Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2160/13.1BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:04/11/2019
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:LIQUIDAÇÃO;
CRIME DE FRAUDE FISCAL;
DECLARAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO;
CONFISSÃO;
ABUSO DE DIREITO;
PRESUNÇÃO;
IRS;
MAIS-VALIAS.
Sumário:I – A apresentação de uma declaração de substituição não obsta, per se, a que o contribuinte impugne a liquidação que na sequência da apresentação dessa declaração de substituição seja emitida, quer porque e seria legítimo invocarem-se em juízo fundamentos de desconformidade da liquidação com a declaração de substituição realizada, quer porque essa apresentação pode ter sido condicionada ou determinada por uma inspecção ou investigação criminal e, nessa medida, apenas formalmente constituir uma apresentação voluntária.

II – O abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium pressupõe a verificação cumulativa de vários pressupostos, que, numa aplicação directamente dirigida ao ordenamento em que nos movemos, são os seguintes: a existência dum comportamento anterior do contribuinte capaz de fundar uma situação objectiva de confiança na Administração Tributária; que ambas as condutas (anterior e posterior) sejam imputáveis ao contribuinte; que a Administração Tributária esteja de boa-fé e o comportamento por si desenvolvido (actividade dirigida à emissão da liquidação) se funde num facto pessoal do contribuinte e, por fim que haja um nexo causal entre aquela situação objectiva de confiança e a actividade da Administração.

III – A presunção legal de veracidade consagrada no artigo 75.º da lei Geral Tributária traduz uma inversão do ónus probatório. Porém, através dela não se pode pretende fazer recair sobre o contribuinte o ónus de alegar e provar de que não é verdade o que consta da sua declaração, permanecendo sobre a Administração Tributária, mesmo nas situações referidas em I, o ónus de alegar e provar os factos em que sustentou a liquidação que emitiu na sequência da apresentação daquela declaração de substituição e cuja manutenção na ordem jurídica defende.

IV – Se apenas resultou provado que a 6 de Fevereiro de 2006 o sujeito passivo adquiriu 50% da totalidade das quotas que compunham o capital social de uma sociedade e que esta sociedade, que integrava no seu imobilizado um prédio urbano, o vendeu a 30 de Março desse mesmo ano a uma terceira sociedade, tem que se concluir que não existe o facto tributário invocado como fundamento de tributação impugnada, por não estarem preenchidos os pressupostos de tributação previstos no artigo 2.º, n.º 2, al. d) do CIMT (que tem como pressupostos objectivo a aquisição de uma participação social igual ou superior a 75%) nem os previstos no artigo 10.º, n.º 1 al. a) do CIRS (que tem como pressuposto subjectivo que o facto gerador de mais-valias seja pessoalmente imputável ao alienante e no caso foi uma aquisição e alienação realizada por uma sociedade).
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acórdão

I – Relatório

A Autoridade Tributária e Aduaneira, não se conformando com a sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por Ezequiel .............. contra o acto de liquidação adicional de IRS e respectivos juros compensatórios, referentes aos rendimentos da categoria “G”, do ano de 2006, no montante global de €131.298,34, dela veio recorrer para este Tribunal Central Administrativo Sul.

Tendo alegado, formulou, a final, as conclusões que infra se reproduzem:

«I - Na douta sentença a quo assentou-se que a liquidação de IRS decorrente de uma declaração de substituição, não se pode manter na ordem jurídica, quando o fundamento da mesma, não obstante a respectiva entrega voluntária por parte da Impugnante, reside nos factos indiciários apurados em sede de inquérito criminal fiscal, mormente na acusação deduzida pelo Ministério Público, sem que dos presentes autos resultem evidenciados factos índice que as suportem.

II- Deste entendimento, ressalvada a devida vénia, dissente esta RFP, porquanto as declarações de substituição apresentadas pela recorrida gozam de presunção legal de veracidade ao abrigo do disposto no artº75°, nº1 da LGT, motivo pelo qual, em face desta presunção legal, o acto impugnado só pode ser anulado com fundamento na prova do contrário.

III- Ora, a prova do contrário não admite dúvida, pelo que ao invocar-se a fundada dúvida sobre a existência e qualificação do facto tributário, não foi afastada aquela presunção legal.

IV- Com efeito e conforme resulta do probatório, o Impugnante entregou uma declaração de substituição de IRS para o ano de 2006, em cujo anexo G declarou a aquisição do imóvel identificado nos autos e a correspectiva venda, o que se traduziu na assunção da realidade fáctica que decorre da investigação criminal encetada pelos serviços da AT e do despacho de acusação deduzido pelo MP.

