP).
26. Isto não significa que os Relatório dos Delegados da LPFP contenham uma verdade completamente incontestável: o que significa é que o conteúdo do Relatório, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que a Recorrente incumpriu os seus deveres.
27. Para abalar essa convicção, cabia ao clube apresentar contraprova, colocando em causa aquela veracidade. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.º do Código Civil.
28. Para além da presunção de veracidade dos factos constantes nos relatórios dos Delegados da LPFP, ter-se-á, ainda, que atender à força probatória dos relatórios das forças policiais.
29. Ao contrário do que afirma a Recorrente, em sede sancionatória o "arguido" não pode simplesmente remeter-se ao silêncio, aguardando, sem mais, o desenrolar do procedimento cabendo-lhe, pelo menos, colocar uma dúvida na mente do julgador correndo o risco de, não o fazendo, ser punido se as provas reunidas forem todas no mesmo sentido.
30. Do lado do Conselho de Disciplina, todos os elementos de prova carreados para os autos iam no mesmo sentido do Relatório elaborado pelos Delegados da LPFP, pelo que dúvidas não subsistiam (nem subsistem) de que a responsabilidade que lhe foi assacada pudesse ser de outra entidade que não da Recorrente. Isto mesmo entendeu, e bem, o Tribunal a quo.
31. De modo a colocar em causa a veracidade do conteúdo dos Relatórios, cabia à Recorrente demonstrar, pelo menos, que cumpriu com todos os deveres que sobre si impendem, designadamente em sede de Recurso Hierárquico Impróprio apresentado ou quanto muito em sede de ação arbitrai. Mas a Recorrente nada fez, nada demonstrou, nada alegou, em nenhuma sede.
32. Neste sentido, sublinhe-se que decorre de forma claríssima da Regulamentação aplicável que os clubes e sociedades desportivas podem (e devem) impedir comportamentos como os subjudice através do cumprimento dos deveres informando e in vigilando dos seus adeptos, em especial, do cumprimento dos deveres estatuídos no art.º 35.º, n.º 1, ais. a), b), c) e o) do Regulamento das Competições da LPFP.
33. Ainda que se entenda - o que não se concede - que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir a Recorrente, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido - a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos da Recorrente e a violação dos respetivos deveres-foi retirado de outros factos conhecidos.
34. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com o princípio da presunção de inocência, ao contrário do que refere a Recorrente, de acordo com jurisprudência, quer dos tribunais comuns, quer dos tribunais administrativos.
35. Há ainda que notar que o próprio Tribunal Arbitral do Desporto, por várias outras ocasiões, já se pronunciou em sentido diverso ao entendimento sufragado pela Recorrente, assim como o STA por 14 vezes em sede de recurso de revista e o TCA Sul uma vez em sede de recurso de apelação.
36. Carece de fundamento a alegação de que as normas dos artigos 13.º, al. f) e 187.º, n.º 1, alínea b), 127.º e 258.º do RD da LPFP são inconstitucionais, porquanto o próprio Tribunal Constitucional já se pronunciou em matéria em tudo idêntica, defendendo a responsabilidade subjetiva neste âmbito, o que se revela conforme à CRP.
37. Não existiu dupla penalização pelo mesmo facto, ao contrário do que alega a Recorrente, pelo que andou bem o Tribunal a quo ao manter a decisão impugnada.
38. Efetivamente, foram praticados vários e distintos factos aos quais correspondem várias e distintas infrações disciplinares, previstas em normas com finalidades de proteção de bens jurídicos distintos.
39. Para haver violação do princípio da dupla punição ter-se-ia de verificar o duplo sancionamento do mesmo facto, porém, estão em causa diferentes condutas. A estas condutas correspondem normas disciplinares distintas. E a tais normas disciplinares distintas corresponde a proteção de valores jurídicos também eles distintos.
40. Com efeito, a adoção de medidas de segurança e o cumprimento de deveres que assegurem essa prevenção visam a tutela de bens jurídicos específicos e autónomos, em especial a segurança e a confiança da "comunidade desportiva" e da comunidade em geral na realização de espetáculos desportivos pelo que a tutela destes bens não pode ficar dependente nem ser consumida pela eventual ocorrência de outras circunstâncias, sob pena de se estar a desonerar as entidades organizadoras do específico cumprimento de deveres de prevenção de violência no desporto, a que, precisamente, alude o referido n.9 2 do artigo 79.9 da Constituição.
41. Para além disso, as duas normas (o artigo 127.º e o artigo 187.º) visam punir comportamentos diferentes e que podem originar consequências também elas diversas, pelo que, verificando-se os diferentes factos típicos aí elencados, não há qualquer concurso de infrações.
42. O TAD apenas poderia alterar a sanção aplicada pelo Conselho de Disciplina da FPF se se demonstrasse a ocorrência de uma ilegalidade manifesta e grosseira - limites legais à discricionariedade da Administração Pública, neste caso, limite à atuação do Conselho de Disciplina da FPF.
43. Assim, não existindo nenhum vício que possa ser imputado ao acórdão do Conselho de Disciplina que levasse à aplicação da sanção da anulabilidade por parte deste Tribunal Arbitrai, andou bem o Colégio de Árbitros ao decidir manter a condenação da Recorrente pelas infrações disciplinares p. p. pelo artigo 187.º,1, al. b) e 127.º do RD da LPFP”.
*

Perante as conclusões das alegações do recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, as questões a decidir consistem em aferir do erro de julgamento do acórdão recorrido quanto:
- à nulidade do ato punitivo proferido em 20/08/2019 e mantido pela deliberação de 17/09/2019 do Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, por violação dos direitos de defesa, ao contraditório e ao processo equitativo e dos princípios da culpa e da presunção da inocência;
- à violação dos princípios da presunção de inocência, da culpa e do Estado de direito, ao impor ao clube aportar prova do cumprimento dos deveres regulamentares;
- à responsabilidade objetiva da recorrente;
- à violação do princípio ne bis in idem;
- à modificação do valor da causa em violação do artigo 33.º, al. b), do CPTA;
- à fixação das custas, por inconstitucionalidade do artigo 2.º, n.os 1, 4 e 5, da Portaria n.º 301/2015, que viola os princípios da proporcionalidade e da tutela jurisdicional efetiva.

