Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:115/20.9BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:09/10/2020
Relator:DORA LUCAS NETO
Descritores:ASILO;
RETOMA A CARGO;
ITÁLIA.
Sumário:i) A decisão de devolução do Recorrente a um país terceiro, não pode ser tomada sem que o Estado Membro decisor tenha conhecimento – conhecimento este que não tem outra forma de se revelar que não seja no procedimento, pois o iter cognoscitivo da Administração, neste caso, é reduzido a escrito, está documentado, por força dos art.s 16.º e 17.º da Lei do Asilo - das condições presentes no procedimento de asilo e no acolhimento no Estado-Membro considerado responsável, in casu, Itália, para que possa verificar-se, no caso concreto, se existem motivos atuais que determinem a impossibilidade de tal transferência.
ii) No caso em apreço vem invocada uma situação de privação sofrida em território italiano, bem como uma situação de especial vulnerabilidade, pelo que sempre se justificaria uma avaliação individual e detalhada do caso por parte das autoridades nacionais.
Votação:Com Declaração de Voto
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

S....., interpôs recurso da sentença do TAC de Lisboa de 24.04.2020, que julgou a ação executiva em matéria de asilo por si intentada improcedente, absolvendo o Executado, ora Recorrido, Ministério da Administração Interna, dos pedidos.

As alegações de recurso que apresentou culminam com as seguintes conclusões:

«(…) 1.

Havia sido impugnado o despacho da executada, que julgava inadmissível o pedido de proteção internacional apresentado pelo exequente, de acordo com o artigo 37° n.° 2, e alínea a) n.° 1 do artigo 19-A da Lei 26/2014 de 05 de Maio, com o fundamento que o Estado responsável para a respetiva análise seria o Estado italiano e não o português.

2.

Baseava-se tal decisão na informação do GAR nos termos da qual, após este ter requerido em 29.07.2019 um de retoma às autoridades italianas, e tendo sido detectado um hit positivo no sistema EURODAC, “Case ID IT1CS00ZWR “, Portugal informou as autoridades italianas em 13.08.2019 que ao abrigo do artigo 25° n.° 1 do Regulamento (EU) 604/2013 do PE e do Conselho, tinha duas semanas para se pronunciar sobre o pedido. Não tendo as autoridades italianas pronunciado dentro do prazo estabelecido, foi tomada pela executada a falta de uma decisão como equivalendo a uma aceitação do pedido, e foi proferido despacho em 15.08.2019 no sentido de considerar inadmissível o pedido.

3.

Ora, tal fundamentação de facto não esclarece se o SEF não informou as autoridades italianas a 13.08.2019, ao contrário do que afirma, tendo-o feito anteriormente, ou, tendo procedido a tal notificação em tal data, obviamente não haviam decorrido 15 dias à data do despacho supra referido, dado que a decisão é igualmente de 15.08.2019.

4.

Por outro lado, mesmo que se aceitasse que a notificação supra referida ocorreu mais de quinze dias anteriormente à prolação do despacho recorrido, mal esteve a decisão do SEF em presumir a aceitação pelo Estado italiano do pedido de retoma, pela ausência de resposta à notificação em causa.

5.

É que o SEF não podia ignorar a situação económica e social em que se encontrava ao tempo o estado italiano, designadamente quanto as deficiências sistémicas nas medidas de acolhimento dos requerentes de asilo ou de protecção internacional, sendo que o contexto de pressão migratória, como aquele com que desde 2015, os estados membros se confrontavam, não pode resultar numa diminuição das garantias previstas nos vários normativos que vinculam os estados membros da união europeia, o que acontecia ao tempo com os requerentes de asilo e de protecção internacional em Itália.

6.

O facto de o Estado italiano não se ter eventualmente pronunciado no espaço de duas semanas não podia, em concreto, significar que Itália tomara todas as diligencias e que o seu silencio equivaleria a uma aceitação tácita, mas sim que o mesmo estaria, por razões evidentes e conhecidas de toda a ordem jurídica comunitária, sobrelotado de pedidos; a forte pressão migratória, pode em determinadas circunstâncias, exigir adaptações à tramitação normal dos procedimentos que podem passar por uma repartição de esforços entre todos os Estados Membros.

7.