V- Posto que se assim não fosse, o Impugnante, por certo, não teria apresentado voluntariamente a declaração de substituição de rendimentos do ano de 2006, declarando no respectivo anexo G, quadro 4 e campo 401, os respectivos valores de realização e de aquisição do imóvel.

VI - E tendo a AT confiado no declarado pelo Impugnante, emitiu a liquidação de l.R.S. ora em crise, que assenta na declaração de substituição entregue pelo Impugnante, cujos elementos aí mencionados se presumem ser verdadeiros e prestados de boa-fé, nos termos do disposto no artigo 75º da L.G.T.

VII- Ora, ao vir o Impugnante nesta sede, contrariar o que anterior e voluntariamente declarou, tal conduta traduz-se num abuso de direito, designadamente, na vertente venire contra factum proprium, caracterizada pelo exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida e proclamada.

VIII - Posto que, ao apresentar uma declaração de substituição e ao proceder ao pagamento do tributo em conformidade com os elementos que constavam do despacho de acusação do MP e relatório da AT, tal constituiu manifestação de concordância com o apuramento de imposto efectuado no âmbito do inquérito criminal.

IX - Assim, a liquidação de imposto sindicada mostra-se legítima e legal, pelo que se deve manter na ordem jurídica e ao assim não entender, a douta sentença a quo violou, entre outros, o disposto no artigo 75º, nº1, da LGT, bem como os artigos 344° e 350°, nº 2, do CC.

Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que declare a impugnação totalmente improcedente, tudo com as legais e devidas consequências.

PORÉM V. EX.AS DECIDINDO FARÃO A COSTUMADA JUSTIÇA»

O Recorrido, notificado da admissão do recurso interposto, não contra-alegou.

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, junto deste Tribunal Central, pugnou no seu douto parecer pela procedência do recurso.

Colhidos os «Vistos» dos Ex.mos Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir, submetendo-se para o efeito os autos à Conferência.

II – Objecto do recurso

Como é sabido, sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso.

Assim, e pese embora na falta de especificação no requerimento de interposição se deva entender que este abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (artigo 635.°, n°2 do Código de Processo Civil) esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser, expressa ou tacitamente, restringido nas conclusões da alegação (n.°3 do mesmo artigo 635.°). Assim, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, devem considerar-se definitivamente decididas e, consequentemente, delas não pode conhecer o Tribunal de recurso.

Acresce que, constituindo o recurso um meio impugnatório de decisões judiciais, neste apenas se pode pretender, salvo a já mencionada situação de questões de conhecimento oficioso, a reapreciação do decidido e não a prolação de decisão sobre matéria não submetida à apreciação do Tribunal a quo.

Atento o exposto, e tendo presentes as conclusões de recurso apresentadas, parece- não existirem dúvidas de que a Recorrente funda a sua pretensão revogatória da sentença recorrida na resposta afirmativa que entende dever ser dada às duas questões/críticas realizadas ao julgado.

A primeira prende-se com a valoração dos factos dados como provados: estando provado que o Impugnante apresentou de forma voluntária uma declaração de substituição e que procedeu, também voluntariamente, ao pagamento da liquidação que subsequentemente foi emitida e que como aquela mostra conforme e se presume legal, não podia o Tribunal a quo ter concluído pela sua ilegalidade, muito menos sustentar-se na “fundada dúvida”.

A segunda com a irrelevância dada à própria motivação subjacente à apresentação da declaração de substituição: tendo o Impugnante apresentado a declaração de substituição na sequência da investigação criminal encetada pela Administração Tributária e da prolação do despacho de acusação, aquela apresentação haverá de entender-se como a “assunção da realidade fáctica que decorre daquela investigação”, constituindo, inclusive, a presente Impugnação Judicial um abusivo exercício do direito.