Dispensados os vistos legais, atenta a natureza urgente do processo, cumpre apreciar e decidir.
*

II. FUNDAMENTOS
II.1 DECISÃO DE FACTO
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
“1.° No dia 11 de agosto de 2019, no Estádio Municipal de Braga, em Braga, realizou- se o jogo n.° ….. (203.01.002.0) disputado entre a “S….. - Futebol SAD" e a “M….. - Futebol SAD", a contar para a l.a jornada da "Liga NOS":
2.° A bancada nascente inferior - setores 7A e 8A do Estádio Municipal de Braga foi a zona do estádio reservada única e exclusivamente aos adeptos da S…..;
3.° Tais adeptos localizados nas bancadas e setores mencionados em 2.°, estavam identificados com adereços da S….., designadamente, camisolas e cachecóis, entoavam cânticos de apoio a este clube e agitavam bandeiras com motivos alusivos à mesma;
4.° No decurso do referido jogo, os adeptos afectos à S….., localizados na aludida bancada e setores do Estádio Municipal de Braga, aos 16 minutos da 1 ,a parte, lançaram para o rectângulo de jogo um engenho pirotécnico / tocha, que caiu junto à linha lateral e causou a interrupção do jogo durante alguns segundos, para que pudesse ser removida pelo ARDs;
5.° No decorrer do jogo, os adeptos afetos à S….., localizados na aludida bancada e setores, do Estádio Municipal de Braga, aos 17 minutos da \ ° parte, arremessaram um pote de fumo para dentro do rectângulo do jogo, que caiu muito próximo da linha lateral, não tendo causado qualquer interrupção no jogo;
6.° No decorrer do dito jogo, os adeptos afetos à S….., localizados na aludida bancada e setores do Estádio Municipal de Braga, deflagraram, no meio da dita bancada, uma tocha aos 17 minutos da l.a parte;
7.° No decurso do dito jogo, um grupo de adeptos afetos à S….., localizados na aludida bancada e setores, do Estádio Municipal de Braga, entre os 28 minutos e os 30 minutos de 2° parte exibiram: três tarjas que no seu conjunto indicavam "VITÓRIA F. C. TONDELA 2.a FEIRA" - "PERDE O ADEPTO, VENCE O PODER INSTALADO" –
PRIMEIRA JORNADA, ACORDO QUEBRADO" e entoara/gritaram em uníssono por diversas vezes:” A liga é uma merda":
8.º A S….. não adotou as medidas preventivas adequadas e necessárias a fim de impedir que os seus adeptos e simpatizantes entrassem, permanecessem, deflagrassem e arremessassem no interior do Estádio Municipal de Braga, os artefactos pirotécnicos descritos nos factos provados em 4.° e 6.°, e exibissem as tarjas e entoassem os cânticos com o conteúdo descrito em 7.° supra.
9.° A S….. incumpriu deveres legais e regulamentares de segurança e de prevenção da violência que sobre si impendiam, enquanto entidade participante e organizadora do dito jogo de futebol, agindo de forma livre, consciente e voluntária.
10.° Pelos factos acima descritos a Demandante prosseguiu com uma sanção de multa no valor total de €20.159,00.
11.° A S….. tem os antecedentes disciplinares registados no respetivo cadastro disciplinar que aqui se dá por integralmente reproduzido.”.

*

II.2 APRECIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Conforme supra enunciado, as questões a decidir cingem-se a saber se ocorre erro de julgamento do acórdão recorrido quanto:
- à nulidade do ato punitivo proferido em 20/08/2019 e mantido pela deliberação de 17/09/2019 da FPF, por violação dos direitos de defesa, ao contraditório e ao processo equitativo e dos princípios da culpa e da presunção da inocência;
- à violação dos princípios da presunção de inocência, da culpa e do Estado de direito, ao impor ao clube aportar prova do cumprimento dos deveres regulamentares;
- à responsabilidade objetiva da recorrente;
- à violação do princípio ne bis in idem;
- à modificação do valor da causa em violação do artigo 33.º, al. b), do CPTA;
- à fixação das custas, por inconstitucionalidade do artigo 2.º, n.os 1, 4 e 5, da Portaria n.º 301/2015, que viola os princípios da proporcionalidade e da tutela jurisdicional efetiva.


a) da violação dos direitos de defesa, ao contraditório e ao processo equitativo e dos princípios da culpa e da presunção da inocência

Nesta sede, sustenta a recorrente, em síntese, ser materialmente inconstitucional a norma plasmada no art. 13.°, al. f) do RD, por conter presunção inilidível da veracidade dos factos constantes dos relatórios dos árbitros e do delegado da Liga, quando aplicada ao procedimento disciplinar sumário, por violação dos princípios da culpa e da presunção da inocência, previstos no artigo 32.º, n.os 10 e 2 da CRP, e dos direitos ao contraditório e ao processo equitativo, previstos no artigo 20.º, n.º 4, da CRP.
Contrapõe a recorrida que a recorrente aprovou e conformou-se com o artigo 214.º do RD da LPFP, no qual se prevê que no processo sumário a aplicação de sanção disciplinar não é precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido, se justifica pela harmonização do direito ao desporto com a garantia daquele direito no âmbito de processos sancionatórios.
Com efeito, conforme decorre dos autos, o ato punitivo de 20/08/2019 e mantido pela deliberação de 17/09/2019 do Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da FPF, foi proferido no âmbito de procedimento disciplinar sumário.
Sendo-lhe, pois, aplicável o indicado normativo, confirmando-se que, no caso dos autos, não foi dada oportunidade ao arguido de se pronunciar em momento prévio ao da aplicação da sanção disciplinar.