No caso, o Estado italiano não tinha capacidade sistémica, organizacional, social e económica para receber tantos requerimentos de apoio internacional, o que levanta a questão do destino dos requerentes, que nunca poderá ser o de voltar ao país de origem, no caso Costa do Marfim, porquanto tal decisão consubstanciaria uma violação do princípio de não expulsão, previsto no artigo 33° n.° 1 1a parte da Convenção de Genebra de 1951.

8.

Ora, no caso vertente, acompanhando a fundamentação de decisão do processo 1353/18.0BELSB, em tudo similar ao presente, “incumbia à Entidade Demandada, previamente à decisão, instruir o procedimento com informação fidedigna, actualizada, sobre o funcionamento do procedimento de asilo italiano e as condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado Membro, recorrendo a fontes credíveis e consolidadas como o ACNUR e a Amnistia Internacional, de molde a verificar se, no caso concreto, se verificam ou não os motivos determinantes da impossibilidade da transferência, referidos no segundo paragrafo do n.° 2 do artigo 3° do Regulamento (EU) 604/2013”. Daí que, nada tendo a Ré referido na sua decisão ou fundamentação sobre o funcionamento do procedimento de asilo italiano e das condições de acolhimento dos requerentes de protecção internacional, a decisão impugnada incorre em deficit de instrução.

9.

Daí que se tenha pugnado pela nulidade da decisão recorrida por deficiência na instrução, ou insuficiência da respectiva matéria de facto, o que o Tribunal a quo, a nosso ver erradamente, desatendeu.

10.

Por outro lado, o ora recorrente, após a decisão supra referida, interpôs uma acção administrativa especial, no âmbito da qual o Tribunal Administrativo do Circulo de Lisboa anulou o despacho em causa por preterição de formalidades essenciais a que se refere o artigo 17° da Lei 27/2008.

11.

Ora, após tal sentença foi proferida nova decisão, em 20.12.2019, decisão essa que não só não cumpre a sentença em causa, como ela própria é ilícita.

12.

Em primeiro lugar, conforme determina o artigo 16.º da Lei 27/2008, o requerente deve ser notificado de um relatório do qual constam as informações essenciais relativas ao pedido, para que este se possa pronunciar no prazo de cinco dias.

13.

Como é patente da nova decisão, não constam do relatório em causa que tenham sido averiguadas as condições concretas em que o pedido do requerente foi alvo de apreciação em Itália.

14.

E tal, como se disse em supra, tal determina deficiência na instrução, ou insuficiência da respectiva matéria de facto, e, em termos substanciais, violação do princípio da audiência prévia.

15.

Por outro lado, o recorrente não foi notificado pessoalmente da decisão recorrida, sendo que deveria sê-lo, dado que o signatário é mero patrono deste, e não resulta por isso constituído nos autos.

16.

Em terceiro lugar, mercê de todos estes factos, encontrava-se largamente excedido o prazo previsto no artigo 20 n.° 1 da Lei 27/2008, de trinta dias, pelo que nos termos do n.° 2 do mesmo artigo, o pedido deveria ter-se por admitido, pelo que resulta ainda por esta razão ilícita a decisão da executada, e, por sua vez, a decisão recorrida. (…).»

O Recorrido, notificado para o efeito, não contra-alegou.

Neste tribunal, o DMMP apresentou pronúncia no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Com dispensa dos vistos legais, atento o seu carácter urgente do processo, mas com disponibilização prévia do texto do acórdão, vem o mesmo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.

I. 1. Questões a apreciar e decidir

A sentença recorrida julgou improcedente a pretensão do Exequente., ora Recorrente, de anulação da decisão da Diretora Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras de 20.12.2019, que julgou inadmissível o pedido de proteção internacional por si formulado, determinando a sua transferência para Itália, indeferindo também os seus pedidos de que fosse reconhecido que o processo de proteção internacional se encontrava tacitamente deferido, e de condenação da Entidade Executada a proferir despacho de admissão do mesmo, seguindo-se os seus ulteriores termos, ao abrigo do art. 176.° n.° 3 do CPTA.

I.2. O objeto do recurso é delimitado, em princípio, pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso ainda não decididas com trânsito em julgado – cfr. art.s 635.º, 639.º e 608.º, n.º 2, 2ª parte, todos do CPC, ex vi art. 1.º e art. 140.º, n.º 3, ambos do CPTA. E dizemos em princípio, porque o art. 636.º do CPC, permite a ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, situação que não se coloca nos autos.