III - Fundamentação de facto

Em 1ª instância a factualidade julgada relevante e provada ficou vertida na sentença nos termos que infra se reproduzem:

1. O impugnante, Ezequiel .............., em 01/02/2002, iniciou a atividade de construção de edifícios e compra e venda de bens imobiliários (CAE 41200 e 68100), encontrando-se enquadrado em sede de IRS no regime geral e em sede IVA no regime de isenção – cfr. fls. 66 e 67 do processo administrativo em apenso aos autos;

2. Em 06/02/2006, no Cartório Notarial da Lic. Raquel .............., Ezequiel .............. e Julieta .............., na qualidade de gerente da “Sociedade I.............., Lda.”, outorgaram escritura denominada “Cessões e Unificações de Quotas e Alteração Parcial de Contrato” – cfr. fls. 26 a 36 dos autos;

3. Na referida escritura, identificada no ponto anterior, Ezequiel .............. e Julieta .............., esta na qualidade de gerente da “Sociedade I.............., Lda., ”adquiriram na proporção de metade para cada um, a totalidade das quotas que, então, compunham o capital social da “Empresa de .............., Lda.” no valor de €5.000,00, tendo pago cada um pelas referidas quotas a quantia de €625.000,00, o que perfaz o valor total de €1.250.000,00 – cfr. fls. 26 a 36 dos autos;

4. A Empresa de .............., Lda., integra no seu imobilizado o prédio urbano sito na Rua .............., composto pelas fracções autónomas designadas pelas letras “A”, “B”, “C”, “D”, “E”, “F”, “G” e “H”- Acordo;

5. Em 30/03/2006, no mesmo Cartório Notarial, referido supra, a Empresa de .............., Lda., e António .............. na qualidade de sócio-gerente da “A.............., Lda.”, outorgaram escritura pública de “Compra e Venda”, através da qual a Empresa de .............., Lda., vende à A.............., Lda., o prédio situado no nº…, da Rua .............., em Lisboa, pelo preço de €2.300.000,00 que corresponde às fracções autónomas designadas pelas letras “A”, “B”, “C”, “D”, “E”, “F”, “G” e “H”- cfr. fls. 37 a 42 dos autos;

6. A Empresa de .............., Lda., em datas posteriores a 2006, continuou a comprar e vender imóveis – cfr. fls. 53 a 75 dos autos;

7. Em 24/05/2007 o, ora impugnante, apresentou declaração de rendimentos referente ao IRS/2006, preenchendo os anexos A, C e H, não exibindo elementos referentes à venda do imóvel referido no ponto 4, deste probatório – Acordo;

8. Entretanto, foi instaurado processo de inquérito criminal com nº3/10.7FLSB à Empresa de .............., Lda., por suspeita do crime de fraude fiscal previsto e punido nos termos do “art.103º do RGIT” (aprovado pela Lei 15/2001, de 05/06) - Acordo;

9. Em 04/05/2013, foi proferido despacho de acusação a Ezequiel .............. e, outros, sendo este acusado da prática do crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido “art.104º do RGIT” – cfr. fls. 111 a 132 do processo administrativo em apenso aos autos;

10. Em 07/05/2013, o ora impugnante, apresenta declaração de substituição do IRS/2006, com os anexos A, C, G e H – cfr. fls. 43 a 51 dos autos;

11. Do anexo G da declaração de substituição do IRS/2006, com referência ao imóvel urbano sob o artigo ....., situado no nº… da Rua .............., vem o ora impugnante declarar no quadro 4 o seguinte:
ALIENAÇÃO ONEROSA DE DIREITOS REAIS S/ BENS IMOVEIS E AFETAÇÃO DE IMÓVEIS A
ATIVIDADE EMPRESARIAL E PROFISSIONAL ART. 10º, 1, AL. A) DO CIRS
    REALIZAÇÃO
    AQUISIÇÃO
AnoMêsValorAnoMêsValor
20063€ 1.150.000,0020062€ 625.000,00
12. Em 09/07/2013, com base na declaração de substituição é efectuada pelos serviços da A.T. a liquidação nº..............., referente ao IRS/2006 em que é apurado imposto no valor de €104.292,00 e juros compensatórios no valor de €25.245,00, no montante total de € 129.537,00 – cfr. fls. 16 dos autos;

13. Em 22/01/2014, foi emitida a nota de regularização/compensação pelo valor de €131.298,34 – cfr. fls. 68 do processo administrativo em apenso aos autos;

14. Em 18/12/2013, o impugnante procedeu ao pagamento da liquidação ao abrigo do D.L.151-A/2013, pelo valor de €106.053,01 – cfr. fls. 69 e 70 do processo administrativo em apenso aos autos.


Consta da mesma sentença em sede de julgamento de facto que, «Não resulta provado que o impugnante por via da aquisição das quotas da E..............., Lda., tenha gizado um plano para não pagamento de mais-valias em sede de IRS/2006» e «Não existem outros factos relevantes para a decisão que importe destacar como não provados» e que a decisão da matéria de facto se efectuou com base « no teor dos documentos citados nas alíneas supra».