Quanto à presente questão, formou-se recente corrente jurisprudencial neste TCAS, vejam-se os acórdãos de 10/12/2019, proferidos nos processos n.os 4/19.0BCLSB e 49/19.0BCLSB, de 18/12/2019, proferido no processo n.º 35/19.0BCLSB, de 13/02/2020, proferido no processo n.º 146/19.1BCLSB, e de 16/04/2020, proferido no processo n.º 14/20.4BCLSB, este último com dois dos signatários do presente acórdão.
Por se sufragar na íntegra o entendimento ali seguido quanto à presente questão, adere-se à fundamentação que segue, constante do primeiro dos citados arestos:
Relativamente ao processo sumário, que configura uma forma especial do procedimento disciplinar, importa dizer que o mesmo é instaurado tendo por base, normalmente, o relatório da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga (cfr. n.º 1 do art.º 258.º), sendo estes relatórios transmitidos com a máxima urgência à Secção Disciplinar que, por intermédio de um dos seus membros (…), procederá à aplicação da correspondente sanção mediante despacho sinteticamente fundamentado (art.º 259.º, n.º 1). Esta decisão deve ser proferida no prazo de cinco dias, contados desde a data da receção dos relatórios, sob pena de caducidade do processo sumário (n.º 2 do art.º 259.º).
Nas situações em que seja absolutamente indispensável esclarecer o relatório da equipa de arbitragem, os relatórios dos delegados da Liga (…), o relator na Secção Disciplinar poderá ordenar as diligências complementares que entender pertinentes e não sejam prejudiciais à economia da forma sumária do processo (cfr. n.º 1 do art.º 260.º). A necessidade de esclarecimento pode decorrer, nomeadamente, quando os relatórios forem evasivos ou ambíguos, não concretizarem suficientemente as circunstâncias de tempo, lugar e modo relativas aos factos descritos ou não indiquem com precisão os respetivos agentes (cfr. n.º 2 do mesmo art.º 260.º). De todo o modo, a emissão da decisão punitiva deve suceder no prazo máximo de 15 dias após a receção dos documentos respeitantes às diligências complementares, sob pena, também, de caducidade do processo sumário (n.º 3 do art.º 260.º).
Finalmente, é de salientar ainda duas características essenciais do processo sumário: a exigência de fundamentação das decisões punitivas, em conformidade com o imposto pelos art.ºs 262.º, n.º 1 e 222.º, n.º 1 do RD, e a dispensa da audição do arguido em momento prévio à emissão da decisão sancionatória disciplinar, nos termos do estatuído nos art.ºs 13.º, al. d), 213.º, n.ºs 1, al. b), 2 e 3 e 214.º do RD.
Relativamente ao primeiro aspeto focado- a exigência de fundamentação da decisão sancionatória tomada em processo disciplinar sumário-, estabelece o art.º 222.º, n.º 1 do RD que a mesma deverá descrever as circunstâncias relativas ao facto sancionado e proceder à sua qualificação disciplinar através do preceito regulamentar violado.
No que concerne à audiência do arguido, prévia à tomada da decisão sancionatória, esclareça-se que, atenta a sistematicidade e a teleologia subjacente, apresenta-se como indubitável que tal trâmite procedimental está absolutamente arredado da forma sumária do procedimento disciplinar.
Realmente, o art.º 13.º, al. d) do RD institui como pilares fundamentais do procedimento disciplinar os direitos de audiência e de defesa do arguido, relegando a concretização procedimental desses princípios para os termos a estabelecer no próprio Regulamento Disciplinar.
Nessa senda, constituindo o processo sumário uma forma especial do processo disciplinar, o sobredito processo sumário regula-se pelas disposições que lhe são próprias e, na parte nelas não previstas e com elas não incompatíveis, pelas disposições respeitantes ao processo comum, consonantemente com o previsto no art.º 213.º, n.ºs 1, al. b) e 3 do RD.
Ora, a audiência do arguido está claramente prevista e descrita como uma formalidade obrigatória no âmbito do procedimento disciplinar comum, como decorre do estatuído nos art.ºs 236.º a 246.º do RD, subsistindo, até, diversos momentos em que o arguido, antes da emissão da decisão sancionatória, intervém no procedimento disciplinar de que é alvo, como dimana do disposto nos art.ºs 227.º, 230.º e 231.º do mesmo RD.
Todavia, não obstante constituir um princípio essencial, assumido pelo próprio RD, que a aplicação de qualquer sanção disciplinar é sempre precedida da faculdade de exercício do direito de audiência prévia pelo arguido através da instauração do correspondente procedimento disciplinar, a verdade é que o mesmo art.º 214.º do RD exclui expressamente esta garantia no que se refere ao processo sumário.
Efetivamente, em atenção aos elementos sistemáticos e teleológicos que perpassam o RD, não é possível descortinar outra interpretação que não a agora exposta, nem conferir outro sentido coerente à expressão empregue pelo legislador regulamentar, ao cristalizar que “salvo o disposto no presente Regulamento quanto ao processo sumário, a aplicação de qualquer sanção é sempre precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido”.
E mesmo que, porventura, e por apelo aos princípios que regem o procedimento disciplinar comum, fosse nosso intento enxertar no processo disciplinar sumário um momento de audiência do arguido, em que este, caso pretendesse, pudesse exercer o seu direito de defesa previamente à emissão da decisão sancionatória, a verdade é que de imediato se perceciona que tal intento está destinado ao fracasso absoluto. É que, em bom rigor, a própria tramitação do processo sumário, descrita nos art.ºs 257.º a 262.º do RD, não comporta, nem permite acomodar qualquer momento em que o arguido, previamente à edição da decisão sancionatória, possa exercer o seu direito de defesa.
Assente, então, que inexiste audiência do arguido no processo disciplinar sumário, impera apurar se tal omissão é respeitadora do quadro legal infraconstitucional que rege a matéria e, especialmente, se devem ser aplicadas as vinculações constitucionais que derivam do disposto nos art.ºs 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP em diante).
No que tange ao nível legal infraconstitucional, é de assinalar o regime mestre traçado pela Lei n.º 5/2007, de 16 de janeiro- que define as bases das políticas de desenvolvimento da atividade física e do desporto (doravante, LBAFD)-, especialmente o prescrito nos seus art.ºs 3.º, 18.º e 19.º. Com efeito, é assinalado no art.º 3.º o objetivo primacial, entre outros, de concretização, em diversos níveis, do princípio da ética desportiva, mormente através da adoção, por parte do Estado, de medidas tendentes a prevenir e a punir as manifestações antidesportivas, designadamente, a violência, a dopagem, a corrupção, o racismo, a xenofobia e qualquer forma de discriminação. Nesse seguimento, e quanto às infrações à ética desportiva, incluindo a manifestação de violência, é claramente admitida a repressão de natureza disciplinar, exercida através de decisões e deliberações, sujeitas às normas do contencioso administrativo e, por conseguinte, recorríveis judicialmente (cfr. art.º 18.º, n.ºs 1 e 3 do LBAFD). De resto, os poderes regulamentares da Recorrida, incluindo os de natureza disciplinar, possuem natureza pública, consonantemente com o disposto no art.º 19.º, n.ºs 1 e 2 do diploma em análise.
Por seu turno, o Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31 de dezembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 93/2014, de 23 de junho, que estabelece o regime jurídico das federações desportivas, concede às federações desportivas- e, portanto, à Recorrida- determinados poderes de natureza pública, mormente, regulamentares e disciplinares, submetendo o seu exercício às normas de contencioso administrativo (cfr. art.ºs 10.º, 11.º e 12.º).