Cumpre assim conhecer dos seguintes erros de julgamento imputados à sentença recorrida, ao ter considerado que:

1. o ato impugnado não é de anular por deficit de instrução.

Esta questão será apreciada tendo também em conta a circunstância de o pedido de asilo formulado em Itália pelo Recorrente, que está subjacente à decisão de retoma a cargo para aquele país, ter sido já decido, tendo sido rejeitado (cfr. matéria de facto infra).

2. o ato impugnado cumpre a sentença exequenda;

3. a falta de notificação do ato impugnado ao Requerente, ora Recorrente, não determina a sua anulação;

4. o ato impugnado não padece de erro sobre os pressupostos de facto e de falta de fundamentação, admitindo que haviam decorrido os 15 dias necessários à admissão tácita do pedido de retoma a cargo por parte das autoridades italianas aquando foi proferido.

II. Fundamentação

II.1. De facto

Dá-se aqui por reproduzida a matéria de facto considerada provada na sentença recorrida, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 663.º, n.º 6, do CPC, aditando-se apenas o seguinte facto, ao abrigo do art. 662.º, n.º 1, do CPC, ambos ex vi art. 140.º do CPTA:

19) O pedido de asilo apresentado pelo Recorrente em Itália – mencionado em sede de declarações - cfr. facto n.º 13 supra - foi rejeitado (cfr. fls. 94 e 95 do PA junto aos autos, a fls. 69 e ss., ref. SITAF).

II.2. De direito

1. Do erro de julgamento que é imputado à sentença recorrida ao ter considerado que o ato impugnado não é de anular por deficit de instrução.

Como se disse supra, esta questão será apreciada tendo em conta a circunstância de o pedido de asilo formulado em Itália pelo Recorrente e que está subjacente à decisão de retoma a cargo para aquele país, ter sido já decido, tendo sido rejeitado (cfr. factos n.º 13 e 19 supra).

Vejamos.

Resulta dos autos – cfr. factos n.ºs 13 e 19 - que as autoridades italianas recusaram o pedido de proteção internacional apresentado pelo Recorrente.

Prevê o art. 18.º, n.º 1, alínea d), do Regulamento (UE) n° 604/2013 (doravante Regulamento de Dublin III), sob a epígrafe “Obrigações do Estado-Membro responsável”, que o Estado-Membro responsável por força do presente regulamento é obrigado a (n.º 1) retomar a cargo, nas condições previstas nos artigos 23.°, 24.°, 25.° e 29.°, o nacional de um país terceiro ou o apátrida cujo pedido tenha sido indeferido e que tenha apresentado um pedido noutro Estado-Membro (alínea d).

Assim como, logo no n.° 1 do art. 3.° do Regulamento de DublinIII se dispõe que «(...) O pedido de asilo é analisado por um único Estado-membro (…).»

Assim, imperioso se torna concluir que, de uma interpretação conjugada das citadas disposições do Regulamento de Dublin III, e face aos factos n.º 13 e 19 da matéria de facto, Itália será o Estado Membro responsável pela apreciação de um pedido de asilo do Requerente, ora Recorrente, desde logo, porque já decidiu um pedido anterior.

Perante o que, tendo o Recorrido dado início ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de asilo, que culminou com o apuramento de que essa responsabilidade pertencia a Itália (cfr. art. 18.°, n.° 1, alínea d), do Regulamento de Dublin III e art. 37.° n° 1 da Lei do Asilo), e perante a circunstância de um pedido anterior já ter sido decidido pela autoridades italianas, poderia, numa primeira linha de análise, ser proferido um ato de inadmissibilidade de apreciação do pedido de proteção formulado e determinada a transferência do Recorrente, então Requerente, para Itália, desde logo, porque com a primeira decisão do pedido de asilo se esgota a aplicação do Regulamento de DublinIII, porquanto este visa primacialmente estabelecer «os critérios e mecanismos para a determinação do Estado-Membro responsável pela análise dos pedidos de proteção internacional apresentados num dos Estados-Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida.» (art. 1.º).