IV – Fundamentação de direito

Os Impugnantes (doravante Recorridos) intentaram a presente Impugnação Judicial visando a anulação da liquidação de IRS que foi emitida na sequência da declaração de rendimentos (Mod. 3), de substituição que apresentaram no Serviço de Finanças de Oeiras-… após a realização de uma investigação criminal – iniciada pela Administração Tributária e posteriormente prosseguida pelo Ministério Público, cujo inquérito encerrou com a dedução contra o Impugnante (e outros) de acusação pela autoria de factos susceptíveis de preencherem a prática de crime de fraude fiscal, em processo-crime que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras.
Na petição inicial, para além de invocarem a ilegalidade da liquidação - decorrente da não verificação dos pressupostos que a determinaram por não existir facto tributário e a caducidade do direito à liquidação - assumiram, ab initio, que a apresentação daquela declaração de substituição não devia ser entendida “como consubstanciando um documento de anuência ou confissão das interpretações das normas decorrentes da opinião daquelas duas entidades, mas, antes, e tão só, como um recurso inerente à defesa dos interesses do Impugnante para obviar aos inconvenientes derivados da instauração do Processo de Inquérito Criminal já referido, aliás, tudo de acordo com a permissão do art. 44.º do Regulamento Geral das Infracções Tributárias”.
Comecemos, pois, por dissecar esta posição, muito especialmente na sua relação directa com as questões enunciadas no ponto II deste acórdão: é ou não legalmente admissível a impugnação de um acto tributário de liquidação quando este nasce directamente da própria declaração apresentada pelo contribuinte e está formalmente conforme com ele? É ou não legítimo que um contribuinte, pese embora tenha apresentado voluntariamente uma declaração de substituição, impugne a liquidação que nessa declaração se funda?
Vimos já que a Recorrente, sem pôr em questão a faculdade de exercício do direito dos Recorridos a impugnar judicialmente a liquidação, entende que in casu a legalidade da liquidação é indiscutível, quer porque está provado que a declaração foi apresentada voluntariamente (tal como o pagamento que lhe sucedeu) e traduz um reconhecimento de que os factos que estão na sua base são verdadeiros, quer porque essa declaração beneficia de uma presunção de legalidade que só pode ser afastada pela prova absoluta em contrário, não se bastando, pois, com a verificação de uma “fundada dúvida” quer, por fim, porque a própria impugnação e os fundamentos nela convocados traduzem um abuso de direito na vertente de venire contra factum proprium.
Não cremos que lhe possa ser reconhecida razão por vários motivos.
Desde logo – e importa que isto fique bem claro – em momento algum o Tribunal a quo fundou a procedência da Impugnação e a anulação da liquidação e respectivos juros compensatórios na verificação de fundada dúvida sobre a existência de facto tributário, resultando absolutamente evidente do julgado que o Tribunal de 1ª instância não teve dúvida alguma de que não existia facto tributário capaz de sustentar a emissão da liquidação impugnada.
Aliás, para além de no julgamento não ter ficado exteriorizado qualquer juízo que possa ser interpretado como tendo sido a fundada dúvida que conduziu o Tribunal a anular a liquidação, não foi aí realizada qualquer alusão ao artigo 100.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, onde, como é sabido, o regime legal em análise e os seus efeitos se mostram regulados.
Carece, pois, salvo o devido respeito, de sentido, o teor das conclusões I a III das conclusões transcritas no ponto I supra.
Por outro lado, é entendimento pacífico na jurisprudência que a apresentação de uma declaração de substituição per se não obsta a que o contribuinte/apresentante impugne a liquidação que na sequência da apresentação dessa declaração de substituição foi apresentada. Não obsta, seguramente, se são invocados fundamentos de desconformidade da liquidação com a declaração realizada. E também não deve obstar quando essa apresentação, como é o caso, resulta de uma apresentação que apenas “formalmente” é voluntária uma vez que, efectivamente, na origem dessa apresentação esteve a realização de uma inspecção ou investigação criminal cujo desfecho ainda nem sequer se concretizou.
Como se afirmou já em acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, não estamos, nestas situações perante uma verdadeira “confissão de dívida, nem de uma confissão de rendimento, muito menos de uma confissão da sua ocultação. Movemo-nos no âmbito do direito tributário em que o legislador entendeu que, nestes casos, deve ser apresentada uma declaração de substituição e a sua não apresentação é punível com coima. Mas da apresentação dessa declaração não decorre que, sem possibilidade de discussão contenciosa do que dela conste, o contribuinte afirma e aceita a legalidade da tributação que com base nela ocorre. A declaração de substituição, como a declaração inicial não priva o contribuinte de vir posteriormente a demonstrar que alguns dos dados que dela constam, pese embora hajam por si sido indicados, não correspondem à verdade.” (1)