O regime jurídico das federações desportivas (daqui em diante, apenas RJFD) prevê, no âmbito dos poderes disciplinares, que as federações disponham de regulamentos disciplinares próprios com vista a sancionar a violação das regras de jogo ou da competição, bem como as demais regras desportivas, nomeadamente as relativas à ética desportiva, dentre as quais se integram todas as normas que visem sancionar a violência no âmbito do fenómeno desportivo (cfr. art.º 52.º, n.ºs 1 e 2 do RJFD), sucedendo que, por força do estipulado nos art.ºs 26.º, n.º 2, 27.º, 28.º e 29.º do mesmo RJFD, o raciocínio exposto é igualmente aplicável às ligas profissionais, quando estas existam e sempre que o contrato pelas mesmas celebrado com a respetiva federação desportiva assim o permita.
De acordo com o preceituado no art.º 54.º, n.º 1 do RJFD, o poder disciplinar das federações pode ser exercido diretamente sobre os clubes, dirigentes, praticantes, treinadores, técnicos, árbitros, juízes e, em geral, sobre todos os agentes desportivos que desenvolvam atividade desportiva, sendo que, em sede de regulamentação disciplinar, a levar a cabo através da edição de regulamentos próprios, as federações devem prever os seguintes aspetos (cfr. art.º 53.º): a submissão dos agentes desportivos a deveres gerais e especiais de conduta, especialmente para tutela da ética desportiva; a observância dos princípios da igualdade, irretroatividade e proporcionalidade na aplicação de sanções; a exclusão de penas de irradiação ou de duração ilimitada; a enumeração das circunstâncias agravantes, atenuantes ou extintivas da responsabilidade do infrator; a existência de processo disciplinar para aplicação de sanções quando estejam em causa infrações mais graves ou quando a sanção a aplicar determine a suspensão da atividade por período superior a um mês; a consagração das garantias de defesa do arguido, designadamente exigindo que a acusação seja suficientemente esclarecedora dos factos determinantes do exercício do poder disciplinar e estabelecendo a obrigatoriedade de audiência do arguido nos casos em que seja necessária a instauração de processo disciplinar; e a garantia de recurso para o conselho de justiça quando estejam em causa questões estritamente desportivas.
Ora, concatenando o regime vindo de elencar, descrito no RJFD, com o RD agora em análise, verifica-se que, aparentemente, a Recorrida não extravasou os limites desenhados no sobredito regime no que concerne ao dever de audiência do arguido em sede de processo disciplinar.
Realmente, o art.º 53.º, al. f) do mencionado regime submete a obrigatoriedade de audiência do arguido aos casos em que seja necessária a instauração de processo disciplinar, admitindo-se, portanto e numa interpretação a contrario, que inexistindo processo disciplinar, não há lugar a audiência prévia. Todavia, a verdade é que o RD em exame consagra expressamente o processo sumário como uma das formas de procedimento especial, caracterizando-o, inequivocamente, como um vero procedimento disciplinar, nomeadamente, nos art.ºs 213.º, n.º 1, al. b), 214.º e 257.º e seguintes do RD.
Quer isto significar, por conseguinte, que subsiste um óbvio desalinhamento entre os citados normativos do RJFD e o RD no que concerne ao processo disciplinar sumário, devendo concluir-se que este regulamento desrespeita aquele regime jurídico mestre.
E o aludido desalinhamento é ainda mais gritante quando enquadrado o caso no patamar constitucional.
De facto, constituindo o processo sumário um procedimento disciplinar, impera assentar que tal procedimento assume natureza sancionatória e pública. Desta asserção emerge, de imediato, um apelo à aplicação de determinadas garantias constitucionais, por razões de similitude de essência com o próprio processo penal.
Neste contexto, apresenta-se como imperiosa a convocação de dois preceitos constitucionais, a saber, o art.º 32.º e o art.º 269.º, especialmente, os n.ºs 10 e 3, respetivamente.
O art.º 32.º condensa os mais importantes princípios materiais do processo criminal, assomando como “a constituição processual criminal” (a expressão é empregue na página 515 por J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, in Constituição da República Portuguesa, Anotada, Volume I, artigos 1.º a 107.º, janeiro, 2007, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, pp. 515 a 526), pois que consagra as garantias de defesa do arguido em processo penal.
Dentre as mencionadas garantias da “constituição processual criminal” avultam os direitos de audiência e de defesa consagrados em benefício do arguido, e extensíveis a todos os processos de natureza sancionatória, em conformidade com o prescrito no n.º 10 do art.º 32.º. Realmente, é consabido hodiernamente que é “inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contra-ordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas. A defesa pressupõe a prévia acusação, pois que só há defesa perante uma acusação. A Constituição proíbe absolutamente a aplicação de qualquer tipo de sanção sem que ao arguido seja garantida a possibilidade de se defender. O direito de se defender é por muitos considerado um princípio natural de qualquer tipo de processo, uma exigência fundamental do Estado de Direito material.” (JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, março, 2005, Coimbra Editora, p. 363).
No caso dos processos sancionatórios disciplinares, o legislador constitucional reforçou a essencialidade dos referenciados direitos de audiência e de defesa, estabelecendo expressamente as garantias de audiência e de defesa no caso dos processos disciplinares públicos, nos termos do previsto no art.º 269.º, n.º 3. Como explicam JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, dezembro, 2007, Coimbra Editora, p. 623), “a audiência constitui um dos instrumentos da defesa (…). Sendo ela própria uma garantia do direito de defesa, a audiência é fundamental nesta, merecendo, por isso, menção e proteção autónoma”. Na mesma linha de entendimento situam-se J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, que defendem, a propósito do referido n.º 3 do art.º 269.º, que “o sentido útil da explicitação constitucional do direito de audiência e de defesa é o de se dever considerar a falta de audiência do arguido ou a omissão de formalidades essenciais à defesa como implicando a ofensa do conteúdo essencial do direito fundamental de defesa” (in Constituição da República Portuguesa, Anotada, Volume II, agosto, 2010, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, p. 841).
Nas palavras de JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS (Idem, ibidem), “A audiência constitui um dos instrumentos de defesa, a par de outros, como o de conhecer inteiramente as imputações disciplinares que lhe são feitas, o da assistência e patrocínio por advogado (artigo 20.º), o acesso ao processo (artigo 268.º, n.ºs 1 e 2), o direito de não declarar contra si próprio, o direito de oferecer e/ou requerer meios de prova pertinentes, o de não ter de provar a sua inocência. Sendo ela própria uma garantia do direito de defesa, a audiência é fundamental nesta, merecendo, por isso, menção e proteção autónoma.”