E isto porque, de facto, uma das regras basilares do Sistema Europeu Comum de Asilo (SECA), na parte que se prende com a regulamentação da determinação do Estado Responsável pela análise dos pedidos de proteção internacional, é a de que seja apenas um Estado Membro a decidir – cfr. art. 3.º, n.º 1, e art. 18.º, do Regulamento de Dublin III.

Porém, tal conclusão não significa que, fora do âmbito de aplicação do Regulamento de Dublin III, o Estado Português se possa eximir a uma apreciação das situações que se lhe apresentam, também, à luz do disposto no art. 33.º da Lei do Asilo, que admite a apresentação de pedidos de proteção internacional subsequentes.

Vejamos em que termos.

O art. 33.º da Lei do Asilo, sob a epígrafe “Apresentação de um pedido subsequente”, no seu n.º 1, dispõe que «[i] O requerente ao qual tenha sido negado o direito de proteção internacional [ii] pode, sem prejuízo do decurso dos prazos previstos para a respetiva impugnação jurisdicional, apresentar um pedido subsequente, [iii] sempre que disponha de novos elementos de prova que lhe permitam beneficiar daquele direito ou [iv] quando entenda que cessaram os motivos que fundamentaram a decisão de inadmissibilidade ou de recusa do pedido de proteção internacional

Não obstante, não só o Requerente, ora Recorrente, não formula nenhum pedido de proteção internacional subsequente, nos termos e para os efeitos do citado art. 33.º, pois não invocou novos elementos de prova que lhe permitam beneficiar daquele direito [de asilo ou de proteção subsidiária] – mantendo, aparentemente, a mesma argumentação – de que fugiu da Gâmbia por ter medo de ser morto por familiares - dirigindo a sua argumentação para a enunciação de deveres e direitos genéricos sobre o direito de asilo e da sua não transferência para Itália, chamando a atenção para as condições que alegou verificarem-se naquele país no que se prende com o acolhimento dos requerentes de proteção humanitária. Nem alegou que tenham cessado os motivos que fundamentaram a decisão de inadmissibilidade - tendo-se resultado provado, aliás, o contrário, pois o seu pedido já foi decidido pelas autoridades italianas - ou de recusa do pedido de proteção internacional – cfr. se enunciou supra -, pelo que não resulta nada dos autos que permita dar por verificados os seus pressupostos.

Importa, porém, não perder de vista também a pertinência do princípio do non refoulement em matéria de asilo, que, aliás, o Recorrente invoca, dada a inquestionável relevância do mesmo para o Sistema Europeu Comum de Asilo (SECA), conforme resulta da jurisprudência do TEDH, mais especificamente, nos acórdãos de 21.01.2011, M.S.S. vs Bélgica e Grécia, Queixa n.º 30696/09, e de 04.11.2014, Tarakhel vs Suíça, Queixa n.º 29217/12.

Este princípio, na medida em que visa impedir que alguém possa ser deportado para seu país de origem – correndo risco de vida ou ameaças à sua integridade física -, a menos que constitua um perigo à segurança do país ou uma séria ameaça à comunidade nacional - cfr. art.s 33.º, n.º 1 e 2 da Convenção de Genebra -, não nos pode deixar tranquilos com o resultado direto e consequente da decisão de retoma a cargo do Recorrente para Itália, e que o mesmo se veja obrigado a permanecer ali em campos para refugiados, por tempo indeterminado, até que seja possível executar a decisão de transferência para o seu país de origem.

Patrícia Cabral, referindo-se aos supra citados arestos do TEDH, é particularmente clara na asserção de que «(…) No primeiro, o TEDH construiu o princípio segundo o qual perante a existência de falhas sistémicas que apresentem um risco de violação do artigo 3.º no Estado que seria responsável pela análise de um pedido de asilo, o Estado-Membro onde o requerente se encontra fica impedido de o transferir para esse país. (…) Por fim, no julgamento Tarakhel o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem veio reforçar que esta proteção não se limita a situações de falhas sistémicas, sendo refutada a presunção de cumprimento do artigo 3.º da CEDH sempre que existam razões sérias para crer que a pessoa enfrentaria um risco de tratamento contrário a esta mesma norma.