Nesta medida, também esta impugnação não poderá em circunstância alguma ser considerado ou traduzir um abuso do direito, o qual, na modalidade invocada – venire contra factum proprium – pressupõe a verificação cumulativa de vários pressupostos que, numa aplicação directamente dirigida ao ordenamento em que nos movemos, são os seguintes: a existência dum comportamento anterior do contribuinte capaz de fundar uma situação objectiva de confiança na Administração Tributária; que ambas as condutas (anterior e posterior) sejam imputáveis ao contribuinte; que a Administração Tributária esteja de boa-fé e que o comportamento desenvolvido – actividade dirigida à emissão da liquidação - assente num facto pessoal do contribuinte e que haja um nexo causal entre aquela situação objectiva de confiança e a actividade da Administração.
Ora, sem prejuízo de se realçar que é indiscutível a boa-fé que presidiu à conduta da Administração Tributária, são vários, como está bem de ver, os pressupostos que não se verificam, designadamente, é manifesto que o comportamento do contribuinte – traduzido na apresentação de uma declaração de substituição – não pode ter gerado uma situação objectiva de confiança porque aquela foi exclusivamente apresentada por causa do despacho de acusação, o que o contribuinte fez questão de salientar e, consequentemente, também não pode julgar-se verificado o nexo de causalidade entre esse (inexistente) comportamento capaz de fundar uma situação objectiva de confiança e a actividade da Administração, o que é, quanto a nós, suficiente para que se afaste, em definitivo, a aplicação do instituto do abuso de direito convocado pela Recorrente.
Donde, e como na sentença recorrida fica evidenciado, tudo se resume nestas situações a uma questão do ónus da prova cujo enquadramento o Supremo Tribunal Administrativo também já por diversas vezes realçou, ao afirmar que na estrutura do IRS visa-se tributar apenas o rendimento efectivo dos contribuintes, embora esses rendimentos efectivos possam ser presumidos, competindo à Administração Fiscal demonstrar a existência dos factos constitutivos dos seus direitos, ou seja, a verificação de situações susceptíveis de serem tributadas nesta sede, designadamente ao abrigo do preceituado no artigo 10.º, n.º 1 al. a) do Código de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares.
Aliás, que assim é bem o compreendeu a Administração Tributária que nas suas alegações deu elevado relevo à presunção legal de veracidade consagrada no artigo 75.º da Lei Geral Tributária, tentando demonstrar que, verificando-se esta, os dados inscritos da declaração – e que posteriormente fundam a liquidação - só podiam ser afastados se o Recorrido tivesse demonstrado a falta de veracidade da mesma.
Porém, sem razão.
Sem razão, porque a presunção de legalidade de veracidade não está legalmente instituída para beneficiar a Administração Tributária mas o contribuinte que dela se pode valer (ou tentar valer) para afastar um acto de tributação que dela se afasta ou que a posterga, como linearmente resulta do regime consagrado no artigo 75.º da Lei Geral Tributária.
Sem razão porque, embora seja certo que a presunção legal de veracidade traduz, conduz, efectivamente, a uma inversão do ónus probatório, contrariamente ao que a Recorrente pretende ora fazer valer, não se pretendeu, através da sua consagração, fazer recair sobre o contribuinte (até pelas razões anteriormente aduzidas), a prova de que não é verdade o que consta da sua declaração, antes instituir um regime que o beneficia, verificados que sejam os pressupostos que o determinam, o que significa que, mesmo nas situações como a que apreciamos, persiste o dever/ónus da Administração Tributária de alegar e provar os factos em que sustentou a liquidação que emitiu e cuja manutenção na ordem jurídica defende.
Ora, como se vê da factualidade vertida no probatório, que a Recorrente não impugnou, para além da apresentação da declaração de substituição, cuja relevo já delimitámos, tudo quanto se apurou com relevo foi que o Recorrido marido adquiriu, a 6 de Fevereiro de 2006, 50% da totalidade das quotas que compunham o capital social da “Empresa de .............. Lda”, a qual integrava no seu imobilizado um prédio urbano sito na Rua .............. e que em 30 de Março desse mesmo ano esse prédio foi vendido por aquela sociedade a uma terceira sociedade.
Ora, considerando que a aquisição de participações sociais inferiores a 75% do capital está afastada do âmbito de aplicação do preceituado no artigo 2.º, n.º 2, al. d) do CIMT e que a aquisição do imóvel foi realizada por uma sociedade e não pelo Recorrido, o que conduz à sua exclusão do âmbito de aplicação da norma de tributação consagrada no artigo 10.º, n.º 1 al. a) do CIRS, é forçoso concluirmos, como o fez a sentença recorrida, que a liquidação, ainda que suportada na declaração apresentada pelo contribuinte, não tem fundamento legal.
É certo que do inquérito crime cuja cópia foi junta a estes autos através da apensação do processo administrativo e sobretudo da acusação aí deduzida consta uma narrativa que parece contrariar a conclusão a que chegámos mas, se bem vemos, apenas aparentemente essa contradição existe.
Para que bem se compreenda o que vimos dizendo é fundamental relevar-se que são distintos os objectos dos dois processos que agora colocamos em confronto.