Importa salientar, neste contexto, que o próprio RD agora em análise estabelece a aplicação do estatuto disciplinar aplicável às relações de emprego público como direito subsidiário para efeitos de determinação da responsabilidade disciplinar e da tramitação do procedimento disciplinar, e desde que, em qualquer caso, sejam salvaguardados os princípios elencados no art.º 13.º deste RD (cfr. art.º 16.º, n.ºs 1 e 2 do RD).
Adicionalmente, é de notar que a Jurisprudência do Tribunal Constitucional é absolutamente clara na afirmação da fundamentalidade da garantia da audiência e defesa do arguido em processo disciplinar, decorrendo essa fundamentalidade, entre o mais, do consagrado nos art.ºs 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3 da Constituição, e significando que “é inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção disciplinar sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas” (como declarado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 659/2006, n.º 180/2014, n.º 457/2015 e n.º 338/2018).
Ponderando cuidadosamente o que vem de se expender, é cristalina a conclusão de que o regime do procedimento disciplinar sumário é inconstitucional na medida em que oblitera qualquer possibilidade do arguido conhecer as imputações disciplinares que lhe são dirigidas e sobre as mesmas emitir pronúncia antes do proferimento da decisão disciplinar.
Com efeito, e como se descreveu antecedentemente, nos termos que derivam do estatuído do art.º 214.º do RD, não só está explicitamente afastada a audiência do arguido antes de ser proferida a decisão punitiva, como a própria tramitação do procedimento disciplinar sumário não permite enxertar ou acomodar qualquer ato procedimental concretizador daquela garantia constitucional, como dimana do exame do disposto nos art.ºs 257.º a 262.º do RD. O que implica que o arguido apenas conhece a existência de imputações disciplinares contra si no momento em que é notificado da própria decisão disciplinar, e sem que tenha tido qualquer hipótese de esgrimir uma defesa em momento anterior ao daquela notificação.
Quer tudo isto significar, portanto, no que concerne ao procedimento disciplinar sumário, que a norma plasmada no art.º 214.º do RD, na parte em que suprime a audiência do arguido em momento anterior ao da edição do ato punitivo, é materialmente inconstitucional, por violação dos direitos fundamentais de audiência e de defesa, preceituados nos art.ºs 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa.
Sendo assim, é dever deste Tribunal recusar a aplicação ao caso posto da aludida norma vertida no art.º 214.º do RD, na parte em que exclui e oblitera a audiência do arguido antes da promanação do ato punitivo. (…)
[S]ubsiste uma certa similitude substancial entre o valor reforçado de que beneficiam os autos de notícia e a presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga, prevista esta no art.º 13.º, al. f) do RD. Tal similitude conduz-nos à conclusão de que a presunção de veracidade agora em exame, na medida em que traduz mera prova prima facie, suscetível de ser abalada com a demonstração de factualidade diversa, não encerra em si, automaticamente, qualquer afronta aos princípios da defesa, do contraditório, do processo equitativo, da culpa e da presunção da inocência.
Realça-se, porém, que a conformidade constitucional da estipulação daquela presunção de veracidade impõe, impreterivelmente, que ao arguido seja concedida a possibilidade de poder esgrimir as suas armas defensivas, por forma a contraditar os factos presumidos, ou os factos descritos nos relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga. É que, a não ser assim, tal implicaria assumir que os factos presumidos, ou cuja veracidade se presume, decorrem de uma presunção inilidível, uma vez que tais factos estariam definitivamente fixados a partir da sua consignação nos relatórios de arbitragem e do delegado da Liga, e sem que se considere, sequer, a possibilidade de demonstração de uma realidade diversa (Acórdão n.º 338/2018).
Ora, aqui reside, precisamente, o busílis do caso vertente.
Como se já expendeu, a decisão punitiva em crise foi proferida em sede de procedimento disciplinar sumário, sendo que nesta forma procedimental não há lugar- como explanado antecedentemente- à audiência do arguido em momento prévio à emissão do ato punitivo. Mas mais. O arguido apenas tem conhecimento das imputações disciplinares que sobre si recaem no momento em que é notificado da própria decisão punitiva, não tendo qualquer oportunidade, antes desta ser proferida, de manifestar a sua posição, contraditar factos ou apresentar quaisquer meios de prova.
Esta constatação tem como consequência a conclusão, irremediável, de que os factos constantes dos relatórios de arbitragem e do delegado da Liga, na medida em que não podem ser contraditados antes da produção do ato punitivo, derivam, em bom rigor, de uma presunção inilidível, estando, na realidade, definitivamente fixados com a respetiva inserção nos aludidos relatórios.
Aqui chegados, resta saber, pois, se a presunção de veracidade dos factos contidos nos relatórios de arbitragem e do delegado da Liga, prevista no art.º 13.º, al. f) do RD e quando aplicada em sede de procedimento disciplinar sumário, entra em confronto com os princípios da presunção da inocência e da culpa.
A resposta a esta indagação deve ser, quanto a nós, positiva.
É que, o estabelecimento de uma presunção inilidível de veracidade dos factos relatados, com a inerente fixação dos mesmos como provados, pode, em bom rigor, converter uma presunção de factos numa presunção inilidível de autoria da infração. Deste modo, a presunção dos factos contidos nos relatórios de arbitragem e do delegado da Liga pode impor a responsabilidade do Clube de Futebol, independentemente da sua real participação nos factos e mesmo na ausência de qualquer ligação causal ao comportamento adotado por um espectador, supostamente demonstrativo do incumprimento de um dever por banda do mesmo Clube.
Face a isto, impõe-se concluir que, no domínio do procedimento disciplinar sumário (descrito, essencialmente, nos art.ºs 257.º a 262.º do RD), a presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios de arbitragem e do delegado da Liga, por traduzir uma presunção inilidível de factos, viola o conteúdo mínimo do princípio da culpa (em termos ilustrativos, sobre presunções legais inilidíveis, incluindo de autoria, veja-se o Acórdão n.º 338/2018 do Tribunal Constitucional).
A Recorrente invoca, ainda, que a mencionada presunção de veracidade, inscrita no art.º 13.º, al. f) do RD, viola o princípio da presunção da inocência.
E, em nosso entendimento, a razão continua do lado da Recorrente.
Efetivamente, e em primeiro lugar, importa assentar que o direito do arguido a que seja presumido inocente até ao trânsito em julgado de sentença de condenação, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, estende-se, por força do disposto no n.º 10 do mesmo artigo, aos processos disciplinares (Acórdão n.º 338/2018). Realmente, a Jurisprudência Constitucional tem admitido, em processo disciplinar, o princípio da presunção da inocência do arguido, “como decorrência a um processo justo, não apenas na sua vertente probatória, correspondendo à aplicação do princípio in dúbio pro reo, pelo qual é à Administração que cabe o ónus da prova dos factos que integram a infração, quer ao nível do próprio estatuto ou condição do arguido em termos de tornar ilegítima a imposição de qualquer ónus ou restrição de direitos que, de qualquer modo, representem e se traduzem numa antecipação da condenação” (Acórdão n.º 62/2016).