Os Estados-Membros encontram-se efetivamente adstritos ao nível de proteção mais elevado concedido por decisões como Tarakhel e M.S.S., incorrendo em responsabilidade internacional sempre que tomarem uma posição restritiva que reduza os direitos fundamentais do requerente.

Por parte dos tribunais nacionais, estes deverão sempre optar pela mais ampla proteção conferida pelos instrumentos supranacionais, como principais responsáveis pela aplicação do direito da União e sob pena de violar as suas obrigações internacionais, sujeitando-se aos mecanismos de responsabilidade implementados.» (sublinhados nossos).

Face a todo o exposto, no caso em apreço, consideramos, pois, que existindo já uma decisão tomada por um Estado Membro e tendo sido esta de indeferimento, a retoma a cargo pelo Estado Membro responsável – in casu, Itália – cfr. art. 18.º, n.º 1, alínea d), do Regulamento de Dublin III -, não deixa de poder ser evitada, não por via da cláusula de salvaguarda prevista no 2§ do mesmo art. 3.º, que é aqui inaplicável, dado já existir uma decisão tomada por um Estado Membro, mas por via da aplicação direta do art. 33.º, nº 1 e 2, da Convenção de Genebra e do princípio de non refoulement, também plasmado no art. 47.º da Lei do Asilo, com o seu âmbito assinalado no art. 2.º, n.º 1, alínea aa)(1)., não só face ao consequente retorno e antecipável permanência do Recorrente em Itália – país que, considerando, apenas o critério transfronteiriço, de forte pressão migratória e alguma conjuntura política menos favorável, não pode garantir as condições mínimas em sede de acolhimento dos requerentes de proteção internacional, pelo menos não da mesma forma que outros países, designadamente, Portugal, o podem fazer, dada a menor pressão migratória.

A propósito, o Conselho Suíço para os Refugiados (Swiss Refugee Council - OSAR), num relatório recente (01.2020) - “Italy: Updated Report on the Reception System with a Focus on the Situation for Dublin Returnees”- (2), analisou a situação dos requerentes de asilo e beneficiários de proteção internacional na Itália. Este relatório faz parte de um projeto mais amplo de monitorização do sistema italiano de asilo, com um foco particular nas dificuldades enfrentadas pelas pessoas transferidas sob o Regulamento Dublin III. Ali se assinalou que, dada a sua posição geográfica, a Itália é o principal destino das transferências da Suíça nos termos do regulamento de Dublin, recebendo 35% de todas as transferências, alertando para a situação precária dos retornados de Dublin, incluindo pessoas vulneráveis, nos centros de acolhimento de primeira linha, dizendo que a maioria desses centros foi originalmente estabelecida como centros de emergência (CAS) e a qualidade dos seus serviços se deteriorou significativamente. Mais alerta para o facto de não existir um procedimento padronizado a nível nacional os retornados de Dublin, por forma a que estes possam voltar a entrar no sistema “normal” de acolhimento. É referido que estas pessoas enfrentam, frequentemente, muitas dificuldades burocráticas para ter acesso aos procedimentos legais e que, muitas vezes, ficam numa situação de sem abrigo.

O Conselho Suíço para os Refugiados recomenda, pois, aos Estados Membros, que não transfiram pessoas vulneráveis para a Itália, sinalizado que, em qualquer outro caso, as autoridades responsáveis devem realizar uma avaliação individual detalhada, inclusive solicitando às autoridades italianas informações precisas sobre a instalação de receção alocada à pessoa.

E este aspeto assume, na verdade, particular importância porque, também a AIDA - Asylum Information Database(3)- num relatório de abril de 2019(4), alerta para a situação degradante de vários centros de acolhimento em Itália, como Enea, Casotto e Roggiano Gravina, Friuli-Venezia Giulia, entre outros.