Neste processo, de Impugnação Judicial, o que está em questão é a legalidade da liquidação, o que passa, atentos os termos em que a questão nos foi colocada pelo Impugnante, pela prova de que o Impugnante deve ser tributado em sede de IRS pelas mais-valias de que alegadamente beneficiou na sequência de uma aquisição e subsequente alienação, a título pessoal, de um imóvel. Exige-se, pois, a alegação e prova de que essa aquisição foi efectivamente realizada a título pessoal pelo Recorrido e que, tendo a subsequente venda sido realizada por valor superior e, em conformidade, geradora de mais-valias, tinham estas obrigatoriamente que ser declaradas no anexo G da Declaração de rendimentos Mod. 3 que foi apresentada, declaração essa que, como sabemos, apenas ocorreu na declaração de substituição.

Distintamente, no processo-crime, instaurado pela alegada prática de factos constitutivos de um crime de fraude fiscal, previsto no artigo 103.º do RGIT [que pune as condutas ilegítimas tipificadas nesse mesmo artigo através das quais se visam a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias, que pode ter lugar por acção ou omissão - ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria coletável; ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária ou celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoase que, sendo cometida pelo uso de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes passa a ser um crime qualificado) a questão prende-se com o apuramento desses factos, isto é, pela prova de que tendo em vista eximir-se ao pagamento dos impostos que seriam devidos pela aquisição de um imóvel e subsequente venda do mesmo, alguns contribuintes, nos quais se inclui o aqui Recorrente, particulares, planearam e concretizaram um plano suportado na criação de sociedades comerciais constituídas exclusivamente tendo em vista esse fim e com o juízo que venha a ser feito, na sede própria, de esses factos, a provarem-se, constituírem efectivamente a prática de um crime daquela natureza.

Note-se, aliás, que mesmo neste contexto nada obstava a que a Administração Fiscal, para além de se defender com a apresentação voluntária da declaração de substituição, tivesse alegado e provado neste processo os factos que por si foram detectados e a pré-determinaram a desencadear a inspecção e investigação criminal, o que, embora tenha tentado, não logrou realizar, resultando, aliás, comprovado, outrossim, que antes da aquisição da participação social de 50% do capital social da Empresa de .............. Lda” já o Recorrido marido se dedicava à actividade de construção de edifícios e compra e venda de bens imobiliários e que depois dessa aquisição e através da sua qualidade de sócio nessa mesma empresa persistiu no desenvolvimento da actividade de compra e venda de imóveis, objecto social que formalmente consta do instrumento jurídico porque foi constituída (cfr. factualidade constante do ponto II supra, sob os n.ºs 1 e 6.).

É pois de julgar improcedente o presente recurso jurisdicional, ao que, na parte dispositiva, se procederá.

V- Decisão

Face ao exposto, acordam, em conferência, os Juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, negando provimento ao recurso jurisdicional, em confirmar integralmente na ordem jurídica a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.

Registe e notifique.


Lisboa, 11 de Abril de 2019

(Anabela Russo)

(Tânia Meireles da Cunha)

(Mário Rebelo)


_____________________________
(1) Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 28 de janeiro de 2015, proferido no processo n.º 901/14, disponível para consulta em www.dgsi.pt,