Ademais, no Acórdão n.º 397/2017 e no Acórdão n.º 675/2016 afirmou-se que o princípio da presunção de inocência “pertence àquela classe de princípios materiais do processo penal que, enquanto constitutivos do Estado de direito democrático, são extensíveis ao direito sancionatório público”. Assim, o estatuto processual do arguido, enformado pela garantia da presunção de inocência, permite, nomeadamente- e para o que agora releva-, que o tratamento do arguido ao longo de todo o processo seja configurado sem perder de vista a possibilidade de verificação da sua inocência, não sendo de admitir, designadamente, que o arguido seja tido como culpado em momento anterior ao da formalização do juízo sancionatório de forma necessariamente fundamentada.
Destarte, o entendimento da norma ora questionada como estabelecendo uma presunção inilidível dos factos responsabilizantes do ilícito disciplinar, não pode deixar de se ter como violadora do princípio da presunção da inocência. “Tal entendimento normativo afronta diretamente e de forma intolerável o princípio da presunção da inocência, já que o que tal norma determina é precisamente uma presunção inabalável de culpabilidade” (Acórdão n.º 338/2018).
Em reforço da asserção vinda de enunciar, cumpre referir que J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (in Constituição da República Portuguesa, Anotada, Volume I, artigos 1.º a 107.º, janeiro, 2007, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, pp. 518 e 519), enunciam a proibição da inversão do ónus da prova em detrimento do arguido e o princípio in dúbio pro reo como duas das dimensões realizantes da presunção da inocência.
Por sua banda, JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, março, 2005, Coimbra Editora, p. 355) realçam, como corolário do princípio da presunção da inocência, também a necessidade de “informação ao acusado, em tempo útil, de todas as provas contra ele reunidas a fim de que possa preparar eficazmente a sua defesa”, desde logo contraditar a prova que poderá servir para o punir.
Outra das dimensões do princípio da presunção da inocência é o princípio do contraditório, que se traduz na estruturação do procedimento em termos de um debate entre a acusação e a defesa, incluindo em sede probatória, devendo, à luz deste princípio, ficar excluída a possibilidade de condenação com base em elementos probatórios que não tenham sido apresentados ao arguido antes da decisão punitiva e relativamente aos quais o arguido não tenha tido a possibilidade de oferecer defesa. Aliás, este princípio entronca com o direito a um processo equitativo, postulando este que ao arguido sejam asseguradas todas as possibilidades de contrariar a acusação e a lealdade do procedimento.
Como melhor explica RUI PATRÍCIO (A Presunção da Inocência no Julgamento em Processo Penal, Alguns Problemas, fevereiro, 2019, Almedina, p. 101), “o princípio do contraditório impõe que toda a prossecução processual deve cumprir-se de modo a fazer ressaltar não só as razões da acusação, mas também as da defesa, implica que ao arguido haja de ser dada a oportunidade de reagir relativamente a quaisquer decisões (…), devendo aquela oportunidade ser efetiva e eficaz; por seu lado, o princípio da igualdade de armas, cabendo naquele mais vasto princípio do contraditório, tem especificamente a ver com as posições e atuações processuais da acusação e da defesa, significando a atribuição à acusação e à defesa de meios jurídicos igualmente eficazes para tornar efetivos os seus direitos.”
Ora, o estabelecimento de uma presunção, inilidível, de veracidade de factos contidos nos relatórios de arbitragem e do delegado da Liga arrasta um evidente desequilíbrio entre as partes no tocante ao estatuto processual de que cada uma beneficia, implicando para o arguido uma posição de maior fragilidade, não só porque passará a incumbir-lhe a demonstração da ocorrência de factos diversos dos presumidos- ou pelo menos, a criação de dúvida-, mas principalmente, porque o arguido, no procedimento disciplinar sumário, não tem, sequer, a oportunidade de contraditar os factos que gozam da aludida presunção de veracidade. O que significa que, a presunção de veracidade contida no art.º 13.º, al. f) do RD, quando aplicada ao procedimento disciplinar sumário, é também violadora dos princípios do contraditório e do processo equitativo, inscritos no art.º 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.
Quer tudo isto significar, portanto, que a norma plasmada no art.º 13.º, al. f) do RD, na medida em que contém uma presunção inilidível da veracidade dos factos constantes dos relatórios dos árbitros e do delegado da Liga, é materialmente inconstitucional quando aplicada ao procedimento disciplinar sumário, por violação dos princípios da culpa e da presunção da inocência, preceituados no art.ºs 32.º, n.ºs 10 e 2 da Constituição da República Portuguesa, bem como por violação dos direitos ao contraditório e ao processo equitativo, previstos no art.º 20.º, n.º 4 da mesma Lei Fundamental. Pelo que, é dever deste Tribunal recusar a aplicação ao caso posto da norma vertida no art.º 13.º, al. f) do RD, por a mesma padecer de inconstitucionalidade material quando aplicada ao procedimento disciplinar sumário. (…)