Pelo que, de uma leitura conjugada da legislação aplicável ao caso em apreço, outra interpretação não pode resultar que não seja a de que a decisão de devolução do Recorrente a um país terceiro, não pode ser tomada sem que o Estado Membro decisor tenha conhecimento – conhecimento este que não tem outra forma de se revelar que não seja no procedimento, pois o iter cognoscitivo da Administração, neste caso, é reduzido a escrito, está documentado, por força dos art.s 16.º e 17.º da Lei do Asilo - das condições presentes no procedimento de asilo e no acolhimento no Estado-Membro considerado responsável, in casu, Itália, para que possa verificar-se, no caso concreto, se existem motivos atuais que determinem a impossibilidade de tal transferência, e isto porque:

Não só a presunção de que os Estados Membros respeitam os direitos fundamentais, baseada no princípio da confiança mútua, pode e deve ser ilidida com base em prova do domínio público(5), aplicando este princípio em concordância prática com o princípio da eficiência. Desde logo porque, atendendo à realidade de alguns países – muito em particular Grécia e Itália, considerando, apenas o critério transfronteiriço e de forte pressão migratória – imperioso se torna admitir exceções ao princípio da confiança mútua, por forma a aliviar estes países em relação a uma resposta que lhes é exigida, mas que se revela, na prática, inexigível, possibilitando que a resposta comum europeia seja mais eficiente, se distribuída de outra forma, em aplicação do princípio da solidariedade – art. 2.º do TUE - entre os Estados da União Europeia.

Mas também, e face a todo o exposto, por se concordar inteiramente com Evelien Brouwer(6), que refere existir uma inversão do ónus da prova para as autoridades dos Estados Membros, na medida em que o Sistema Europeu Comum de Asilo (SECA) visa ainda a concretização plena da Convenção de Genebra(7), da qual o Estado Português é signatário, e a garantia de que ninguém será “devolvido” para um lugar onde possa vir a estar em risco de vida, de saúde(8) ou de perseguição.

Acresce que, no caso em apreço, o Requerente, ora Recorrente, em sede de declarações, alertou, quando confrontado com o possível regresso a Itália, que “(…) tenho problemas de tonturas que quase caio na rua e não me fizeram nada. Por isso decidi sair e vir tentar Portugal. Sempre pensei vir a Portugal. Agora que aqui estou, : vejo que estou a ser bem tratado (…)“, o que revela algum abandono a que o mesmo foi votado em Itália, por contraponto com a forma como sente ser bem tratado aqui em Portugal, e justifica a referida necessidade de diligenciar junto das autoridades italianas sobre quais as condições de acolhimento que este vai ter quando regressar a Itália – para onde vai e quais as condições daquele concreto campo de refugiados -, pois, não sendo evidentes quais os riscos da retoma do Recorrente, tal deficit não poderá, ao contrário de outros casos, ser nesta sede colmatado(9).

Por fim, importa acrescentar que a situação dos autos, face a todo o exposto, embora possa colocar questões idênticas sobre as quais o Supremo Tribunal Administrativo teve, muito recentemente, oportunidade de se pronunciar(10), são delas inteiramente distintas, desde logo porque, no caso em apreço, havendo já uma decisão proferida quanto ao pedido de asilo formulado pelo Requerente, ora Recorrente, o vício da sentença que entendemos verificar-se, repercute-se numa aplicação que consideramos indevida do art. 3.º deste Regulamente, mas por motivos que não foram conhecidos no citado aresto do Supremo Tribunal Administrativo, assim como da doutrina que do mesmo dimana, como procurámos demonstrar.

Nestes termos, procedendo o invocado erro de julgamento imputado à sentença recorrida imperioso se torna anular o ato impugnado, por vício de violação de lei, concretamente, por errada interpretação e aplicação do art. 3.º do Regulamento de DublinIII, e por deficit de instrução, por aplicação do princípio de non refulement, ao abrigo do art. 33.º da Convenção de Genebra e art. 47.º da Lei do Asilo, nos termos e com os fundamentos supra expostos.

Em face do que, fica prejudicado o conhecimento dos restantes erros de julgamento imputados à sentença recorrida, atenta a necessária retoma do procedimento na fase de instrução a que se seguirá nova decisão.

III. Decisão

Nestes termos e face a todo o exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e, conhecendo em substituição, anular o ato impugnado, por vício de violação de lei, concretamente, por errada interpretação e aplicação do art. 3.º do Regulamento de DublinIII, e por deficit de instrução, por aplicação do princípio de non refulement, ao abrigo do art. 33.º da Convenção de Genebra e art. 47.º da Lei do Asilo.

Sem Custas por isenção objetiva (cfr. art. 84.º da Lei nº 27/2008, de 30.06.).

Lisboa, 10.09.2020.