Quanto a esta matéria impõe-se, ainda, consignar uma última nota relevante.
Tal nota respeita à circunstância da Recorrente, após a emissão da decisão punitiva em 21/09/2017, ter à sua disposição a possibilidade- e o direito- de impugnar administrativamente tal decisão, bem como de a impugnar judicialmente. O que, de resto, sucedeu.
Com efeito, antevê-se a possibilidade de tal circunstancialismo ser usado à guisa de contra-argumento das posições que vimos elevando como juridicamente corretas. Todavia, estas vias de reação contra a decisão punitiva não constituem mecanismos aptos ou adequados à realização dos direitos de defesa da Recorrente, nem apagam a violação dos princípios da culpa e da presunção da inocência, não logrando, por conseguinte, transmutar o ato punitivo nulo editado em 21/09/2017- e confirmado em 10/10/2017- num ato legal e constitucionalmente válido, porque respeitador das sobreditas garantias constitucionais.
É que a utilização dos mecanismos de impugnação judicial não se inscreve na concretização das garantias de defesa e do respeito pelos princípios da culpa e da presunção de inocência, plasmados nos art.ºs 32.º, n.ºs 2 e 10 e 269.º, n.º 3 da Constituição, mas antes na realização do direito de acesso ao Direito e aos Tribunais, consagrado nos art.ºs 20.º, n.º 1 e 268.º, n.º 4 da mesma Lei.
Pelo que, a circunstância da Recorrente ter impugnado judicialmente a deliberação emitida em sede de recurso hierárquico impróprio não releva para efeitos de aferição da conformidade constitucional das normas vertidas nos art.ºs 214.º e 13.º, al. f) do RD, na sua aplicação ao procedimento disciplinar sumário, não obstaculizando minimamente ao juízo de inconstitucionalidade material que expendemos supra.
No que tange à circunstância da Recorrente, previamente à impugnação judicial, ter reagido administrativamente através de recurso hierárquico impróprio, cumpre dizer que tal reação não vivifica, nem corresponde ao exercício do direito de audiência por parte do arguido, nos moldes em que tal garantia está cristalizada nos art.º 32.º, n.º 2 e 10 e 269, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa.
Como ensinam MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES E J. PACHECO DE AMORIM (Código do Procedimento Administrativo, Comentado, 2.ª edição, maio, 2001, Almedina, pp.743 a 747), as impugnações administrativas têm por objeto a revogação, a anulação e a modificação, ou substituição, de atos administrativos anteriores, e assumem “uma importante função de garantia da posição jurídico-administrativa (…) face a um acto administrativo, impondo à Administração o dever de questionar o seu próprio acto e de reavaliar novamente a situação concreta (ou a decisão que sobre ela versou).”
Assim, as impugnações administrativas- dentre as quais se contabiliza o recurso hierárquico impróprio- constituem procedimentos de segundo grau, conducentes à prolação atos de segundo grau, por respeitarem a uma decisão primária ou de primeiro grau e “através da qual se definiram já os efeitos administrativos de (ou para) uma determinada situação concreta” (idem, Ibidem). Por conseguinte, nos procedimentos de segundo grau, “a decisão proferida respeita sempre ao modo como essa situação já foi jurídico-administrativamente conformada por decisão anterior” (idem, Ibidem).
Concomitantemente, é de salientar que, versando os procedimentos de segundo grau sobre um anterior ato de conformação jurídico-administrativa duma situação concreta, os factos e interesses envolvidos nessa situação foram já analisados e fixados instrutoriamente num procedimento de 1.º grau, valendo, ou podendo valer, toda a aquisição probatória para o procedimento de segundo grau. Aliás, a dispensa de audiência prévia é característica dos procedimentos de segundo grau (neste sentido, ELIANA DE ALMEIDA PINTO, ISABEL SILVA e JORGE COSTA, Código de Procedimento Administrativo, Comentado, maio, 2018, Quid Juris, p. 448).
Finalmente, é de assinalar que ELIANA DE ALMEIDA PINTO, ISABEL SILVA e JORGE COSTA (idem, ibidem) enquadram constitucionalmente as impugnações administrativas no art.º 52.º, n.º 1, ou seja, no direito de petição, e não nas garantias de audiência e defesa do arguido, prescritas nos art.ºs 32.º, n.ºs 2 e 10 e 269.º, n.º 3 da Constituição (muito embora tal inserção não seja consensual; em sentido diverso, MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES E J. PACHECO DE AMORIM (idem, ibidem)).
Quer tanto significar, que as impugnações administrativas, na medida em que constituem procedimentos de segundo grau, que versam sobre atos administrativos anteriores, não são aptas a concretizar as garantias de audiência e defesa do arguido, bem como as inerentes à presunção da inocência, visto que o ato de segundo grau- emitido a título de decisão final nas impugnações administrativas- labora já sobre uma realidade pré-compreendida, dado o facto da situação concreta a que respeita o ato estar já juridicamente fixada. Deste modo, não só o arguido continua a não ter oportunidade de, efetivamente, influenciar a modelação da compreensão inicial da situação fáctico-jurídica, como, além disso, enfrenta um manancial de factos já fixados e de provas já valoradas e, ainda, de uma imputação já definitiva.

Em conformidade com o exposto, verifica-se que a norma constante do artigo 214.º do RDLPFP é materialmente inconstitucional, na parte em que suprime a audiência do arguido em momento anterior ao da aplicação da sanção disciplinar no âmbito de procedimento disciplinar sumário, por violação dos direitos fundamentais de audiência e de defesa, previstos nos artigos 32.º, n.º 10, e 269.º, n.º 3, da CRP.
Outrossim, a aplicação do artigo 13.º, al. f), do RDLPFP, no âmbito do procedimento disciplinar sumário, viola os princípios da culpa, da presunção da inocência, do contraditório e do direito a um processo equitativo, previstos nos artigos 32.º, n.º 2 e 20.º, n.º 4 da CRP.
Como tal, é de recusar a aplicação das referidas normas regulamentares, donde decorre a nulidade do ato punitivo proferido em 20/08/2019 e mantido pela deliberação de 17/09/2019 do Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da FPF.
Com a procedência da presente questão, queda prejudicado o conhecimento das demais questões invocadas quanto à invalidade do referido ato.


b) do valor da causa

Nesta sede, sustenta a recorrente que a modificação do valor da causa promovida pelo Tribunal a quo para € 30.000,01, ao invés do total da multa por que foi condenada, foi feita cm violação do previsto no art. 33.°, b) do CPTA, pelo que se impõe repor a legalidade, fixando-se o valor da ação no montante de € 20.159,00 daí se extraindo as devidas consequências.
Quanto a este ponto, é por demais evidente o erro do acórdão recorrido.
Estamos no âmbito de um processo disciplinar, no âmbito do qual se concluiu pela aplicação de duas multas à aqui recorrente.
Prevê o artigo 77.º, n.º 1, da Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro (Lei do Tribunal Arbitral do Desporto - TAD), que “[o] valor da causa é determinado nos termos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.”
E de acordo com o invocado artigo 33.º, al. b), do CPTA, quando esteja em causa a aplicação de sanções de conteúdo pecuniário, como aqui à evidência ocorre, o valor da causa é determinado pelo montante da sanção aplicada.
Como tal, o valor da causa corresponde a € 20.159,00 (vinte mil, cento e cinquenta e nove euros).


c) das custas

Mais invoca a recorrente que as custas fixadas pelo TAD comprometem de forma séria e evidente o princípio da tutela jurisdicional efetiva e não são compatíveis com o direito fundamental de acesso à justiça. Sustentando ainda que o artigo 2.º, n.os 1, 4 e 5 da Portaria n.º 301/2015, conjugado com a tabela constante do Anexo I (2.ª linha) dessa mesma Portaria, em ações de arbitragem necessária com o valor de € 20.159,00, é inconstitucional por violação dos princípios da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP) e da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º, n.º 1, da CRP).
Vejamos se assim é.
A Portaria n.º 301/2015, prevê no respetivo artigo 2.º o seguinte:
“1 - A taxa de arbitragem necessária corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado e é fixada pelo presidente do Tribunal Arbitral do Desporto em função do valor da causa, nos termos do anexo I à presente portaria que dela faz parte integrante. (…)
4 - São encargos do processo arbitral todas as despesas resultantes da condução do mesmo, designadamente os honorários dos árbitros e as despesas incorridas com a produção da prova, bem como as demais despesas ordenadas pelos árbitros.
5 - A fixação do montante das custas finais do processo arbitral e a eventual repartição pelas partes é efetuada na decisão arbitral que vier a ser proferida pelo tribunal arbitral, em função do valor da causa, nos termos do anexo I.”
O Tribunal Constitucional pronunciou-se recentemente quanto à presente questão, no acórdão n.º 543/2019, proferido em 16/10/2019, decidindo não julgar inconstitucionais as normas aludidas da Portaria n.º 301/2015, de 22 de setembro.
Aí se entendeu que “não se deve ignorar a especificidade da justiça arbitral (necessária) face à justiça estadual, nem a especificidade do tipo de litígios integrados na competência necessária do TAD face à generalidade dos demais litígios carecidos de resolução jurisdicional, sendo necessariamente diferentes as variáveis de ponderação que o legislador deve atender na fixação do valor das custas de processos que genericamente envolvem federações desportivas, ligas profissionais e clubes desportivos, e são decididos por uma entidade que, tendo natureza jurisdicional, não é pública, nem financiada pelo Estado, e tem a seu cargo custos próprios permanentes que decorrem da sua específica estrutura arbitral de funcionamento.
Neste enquadramento, não se afigura constitucionalmente censurável a fixação de um valor mínimo de custas processuais que reflita a maior capacidade económica presumida dos potenciais litigantes e permita cobrir os custos específicos mais elevados do serviço de justiça prestado pelos tribunais arbitrais, como sucede com o valor concretamente fixado na primeira linha da tabela anexa à Portaria n.º 301/2015 (€ 3.325,00).
Os eventuais excessos que o sistema de custas processuais legalmente estabelecido possa comportar, por força da amplitude do primeiro escalão tributário, devem ser sinalizados caso a caso em função do concreto valor processual da causa e do concreto valor das custas processuais cobradas. Esta tem sido, aliás, a perspetiva de análise que o Tribunal Constitucional tem adotado no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade de normas que fixam o montante das custas processuais exclusivamente em função do valor da causa, sindicando à luz do princípio constitucional da proporcionalidade, não o critério em si, mas o resultado tributário concreto a que a sua aplicação conduziu no processo que deu origem ao recurso de constitucionalidade.
Sem prejuízo da pronúncia no sentido da não violação dos princípios da proporcionalidade, do acesso à justiça e da tutela jurisdicional efetiva, tal decisão não fecha a porta à possibilidade das citadas regras, que fixam o montante das custas no âmbito nos processos do TAD, poderem dar azo a um valor de custas processuais muitíssimo superior ao valor da causa, de forma patentemente desproporcional e injusta.
Sucede que no caso dos autos tal não se verifica, pois o valor das custas processuais terá de ser recalculado e será, à luz do citado diploma legal, muito inferior ao valor do processo.
Pelo que, no caso vertente, não se mostram violados os princípios constitucionais invocados, sendo certo que o valor das custas terá de ser revisto.
Improcede, pois, a invocada violação dos princípios da proporcionalidade e da tutela jurisdicional efetiva.
Sem reflexos, contudo, no segmento decisório, atenta a necessária reformulação do valor das custas no TAD, em função da modificação do valor da causa.

Em suma, será de revogar o acórdão recorrido e declarar a nulidade do ato punitivo proferido em 20/08/2019 e mantido pela deliberação de 17/09/2019 do Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da FPF.
*

III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desembargadores deste Tribunal Central Administrativo Sul em:
§ conceder provimento ao recurso e revogar o acórdão do TAD na parte em que condenou a recorrente pela prática de infrações p. e p. pelos artigos 183.º, n.º 2, 186.º, n.º 2, 187.º, n.º 1, als. a) e b), e 127.º, n.º 1, do RDLPFP, em multas no valor de € 20.159,00 (vinte mil, cento e cinquenta e nove euros);
§ declarar a nulidade do ato punitivo proferido em 20/08/2019 e mantido pela deliberação de 17/09/2019 do Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da FPF;
§ fixar o valor da causa no montante de € 20.159,00 (vinte mil, cento e cinquenta e nove euros).
Custas a cargo da recorrida.

Lisboa, 30 de abril de 2020

(Pedro Nuno Figueiredo - relator)

(Ana Cristina Lameira)

(Cristina dos Santos)