Dora Lucas Neto

Pedro Nuno Figueiredo (com declaração de voto)

Celestina Castanheira

Declaração de voto

Sem que se desconheça a jurisprudência do STA sobre a presente matéria, que aliás o signatário tem seguido, no caso em apreciação vem invocada uma situação de privação sofrida em território italiano, bem como uma situação de especial vulnerabilidade, pelo que se justifica a avaliação individual detalhada do caso. Assim, acompanha-se o sentido da decisão.

Pedro Nuno Figueiredo

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(1) Art. 2.º, n.º 1, alínea aa) da Lei do Asilo: «Proibição de repelir ('princípio de não repulsão ou non-refoulement')», o princípio de direito de asilo internacional, consagrado no artigo 33.º da Convenção de Genebra, nos termos do qual os requerentes de asilo devem ser protegidos contra a expulsão ou repulsão, direta ou indireta, para um local onde a sua vida ou liberdade estejam ameaçadas em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas, não se aplicando esta proteção a quem constitua uma ameaça para a segurança nacional ou tenha sido objeto de uma condenação definitiva por um crime ou delito particularmente grave.
(2) Disponível, aqui: https://www.fluechtlingshilfe.ch/assets/herkunftslaender/ dublin/italien/200121-italy-reception-conditions-en.pdf; para mais informação, consultar também: AIDA - Asylum Information Database, Country Report 2018 Update: Italy, April 2019; AArgauer Zeitung, Dublin-Fälle: Strengere Kriterien für Überstellungen nach Italien, January 2020; ECRE, Italy: Report on Effects of the “Security Decrees” on Migrants and Refugees in Sicily, January 2020; ECRE, Italy: Rescued Asylum Seekers Left in “Extremely Critical” Conditions in Messina Hotspot, October 2019.
(3) O Asylum Information Database (AIDA) é um banco de dados gerido pelo Conselho Europeu de Refugiados e Exilados (ECRE), contendo informações sobre procedimentos de asilo, condições de acolhimento, detenção e conteúdo da proteção internacional em 23 países, incluindo 19 Estados Membros da União Europeia (UE) (Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre, Alemanha, Espanha, França, Grécia, Croácia, Hungria, Irlanda, Itália, Malta, Holanda, Polônia, Portugal, Romênia, Suécia, Eslovênia) e 4 países não pertencentes à UE (Suíça, Sérvia, Turquia, Reino Unido). Tem como objetivo contribuir para a melhoria das políticas e práticas de asilo na Europa e a situação dos requerentes de asilo, fornecendo a todos os atores relevantes as ferramentas e informações adequadas para apoiar seus esforços de advocacia e litígios, tanto em nível nacional quanto europeu, cfr. informação disponível no sua página de internet, aqui: https://www.asylumineurope.org/about-aida
(4) in Country Report Italy, 2018 Update, April 2019, pgs. 99-101.
(5) Neste sentido CATHRY COSTELLO, “Dublin Case NS/ME: finally, an end to blind trust across the E.U.?”, 2012, pg. 88, disponível aqui: http://www.ejtn.eu/Documents/About%20EJTN/Independent%20Seminars/Asylum%20Law%20Seminar%2012-13%20December%202013/CostelloNSMENote2012.pdf
(6) in Mutual Trust and the Dublin Regulation: Protection of Fundamental Rights in the EU and the Burden of Proof, 2013, pg.143, disponível aqui:
https://www.researchgate.net/publication/256046172_Mutual_Trust_and_the_Dublin_Regulation_Protection_of_Fundamental_Rights_in_the_EU_and_the_Burden_of_Proof
(7) Data de assinatura por Portugal: 11.02.1950; data de depósito de instrumento de ratificação: 14.03.1961; início de vigência relativamente a Portugal: 14.09.1961; diplomas de aprovação: aprovada para ratificação pelo Decreto-Lei n.º 42 991, de 26.05.1960; publicação: Diário da República I, n.º 123, de 26.05.1960 (Decreto-Lei n.º 42 991).
(8) Seguindo o conceito adotado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1947, como sendo esta "um estado de completo
(9) v. jurisprudência do TEDH supra citada e doutrina que da mesma dimana, em parte, supra transcrita também.
(10) Cfr. ac. STA, de 09.07.2020, P. 01419/19.9BELSB, disponível aqui: www.dgsi.pt